Sete meses de sua morte e me era inconcebível aceitá-la. Ouvia sua voz de vez em quando… Ou era impressão? Não sei. Passei a me dedicar intensamente ao trabalho, tanto que acabei negligenciando algumas coisas referentes aos nossos filhos. Deixei nossos gatos definitivamente com Sílvia. Os gêmeos passavam mais tempo com Marina que em casa. Dispensei Bertha e coloquei-os em uma escola integral. Aceitei viagens quase que contínuas para não ter que permanecer ali onde a felicidade e a tristeza andavam juntas e a saudade de você era insuportável.

Numa tarde em que tentava não pensar, recebi uma encomenda de uma empresa de táxi aéreo. Reconheci sua bagagem. Minhas pernas bambearam e uma vertigem se apoderou de mim. Sentei-me incrédula, olhando para sua mala e uma valise onde levava seus documentos de trabalho e o laptop. Levei quase uma hora para tomar coragem de mexer em suas coisas. Suas roupas revelando o aroma inesquecível. Dois pacotes: um com o nome dos gêmeos que, pelo formato, seriam DVDs. Com certeza o último desenho da Disney que nem sequer estreara no cinema. E um pequeno cubo azul enfeitado com fita e um cartão.

“Para que não te esqueças. Para que eu não esqueça. Para que não nos esqueçamos. Te amo. E.L.”

Quando abri aquela caixinha e vi as alianças em ouro branco cravejadas em pequenos diamantes que formavam nossas iniciais deixei que toda a dor sufocada numa tentativa de não aceitar que estavas morta, tomar conta de mim através de um grito num único som. Agarrei-me as suas coisas num desespero mórbido, e quis amaldiçoar a mim mesma por ter permitido sua partida. Sim, eu poderia ter impedido. Eu nunca deveria tê-la deixado ir sozinha. Você não deixaria que eu fosse. Cada pensamento me agredia mais e mais e eu senti que morria mesmo estando miseravelmente viva.

Algum tempo depois, já recomposta, levei a bagagem para nosso quarto. Guardei tua roupa onde se encontravam outras das quais não consegui me desfazer. A sua valise de trabalho ainda não havia sido aberta. Lá encontrei os papéis de trabalho que eu devolveria ao seu boss assim que pudesse. Outros documentos bancários, extratos de uma conta conjunta em nosso nome e uma em nome de nossos filhos. Muito dinheiro. De que servia? Suspirei entediada e triste. Seu laptop. Segurei-o nas mãos, acariciando a superfície lisa. Sentei-me na cama recostando-me antes de abri-lo. Uma senha era solicitada. Digitei com o coração na garganta a frase “amor sem fim” e a tela se abriu. Uma foto de nós duas em Djerba quando consumamos nosso amor. E as lágrimas vieram mais uma vez, só que calmas, sem forças. Na área de trabalho um arquivo se destacava: “PARA VER COM MEU AMOR”.

Cliquei ansiosa, e ao te ver sorrindo e pedindo para quem te filmava ficar parado, meu coração se encheu de ternura e saudades. Você estava numa praia vestida de branco; o vento bagunçava seus cabelos que formavam cachos macios que eu adorava acariciar quando sua narrativa começou.

“Vida, daqui a algumas horas vou estar ao seu lado, em nossa cama, vendo esta produção hollywoodiana que meu amigo Assir e eu estamos preparando. Acho que você lembra dele… “ — neste momento aparece ao seu lado um rapaz sorridente dizendo num português terrível: — “Recado senhorita!” — Sim, recordei na hora do garoto que me abordou quando me isolei em Djerba, e um sorriso aflorou em meus lábios junto com outras lágrimas de saudades. A câmera retornou para você.

“Meu amor, aqui nesta praia aonde um dia vim te resgatar para sermos felizes finalmente, quero mais uma vez fazer os votos de amor eterno. Quero que seja a minha mulher, amiga, amante. Mãe de nossos filhos. Para todo o sempre e muito mais. Todos os dias eu peço a Deus que continue me concedendo a tua vida ao meu lado…” — neste momento foi inevitável segurar o choro — “… creio que Ele sempre me deu a maior prova de que Sua existência é verdadeira, porque estou aqui me declarando para você, na nossa praia onde um coração desenhado na areia persiste ao tempo e persistirá além dele. Porque daqui a pouco mais de quinze horas vou estar me preenchendo de vida e de felicidade. Porque daqui a pouco mais de quinze horas eu vou abrir a porta de casa e vou entrar no paraíso. Um paraíso que não vou precisar morrer para poder comprovar o quanto é maravilhoso. Então, Senhora Love… Quer se casar comigo? De novo, e de novo, e de novo, mesmo que a morte nos separe? ”

Você disse isso se ajoelhando ao lado do coração inscrito na areia e abrindo a caixinha com as alianças. Você ergueu-se e continuou.

“Bom, acho que a produção acaba por aqui. Deve estar se perguntando por que eu quis gravar este pedido. Pode ser que, quando ficarmos bem velhinhas, eu sofra do mal de Alzheimer, então poderei lembrar para sempre do quanto nos amamos. Te vejo logo.”

Fechei o aparelho com o coração na boca de tanta emoção sentida. Então deixei que a dor viesse e saísse em gritos e choro desesperados até que minh’alma vazia deu-me a certeza de que não estavas mais aqui.

¿Quién dijo que todo está perdido? 
yo vengo a ofrecer mi corazón,
tanta sangre que se llevó el río,
yo vengo a ofrecer mi corazón.

No será tan fácil, ya sé qué pasa,
no será tan simple como pensaba,
como abrir el pecho y sacar el alma,
una cuchillada del amor.

Luna de los pobres siempre abierta,
yo vengo a ofrecer mi corazón,
como un documento inalterable
yo vengo a ofrecer mi corazón.

Y uniré las puntas de un mismo lazo,
y me iré tranquilo, me iré despacio,
y te daré todo, y me darás algo,
algo que me alivie un poco más.

Cuando no haya nadie cerca o lejos,
yo vengo a ofrecer mi corazón.
cuando los satélites no alcancen,
yo vengo a ofrecer mi corazón.

Y hablo de países y de esperanzas,
hablo por la vida, hablo por la nada,
hablo de cambiar ésta, nuestra casa,
de cambiarla por cambiar, nomás.

¿Quién dijo que todo está perdido?
yo vengo a ofrecer mi corazón.

Fito Paez (Letra e música)

— Te vejo logo…

Meus olhos abriram-se e uma sensação surpreendente de compreensão me cercou o peito. Um sonho real demais para não deixar impressões profundas. Estávamos na praia onde rodaste o vídeo. Tuas mãos seguravam as minhas, mas uma força te levava de mim. De repente a força cessa e eu consigo te abraçar, mas, ao nos separarmos, não conseguia reconhecer seu rosto… “Te vejo logo”… Tua voz repetia e teu rosto ia sumindo, enquanto uma angústia me sufocava.

A lentidão com a qual me ergui da cama denunciava meu extremo cansaço. Teu note permanecia fechado e meu coração pareceu ter se aberto para uma verdade descoberta: eu não estava sobrevivendo. Estava passando por cima da dor, essa mania que sempre achei me fazer bem, me matava e te matava outra vez, por fim. Suspirei e tratei de guardar as lembranças, as físicas e as da mente. Abri a porta da varanda e a brisa marinha alcançou-me em cheio… “te vejo logo”… Pus meus pés descalços na areia fina e branca da praia. Caminhei em direção ao mar e meus olhos instintivamente se fecharam para receber a certeza de ter, finalmente, entendido o que vivemos e o que eu ainda teria que viver. E viver para mim tornou-se claro como a água. Precisava quebrar os paradigmas, precisava reinventar o amor dentro de mim para manter viva a promessa que fizemos muitas vezes em nossa cama: em nome do amor, sobreviver.

Assim que a porta da casa de Marina se abriu atirei-me em seus braços emocionada.

— Onde estão? — perguntei ainda sem reparar que ela recebia uma pessoa na sala.

— Brincando no quintal. Agora são famosos biólogos e adivinha quem é o chefe do laboratório? — rimos por sabermos que uma menina ruiva de olhos verdes já dizia ao que vinha. Então Marina me apresentou a sua visita.

— Cris, esta é Helena, prima de Sílvia. Chegou hoje da Austrália depois de dez anos longe.

A mulher era de uma estatura impressionante, acredito que um metro e noventa não estavam tão longe. O cabelo finíssimo em corte Chanel de cor amarelada cobria parte do rosto, mas deixando transparecer o esverdeado contido dos olhos.

— Prazer. — o tom grave da voz foi seguido de um sorriso suave e um aperto de mão rápido — Bem, Marina, eu preciso ir. Ainda tenho um monte de malucos pra visitar e não ganharei nem um tostão por isso! — despediu-se e saiu.

Contei a Marina do ocorrido horas antes. Reforçou minhas ideias dando-me apoio em que eu precisasse. Então os “biólogos” da vez entraram como furacão na sala e o que presenciei neste momento me partiu o coração em dois. Os gêmeos estacaram assim que me viram. Olhares desconfiados e interrogativos a querer saber o que eu fazia ali se só viria pegá-los na segunda-feira. Gian foi o primeiro a se aproximar me dando um abraço. Giovana aguardava.

— Oi, meus amores. Sei que disse que só viria pegá-los na segunda, mas não aguentei esperar.

O silêncio. Não disseram palavra, estas só foram ditas quando chegamos em casa.

— Eu chamei a Bertha de volta. Não vão precisar ficar na escola o dia inteiro. — sentei-me no sofá e puxei-os para que ficassem de frente para mim.

— De que adianta se você não vai estar? Se vai viajar o tempo todo? Eu prefiro a escola!

Giovana respondeu e um desafio pairava naqueles lindos olhos. O que eu havia feito com eles, meu Deus? Respirei fundo e prossegui.

— Eu pedi demissão do emprego, filha. — eles me ouviam quietos. Segurei-lhes pelas mãos — Sei que durante estes últimos meses eu os abandonei. — minha garganta travou com o choro inevitável — Prometo que não vai mais acontecer. Pedi demissão do emprego e vou dedicar todo meu tempo a recuperar o que não doei a vocês. — abracei-os com carinho — Vamos tirar umas férias prolongadas, conhecer lugares. — senti Giovana tremer e lágrimas quentes molharem minha blusa.

— Achei que ia nos deixar como a mamãe Endless… — ela disse numa amargura antinatural a uma criança. Fazendo meu coração apertar-se um pouco mais.

— Ela não nos abandonou, filha. Tudo o que aconteceu foi contra a vontade dela. Venham cá… — levei-os pro quarto e lá lhes apresentei o vídeo e entreguei-lhes os presentes.  — Ela gostaria muito de ter voltado. Nunca nos abandonaria. Nunca vai nos abandonar.

****

Morríamos de rir, eu e os gêmeos, ao sair da sessão de cinema. Estava feliz. Eles estavam felizes. Eu havia recuperado neles a confiança e a força. Estavam leves e infantis. Eram crianças novamente e eu era mãe outra vez, quem sabe, talvez, pela primeira vez. Seguíamos alegres até a lanchonete quando demos pela frente com uma figura impressionante.

— Ora se não são os “biólogos” da Marina. — e o sorriso veio espontâneo àquele rosto inesquecível.

— Helena!! — os gêmeos gritaram seu nome e foram até ela abraçando-a contentes e falando ao mesmo tempo sobre o desenho animado que acabaram de assistir.

Depois de ela controlar com maestria a empolgação das crianças, aproximou-se de mim ainda sorrindo.

— Como vai, Cris?

Ergui minha mão para apertar a dela e foi como colocá-la numa enorme almofada confortável e calorosa.

— Me divertindo muito. Estamos mortos de fome. Come com a gente?

Percebi no olhar esverdeado que um quê de hesitação passou rapidamente dando lugar a um brilho de prazer quando respondeu.

— Desenho animado dá uma fome terrível. Vamos lá!

Os gêmeos agarram-se a ela continuando a narração de todos os detalhes engraçados do filme. Eu não sabia se ficava com ciúmes ou se me espantava com essa proximidade repentina. Deixei estes pensamentos bobos de lado e passei a observar melhor a mulher. Sabia sorrir com os olhos e, inevitavelmente, o fazia quando me olhava ou quando prestava atenção ao que as crianças diziam. Falava devagar sobre todos os assuntos vindos à tona, fazendo questão de explicar claramente para não deixar dúvidas nos pequenos quanto ao que se discutia. Na hora da comilança ajudou Gian a não se sujar todo, como era de praxe acontecer, com uma delicadeza que não se passa despercebida, como o fizesse desde sempre.

— Você tem filhos, Helena? – a pergunta pareceu constrangê-la de repente – Perdão, eu não quis ser indiscreta.

— Não, não… — ela se apressou a negar –… Não está sendo indiscreta.

— É que você parece ter uma prática incomum com crianças.

— Trabalhei num orfanato quando tinha vinte anos… — sorriu levemente –… eu mesma vivi em um até os quinze e, geralmente, ajudava a cuidar dos menores.

— Você foi adotada? — Giovana perguntou antes de dar uma mordida enorme no seu hambúrguer.

— Sim, por pessoas maravilhosas que tiveram coragem de me adotar já bem grandinha. — não havia nenhum tipo de amargura naquelas palavras.

E as horas transcorriam agradáveis e totalmente descontraídas.

No estacionamento, a despedida.

— Mãe, Tia Helena pode ir lá em casa amanhã pra ficar na praia com a gente? — o pedido de Giovana foi feito a mim e eu o devolvi a quem de direito.

— Não é a mim que você tem que perguntar, querida. — olhei diretamente para a mulher que parecia se debater em dúvida — Se ela quiser será um prazer.

E mais uma vez eu percebi a mudança no olhar, e o verde me pareceu mais verde desta vez.

— Vou adorar. — o sorriso admirável apareceu outra vez.

****

Nossos encontros ocorriam ocasionalmente em casa de Marina e, outros, convites feitos pelos gêmeos que a adoravam. Em cada uma dessas ocasiões, falávamos muito. Por fim, acabamos por confidenciar alguma intimidade.

— Já amou alguém de verdade, a única verdade em sua vida? — fiz a pergunta enquanto bebericava meu Martini, meio que distraída.

As mãos grandes e delicadas passaram a se tocar com certo nervosismo.

— Temos mesmo que falar sobre isso?

— Nossas conversas nunca foram uma imposição, Helena, e se faço a pergunta é porque vejo em você uma amiga, alguém em quem posso confiar, com quem gostaria de compartilhar alguns pensamentos, mas se é difícil pra você, esquece. — fiz menção de me retirar, mas me detive quando a voz forte me fez mudar de ideia.

— Tínhamos quinze anos… Apenas um mês nos separava de termos exatamente a mesma idade. Eu acabava de ser adotada pelos tios de Sílvia e a mãe dela era amiga da família.

Sentei-me de volta bem devagar ao enxergar naqueles olhos uma dor profunda e ser testemunha da escuridão que eles assumiram de repente.

— Não sei por que estou te contando, quando prometi a mim mesma nunca mais tocar no assunto, mas sei do que te aconteceu e, de alguma forma, sinto a necessidade de te dizer que, por mais que soframos com isso, não somos as únicas, me senti a única por muito tempo. Me isolei de mim, dos outros, quase enlouqueci. — riu sem vontade — Por muito tempo deixei o egoísmo da dor me afastar de tudo o que amava depois dela… — o olhar lacrimejante me atingiu em cheio. — O pior de tudo é que eu sabia de sua morte iminente. Tinha um câncer incurável. — suspirou profundo — Mas eu quis, mais que tudo, todos os dias e momentos que lhe restavam. Queria que fossem meus, e foram. Eu só me pergunto: será que foram dela também? Eu, na minha angustia desenfreada, tomava-lhe sem piedade todo o tempo e ação possíveis. Eu a encobri com meu amor alucinado, com minha fome descontrolada e não a deixei viver o que tinha de viver. Ela perdeu os últimos momentos de vida lidando com uma neurótica que… — desatou num choro incontrolável e eu, como impulso, me aproximei para um abraço que foi abruptamente recusado.

Aquele corpo enorme se afastou e despediu-se com pressa sem ao menos me dar a chance de dizer alguma coisa. Marina entrou na sala trazendo alguns petiscos.

— Helena?

— Foi embora. Acho que a assustei. — recebi o olhar crítico dela — Toquei em assuntos dolorosos demais para ela.

Marina sentou-se ao meu lado e segurou minhas mãos com carinho.

— Ela também sofreu muito, Cris. Luana morreu em seus braços e os pais não foram muito nobres com ela. Acusaram-na de muitas coisas. Sílvia me contou tudo. Elas fugiram quando os pais quiseram internar a menina para o tratamento. O que acontece é que o tratamento apenas adiaria o inevitável. Luana preferiu viver pouco, mas ao lado da mulher que amava.

— Fez o que eu deveria ter feito! — concluí quase histérica, levantando do sofá com raiva de mim e de tudo o que acontecera. — Eu devia estar do lado dela e não concordado com a distância! Eu devia amá-la mais que a minha vidinha confortável! Devia mandar tudo pro inferno e seguir com ela para onde quer que fosse!

Agora era eu quem não controlava o pranto que vinha junto com a certeza de que amava e não me dava conta de quanto, de quantas vezes poderia ter me dado mais. De quantas vezes me neguei em nome de uma formalidade que eu me impunha desde menina. Porque nunca me atrevi a sair do normal e admitir que amava, mesmo, uma mulher. De fazê-la feliz por mim e não por ela, de mandar o correto pra merda e fazer-lhe feliz, satisfazer-lhe cada capricho, descobri-los e torná-los reais. Marina abraçou-me compreensiva. Não negava minha culpa.

Aniversário de Carolzinha, e eu, como madrinha zelosa, ofereci a casa para a festa , lógico, bancando o estrago total. Muitas babás para a tranquilidade e divertimento das mamães e papais convidados. Brinquedos espalhados no jardim, enfim, tudo o que uma festa infantil fosse precisar.

Fui à cozinha verificar o andamento do buffet e imediatamente tua lembrança me veio forte. A estas alturas você já estaria dominando o ambiente com suas ideias culinárias e eu já estaria tentando te convencer a deixar tudo para lá e ficar comigo, te abraçando por trás e te dando beijinhos nada inocentes em teu pescoço. Você parava e me dava toda a atenção, mas sem deixar de cuidar de tudo e eu começava de novo a te distrair. Você ria, me dava mais carinho ainda, mas não deixava de lado o que fazia até que eu desistia. Uma lágrima fugiu sem que eu percebesse. Ao me virar dei de cara com uma Helena tremendamente bonita acompanhada de uma mulher igualmente linda.

— Oi, Cris, esta é Jess, minha namorada. — avistando meu rosto molhado indagou preocupada. — Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?

Dei uma boa olhada nelas. A morena parecia realmente preocupada. Os olhos azuis grandes me passavam uma transparência e sinceridade estupendas. Eu sorri limpando as lágrimas com as mãos.

— Apenas lembranças. — segurei as duas pelas mãos e acompanhei-as até a saída da cozinha. — Estão todos no jardim, eu vou pra lá já, já. Fiquem à vontade.

Parti pro meu quarto e lá desabei num choro necessário. Abri seu note e revi seu vídeo mais uma vez… “Te vejo logo!”… Abri a pequena caixa que continha as alianças e as coloquei sem pensar muito.

— Ela tá demorando, não acha? — ouvi a voz de Sílvia no momento em que me aproximava.

— Estou bem aqui, estão precisando de alguma coisa?

Fui abraçada longamente por ela e Marina e, logo depois, por Lídia e Lúcia que vieram com Carolzinha a tiracolo.

— E esta fofurinha, aqui? — tirei-a dos braços da mãe galega. — Está gostando da festa que a dinda preparou? — como resposta eu recebi um beijo babado de três aninhos.

— Pergunta respondida! — Lúcia largou numa gargalhada pegando a menina de volta.

— Pensei que não apareceria mais, o que houve? — Lídia contestou enquanto comia um docinho.

Acho que nem precisei responder, pois meu semblante se transformou por completo, o que constrangeu a todos que estavam perto. De repente estava recebendo um abraço coletivo de minhas irmãs.

— Está tudo bem, meninas. Sabem que é a primeira festa sem…  Sem ela. — respirei profundo e tratei de por um sorriso no rosto. — Bom, à festa! — ergui um drink que alcancei com um garçom próximo.

Passava das oito horas da noite. O último casal a se despedir foi Marina e Sílvia. Carolzinha, logo após cantar os parabéns, pediu para dormir em casa e não havia argumento que a fizesse ficar. Os gêmeos e Gabriel já dormiam a sono solto e fiquei incumbida de levar o príncipe na manhã seguinte para deixar as mamães mais “soltinhas” esta noite.  O pessoal da limpeza também já se despedia e eu verificava todo o local para me certificar de que tudo estava bem, quando percebo alguém sentado num banco próximo à piscina. Helena.

— Oi… — cumprimentei, me sentando ao lado dela que olhou pra mim com um sorriso e um copo de uísque na mão. — Cadê sua namorada?

— Teve que atender um paciente de urgência… — entornou o resto da bebida. — Bom, acho que devo ir agora.

Segurei-a pela mão fazendo com que sentasse de novo.

— Vamos lá, Helena, o que houve? — bati de leve em sua perna, encorajando-a.

— Desde aquele dia em que conversamos sobre amor, eu venho me perguntando se não está na hora de abrir meu coração mais uma vez. — passou as mãos pelo rosto e logo depois me olhou profundo.

Não percebi o que queria dizer no momento, então comentei.

— Jess me parece uma mulher muito sincera, muito centrada… Quero dizer, segura do que quer. Notei  nas atitudes dela. Você não acha?

— Não sei. — ao dizer, ergueu a cabeça de modo que fitasse o céu estrelado. — Gosto muito dela, mas…

— Mas? — tentei encorajar para que continuasse.

— Não me comove. — parou de olhar o céu e, num impulso, segurou minha mão me fazendo encará-la de frente. — Não como você me comove.

O que dizer? Aquela mulher exuberante a minha frente estava se declarando para mim com toda a coragem que tinha, mesmo sabendo que meu coração, ainda ferido, não suportaria lidar com aquele amor. Procurei palavras que não a magoassem sem sucesso, mesmo porque, eu não sabia como fazer isso. Nunca soube, nem mesmo com Endless. Não escolhia palavras para dizer-lhe verdades dolorosas até para mim mesma, agora estava ali cheia de dedos com uma nova situação. Ela parecia se desesperar com minha demora em reagir àquelas palavras. Como eu nada dizia, ela levantou-se no intuito de ir embora e, mais uma vez, eu a impedi.

— Você não sabe o que está dizendo, nem o que está fazendo. Temos histórias parecidas e sua comoção nada mais é que compaixão, não só por mim, mas por si mesma. Acha que vai resgatar uma emoção perdida que nunca irá voltar, porque, simplesmente, morreu. — cheguei mais perto, tanto que resgatei-lhe o rosto macio com minhas mãos, acariciando-o e continuei. — Você é linda. Meu corpo reconhece esta beleza sentindo um desejo bom, mas um desejo que qualquer mulher satisfaria e, ao satisfazê-lo, o que ficaria? — então uma primeira lágrima atravessou meus dedos e aquilo fora demais para mim. — Não acontecerá aqui, Helena. Não na minha casa, não com meus filhos próximos. Acontecerá no escuro porque vou querer ver outro rosto, e sentir outro corpo. E não ficarei até amanhecer, porque vou voltar para casa onde tenho que acordar todos os dias com a presença da mulher que amo e vou amar para sempre. Acha que poderá aguentar isso? Ou vai desistir desta “comoção” e apostar na amizade que já temos? A amizade que meus filhos têm por você? Quer desistir disso por esta “comoção”?

Não esperei que respondesse e, em respeito a sua tristeza, uni meus lábios aos dela num beijo terno e sem esperanças, então, finalmente, deixei-a ir.



Notas:



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