Os dias foram passando rápidos, mas intensos na medida em que eu tomava conta de minhas crianças, em que absorvia todo o universo que os rodeava. Ficamos íntimos como mãe e filhos devem ser. Helena participava muitas vezes. Não tantas quanto gostaria, pois eu sempre impunha um freio quando via que estava exagerado demais. Hoje ela tratou de levar os gêmeos ao circo. Meu humor havia desaparecido assim que acordei de um sonho bom com você. Não queria que nossos bebês percebessem. Estavam tão alegres, mais vivos, mais fortes, não tive coragem de lhes dar a minha parcela de amargura do dia. Achei que já havia superado a fase da aceitação quando você me reaparece em sonhos fazendo com que eu absurdamente não acredite que nunca mais irei vê-la. Nesses momentos meu coração acelera, sinto as mãos suadas e experimento, nitidamente, teu corpo se aconchegar ao meu. O pensamento me irrita porque volto à realidade e sei a verdade: você está morta!

Olho-me no espelho e vejo a culpa estampada nele. Não adiantou mudar o jeito do cabelo, nem emagrecer uns quilos. Não adiantou cuidar de mim quando não podia cuidar de você, porque eu nunca cuidei de você! Precisava de ar, precisava sair, sumir. E, quando fui em direção à varanda, o inimaginável surgiu em minha frente.

****

EU…

Al perderte…

Al perderte yo a ti
Tu y yo hemos perdido:
Yo por que tú eras
Lo que yo más amaba
Y tú por que yo era
El que te amaba más.
Pero de nosotros dos
Tú pierdes más que yo:
Porque yo podré amar a otros
Como te amaba a ti,
Pero a ti no te amarán
Como te amaba yo.

Ernesto Cardenal

Ainda me perguntava o que estava fazendo ali. Não entendia o que estava querendo ao voltar assim, depois de tanto o que se passou. Não era mais viável que as emoções aparecessem do nada como num capítulo de novela mal elaborada. Ao entrar no quarto pela varanda, pois estava sem as chaves, me surpreendi com sua presença de frente para o espelho e vi ali toda sua angústia. E não me comovi. Era como se visse tudo através de uma janela, como se te visse pela primeira vez. Uma espécie de enjoo tomou conta de mim. Quis fugir, mas era tarde demais. Você se voltou para mim e me encarou com olhos de iniciante surpresa como se não me reconhecesse e não era culpa sua. Viu uma mulher magra quase ao extremo. Sem cabelos e olhos fundos. Uma cicatriz no meio da face esquerda. Duas tatuagens no pescoço abaixo da orelha, uma de cada lado com as iniciais dos gêmeos. Vestida com uma calça de Jersey larga e uma camisa masculina com as mangas enroladas até o cotovelo, deixando transparecer mais duas tatoos: uma rosa azul muito mal feita no braço direito e as nossas iniciais no esquerdo, muito próxima às marcas dos pulsos feitas a caco de vidro numa das minhas tentativas de “fugir” da situação grotesca. O que você via era surreal demais para que não causasse este primeiro impacto. Sua voz me alcançou tremida quando, no olhar, a imensidão do amor se encontrava.

— Veio me punir… Veio em alucinação para me mostrar o que causei a você?

Uma voz fraquinha lá no fundo gritava que não. Mas a voz maior estava estampada em meu rosto quando respondi devagar.

— Voltei porque fiquei cinco meses passando por tudo isso para conseguir estar aqui…

Então a realidade se fez para ela que, rapidamente, chegou junto de mim não sabendo se me tocava.

— Oito meses… — ela retrucou tocando meu braço com leveza e deixando cair lágrimas ao fechar os olhos constatando que eu estava ali de verdade.

— Cinco… — disse sem emoção, de maneira fria e indiferente. –… Até que me largaram no meio de um nada, ferida e quase morta de fome e sede. Fui encontrada e levada para um hospital onde permaneci três meses em tratamento contra o vício.

Quando teus olhos se abriram para os meus, vi ali o momento exato em que você passou de incrédula para absurdamente magoada.

— Você está me dizendo que… Que estava livre há três meses e não entrou em contato comigo? — chegou mais perto. — Que me deixou na angústia que foi vivenciar a sua morte junto com meus filhos que sofreram junto? — a sua voz ia ficando cada vez mais alta e raivosa. — Você sabia que Giovanna teve um colapso nervoso por causa disso? — dessa vez você me empurrou com força me fazendo quase cair. — Sua filha da puta!!! — e me bateu no rosto, no peito. — Eu te odeio!!! Te odeio!!

E tuas pancadas foram recebidas como o castigo merecido por mim, que apenas te olhava, imaginando por quais veredas de dor havia passado todo este tempo. Senti o sangue quente escorrer de meu nariz e do canto esquerdo de minha boca. Teus olhos pararam de me agredir e suas mãos pararam sobre meu peito e acariciaram a gota vermelha que se apoderou da camisa branca.

— Eu te machuquei… — o tom baixinho e emocionado conseguiu me atingir pela primeira vez depois de muito tempo. — Machuquei…

Teus dedos tocavam o sangue em minha boca fazendo um rastro de sangue alcançar a cicatriz medonha, pintando-a como se a quisesse encobrir. Segurei-lhe a mão trêmula e me meti mais uma vez nas íris castanhas.

— Não há mais nada que possa ser machucado, Love. — baixei a sua mão unida a minha bem devagar e, da mesma forma, abri a camisa livrando-me dela completamente.

— Meu Deus! — foram as palavras de horror saídas de sua boca.

Agora teus olhos expressavam o terror de outras cicatrizes descobertas. Uma sobre o seio direito de uma queimadura que não consigo lembrar-me como foi feita. Outras abaixo do peito como cortes finos feitos à faca. Uma tatuagem com uma letra árabe que descobri depois se tratar de um “C” (talvez do nome do criador). Virei-me para que pudesse ver mais horrores e, sabia, que a visão da enorme tatuagem com suas inicias estaria lá, acompanhada de vincos feitos com chicote. Voltei a te encarar e, em seu rosto, pude receber a dor pelo sofrimento causado. Segui teu olhar a descer para meu sexo e retirei a calça sem piedade deixando à mostra a marca da cesariana recente e, sem nem perceber, meu corpo inteiro convulsionou num choro desesperado pelas lembranças de tudo.

— O que fizeram com você, meu amor! — teus braços me envolveram, puxando-me para a cama. — Me deixa cuidar de você! Divide isso comigo, por favor!

Até o momento eu havia sucumbido à emoção forte de seu abraço, de seu carinho, mas ao ouvir sua súplica, toda a esquisitice de antes voltou. Desvencilhei-me de seus braços sem olhar-te de frente.

— Preciso de um banho, tocar essa roupa, e comer alguma coisa. Por mais fome que eu tenha passado, comida de avião não me entra fácil.

Deixei-te na cama em pensamentos e me tranquei no banheiro.

Depois de demorar bastante no ritual tentando encontrar meu equilíbrio anterior, fui te encontrar na cozinha. Já tinha arrumado a mesa e preparado uma salada com massas das que eu amava. Me viu, mas não emitiu palavra. Serviu meu prato me pedindo para sentar. Sentou-se comigo, mas não comeu. Segurou o braço que eu não usava e percorreu com os dedos a marca no pulso…

— Me conta…

Não queria falar. Não podia, sem ter que passar por tudo de novo. Estava satisfeita quanto à comida. Limpei os lábios com calma antes de começar.

— Foi quando achei que não poderia suportar mais.

Ergui-me sem aviso, puxando meu braço do contato e indo para a sala sem olhar para trás.

A porta abriu-se de repente e uma menina alegre adentrou chamando-te com pressa.

— Mami! Mami! Você precisava ver as acrobatas chinesas, elas…

Quando me viu, Giovanna simplesmente calou e sua expressão que era de felicidade se transformou num semblante taciturno. Havia me reconhecido? Seu olhar era crítico. Logo atrás dela apareceu Gian acompanhado de uma mulher que eu não conhecia, mas que achei bonita demais. As expressões deles eram de espanto e curiosidade, mas assim que vi nos olhos de meu filho o reconhecimento, fui surpreendida por seu abraço forte.

— Mamãe Endless!!!

Neste exato instante você chegou à sala, ainda em tempo de ver a reação inimaginável de nossa filha.

— Tá maluco, Gian!!! — gritou indo de encontro ao irmão e, puxando-o do meu lado, continuou. — Essa não é nossa mãe!! Olhe pra ela!! Minha mãe não é careca! Não tem cicatrizes!! Nem tatuagens!! Nossa mãe está morta!! Morta, entendeu?!!

O menino, com o susto, voltou a me olhar com lágrimas nos olhos.

— Pare com isso, Giovanna! — sua voz preocupada fez com que a menina se calasse, mas não tirou de seus olhos verdes a desconfiança rasgada.

— Ela não é a minha mãe! — deu de costas e saiu por onde havia entrado seguida do irmão que chamava seu nome em vão.

Assisti a tudo sem uma reação sequer, mas senti meus olhos arderem estupidamente quando a cena começou a ser estudada por meu cérebro. Foi então que voltei a perceber a presença da mulher grande que te enlaçava pelos ombros como a dar conforto diante da situação. Ouvi quando você pediu que os levasse para Marina e a preocupação dela só se dissipando quando você garantiu que ficaria tudo bem. Não esperei que a mulher se fosse indo diretamente ao quarto tentar absorver tudo o que havia acontecido ali. Retirava minha roupa lentamente, deixando no corpo apenas calcinha e um top preto.

— Ela tem razão…

Foram minhas palavras ao te ver entrar no quarto enquanto me cloquei sentada na cama e de cabeça baixa. Na verdade eu estava cansada demais para deixar que as emoções tomassem conta de mim. Eu não queria mais chorar. Eu não queria mais pensar. Eu só queria dormir prolongadamente. Esquecer um pouco de tudo. Estar confortável numa cama macia de lençóis limpos e cheirosos.

Você veio até mim e sentou-se ao meu lado.

— Queria saber como… Como posso te ajudar, como…

— Faça com que eu durma. Preciso descansar…

Senti quando tuas mãos tocaram meu ombro e me fizeram inclinar até encontrar a superfície macia do travesseiro. Vi o edredom ser levantado e colocado por cima de meu corpo. Nos olhamos profundamente e, apesar de saber que suas perguntas eram muitas, não vi ali nenhum questionamento sobre o que quer que seja. Ali só havia amor e carinho como nunca tinha visto antes. Antes você não sossegaria até ouvir o último detalhe, mas agora, achei que seu objetivo era exatamente outro. A carícia leve em meu rosto, o beijo suave em meus lábios, tudo revelava uma paz que o momento não propiciaria se não se tratasse de você e dessa tua tão absurda paciência e compreensão.

Você se ergueu de repente indo em direção à porta.

— Por favor, fica… — você parou, mas não se moveu em minha direção. — Deita comigo, pelo menos até eu adormecer.

Ainda de costas para mim, começou a despir-se ficando apenas com a combinação. Veio até seu lado da cama e enfiou-se embaixo da coberta. Olhamos-nos mais uma vez e a primeira pergunta escapou quando sua mão repousou sobre a marca da cirurgia.

— Onde está?

Entendi o que queria saber, a resposta era simples.

— Morreu em meu ventre no sexto mês de gestação. Má formação congênita por causa das drogas e da bebida.

E meus olhos imploravam para que você não perguntasse mais e assim foi. Achei que não conseguiria fechar os olhos sem ver  outro filme de terror. A última coisa que consegui me lembrar antes de cair num sono profundo foi a sensação de teus lábios na minha testa e suas palavras tranquilas dizendo que ficaria tudo bem.

VOCÊ…

Aquele corpo colado ao meu, apesar das mudanças perceptíveis, era o da mulher que nasceu para me ensinar o amor. Agora que dormia, eu podia admirar o simples fato de ela estar viva.  De início queria saber tudo o que acontecera. Todos os detalhes. Por que eu havia recebido seu cordão com o pingente e te dado como morta? Por que você não entrou em contato comigo quando foi encontrada? Mas eram perguntas fadadas ao meu egoísmo de sempre. Não eram perguntas, era um interrogatório. Eram exigências de alguém que acha que tem a outra. Mas as perguntas a serem feitas não eram essas, nem outras quaisquer. Eu realmente gostaria de saber o que se passou contigo todo este tempo em que ficou a mercê de animais? Gostaria mesmo de ouvir os detalhes sórdidos de como você foi violentada em sua humanidade? Por Deus, você havia sobrevivido por amor e, agora, se sentia morta. Chorar… Mas pelo que eu choraria? Pela minha dor ou pela sua? Ou pela nossa? Não, eu choraria porque somos fortes demais para sucumbir a qualquer intempérie que o destino possa nos oferecer como teste. Não choro por suas marcas, mas pelo humor negro que a vida achou para escrever este roteiro. Não com você. Não conosco. Não com nossos filhos. Mas com o amor que sempre nos uniu. Senti-me grande pela primeira vez em minha vida. Você ainda não encararia assim, acho, mas eu seria forte o suficiente por nós quatro. Minha vez.

Não sei que horas eram quando senti teu corpo quente e suado se debatendo e gritando palavras que não entendia (árabe?).  Você parecia lutar com alguém quando começou a me bater e me empurrar. Tentei te acordar e impedir, mas com uma rapidez incrível, você se pôs em cima de mim e me agarrou pelo pescoço tentando me estrangular. Gritei seu nome desesperada.

Seu rosto mudou de expressão: da raiva incontida à realidade do ato que estava cometendo. Ofegante, você olhou para mim como se tivesse perdido o senso de quem era e de onde estava. Olhou para todos os lados procurando algum vestígio de seu sonho ruim, encontrando apenas o seu lar. Prendi a respiração quando tuas mãos afrouxaram o aperto e seguiram imunes aos meus seios tomando-os com uma paixão tão esperada. Eram teus. Era o que diriam se pudessem falar.

EU…

O suor era imperador em meu corpo. Eu já não o sentia. Não queria sentir. O lençol abaixo de mim molhava-se na dor que o líquido abundante denunciava. A cada soluço seu que eu ouvia, uma faca parecia perfurar meu peito me punindo pela falta de cuidado, pela falta de carinho revelada no coito sombrio ao qual eu te submeti. Eu fingia um sono que estava longe de se aproximar. Recusei teu abraço alegando um cansaço que não existia mais e, ao deitar-me de bruços sem ao menos beijar-te a boca, me aleijei de ti um mundo a mais. Te tratei como a vadia que fui durante estes longos meses. Não ouvia seu choro, percebi. Fechei os olhos e as cenas de minutos atrás me cegaram mais uma vez. Não te atendi pedidos. Não me comiserei com teu grito de dor e tua súplica velada. Me alimentei de teu horror e de tuas lágrimas subservientes. Experimentei de teu gozo apesar de toda a sordidez a qual fui capaz de te entregar sem pena. Violentei de todas as maneiras o nosso lugar de amor. E tua frase final ficou pairando sobre uma tênue linha que se formou entre minha verdade e a grande amargura que era meu ser no momento… “Eu te amo…”

Sentei-me ao teu lado. Precisava te ver mais uma vez, pois minha decisão havia sido tomada. Ainda podia ver resquícios de lágrimas marcando teu rosto perfeito. Rosto que não toquei uma única vez. Lábios de onde o mel transbordava que não me atrevi a provar. Olhos que, mesmo fechados, me entregavam o conforto macio da paz de onde fugi miseravelmente. Minhas malas estavam prontas. Eu partiria. Havia um resgate a ser enfrentado e as probabilidades de que eu conseguisse o feito, dependiam muito de como você encararia o fato. Minhas mãos trêmulas tocaram a sua que repousava tranquila em teu ventre. No dedo anelar, pude ver nossas alianças. Retirei a que possuía suas iniciais e a coloquei corajosamente em meu dedo.

— Acredita em mim, vida. Vou precisar que aceite mais este sofrimento. Vou precisar que confie. Se fomos feitas para o amor, meu e seu, acredita. Se for o contrário, seja feliz como tiver que ser.

Levantei-me segurando a mala para sair sem olhar para trás, não consegui. Ajoelhei-me ao lado da cama e chorei baixinho.

— Te amo… Te amo… Te amo…

Depositei um beijo. Teus lábios estavam quentes e, sim, despejaram o mel tão conhecido e, ao mesmo tempo, tão incomum, nos meus. Um toque muito suave como o arfar das asas de uma borboleta.

— Te amo…

HELENA.

Pela escuridão encontrada na casa, Cris deveria estar dormindo. Acendi a luz, um pouco desconfortável pela situação, mas havia me incumbido da missão. Coloquei o casaco um pouco úmido pela garoa que caia lá fora, pendurando-o numa cadeira que ficava a favor do vento perto da porta da varanda. Fui até o quarto e, pra minha surpresa, Cris não estava lá. Não estava no banheiro, nem em nenhum dos quartos dos gêmeos. Peguei o celular e liguei para Marina.

— Não está em casa. Não, não procurei na praia, está chovendo e já é noite… Sei… Falou com ela?… Fez a ligação que te pedi?… Vai dar tudo certo… Não, não se preocupa… Ninguém vai sair machucado… De uma maneira ou de outra temos que acabar logo com isso… Tá bom… Um beijo…

Assim que acabei de desligar e a voz seca me fez tomar um susto.

— O que está fazendo aqui?!

Em nada a mulher que conhecera há mais de um mês se parecia com aquela. Olhos apagados. Uma tristeza escancarada no rosto marcado por finos fios de água que escorriam sem cessar. A roupa molhada denunciava a insensatez de estar lá fora tomando a chuva que caía.

— Me desculpe, Cris. É que Marina tentou falar com você e não conseguiu. Me deu a chave da casa que ela tinha para uma eventualidade. Ela me mandou porque teve que se encontrar com a irmã.

Neste momento uma faísca raiou naquelas íris castanhas deixando-me esperançosa de que a vida ainda era maior dentro delas.

— Eu estou bem, agora você pode ir, eu quero ficar sozinha.

Não ia ser fácil. Mas iria tirar uma vantagem do fato de eu ser mais teimosa e muito mais forte do que ela pensava.

— É claro que não vou! — avancei uns passos em sua direção já tomando o controle como deveria ser. — A senhora vai trocar essa roupa molhada, vem!!

Não esperei que ela decidisse o que fazer. Saí arrastando-a pela mão, sendo agredida literalmente por mãos que se debatiam para se soltar do toque. Não dei à mínima. Entrei com ela no banheiro lutando para não machucá-la de verdade.

— Pare com isso!! — ela gritava tentando evitar que eu a despisse sem sucesso.

— Eu sou maior e mais forte! Vai ter que obedecer, menina!

Já estava sem as roupas, mas ainda arredia. Liguei a ducha e, para fazê-la tomar o bendito banho, abracei-a e a água nos alcançou tépida e muito, muito molhada.

— Olha só o que você fez! — falei brava, mas já com o riso se escancarando no rosto. — Se queria que eu tomasse banho junto era só pedir.

Ela ficou quieta de repente e, ao invés de me bater como vinha fazendo desde então, agarrou-se a mim aos prantos.

— Não sei mais o que fazer!

Eu sabia como estava se sentindo. Ficamos ainda alguns minutos debaixo do chuveiro. Deixei-a por um momento para pegar a toalha, então observei como curvava o corpo em sinal de desolação. Os ombros caídos, a cabeça baixa. Dentro de mim ocorria uma batalha cruel. A nudez dela era minha arquirrival no momento. Envolvia com a toalha felpuda e a sentei na cama.

— Preciso trocar minha roupa. Vou procurar algo em seu armário. — ela não respondeu.

Encontrei um conjunto de moletom quase do meu tamanho. Ela não se movia. Mantinha um olhar perdido não sei onde. Ajudei a colocar uma roupa confortável.

— Vou fazer alguma coisa para comermos. Tem alguma preferência?

O olhar que ela me deu quase me fez desistir de tudo. Um nó quis se formar em minha garganta.

— Vem!

Puxei-a novamente pela mão até a sala. Deitei-a no sofá e fui até a cozinha. Fiz a única coisa que sabia: sanduíche de queijo. Graças a Deus ela tinha suco pronto na geladeira.

Convenci-lhe de que comer era necessário. Mordeu o cardápio algumas vezes e tomou todo o suco. Dei-lhe uma trégua. Mas não demorou muito.

— O que você pensa que está fazendo?!

Fiz-lhe a pergunta a queima roupa, ao que ela não conseguiu entender de primeira.

— Acha que dar uma de coitadinha agora, no meio do jogo, vai te levar a algum lugar?! O que você quer de verdade, Cris?! Qual o seu maior objetivo na vida?!

Ela me encarou com olhos de dúvida, mas sua reação foi, de longe, a mais espetacular.

— Quero o amor de minha esposa! É por ele que vivo!

Eu sorri. Essa é a Cris que conheço.

— E como acha que vai consegui-lo agindo como uma menininha que perdeu o brinquedo preferido?!

— Não sabe do que está falando! Não sabe a dor que estou sentindo! Não sabe de nada!!

— Sim, eu sei, minha amiga. Quisera eu ter a chance que você tem. A mulher que você ama ressuscitou do nada! Está viva e isso é mais que meio caminho andado! O que você está fazendo de concreto para que ela seja mais uma vez o seu amor?!

Sua respiração profunda revelava o cansaço extremo.

— Ainda não sei, agora, mas vou pensar em algo. Eu só preciso descansar um pouco.

Trouxe ela para mim devagar, aconchegando-a em meu peito.

— Helena, eu não…

— Shhhh! Não pensa em mim agora. Não pensa em nada. Fica forte. Esse, por enquanto, vai ser seu único objetivo. E não importa o que ou quem você precise usar para isso.

VOCÊ…

Quando abri os olhos, não vi a claridade que estava acostumada a ver. As cortinas não estavam fechadas, mas uma espécie de breu tomava conta do ambiente. Tua voz em minha cabeça pronunciava… “Acredita em mim…”

— Não acreditaria em mais ninguém.

Levantei do sono abruptamente. Ela estava aqui? Olhei em volta. Apenas um silêncio e minha memória, reativada, voltou à noite anterior.

— Helena.

Na sala, um corpo enorme tentava uma harmonia difícil com o sofá pequeno. O frio não me passou despercebido, nem o eriçar da pele branca dela que havia jogado o cobertor no chão, talvez na tentativa de encontrar um meio termo na briga acirrada com o espaço pouco. Cobri-a. Uma mecha de cabelo louro caía por sobre o olho esquerdo. A tranquilidade daquele sono me dava uma sensação boa de estar sendo protegida. Fiz aquela mulher passar por coisas ontem. Agora, depois de passado, senti na pele o quanto ela havia se cansado pra me fazer voltar ao normal. Ri ao me lembrar da criatura totalmente molhada embaixo do chuveiro comigo. Devia agradecê-la. Num impulso, deixei que minha mão deslizasse por seu rosto comprido e macio, chegando até o queixo forte, repartido bem ao meio por uma fenda delicada e, assim, pude notar a falta.

— Deus!!

Ela se ergueu rápida em preocupação.

— Que foi!! — me segurou pelos ombros a me proteger do que fosse.

Eu continuava a olhar para meu dedo anelar, estupefata.

— A aliança!

Ela respirou fundo se acalmando, arrumando os cabelos, situando-se no que ocorria.

Eu continuei olhando para minha mão, incrédula, tentando entender o que via. Dei por falta de uma aliança em meu dedo. “Acredita em mim…”

— Ela… Está com nossa aliança… Ela…

— Está lutando por você! O que acha que ela faria? Como acha que ela pode não lutar? Acha que ela está morrendo de pena dela?! Não! Está lutando contra tudo que pretende afastá-la de você!

— Isso inclui estar longe de mim e de nossos filhos?

— Que armas você usaria se fosse para lhes salvar? O que você estaria disposta a arriscar?!

****

O carro deslizava pela estrada molhada. Os óculos escuros não me permitiam ver a expressão cansada da loira ao meu lado. Ela dirigia meu carro concentrada até eu colocar no cd uma das músicas preferidas de Endless.

— É brasileira?

A voz grave perguntou de repente me tirando de lembranças agradáveis.

— Sim, Vanessa da Mata.

— Não sei o que ela diz, mas a melodia me dá uma sensação agradável.

Continuava a guiar sem preocupação.

— Vou traduzir pra você.

“Como pode ser gostar de alguém
E esse tal alguém não ser seu.
Fico desejando nós gastando o mar,
Pôr do Sol, postal, mais ninguém.

Peço tanto a Deus
Para esquecer,
Mas só de pedir me lembrou.
Minha linda flor
Meu jasmim será,
Meus melhores beijos serão seus

Sinto que você é ligada a mim
Sempre que estou indo, volto atrás.
Estou entregue a ponto de estar sempre só,
Esperando um sim ou nunca mais.

É tanta graça, lá fora passa
O tempo sem você.
Mas pode sim,
Ser sim amada e tudo acontecer.

Sinto absoluto o dom de existir, não há solidão, nem pena
Nessa doação, milagres do amor,
Sinto uma extensão divina.

É tanta graça, lá fora passa
O tempo sem você.
Mas pode sim,
Ser sim, amada, e tudo acontecer.
Quero dançar com você
Dançar com você… ”

Senti o freio sendo utilizado e o automóvel parar no acostamento.

Ela abriu a porta com pressa e, lá fora, expressou todo o sentimento que a música lhe passou.

— Que foi? Tá passando mal? — inquiri receosa.

— Não… Essas palavras me alertaram para sentimentos que… — sentiu meu olhar acusatório. — Não, não é nada sobre você. Só tive a sensação de estar perdendo um sentimento… Ah, deixa pra lá.

E voltou a dirigir.

NA CASA DE MARINA

— Eu sinto muito…

Marina me abraçou com carinho e, mesmo eu querendo acusá-la de tudo, a recebi da mesma forma.

— Espero que ela saiba o que está fazendo.

— Todos nós estamos preocupados, Cris. Lúcia e Lídia quiseram voltar imediatamente das férias com Carolzinha, mas eu impedi. Não é hora para isso. Endless está tentando sobreviver. Está arriscando tudo e sabe muito bem das chances que tem. Não são muitas.

Sabia do que ela estava falando. Por muito tempo eu quis só aceitar o que me era ofertado sem nunca questionar de onde vinha, não queria saber. Só queria para mim. Me vi jogada em nosso passado. Me vi analisando cada estágio, cada detalhe. Teu comportamento. Como nos conhecemos. A surpresa que era seu sentimento por mim.

— Helena quer levar as crianças para passar quinze dias com ela numa estação de esqui. Acho bom aceitarmos. Pelo menos até que essa confusão toda esteja resolvida.

CAP XV

— Eles vão ficar bem.

Helena falava enquanto colocava as malas na van que prestava serviço ao aeroporto.

— Sei que vão. Vão estar com você, confio.

Recebi o abraço quente.

— Como diria o filósofo chinês Jean Pierre da Silva: Entre mortos e feridos, salvaram-se todos!!!

Minha gargalhada saiu franca e inesperada. Ela me olhou como quem diz: agora posso ir em paz. Vi nela uma força maravilhosa. Os olhos expressavam uma emoção nova, como uma energia vital assoberbada.

— Não vou desistir. — disse abraçando aquele corpo grande.

— Claro que não vai. Investi meu coração nisso. — disse ao me soltar do abraço emocionada.

Logo atrás de mim ouvi uma voz que me era conhecida.

— O reforço está chegando! — uns olhos azuis retratados num rosto de pele clara e emoldurados por cabelos extremamente negros surgiram em minha frente. — Adoro esquiar!

Jess largou as malas no chão esperando uma reação qualquer da galega que a olhava estupefata, como se estivesse vendo uma miragem no deserto. Se fosse um diretor de arte apostaria naquele olhar de profundo entendimento e daria ao meu filme a certeza de um Oscar.

Nos olhos verdes, pela primeira vez, entendi do que Helena era feita. Ela também havia apostado numa reação e poucas eram as chances de se dar bem. Ela também havia apostado, de forma indiscutível, todas as fichas que tinha, mesmo sabendo que a banca era a favorita naquele jogo. Era como se, finalmente, minha amiga houvesse encontrado uma resposta para sua busca. Não um remendo para as coisas do passado, mas um caminho para as coisas do presente e uma esperança para as veredas do futuro. Elas se encontraram num abraço carinhoso.

— Eu acredito em você.

Eram as palavras sussurradas de Jess se misturando aos meus pensamentos longínquos onde te conheci e, também, reconheci a parte que havia te revelado o lado escuro. Estava guardado em nossa história. A vez em que você havia me mostrado a besta, naquele parque há muito tempo.

EU…

Do alto daquele penhasco, encarando um vento muito frio, eu tentava encontrar as perspectivas que me levariam de volta a mim mesma. O mar castigava as pedras bem lá no fundo do precipício, imitando o ritmo de meu coração desorientado. Ele ainda batia e eu me perguntava até quando. Ao te deixar sozinha naquele quarto, levando ainda uma esperança de que tudo se resolveria, não pensei que seria tão difícil. Mais de que ter sido seviciada durante o tempo em que estive presa naquela maldita comunidade de terroristas. Estar ali, encarando uma possibilidade da vida sem você e nossos filhos era pior do que encarar a verdadeira morte. Um salto e toda a dor se dissiparia, e toda a alegria de ver teu sorriso se dissiparia, e toda a humilhação pela qual tive que passar se dissiparia, e o grande presente de acompanhar a vida de nossos filhos, também se dissiparia. Prós e contras, mas nenhuma vontade de experimentar o ato. E me dei conta de que brincava de rodar a aliança em meu dedo. Fiquei assim a olhá-la e fazê-la girar sem noção do que havia em minha volta, quando uma voz me tirou do transe.

— Queda maravilhosa.

Dei de cara com uma mulher pequena numa cadeira de rodas. Tinha o corpo protegido por um casaco espesso e uma manta que lhe cobria as pernas. Fiquei estática como se a figura não fosse real.

— Foi a primeira vista que tive deste lugar. Embriagante. Atraente. Principalmente quando se tem noção do poder que a queda nos oferece. — aproximou mais a cadeira até onde eu estava. O vento agitou seu cabelo fino e curto de um castanho claro e brilhante. — Por um tempo eu pensei em pular, mas a cadeira de rodas me deixou numa condição ridícula demais para qualquer tentativa. — dizia olhando diretamente para baixo. De repente se virou para mim como se estivesse me vendo naquele exato momento. — Oh, me desculpe, por favor, não se incomode comigo. Se quiser pular, fique à vontade. Não sou eu quem vai te impedir.

Com um toque no controle, fez com que a cadeira se afastasse em marcha ré. Ficou esperando, me olhando fixamente.

Eu respirei profundo, alertando a intrusa de meu enorme descontentamento com a presença dela. Mas ela nem se alterou. Parecia mesmo interessada no que eu iria fazer dali por diante. Aproximei-me da estranha bem devagar e me agachei para deixar nossa conversação em igualdade.

— Não sei de onde raios você apareceu, mas não acho que seja de sua conta se eu vou pular ou não.

Os olhos quase cinzas se fecharam quando a risada dela me surpreendeu.

— Claro! Claro! Acho que hoje não é meu dia de sorte. Esperava mais de alguém que se atreveu a chegar até aqui e ficar vislumbrando paisagem tão perfeita para uma morte trágica. Deixa eu me apresentar. — ergueu a mão em comprimento — Prazer, Cristina ao seu dispor, mas pode me chamar de…

— Cristina está bom. — respondi ligeira não querendo ouvir teu nome saindo da boca dela.

— Eu ia dizer Tina, mas parece que você tem problemas com apelidos. — a mão dela continuou erguida a espera do comprimento que não veio.

O olhar franco e despreocupado estava me vencendo. Ela não desistiria fácil.

— Endless… — minha vez de oferecer o comprimento respondido imediatamente.

— Endless… Nome estranho, mas bonito. — me encarou mais um pouco. — Então Endless, que tormentas te trazem a este lugar tão bucólico?

— Por que acha que tem algo me atormentando? — perguntei já desconfiada.

— Palpite. Sua cara feia, talvez. — e riu de mim novamente. — Vamos lá! Não vai ficar desconfiando de uma mulher franzina numa cadeira de rodas, vai? Que tal uma xícara de chá bem quentinha? Se aceitar, deixo você empurrar a cadeira. Vai te fazer sentir bem ajudar uma deficiente. Vai te fazer pensar que tem coisas muito piores que fantasmas do passado te deixando nervosa.

Meu olhar de espanto indisfarçado deixou-a com uma expressão divertida no rosto afilado, onde lábios carnudos e um queixo com ponta arredondada lhe davam uma feição de menina.

— Está bem. Se eu lhe disser que é a prática, você se conforma? — viu que eu queria uma resposta mais contundente. — Já vi caras como essas em meu consultório. Muitas e, não é pra te deixar convencida, mais tenebrosas. Coisas da psicologia aplicada.

Entramos no chalé que descobri se localizar bem próximo ao meu. Tinha sido ideia de Marina me hospedar por lá. O imóvel pertencia a um tio de Sílvia que passava férias no país durante o verão. Mas era inverno e, além da mulher esquisita, eu não tinha visto mais ninguém na área.

— Pare de ficar se preocupando com bobagens e me ajude aqui.

Mais uma vez o jeito desenrolado da mulher me desconcertou. Acabei eu mesma por fazer o bendito chá. Sentamos à mesa e começamos a tomá-lo bem devagar.

— Também já fui fugitiva, sei como é. Botamos na cabeça que temos que poupar o mundo de nossa monstruosidade. Principalmente as pessoas que amamos. Besteira! — ela apoiou a xícara no braço da cadeira, evitando olhar pra mim, se distraindo com o equilíbrio do artefato em sua mão. — Sabe o que magoa mais quando a vida dá uma de madrasta com a gente? É que temos certeza absoluta de que não merecíamos isso. Olhamos apenas para nós, bem para dentro. E percebemos tantas falhas, e temos tanta pena do que vemos, que fica impossível termos a mesma ideia de quem éramos antes de tudo acontecer, mas lembramos de quem não éramos e isso sim é o que importa. Lembramos de que não éramos covardes, nem neuróticos, nem tão egoístas quanto tentamos ser…  — finalmente ela colocou a xícara sobre a mesa e me olhou profundamente. — Deixa eu tirar o seu papel de protagonista por agora, pra te contar minha história. — neste momento ela recostou-se confortavelmente, cruzando as mãos sobre as pernas inválidas.

— Eu sou casada há quase um ano e meio. Quando eu conheci Sofia, não esperava mais um grande amor. Na verdade nunca esperei amor nenhum. Não acreditava, era simples. Vivia para meus estudos, para minhas aulas, para meus seminários, congressos. Isso tudo preenchia e muito bem o que queria para mim. Eu a conheci na faculdade onde ensinava um curso de pós-graduação. Sempre gostei de chegar mais cedo para revisar o conteúdo a ser apresentado. Neste dia, ao entrar na sala, dei por falta da cadeira da mesa onde ficaria. Solicitei o móvel para o zelador e sentei-me na primeira fileira enquanto ele o providenciava. — ela sorriu levemente fazendo uma pausa, talvez para rememorar o acontecido. — Ela apareceu extrovertida, acompanhada de uma amiga e comentando sobre a suposta professora do curso. Devo lhe dizer que fiquei estarrecida com fato de ouvir tudo o que ouvi sobre minha pessoa daquela boca que já achava muito linda. E, pasme, fui consultada como que para averiguar se as péssimas informações eram mesmo verdadeiras. Neste momento o sinal toca e o funcionário aparece com a cadeira. A sala já estava quase lotada quando me levantei e assumi a posição de mestra. — desta vez o sorriso foi audível. — Precisava ver a cara dela! Ficou a aula todinha fingindo anotar coisas no caderno para não me olhar. No final, esperou que todos saíssem para falar comigo, pedindo desculpas e me acusando de tê-la enganado. Achei maravilhosa a maneira como ela mexia as mãos enquanto falava. Ela acabou me oferecendo uma carona para compensar o mal entendido, já que meu carro estava na oficina. Bom, três meses depois deste dia estávamos casadas. Planos para o futuro, para o presente. No aniversário de um ano em que nos conhecemos, na volta para casa, sofremos um acidente. Ela dirigia porque eu havia me excedido um pouco na bebida. — alisou os membros como que para enfatizar o que acontecera. — Ela quase não sofreu nada e eu agradeço a Deus todos os dias por isso. Depois do acidente, quando a parte que me coube foi constatada, eu simplesmente a afastei. Me tornei o monstro que descobri ao olhar apenas para mim. Ao tentar protegê-la da vida que nos foi legada. Mas o pior estava por vir… Ou o melhor? — perguntou desviando o olhar para a janela como se algo muito interessante pudesse ser visto de lá.– Não sei ao certo, mas, com os exames detalhados que foram necessários que eu fizesse, veio a confirmação de um câncer raro. Eu simplesmente não acreditava no que acontecia, mas alguma coisa havia se modificado dentro de mim. Para qualquer um que já estava se castigando o suficiente, seria fácil acabar com tudo de uma vez, mas tomei justamente o caminho contrário. De repente senti falta de Sofia como nunca havia sentido antes. E, como numa enorme descoberta, lembrei-me dos votos que fizemos quando nos casamos, percebendo que lhe negava a parte principal: éramos cúmplices em tudo. Eu havia prometido entregar-lhe todo o meu eu. O bom e o ruim. Eu havia aberto a porta de meu verdadeiro eu e fui buscar-me de volta para me doar a ela como tinha que ser. Quando fui procurá-la recebi o maior presente que a vida poderia me dar. Ela estava grávida. Vínhamos tentando havia alguns meses. Me disse que era a surpresa daquela noite.  Quando contei a ela da minha doença, de que eu não teria mais que dois anos de vida pela frente foi que reconheci nela a minha alma gêmea. Me convenceu de que faríamos cada dia de nossa vida se tornar um ano muito bem vivido. E então, minha cara Endless, que fantasmas das profundezas do ser te afligem agora? Por que está fazendo sua vida parecer apenas um detalhe tosco, como se você merecesse mais sorte que os outros?

Não pude responder na hora. Minha garganta se fechava em dor e as lágrimas não me deixavam ver que a verdade me havia sido dita de uma forma tão natural. Eu fiz de mim mesma um enorme cemitério, sem dar destino aos corpos que se deterioravam a espera de um enterro digno. Um velório muito rápido seria necessário.

CAP XVI

HELENA.

“Jess… o que ela estava fazendo?” Pela primeira vez a via de uma maneira muito diferente. A presença dela ali, tomando aquela atitude extremamente corajosa, me abalara mais do que eu achava que iria. Uma alegria vinda não sei de onde me atingiu poderosa e meu sorriso se abriu sem que eu pudesse impedir. Quando ela soltou a mala no chão, fui ao seu encontro e meus braços sem vontade própria a abraçaram com carinho. Ficamos um bom tempo assim, e suas palavras em meu ouvido fizeram um grande sentido naquele momento… “Eu acredito em você…”. Eu tinha contado àquela mulher tudo o que se passava em meu coração. Depois que me envolvi de uma maneira incontestável com Cris, foi a ela que me revelei. Disse-lhe da desesperança de encontrar meu coração novamente. Vi naqueles olhos, ao me ouvir contar todo meu esforço ao lado de uma mulher que sequer teria a mínima chance de ter, a compreensão que necessitava. Ela estava arriscando mais que eu e Cris juntas. Estava a ponto de ser confundida com uma obcecada ao invés de obstinada.

— Não te deixaria só nisso por nada neste mundo. Não pense que torço por seu final feliz com ela. Torço por SEU final feliz. Para que eu tenha a minha oportunidade de uma vez. Seja o que for, quero estar contigo até este fim.

Vi quando Cris se aproximou com um sorriso maroto no rosto.

— Bem vinda, Jess!

Elas se abraçaram cúmplices demais pro meu gosto.

— Agora vê se consegue aproveitar essa viagem, sua teimosa!!

Me abraçou forte, dando-me um beijo estalado no rosto. Despediu-se dos pequenos, enormes para a idade, nos desejou feliz viagem e desapareceu dentro da casa de Marina.

— Pronta? — segurei a mão daquela mulher decidida à minha frente, querendo uma confirmação que já tinha sido me dada há muito tempo.

— Sempre.

VOCÊ…

Na casa silenciosa encontrei uma Marina tensa, sentada no sofá, perdida em pensamentos difíceis. Sentei-me ao seu lado e a abracei tentando dissipar aquele sofrimento tão visível.

— Estou fazendo o que posso, Cris. Eu queria poder fazer mais. Eu… Ela é um pedaço de mim. Posso sentir a dor pela qual está passando.

Não falei palavra. Meus olhos se recusavam a deixar cair qualquer lágrima que fosse. Meus filhos estavam seguros. Isso era o que mais me preocupava: a segurança deles. Estava pronta para a grande batalha. Voltei no tempo. Aquele dia no parque com nossos gatos, me dando uma pista do que acontecia com você de verdade. Aquele dia em que quase matou o moleque. A violência. Talvez tenha sido essa violência bestial que tenha te salvado da morte. Esse lado que você nunca me explicou. O lado que te fazia alguém que desconhecia. Esta coisa abominável teve que ser solta de uma vez. Era isso? Você havia liberado o lado escuro que escondeu tão bem este tempo todo?

— Cris?

A voz parecia vir de longe, mas era Marina me fazendo voltar à realidade.

— Onde está o Biel? — perguntei, tentando amenizar a situação.

— Está envolvido com um curso de botânica, vê se pode? Uma hora quer ser mamãe Sílvia, agora está envolvido com as plantas de mamãe Marina.

Rimos com as dúvidas naturais das crianças em formação. Ele ainda teria muito tempo para decidir. Nossas expectativas seriam derrubadas pelo destino. Quem sabe dali não nasceria um motorista de fórmula um, ou um arquiteto, ou um chef de cozinha.

Ficamos um tempo considerável conversando, tentando não dar tanto valor a nossa preocupação com você. Tínhamos que te dar este voto de confiança. Caso ele fosse quebrado, eu já tinha um plano B pronto para ser posto em ação.

xxxx

EU…

Eu parecia estar em outra dimensão. Eu, Tina e Sofia, passamos dias entre conversas amenas, conversas sofridas e conversas essenciais. Estava aprendendo a verificar o que ia dentro de mim, não para resolver, mas para entender como funcionava e, assim, poder lidar com elas como tinha de ser. E, durante duas semanas, fizemos enterros simbólicos dos defuntos que acumulei em todos os anos de minha vida. Cuidávamos do jardim, fazíamos passeios longos e cheios de revelações. Sofia era uma mulher delicada. O sétimo mês de gravidez não lhe tirava o vigor para aceitar tanto sofrimento. Vê-las juntas, numa simbiose perfeita, fazia parte de meu tratamento. Muitas vezes confortava Sofia. Muitas vezes era confortada por Tina. Muitas vezes confortava Tina e, muitas vezes, era Sofia o meu apoio. Entendia nelas uma força capaz de superar o desafio de saber quando o fim chegaria, mesmo sabendo que o destino poderia abreviar esta data, ou, caprichosamente, estendê-la num milagre raramente possível. Era a vida… Para ser vivida do jeito que fosse.

Caminhei sozinha desta vez. Voltei ao precipício. Ele me pareceu ter mudado de concepção.

In My Place 

In my place, in my place,
were lines that I couldn’t change,
I was lost, oh yeah.

and I was lost, I was lost,
Crossed lines I shouldn’t have crossed,
I was lost, oh yeah.

Yeah, how long must you wait for it?
Yeah, how long must you pay for it?
Yeah, how long must you wait for it?
Oh for it, yeah

I was scared, I was scared,
tired and under prepared,
but I´ll wait for it.

And if you go, if you go,
and leave me down here on my own,
then I’ll wait for you, yeah.

Yeah, how long must you wait for it?
Yeah, how long must you pay for it?
Yeah, how long must you wait for it?
Oh for it, yeah

Sing it please, please, please,
come back and sing to me,
to me, me.

Come on and sing it out, now, now.
Come on and sing it out, to me, me
come back and sing.

In my place, in my place,
were lines that I couldn’t change,
I was lost, oh yeah.
Oh yeah.

No meu lugar 

 
No meu lugar,
Haviam limites que eu não poderia mudar
Eu estava perdido, oh sim

E eu estava perdido
Ultrapassei barreiras que não devia
Eu estava perdido, oh sim.

Por quanto tempo você vai esperar?
Por quanto tempo você vai pagar por isso?
Por quanto tempo você vai esperar?
Oh, por isso, sim.

Eu estava assustado
Cansado e despreparado
Mas vou esperar por você…

E se você partir
E me deixar aqui sozinho
Ainda esperarei por você.

Cante, por favor
Volte e cante para mim
pra mim.

Vamos lá, cante agora
Vamos lá, cante pra mim
Volte e cante.

Caíram de meus olhos as primeiras lágrimas de libertação. Não que eu estivesse escapado de tudo, mas a vontade de voltar e ser quem eu realmente era, tomava conta de mim. Não via mais com os olhos do desespero, nem da amargura que deixei influir até agora. Um novo parto. Um novo desafio. Minhas mãos foram para meus cabelos um pouco crescidos. Não tinham o tamanho comum, isso era verdade, mas, ao mesmo tempo em que cresciam, me faziam ter a sensação de transformação necessária para enfrentar o que estava por vir. Eu ainda estava apostando. O jogo chegava ao final.

Tina me esperava na frente da casa com aquele sorriso de triunfo. Eu não teria conseguido sem ela.

— Quis te seguir, mas sabia que ainda não era meu dia de sorte. — ela me deu a mão pequena para que a segurasse. — Nada que faça agora vai importar mais do que você já conseguiu fazer. Sofia está te esperando no jardim.

Beijei seu rosto frio e segui para lá. Minha nova amiga precisava de mim.

A mulher barriguda colhia alguns jasmins. Levava-os ao nariz a cada vez que os colhia. Mexia na terra, limpando, tratando. Ajudei-a na tarefa, regando umas plantas, colocando adubo em outras. Passamos um tempo neste intento. Ao final, retirei minhas luvas e lavei as mãos. Ela fez o mesmo. Apesar de eu saber que não estava bem, ela fazia questão de mostrar o contrário. Sem medo ou constrangimento, puxei-a pela mão e sentamos num banco próximo. Passei a mão sobre o ventre concebido sentindo a vida ali, sem compromisso. Sem a dúvida de ser humano.

— Não te contei como conheci Cris… — continuei a carícia tentando encontrar as palavras que definissem o que realmente queria lhe dizer. — Minha vida estava predestinada a um fim que eu promovia com uma vontade incrível. Tinha escolhido deixar assim. Ser nada. Pelo menos nada que me fizesse sair do lugar. Me atrevi a postar um texto num site lésbico, respondendo a uma doida qualquer que pensava ser a dona da verdade. Recebi um e-mail como comentário. Então…

HELENA.

— Cuidado!!!

Era tarde. Jess havia ultrapassado o limite da pista de esqui e encontrado uma rocha bem a sua frente. Minhas pernas tremeram. Revivi cenas absurdas e minha reação foi retardada por estas emoções. Jess sangrava. Era o contraste com a neve branca. Corri como louca até ela. Podia ver no entreabrir de seus olhos, um azul querendo sair dos meus, mas lutando bravamente para ficar.

— Não foi nada. — a voz fraca tentava me acalmar, mas não conseguia.

O sangue vinha da testa e, ao tentar movê-la pelo braço, ouvi seu grito de dor. Meu desespero foi extremo tentei chamar alguém, não sabia o que fazer.

— Fica calma… Calma… — a respiração dela era controlada a custo. — Chama os gêmeos… A cabana dos esquiadores não fica longe… Mantenha a calma, por favor… Eu vou precisar… Eu quebrei o braço e, tenho certeza, a perna direita também. O sangue na testa não significa hemorragia, então… Fica calma… Eu não vou morrer…

Quando aquele azul encontrou o meu verde e a ideia de que ela poderia não existir mais me foi exposta daquela maneira banal, eu tinha esquecido tudo. Aqueles dias na estação de esqui quando ela se fez presente, não só da maneira prática, mas da maneira abstrata que sempre me faltou quando precisei, não tinha me dado conta do quanto precisava dela. Até agora achei que eu fosse necessária, mas que nunca tivesse precisado de nada. Mesmo ali, naquela neve constante, querendo ajudá-la, estava, de certa forma, sendo amparada por aquelas palavras. Ela cuidava de mim.

Os gêmeos, muito inteligentes, tomaram conta da situação. Lembraram que o celular existia (eu na minha apavoração havia me esquecido) e deram o local exato em mínimos detalhes através do GPS. Uma equipe de resgate chegou em menos de dez minutos.

CAP XVII

VOCÊ…

Quinze dias. Eu me perguntando o que te acontecia, como você conseguia ficar longe sem dar notícias. Recebi uma ligação de Helena. Iriam demorar mais alguns dias na estação de esqui por causa do acidente com Jess. Ela não quis arriscar uma transferência sem necessidade. Ficariam mais uns cinco dias até Jess ser liberada pelo médico. Não era isso que me preocupava. A distância de nossos filhos não se comparava com a sua. Eu sabia que eles voltariam, mas você… Meus limites todos estavam sendo testados e isso não era bom. Minha ansiedade poderia botar tudo a perder, mas combinei com Marina um prazo. Mais dois dias. Era só o que faltava para poder assumir todos os riscos e agir de minha forma. Estava cansada de cruzar os braços e esperar. Não era justo. Precisava muito te ver. Precisava ouvir sua voz. O meu celular tocou inesperadamente. O número não identificado.

— Alô?

Do outro lado um silêncio de mil palavras. A presença que, Deus sabia como, reconhecia, me avisando de você.

— Alô? Endless… — agora podia ouvir nitidamente sua respiração ofegando, tentando controlar o choro. — Não desliga! Não precisa falar! Não fala… Só ouve. — também precisei controlar minha afobação. — Eu confio. Sei que está lutando, linda. Meu amor… Só não esquece que esta doida que te fala tem pavio curto. — não consegui segurar o primeiro soluço. — Volta… Por favor… Eu te amo…

O click claro e alto me avisou de tua ida. A lua alta iluminava um caminho limpo até a praia. Eu o segui.

EU…

“Eu te amo…”. Ela ainda não tinha desistido de mim… De nós. Aqueles dias, longe de você foram o maior risco que já corri em minha vida. Não havia sido imposição do destino, nem nada que fosse contra. Eu tinha tomado a decisão de me afastar, mesmo sabendo que tua impaciência e a decepção de ter sido, de novo, abandonada te fizessem tomar atitudes pelas quais eu me arrependeria amargamente. Mas, naquele telefonema, senti tua força e a nítida impressão que estavas prestes a tomar conta da situação como lhe era extremamente natural. Nunca foi de esperar. Lembro-me bem de quando resolveu ficar com Roberto. Pagou para ver, mas não se demorou na angústia de esperar que tudo se desse como tinha que ser. Quis ter a certeza, admitindo para si mesma e assumindo de maneira altamente sensata a possibilidade de dar certo ou não. Medo só fez parte de sua vida quando foi pega pela gravidez inesperada, pois já tinha decidido ficar só.

Fui até o chalé de Tina para contar-lhe do que tinha feito. Do primeiro passo dado. A porta estava aberta, o que não era tão absurdo, visto que estávamos isoladas naquele lugar ermo. Sofia estava adormecida no sofá com um livro esquecido entre os seios fartos. O peguei devagar colocando-o na mesa de centro e envolvendo seu corpo com o cobertor. Beijei-lhe a testa dando um sorriso. Na cozinha encontrei aquela mulher pequena, encarando o sol fraquinho que vinha da janela. Naquele olhar havia uma compreensão inacreditável para o que enfrentava. Sentei-me ao seu lado, servindo-me com uma xícara de chá posta na mesa.

— Então, amiga, pronta para voltar pra casa?

Como adivinhava? Como tinha esta certeza ao seu redor apenas com o sentir? Eu estava pronta. Continuei a beber o líquido quente e apaziguador. Também fiquei a admirar a claridade tênue que vinha da pequena janela, iluminando o ambiente aconchegante. Quando ela virou-se para mim, foi que pude perceber o semblante sombrio, adornado por lágrimas que nem parecia que deixava rolar. Fixou o cinza dos olhos nos meus.

— Vou precisar de você, Endless. Acho que partirei antes do esperado. Os sintomas chegaram mais cedo do que foi previsto. Preciso que ajude Sofia e nossa filha… Preciso…

Não continuou, deixando-se abater pelo pranto incontido. Fui até ela e, pela primeira vez, permitiu ser envolvida por meu abraço. Retirei-a da cadeira. Tão leve. Fui com ela em meus braços para o jardim. O banco dava de frente para a vista do penhasco. O mar infinito até o horizonte foi um espetáculo à parte. Sentei-me com ela em meu colo guardando-a dentro de mim. O pôr do sol, uma testemunha magnífica, nos observando, enquanto eu lhe dizia de meus planos. Enquanto eu agradecia sua presença em minha vida, mesmo sabendo que ela havia sido chamada por Helena e Marina para me ajudar na caminhada.

****

HELENA.

Deixei primeiro os gêmeos na casa de Marina. Cris não estava lá. Enquanto dirigia, Jess dormia no banco ao meu lado. O curativo na testa, o braço esquerdo e a perna direita engessados. Eu ia devagar, mas, sem poder evitar alguns solavancos, me contorcia a cada expressão de dor que via no rosto dela. Sorri ao lembrar-me do dia em que chegamos em Toronto. Ela simplesmente monopolizou as crianças para que eu lhe fizesse todas as vontades. Mas eu sabia que não era totalmente obrigada, sentia muito prazer nisso. A estação de esqui ficava a poucos quilômetros de onde ficamos hospedados. Fez questão de quartos separados. O que eu esperava? Estava tão acostumada com ela que acharia normal ficarmos juntas. Me fez enxergar de uma vez que havia acabado entre nós.

Assim que encostei o carro na frente do apartamento dela, liguei para Cris. Meu coração veio à garganta. A voz dela parecia triste. Minha preocupação, acho, transpareceu em meu rosto, pois vi quando Jess abriu a porta do carro com dificuldade tentando sair sem minha ajuda. Pedi desculpas a Cris e desliguei o fone indo imediatamente ajudá-la.

— O porteiro pode me ajudar, Helena. Pode ir ver sua amiga. Pelo jeito ela está mal.

Disse isso já chamando um rapaz que aguardava na porta, orientando-o a pegar sua mala e ajudá-la a subir.

— E quem fica com você?

Ela tentava se apoiar melhor na muleta sem sucesso.

— Contrato alguém, não se preocupa.

O porteiro de pouco porte físico apareceu com uma cadeira de rodas. Acomodou-a da melhor forma possível e levou-a até o elevador.

— Mas eu me preocupo! — gritei ao encontrá-la antes de fechar a porta.

— Não! Você não se preocupa! — ela revidou séria. — Seu coração pede que vá encontrá-la, então vá! Sua piedade humanitária, agora, não vai me ajudar em nada! Então corra!!

CAP XVIII

A porta do elevador se fechou na minha cara antes que eu pudesse responder. Uma irritação medonha tomou conta de mim naquele instante. O apartamento ficava no segundo andar e, sem pensar em mais nada, subi correndo pela escada e, graças aos meus anos de atleta na faculdade, consegui chegar um pouco depois no andar.

— Não gosto que me deixem falando sozinha! O que você sabe do meu coração?! Nem sequer sabe se tenho um!

Joguei as palavras para ela sem notar que sua expressão era de sofrimento. O suor molhava o curativo na testa e grudava a franja na pele. A mão sem gesso tremia e a respiração ofegante denunciava o que estava acontecendo.

— Nisso você tem razão… — a voz entrecortada vacilava. — Agora, por favor… Vá embora… Pedro me ajude a entrar…

O rapaz magro se interpôs entre nós duas, me olhando com uma cara desgostosa quando tentei ajudar.

— A senhorita não ouviu? Ela quer que vá embora…

Não deixei que terminasse a frase e segurei-o pela gravata mal ajeitada que usava.

— E eu quero que você desça agora! Pode ir andando ou, se preferir, de um modo mais rápido! — indiquei a janela com um olhar.

— Pare de ser grosseira com o rapaz, Helena! Solte-o! — gemeu ao fazer um esforço em minha direção.

Larguei o frangote imediatamente e ele saiu correndo pelas escadas.

— Você está sentindo alguma coisa? Quer ir ao hospital? — me abaixei até ela me incomodando demais com seu estado.

— Não… Só preciso deitar um pouco… O efeito do remédio está passando…

Ergui-a nos meus braços com cuidado para não afetar os machucados.

— O que está fazendo? — me perguntou fraca.

— Vou te por na cama e te dar os remédios. — olhei-a bem dentro dos olhos — Por que é tão teimosa, Jess? Acha mesmo que te deixaria sozinha numa hora dessas?

Ela riu baixinho e eu não entendi o porquê. Acomodei-a, ajeitando os travesseiros de maneira confortável.

— Para me encontrar com a mulher que eu amo, eu te deixaria sim.

Ainda muito próxima a ela, retirei uma mecha de cabelo que colava por cima da ferida coberta. — Ainda bem que não sou você.

EU…

Tina teve que ser socorrida naquela mesma tarde em que você ligou. Dois dias se passaram depois disso e ela já estava de volta. Sofia disfarçava bem a preocupação e, muitas vezes, tivemos conversas tristes sobre o assunto. Eu sabia que meu tempo ali estava acabando. Precisava me mover antes que fosse tarde. Liguei para Marina.

— Endless! Que surpresa boa! — a voz denotava uma alegria meio que exagerada. Estranhei.

— Como vai, mana? Como vão…

Ela não me deixou terminar a pergunta e já foi logo dizendo animada.

— Estão se preparando pra viajar! Acredita que Helena quer levar todo mundo pra Orlando? Ela, Cris e os meninos! Isso significa que eu e minha patroa teremos férias! … Mirian?! Está aí?!

Por um momento não consegui digerir bem a notícia. Orlando… Era o nosso plano quando eu voltasse de Djerba. Prometemos aos gêmeos que passaríamos um mês lá conhecendo tudo da Disney. Era nosso plano.

— Tudo bem, Marina. Que bom que estão todos felizes. Até mais!

Falei rápida e ríspida ao extremo desligando na cara dela. Um bicho chamado ciúme começava a dar trabalho.

****

VOCÊ…

Ouvi o telefone da casa de Marina tocar. Estava ocupada na cozinha e quando terminei fui até a sala indagar. Encontrei-a dando um risinho malicioso.

— Quem era? — perguntei já curiosa.

— Mirian. — ela falou ainda com o bendito risinho no rosto.

— Ela está bem? — perguntei disfarçando a emoção e demonstrando desinteresse.

— Depois que disse a ela que você e os gêmeos estavam viajando para Orlando com Helena, eu acho que não!

E caiu numa risada sem controle.

— Tá maluca, Marina? Por que mentiu para ela?!

Meu desespero era que você ficasse magoada demais. Orlando era nosso roteiro quando você voltasse de Djerba, eu sabia disso. Helena tinha deixado os gêmeos com Marina e eu tinha ido lá buscá-los. Acabei ficando pro almoço.

— Plantei um dos meus bichinhos especiais, destes que resolvem qualquer parada quando se trata de amor… Ciúmes! Ela ficou com ciúmes! Foi sarcástica, grosseira e desligou o telefone em minha cara!! — ria muito ao me relatar isso. Depois enxugou os olhos com a ponta da blusa. — O prazo dela acabou, Cris, agora é seu plano B.

****

HELENA.

Não sentia o pescoço e minhas pernas estavam caídas para fora do sofá pequeno formigando muito. A cama em que Jess dormia profundamente ficava bem ao lado. Depois da luta com ela para que comesse e me deixasse dar-lhe banho, pegou num sono tranquilo e eu, finalmente, também pude descansar. Acho que nasci para isso. Lembrei-me de Cris. De quando também tive de lutar com ela. Estiquei-me para alongar os músculos doloridos quando a campainha tocou. Na porta fui encontrar uma mulher madura vestida de branco e com olhar severo.

— É o apartamento de Jess?

Eu disse que sim e ela se identificou como enfermeira contratada para cuidar dela. Me perguntei em que momento Jess a havia contratado se não a vi encostar no telefone durante todo o tempo. Será que foi enquanto eu dormia? Ou quando tive que deixá-las com os gêmeos para liberar nossa bagagem? Me ocorreu que ela não estava dando uma de coitadinha para me segurar ao seu lado. Ela realmente não queria minha presença ali por piedade. Queria que eu ficasse por ela. Pois então ela teria a resposta.

— Eu sinto muito, Sra…

— Smith… Sra. Smith.

— Sra. Smith. É que ela não vai mais precisar de seus serviços. Obrigada e tenha uma boa noite.

Despachei a “mala” que só faltou me engolir com o olhar de raiva antes de se retirar. De volta ao quarto, encontrei a convalescente acordada me olhando com olhos de desconfiança.

— Quem era na porta?

— Alguém que não era mais necessária.

— Dispensou minha enfermeira?! — as faíscas saiam daqueles olhos como flechas.

— Aquilo não era uma enfermeira! Aquilo era uma nazista pronta pra fazer aquelas experiências médicas em você! Eu não ia deixar aquela mulher te tocar!

Vi sinais de impaciência antes de escutar.

— Pra seu governo aquela mulher é uma das enfermeiras mais respeitadas do país! Abriu mão de umas férias prolongadas para se disponibilizar para este trabalho! Que merda, Helena! Afinal de contas o que você quer?!!

De repente tudo ficou confuso em minha cabeça. Como responder? Pensava em Cris, mas queria ficar com Jess. Mas por que queria ficar com Jess se pensava muito em Cris? Ela percebeu minha indecisão e me chamou até ela. Fui ainda com a cisma da pergunta. Sentei-me ao seu lado e me preparava para explicar quando ela segurou minha mão com força.

— Precisa saber o que quer, querida. Já sofreu muito e não suportaria te ver sofrer mais. Sei que está aqui comigo agora, mas sei também que seus pensamentos estão com ela. Quero que saia e vá encontrá-la. Vou recontratar a enfermeira e, preste bem atenção, só volte se for para ficar, entendeu?

Enquanto ela falava, me acariciava o rosto e este ia de encontro ao seu na tentativa de um beijo que ela recusou.

— Não posso… — deixou uma lágrima rolar dos olhos azuis. — Não sabe o quanto os quero, todos eles. — tocava meus lábios com os dedos delicados. — Mas só quando eles forem verdadeiramente meus.

CAP XIX

EU…

Uma dor boa me alcançou quando me deixei levar pelo ciúme. Sensação de vida dentro de mim. Aquela mulher não podia me substituir junto de minha esposa e filhos! Não ia levar fácil o que eu levei anos para conseguir! Tina tinha razão quando me disse que eu apenas precisava de um motivo. Um motivo forte para me retirar desta inércia estúpida! Eu estava tremendo de raiva e a adrenalina natural da situação me encheu de uma energia extraordinária.

Olhei bem no espelho. O cabelo estava crescendo e tomava uma forma agradável. Os fios maiores me davam uma franja pequena e mal feita, mas com um charme que achei necessário. A cicatriz estava lá, mas a cor de meu rosto era outra desde que cheguei ali. As olheiras, antes enormes, faziam parte de um passado quase superado. Uns quilos a mais. Me abasteci de um poder só meu.

HELENA.

Dormi muito. Quando acordei já passavam das nove horas. Tomei banho gelado apesar do frio gritante. Não pensei duas vezes, iria encontrar Cris. Enquanto dirigia para lá, me preocupava com Jess. A “mala” chegou vinte minutos depois que Jess ligou e eu me retirei como ela havia pedido. Precisava saber como estava. Precisava saber como Cris estava. Acelerei muito durante a viagem.

— Oi…

A palavra não era a que eu esperava. Pelo menos um “que saudades…”. Entrei me sentindo uma intrusa. Fui seguindo-a até o quarto onde ela tratou de arrumar umas roupas numa mala.

— Vai viajar?

O olhar que ela me lançou mostrou-me a trivialidade da pergunta. Continuei a observá-la na tarefa.

— Pode falar comigo um minuto?

Ela parou antes de eu terminar o que tinha dito.

— Ótimo, Helena! Quer minha atenção agora, mas não me deu nenhuma quando conversamos naquela noite do aniversário de Carol! Olhe para mim! Acha que tenho tempo para você e suas chorumelas?! Acha que tenho tempo pra perder com uma pessoa que fica se boicotando em nome de um sentimento que nunca vai entender?! Acha que vou te dar à mínima enquanto luto por minha vida e a vida de meus filhos?! Por que você, simplesmente, não para de sabotar sua felicidade?!! Por que não entende que “achar” que me ama te livra de encarar o amor que você recebeu de graça?!! Você quer me amar porque a desculpa de ser impossível te livra de ter que assumir o amor de verdade!!! Vê se cresce, Helena!!!

Ela voltou a arrumar as malas enquanto eu só podia chorar. Ela percebeu. Respirou fundo antes de vir ao meu encontro e me abraçar com carinho.

— Desculpa, mas é a verdade. Me esquece, Helena…

— Que comovente.

Uma figura muito peculiar entrou em cena naquele exato momento.

****

VOCÊ…

O teu olhar tinha um brilho perigoso de uma fera prestes a dar o bote. Caminhou devagar até onde estávamos. O casaco longo e elegante cobria um corpo firme, e a camisa escura de gola alta, te dava um aspecto misterioso. O perfume era o mesmo. Helena me soltou assustada.

— Te vejo depois, Cris.

Quando eu quis responder, você se adiantou com seriedade.

— Nos vemos.

A voz preciosa e definitiva retrucou com calma, mas com a propriedade que queria passar.

Helena foi embora calada.

— Então? Se divertindo na minha ausência?

Dei-lhe as costas aborrecida e, ao mesmo tempo, com um tesão que desconhecia.

— Vejo que pretende viajar. Finalmente vai para Orlando?

Quando me voltei imaginei que veria em seus olhos toda a ironia que suas palavras tentavam passar. Engano. Em seus olhos via um brilho diferente. Meu coração veio à boca e uma vontade de correr para seus braços me atacou impiedosa. Queria falar alguma coisa, mas a emoção não me deixava.

— Esquece as últimas palavras que disse. — chegou mais perto. — O ciúme as criou. Ver você nos braços dela foi demais para mim. Então, vai viajar? — você perguntou segurando minha mão com leveza me olhando bem nos olhos passando aquela segurança da qual senti tanta falta.

— Ia… — minha resposta pouca e falha abriu um sorriso lindo em seus lábios.

— Então pode me acompanhar no almoço. Reservei naquele restaurante onde almoçamos pela primeira vez, lembra?

Como poderia esquecer. Você tinha acabado de chegar do Brasil. Tímida, mas decidida a me conquistar.

— Claro, comeu todo o estoque de frango de lá. — rimos enquanto você ainda segurava minha mão. — Só vou tomar um banho. Não demoro. — disse tentando me desfazer do contato gostoso, mas você não deixou.

— Quando voltarmos, poderemos conversar. Tenho algo muito importante pra te dizer. Algo que mudará nossas vidas. — soltou minhas mãos.

Comecei a tirar minhas joias, colocando-as na mesinha de cabeceira. Já ia me livrando da blusa quando te sinto em minhas costas.

— Deixe que eu faça isso…

O que eu poderia dizer naquele momento? Ainda não tínhamos resolvido nada entre nós. Tuas mãos ao retirar a vestimenta, acariciavam minhas costas nuas. Eu estava a ponto de não resistir mais, quando elas pararam e você foi em direção à varanda em silêncio. Ao sair do banho apenas enrolada com uma toalha você já não estava lá. Me vesti com certo nervosismo e em dez minutos partimos para o restaurante.

— Seu cabelo está crescendo. — comentei levando a última garfada à boca.

— Como capim. — sorriu e passou a mão por eles. — Sobremesa?

Não, eu não queria mais nada, só saber o que você gostaria de me dizer.

— Se não se importar preferiria voltar para casa.

— Entendo… Também estou ansiosa para sair daqui. Tomei uma decisão muito importante, Cris, e quero compartilhar isso com nossos amigos. Eles estão nos esperando. — limpou a boca com o guardanapo e fez sinal para o garçom.

Ele chegou com a conta. A hora havia chegado. Quando você fez menção de levantar, eu te impedi.

— Espera. Antes de irmos, preciso te dizer uma coisa. Não sei o que decidiu de sua vida, mas quero que saiba que estava decidida hoje de manhã a te ter de qualquer maneira.

— Um plano B? — o brilho que vira mais cedo retornava ao teu olhar.

— É… Eu achei que tinha um plano B, mas não era nada além de ir ao teu encontro e… E… Implorar para que voltasse. — não segurei mais as lágrimas. — De aceitar o que pudesse me dar… Alguns dias… Ou algumas noites… Desde que eu pudesse estar um pouco por perto… Me deixe ficar um pouco por perto… Por favor…– minha voz saia entrecortada pela emoção.

— Vamos! — foi o qe me disse sem a menor expressão.

Puxou-me pela mão com pressa. A hora havia chegado.

CAP XX

HELENA.

Estacionei o carro em frente ao prédio onde Jess morava. Minhas mãos tremiam e eu me sentia desmascarada como uma criança cujo disfarce é descoberto e a bronca seria esperada. Estava com raiva de Cris. Ela havia desmoronado em poucas palavras toda minha defesa de vida. Me fez ver como eu era vulnerável a qualquer sentimento que exigisse mais entrega. Ela estava certa, eu fugia da simples possibilidade de amar de novo. Amar, não inventar o sentimento como se fosse uma ideologia estudada. A mulher que estava lá em cima me dava medo. Diferente de Cris, ela me disse tudo o que ouvi minutos atrás com a sua grande característica: descubra se for capaz. Uma confusão tremenda me abalava naquele momento. Na minha cabeça as palavras de Jess: “Só volte se for para ficar!”. As palavras de Cris: “Você quer me amar porque a desculpa de ser impossível te livra de ter que assumir o amor de verdade!!! Vê se cresce, Helena!!!”. Eu estava com medo. Olhei para a portaria e vi o rapazote com cara de poucos amigos. Ele pegou o interfone e falou por poucos segundos me encarando constantemente. Meu celular tocou de repente.

— “Sobe e não moleste o Pedro, ele só está preocupado.”

A voz calma e segura de Jess me aterrorizou por um momento. O que diria a ela? Que agora estava mais confusa ainda? Que não encontrava um sentimento sólido sequer para tranquiliza-la? Poderia dizer-lhe que lhe precisava como ao ar, mas isso era amor? Deixei-me levar pelo passado quando nos conhecemos…

“– Quem pouco dorme ‘nada’ vive…

A voz suave me tirou da soneca em plena aula de citologia. A faculdade de Ciências Biológicas já estava no fim e, bravamente, tentava me concentrar nos estudos, mas a noite e minha melancolia desde a morte de Luana — e isso já fazia mais de três anos — me chamavam para a esbórnia em plena semana de aulas.

 A primeira sensação surpreendente foi ver olhos extremamente azuis me analisando intensamente. De onde ela viera? Não me lembrava de tê-la visto algum dia na sala. Ela, como que adivinhando, mostrou-me o crachá onde dizia que ela pertencia ao curso de medicina.

— Tô devendo a cadeira. — falou baixo e voltou a atenção para a aula.

Na saída da sala eu a abordei me perguntando seriamente porque o fizera. Ela sorriu e senti uma paz grande. Uma vontade de ficar perto, conversar.

— Precisa dormir mais à noite. O professor estava prestes a te pegar com a boca na botija.

— Tem razão. Quero te agradecer pelo toque. Que tal um café? Ainda tenho duas aulas dificílimas pra ficar acordada.

Rimos da minha tirada péssima. E vi scanners azuis me radiografando mais uma vez antes de pronunciar em voz aveludada e, porque não dizer, sexy.

— Não sou de aceitar convites de estranhos, mas acho que se recusar quem vai ter problemas para dormir à noite sou eu.”

Não percebi o sorriso formado em meu rosto, mas ele estava lá. Quando notei já saia do carro rumo ao que quer que fosse.

A mulher-mala me recebeu com a frieza de sempre. Me seguiu até o quarto de Jess como se eu fosse uma visita estranha que ela precisasse vigiar. Olhei para a mulher deitada na cama com visível desagrado pela intromissão da outra. Jess pediu-lhe gentilmente que nos deixasse a sós.

— Esta mulher…

Já ia começar a reclamação quando ela me parou imediatamente.

— Foi você quem começou. Quem mandou despachá-la daquela maneira deselegante? — com esforço sentou-se na cama. — Pode me ajudar a me sentar na cadeira, por favor. — assim que conseguiu, movimentou a cadeira para o lado da varanda.

Eu a segui calada. Preparando algo para lhe dizer e na verdade não encontrava nada digno de ser dito.

— Por que está aqui? — a voz baixa denunciou o esforço para fazer a pergunta.

— Você pediu para eu subir e…

— Está brincando comigo, Helena?! — rodou a cadeira em minha direção e, apesar do braço engessado, o movimento foi firme como se já estivesse acostumada a fazê-lo.

Fiz um gesto de puro desespero dando-lhe as costas e passando as mãos nervosas pelo cabelo.

— Não pretendo. — foi a resposta sincera que me veio na hora.

Ela riu em deboche como se não acreditasse.

— Gostaria que você acreditasse quando digo que não sei o que estou sentindo e que não debochasse disso! Hoje descobri que não passo de uma fraude! Que passei minha vida inteira esperando algo que nunca quis! Que magoei, que menti, que forjei! — me virei pra ela em pranto. — O que eu faço, Jess?!

Me atirei em seu colo pedindo conforto. Senti mãos e lábios em minha cabeça num carinho extremo.

— Sinto muito, querida, quero tanto te ajudar, mas não sei como. Tenho medo de minha imparcialidade. Não quero que seja induzida por mim… — ela enxugava minhas lágrimas com dedos suaves enquanto me falava isso. — Eu te amo tanto, te quero tanto que, às vezes, acho que não vou suportar ficar longe. Que droga, Helena! Por que tem que ser tão complicado?!

Quando aquelas palavras me atingiram, pude atinar para a grande besteira que fazia. Eu que tinha esperado sempre por ela desde aquele dia na faculdade. Esperava que ela me dissesse o que havia de errado comigo. E era o que ela fazia. O fez quando começamos um namoro rápido e avassalador. O fez quando, mesmo eu dando a entender que não passaria de sexo, preferiu ficar. O fez quando a traí com tantas quanto foram possíveis e preferiu ficar. Ela me esperava, mas desistiu quando conheci Cris. Viu nela a ameaça que não via nas outras. Estava me implorando para que eu acordasse e a visse como ela realmente era, quem ela era de verdade na minha vida… O meu amor. Não o que eu queria, mas o que viera para mim como uma dádiva. O que viera não para ser recusado, mas para ser aceito como o único. Meu coração se encheu como um balão de ar, pleno de carinho e paixão. E foram lembranças de nossos momentos bons e ruins sufocando qualquer outra coisa que pudesse existir dentro de mim que não fosse ela. Os olhos lindos cheios de água pareciam entender a transformação que ocorria quando pousaram nos meus. Minha mão seguiu a linha de seu rosto de cima até encontrar o queixo, deixando que o polegar tocasse os lábios acometidos de um frêmito emocionado. Fixei meu olhar neles.

— Está tudo aqui… Sempre esteve. Tudo o que eu precisava. Tudo o que me foi negado enxergar.  — as janelas anis se fecharam para que as lágrimas frias pudessem cair e um soluço escapar. — Você é o meu amor. — disse com uma verdade inédita até então. — Meu… Não por merecimento, mas por destino. Por que, mesmo com Luana, não consegui entender do que se tratava de verdade. Por que não tivemos tempo, e tudo o que pudemos fazer foi correr contra ele. Deus… Agora eu consigo ver! Jess… — ela abriu os olhos e reconheci meu mundo neles. — Eu vim para ficar…

Nunca vi tanta fragilidade em alguém como estava vendo nela. Estava se entregando como não pudesse fazer mais nada. Era minha. Meus longos braços a trouxeram para mim. Seu suor, a respiração acelerada. Meus instintos me dizendo do anormal. O gesso, seu ferimento na testa… O que me impediria de ter o que já havia tido durante tanto tempo? Ela entendeu como se soubesse de mim o tempo todo.

— Não vai me machucar…

Meus olhos eram chamas acesas. Aquele cheiro tão comum era raro e de um prazer desconhecido por mim. Como minhas mãos se atreviam a percorrer caminho tão andado? Como elas poderiam não entender que aquele caminho era o mesmo?

— Quero te tocar… Preciso… — meus dedos iam de seu rosto até o encontro dos seus seios… — Preciso ter você…

Levei-a até a cama, deitando-me ao seu lado. O cansaço dela era perceptível.

— Posso esperar… — meus lábios alcançavam o pescoço desprotegido e lambiam, e sugavam com um desejo difícil de suprimir.

— Não posso… Eu não posso…  Eu não quero esperar… — a perna engessada até perto do joelho tentava me enlaçar.

Estudei um espaço. Inventei um movimento. Engenhei uma situação onde o prazer se fez de maneira inóspita. Nem a dificuldade, nem a hora incerta, nem a maneira como se fez. Nada apagaria o brilho de ter tido minha mulher pela primeira vez.

EU…

A tensão me fez ficar parada um pouco de tempo quando entramos no carro. Teu olhar estava distante, vagando por lugares que eu sabia não ser nada agradáveis. Minha decisão estava tomada. Não voltaria atrás. Liguei a ignição e fiz com que o automóvel se movesse devagar. Precisava de tempo para pensar. Não sabe que emoção me tomou quando te vi implorar por mim. Neste momento acelerei em demasia te fazendo agarrar o assento, apreensiva. Diminui instantaneamente, querendo pedir desculpas. Meu pensamento todo era numa só coisa: como te convencer de minha decisão. Teu pedido havia me dado uma pista, mas, e se não fosse o que eu estava pensando? Minha mão livre — mesmo não devendo estar — foi ao bolso de meu casaco. Apertei ali a minha verdade.  Chegamos.

Os carros estacionados em nosso jardim diziam da presença das mulheres de nossa vida. Nossa família. Meu coração respirou mais tranquilo. Precisava muito da presença delas. Bertha nos avistou ao longe, rodeada por nossas crianças. Biel e Giovanna, Gian e Carolzinha. Fiz um sinal para ela significando que deveria mantê-las por lá mais algum tempo. Entramos em casa, mas não sem antes eu me deparar com o olhar de nossa filha. Ainda era aquele olhar das cobranças. Aquele olhar tão parecido com o seu, de quando queria respostas que eu não podia dar.

Fomos abraçadas por nossas amigas assim que nos fizemos presentes. No abraço de Lúcia me demorei mais. Ela tinha sido tão decisiva quando te enfrentou. Quando te salvou de um colapso. Ela e Lídia se abraçaram emocionadas tomando seus lugares no sofá.

Sentei-me ao seu lado. Todas sentaram-se próximas, aguardando minha iniciativa.

— Obrigada por estarem aqui hoje. Sei que devia ter lhes procurado antes, mas precisava resolver algumas coisas. Coisas essenciais. Vocês são tão importantes para mim. — olhei para você que permanecia imóvel numa expectativa difícil. — Para nós. Tudo pelo que passei… Que passamos, só serviu para eu ter a certeza que vocês seriam o meu pilar. O pilar que manteria minha família unida acontecesse o que acontecesse. — vi Marina enxugar uma lágrima. — Mana… Mãe de meus filhos… Tão seus quanto meus… Não sei como conseguiríamos sem você. Sem você Sílvia… — as mãos delas se entrelaçaram carinhosas. — Precisei passar por tudo o que enfrentei durante minha vida. — olhei diretamente para Lúcia. — Você viu um pouco disso, amiga. Pode fazer uma ideia do que tive de libertar para estar aqui de novo. — apertamos a mão uma da outra. — O que quero dizer a vocês agora é que tomei uma decisão que vai parecer um pouco estranha, mas que, tenho absoluta certeza, vão compreender como devem fazer os amigos… — me levantei segurando sua mão para que também o fizesse. — Vou morar por dois anos na França. — senti sua mão separar-se da minha. — Recebi oferta de uma editora de lá para publicar um livro sobre o sequestro. Optei pela França porque preciso de uma mudança radical. Me desculpem por estar indo embora antes mesmo de ter voltado. — percebi que todos olhavam para você, ansiosos por sua resposta ao revelado. — Por isso… — tomei suas mãos de volta nas minhas, fazendo com que olhasse para mim. –… Eu te peço aqui, na frente de nossa família, que venha comigo para ser minha amiga, minha amante… Minha mulher… Para todo o sempre… — retirei do meu bolso a caixinha azul com nossas alianças. Vi tua surpresa ao dar por falta do anel em seu dedo e no meu. — Casa comigo? Mais uma vez e de novo, quantas vezes tenha que ser… Para que eu me lembre sempre que foi você quem me deu a vida e só você pode me devolver à morte… Diga sim, Love… Não me deixe nunca mais ver em seus olhos o que vi naquele restaurante. Deixe que eu te dê a única coisa que sei que posso dar… Meu amor incondicional.

A espera por aquelas três letras ínfimas, mas tão poderosas, foi uma tortura. Tua mão esquerda se ofereceu para que eu pudesse, nela, encaixar a aliança que era tua. A mesma mão que recebeu entregou à minha o outro anel que aguardava na caixinha.

— Você é minha vida. Temos, assim, a vida uma da outra. O que é para você nunca deixará de ser para mim… — você disse ás lágrimas.

Beijei teu dedo circundado por nosso laço de amor. De lá, meus lábios seguiram para o lugar mágico onde gostariam de se perpetuar em longa e apaixonada carícia. Tocaram-te, eternamente presos àquele gosto adorável.

As meninas aplaudiram esfuziantes, parabenizando-nos pelo reencontro. Foram todas ao jardim. Fiquei ainda atada a teu olhar feliz, meus lábios se renderam mais uma vez aos comandos dos teus.

— Te amo… — tua voz quente em minha boca. — Te amo…

Minutos depois estávamos no jardim.  Abracei Biel apertado, pois foi o primeiro a me ver quando chegamos lá. Carolzinha se enroscou em nossas pernas pedindo “braço”. Depois de acarinhá-la, devolvemos o corpo espevitado para as mamães corujas. Ficamos observando nossos rebentos enquanto o lanche era servido por nossa fiel e competente Bertha. Não iria poupar esforços para levá-la conosco. Gian ao nos ver, parou e olhou para nossa menina. Era visível sua preocupação com a irmã. O respeito que ele tinha por ela. Não se moveu. Giovanna já nos tinha visto. Foi até Marina e se abraçou a ela. Gian foi até onde elas estavam. Nossas amigas se despediram e foram embora. Marina me puxou para um canto antes de sair.

— Dê um tempo para ela. — se referiu a Giovanna. — Sabe que foi a que mais sentiu isso tudo. Vai te cobrar muitas coisas. Dê a ela o que tem que dar. Não esconda nada se ela perguntar e, se não perguntar, explique assim mesmo. Ela precisa confiar em você de novo.

Abraçou-me apertado e se foi.

Bertha preparou-os para o banho. Dentro de casa eu e você aguardávamos a presença deles. Gian chegou com olhos marejados, mas não se aproximou. Sentou-se na poltrona perto de nós. Poucos minutos depois nossa filha apareceu. O cabelo vermelho estava preso numa trança que sustentava uma presilha em forma de borboleta. Prendi o nó na garganta ao reconhecer o mimo que trouxe de Paris para ela. Você foi a primeira a falar.

— Giovanna… Gian…

Antes que você pudesse expressar qualquer coisa, nossa menina se adiantou.

— Não precisam explicar nada! Já sabemos que ela vai para a França! — disse isso me olhando de forma dura como nunca imaginei que veria um dia. — Já estamos acostumados com isso. Tia Marina pode nos ajudar! Não se preocupem! —

As órbitas esverdeadas se encheram de lágrimas e meu peito se cobria de dor. Ergui-me em sua direção e alcancei-lhes as mãos pequenas e suadas enquanto ela desviava seu olhar do meu.

— Filha… — senti que ela prendia a respiração quando me aproximei. — Giovanna… — chamei-a para que me olhasse e ela o fez de maneira tão corajosa que me orgulhei imensamente de ser sua mãe. — Não irei a lugar algum sem você e seu irmão. — ela deixou a primeira lágrima vir e voltou a respirar com dificuldade. — Nada mais vai me afastar de vocês, eu prometo. — vi a mão se soltar da minha e encontrar a cicatriz de meu rosto. — Também quero te contar o que houve. Também quero que saiba que lutei muito para te ver de novo, meu amor. Eu não te abandonei, Giovanna… Filha… Acredita em mim…

Minhas lágrimas, as dela, as de Gian, as suas… Nos encontramos num abraço sem igual. Nossos filhos, eu e você. Nosso mundo.

CAP XXI

VOCÊ…

Passamos horas juntos. Todos na nossa cama, assistindo aos DVDs com os quais você os presenteou quando tentava voltar para casa. Comemos pipocas. E, neste meio termo, nossos olhares só pediam uma coisa: ficarmos a sós. Nossos meninos começaram a dar sinal de cansaço. A primeira foi Giovanna, ainda agarrada a você como se tivesse medo que fugisse. Olhei emocionada quando a pegou nos braços, mesmo ela estando enorme pros poucos oito anos. Permitiu-lhe todas as manhas possíveis. Vi nos olhos de nossa filha a felicidade perdida desde que… Não quis pensar neste tempo. Gian ressonava grudado a mim deixando um filete de baba escorrer pelo canto da boca. Quando me levantei para levá-lo, você me impediu, beijando minha testa e pondo-o nos braços com cuidado, levando-o para o quarto. Aproveitei a deixa e fui ao toalete colocar perfume. Deitei-me te aguardando com aquela fome. Que você se preparasse para o que viria.

ELAS…

Quando os olhares se encontraram naquele santuário onde haviam entrado em comunhão tantas vezes, o mundo pareceu parar. Voltaram no tempo. Era o novo se apresentando a elas mais uma vez, dando-lhes a certeza de que a fonte nunca secaria. Endless já havia se livrado das roupas. Love se despia com desvelo para seu amor. O corpo machucado de uma sendo mitificado pela outra. O meio da cama as aguardava como testemunha do que se faria ali diante de si. A meia luz acendia um fogo inextinguível. Plantaram-se inertes, deixando que os olhos aproveitassem o primeiro prazer. Se as bocas abriam-se sem controle, não era para falar, mas para, em silêncio, implorar pelo ósculo tão esperado. E o faziam… E faziam sem pressa. Endless não impediu que uma mão intrometida se atrevesse a procurar o rosto da mulher que ama. Nem se desviou da mão amada que procurou seu seio sem pudor. Não imaginou que aquele toque fosse desencadear tamanho frisson, capaz de fazer-lhe gemer alto, para o deleite da mulher a sua frente, que, a este sinal tão insinuante, tomou-a sem compaixão em seus lábios e a fez se entregar, empurrando o corpo rendido a maciez do colchão. Não era preciso mapas, nem orientações. A bússola viciada em uma só direção lhes mostrava o caminho. A mão de Cris era guiada pela de Mirian, indicando-lhe atalhos preciosos. Curvas perigosas não eram temidas pela velocidade máxima a qual se impunham sem perceber. Os fluidos escapavam em profusão depois de tanto tempo represados. O amor se fez e se desfez, e se fez novamente, e assim seria até o limite que nunca iria existir.

EU…

— Está acordada? — perguntei tocando de leve sua mão que dormia em meu seio.

— Não posso dormir… Tenho medo de não acordar… Ou de acordar e…

Você não conseguiu terminar o que dizia. Ergui meu rosto até alcançar o seu e ver nele o brilho das lágrimas.

— Me perdoa, vida. — beijei-lhe os fios de água com amor.

Sentamo-nos. Queria dizer-lhe agora sobre tudo o que me afligiu nestes meses dolorosos para nós duas. Com um olhar perguntei-lhe se seria possível naquele momento.

— Me conta…

Me senti sendo puxada com carinho para seu colo e meus cabelos poucos serem agitados brandamente por dedos delicados, o que me deu forças para relatar-lhe tudo desde quando tive a infeliz ideia de voltar mais cedo para casa até o maldito sequestro. Contei-lhe de minha covardia ao não tentar evitar que Glória fosse assassinada na minha frente por sua histeria (terroristas não perdiam tempo com isso), pelo menos tentando fazê-la ficar calma. Mas eu não conseguia me mover, pois a única coisa em minha mente era não morrer para poder voltar para casa. Repeti fielmente a passagem em que fui violentada de maneira estupidamente cruel, de como, após o acontecido, tentei o suicídio sem sucesso, e, a partir daí, comecei a fazer o jogo necessário para poder sobreviver. Me drogando, me embebedando até não aguentar mais. Das tatoos que mandei fazer para não esquecer meu objetivo. De como fazia para pagar por elas. Da descoberta de minha gravidez como um alívio… Sim… Alívio pela menstruação interrompida, pois mal nos davam água e comida. Produto de higiene pessoal, nem pensar. Mas não era só isso. Contei-lhe de minha infância e de como gerei dentro de mim a fera que me salvou a vida. Vi em teus olhos a revolta gritante como se tivesse sido atingida mortalmente.

— Não fica assim…

Eu pedia inutilmente tentando te fazer parar de soltar impropérios mil contra o que sofri. Não adiantava te dizer que, agora, era passado. Que havia domado o “animal”. Que ele ainda existia, mas seria usado no momento certo e sempre dominado quando fosse preciso.

— Não é justo… Não é justo… Você não merecia passar por isso!

— Estou dividindo com você e essa tua reação era meu maior medo. Precisa me ajudar, eu preciso que me ajude a suportar isso, vida! Preciso saber que não preciso mais sofrer, porque você está comigo! Não quero que se revolte porque foi isso que fiz a vida inteira até te encontrar! — fiz com que olhasse para mim. — Me ajuda!

VOCÊ…

Quando você tomou meu rosto, me tirando da revolta que senti ao ouvir sobre sua infância, foi que entendi que precisava parar de gritar contra o destino cruel que te assolou de maneira estúpida. Ouvi tua súplica. Entendi tantas coisas sobre você que me surpreendi. Você aguardava uma resposta e a única que poderia te dar era esta:

— Eu te amo demais, Endless. E agora, meu amor é tanto que parece que vou explodir. Não vou deixar que sofra nunca mais, entendeu?! Perdoa pelas vezes em que não entendi o que te acontecia. Perdoa minha impaciência, meu sincericídio.

— Shhhh… — teus lábios calaram os meus. — Não tenho que te perdoar nada. Você foi como eu gostaria que fosse: você mesma. E vai continuar assim. Promete?

Por longas horas nos procuramos e nos achamos em ternos e avassaladores momentos de amor pleno.

****

HELENA.

Não conseguia definir o que estava sentindo do lado dela que dormia tão longe da realidade, deixando transparecer no rosto tão amado uma pureza encantadora. Fiquei assim por minutos preciosos a admirá-la até as batidas na porta me fazerem arrepiar até a nuca.

— A mulher-mala… — sussurrei antes de me levantar incrivelmente aborrecida.

Coloquei seu roupão pequeno demais para mim e fui abrir a porta. O rosto da mulher tomou uma cor tão diferente que temi que uma síncope a acometesse de uma hora para a outra.

— O.. O… remédio… está… na hora… — não conseguiu formar uma única frase sem gaguejar bastante com a bandeja nas mãos.

— Sra. Smith, faça um favor a mim e a si mesma. Tire o resto do dia de folga e pense bastante sobre o que viu e “ouviu” aqui, depois resolva se vai continuar sendo a enfermeira dela, está bem? Não se preocupe, vou cuidar bem direitinho da nossa paciente até que a senhora volte… Ou não. — tomei a bandeja dela e fechei a porta contente com minha destreza em despachar a velha mais uma vez.

Fui até meu anjo e acordei-lhe com um beijo gostoso.

— Hora do remedinho, amor… — beijei-lhe mais uma vez, ao que ela respondeu com intensidade.

— Cadê a Sra. Smith? — resmungou ao se espreguiçar todinha reclamando do gesso incomodo que a impedia de fazer como devia ser feito.

— Mandei-a pra casa… Por hoje! — emendei rápido antes que ela me desse a bronca. — Fiz mal?

— Não, eu também o teria feito. — ficou brincando de enfiar a mão dentro do roupão que eu vestia a procura do meu seio já eriçado. — Vocêfica muito gostosa nessa coisa pequena… — as mãos eram habilidosas me fazendo quase entrar em pânico de tanto tesão.

— O remédio, mocinha.

Levantei e peguei o comprimido e o copo com água, entregando-o.

— Precisamos de um banho?

— Já? Não quer brincar mais um pouquinho? — o sorriso maroto me pegou de surpresa.

Como não havia percebido o quão safada ela era. Sem piscar me desfiz do traje mínimo e subi na cama bolando mil maneiras de dar-lhe e tirar-lhe prazer. Mergulhei naquele mar azul e, num lampejo de razão, fiz o que já devia ter feito há muito tempo.

— Jess… Quer brincar comigo para sempre? Na pobreza ou na riqueza, na doença ou na saúde, até que a morte nos separe?

Vi o espanto grudado naquele olhar e logo depois a paixão e o sorriso mais lindo que já tinha visto na vida.

— Sim…

Hora de ser feliz.

UM ANO DEPOIS…

EU…

— Giovanna está mesmo entusiasmada com as aulas de arte. — eu disse enquanto me aninhava em teus braços quentinhos. — Engraçado é que ela já teve aulas antes e nunca se interessou. Estranho.

Você me apertou mais um pouco e sussurrou em meu ouvido.

— É porque você ainda não viu a professora dela. — riu deixando que os lábios roçassem na minha orelha. — Um tesão de morena.

Eu me levantei indignada. O que você estava querendo dizer com isso? E que espécie de comentário sem noção que fazia sobre outra mulher na minha cara? Esses sentimentos todos duraram poucos segundos. Foi só olhar para teu corpo seminu para que eu toda incendiasse e esquece completamente o que acontecera.

— Vem cá… — você chamou-me de volta para seus braços ao que atendi prontamente. — Eu não quis dizer que nossa filha tem desejos pela professora, nem quis te deixar com ciúmes… — vi o sorriso sacana se formar. — Só um pouquinho… — tomou-me um beijo gostoso. — Só acho que ela está apaixonada pela matéria porque a professora deve ser competente o suficiente para desencadear a aptidão nata.

Enquanto você se perdia no chamego em meus cabelos já crescidos o suficiente para enrolar-se em seus dedos, eu meditei sobre o que disse.

— Ela é tão boa assim mesmo? Acho que amanhã vou dar uma passadinha lá pra ver de perto. — senti a dor quando teus dedos puxaram meus cabelos com força.

— Atreva – se e verá com quantos paus se faz uma canoa… Lhe garanto que serão muitos e enormes…

Minha risada e teus tapas de carinho nos fizeram perder a hora na manhã seguinte.

****

Ao abrir a porta de casa ouvi sua voz parecendo falar ao telefone avisando que eu acabara de chegar.

— É Marina. — seu olhar estava estranho.

— Põe no viva voz, vida.  — sentei-me ao lado do aparelho e comecei a falar. — Oi, Marina que saudades. Como está tudo por aí?

— “Aqui estão todos bem, mana. Rafael ligou hoje do Brasil.

Retesei meu corpo inteirinho na cadeira. Você percebeu e imediatamente me cercou com os braços na tentativa de me confortar. Rafael era um de meus irmãos.

— Estão precisando de dinheiro? — perguntei tentando passar uma frieza que não sentia.

— “Por que você tem essa mania de pensar que tudo o que eles querem é nosso dinheiro?!” — o nervosismo de Marina me assustou.

— Costume, talvez! — respondi no mesmo tom, me perguntando porque estávamos tendo aquela conversa absurda.

Você me pediu calma e pude ouvir o suspiro contrariado de Marina do outro lado da linha.

— “Tudo bem, Mirian. Me desculpe o mal jeito, é que as notícias não são boas. Nosso pai está internado em estado grave.”

Apertei com tanta força o braço da poltrona que tive a impressão de quebrar uma unha ao fazê-lo. Marina continuou falando.

— “Ele quer te ver, Mirian, pede por isso todos os dias.”

Você agora já me envolvia em seus braços já sabendo do que se tratava.

— Você sabe que eu não vou ao Brasil para vê-lo. Se precisarem de dinheiro é só avisar, mas não vou vê-lo!

Eu tremia inteira, mesmo você tentando impedir beijando-me na cabeça, implorando por minha força.

— “Não posso te obrigar. Estou indo para lá amanhã. Fica bem.” — desligou.

— Eu não vou! — disse me afastando de você e andando de um lado pro outro, perturbada. — Ele não tem esse direito! Mesmo morrendo quer me obrigar a fazer o que não quero!

Você me olhava passivamente, esperando que eu me acalmasse para falar. Fiquei te olhando como que pedindo ajuda. Meneei a cabeça em negativa, enquanto me deixava cair no chão de joelhos, sendo amparada por você.

— Vai ficar tudo bem, linda. — seus beijos em meu rosto eram suaves. — Vou estar com você. Nossos filhos…

— Não!! Não quero os meus filhos perto dele! Não quero que ele os veja, nem os toque!!

— Shh… Tudo bem. — você me segurou com força. — Mas terá que enfrentar isso de uma vez. Sabe que precisa fazer isso, Endless. Por mim, por seus filhos e, principalmente, por você. Precisa enterrar mais este corpo. O último velório. Deus sabe o quanto não quero que faça isso, mas é necessário.

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Fomos direto do aeroporto para o hospital. Não ficaria um segundo a mais que o estritamente necessário. Lá a família já me aguardava. Recebi abraços dos irmãos e cumprimentei outros parentes sem emoção nenhuma. Marina foi a única que recebeu um pouco de calor de minha parte.

— Que bom que veio. Sei que quer se livrar disso logo, então vem, ele quer nos ver todos juntos.

E assim foi. Todos lá para assistir ao teatro que seria apresentado ali. Olhei para a cama que ele ocupava. Um embrulho no estômago veio forte, quase me fazendo sair correndo dali. Você percebeu e apertou mais o enlace em minha cintura.

Quando ele me viu, arregalou os olhos como se não acreditasse que eu estivesse ali.

— Minha filha…

Eu era sua filha? Não eu. Todos os irmãos presentes foram tratados como tal, não eu. Meus olhos ardiam. Que ele disse logo o que queria ou eu não suportaria mais.

— Eu sei o que fiz você passar… Me perdoa, minha filha… Sei que viu muitas coisas que não devia… E que fiz com você muitas coisas que um pai não faz…

Você não conteve as lágrimas. Era a única além de mim que sabia do que ele falava. Mas eu não conseguia derramar uma única gota. Só queria que ele morresse logo.

— Chamei seus irmãos para que eles saibam a verdade antes de eu ir… Para que eles saibam o quanto foram injustos com você quando partiu sem dar satisfação… Eles nunca te entenderam, porque você preferiu proteger esse velho doente da vergonha de ser chamado de monstro… Um monstro que abusou sexualmente da própria filha de seis anos…

Ouvi todos os “Ah!” e “Oh!” estupefatos diante da revelação. Eu só ouvia, te sentindo trêmula ao meu lado. Eu não estava mais ali. Eu me encontrava em outro lugar, menos ali.

— Me perdoe… Me perdoe, filha…

Depois de segundos intermináveis consegui proferir poucas palavras.

— Se ouvir de minha boca te consola, que seja. Eu te perdoo, mas aqui dentro… — apontei pro meu peito. — e aí dentro de você, vai saber que não é verdade. Quero que morra com isso te pesando até o quinto dos infernos!!

Saí de lá tão rápido quanto possível. Te ouvia chamar, mas não conseguia parar de correr, até que alcancei a rua e explodi num grito forte, enquanto teus braços sustentaram o peso de meu corpo que desfalecia.

VOCÊ…

Os enfermeiros que passavam para entrar no turno me ajudaram a te levar de volta pro hospital. Depois que você foi medicada e liberada para ir, voltamos para o hotel. Seus irmãos todos ligaram, mas você não quis atender ninguém, nem mesmo Marina a quem tive a maior dificuldade em acalmar. Tive que ordenar a recepção que não passassem mais nenhuma ligação e desliguei nossos celulares. Tinha que te proteger agora. Quase me arrependo de ter feito você passar por isso. Deitei-me ao seu lado. Teus olhos estavam opacos. Puxei teu corpo quente para mim. Teus braços me envolveram e teu pranto mais que necessário veio forte levando e lavando tudo. Adormecemos.

Acordei com uma batida leve na porta. Um mensageiro entregou o recado e se foi rapidamente. Era de Marina avisando do falecimento de seu pai.

— O que foi? — você esfregava os olhos abrindo-os com dificuldade.

— Marina mandou avisar. Seu pai faleceu.

Teu suspiro foi a única reação.

— A que horas sai nosso voo? — levantou-se indo para o banheiro.

— Daqui a duas horas. Você…

— Não vou ficar para o enterro se é o que quer saber! Chega. Eu não aguento mais. Quero voltar para a minha vida de verdade. Para meus filhos, meus amigos.

Vi em seu olhar quando saiu do banheiro que ninguém iria te convencer do contrário. Veio até mim e abraçou-me com tanto amor que me derreti com o ato.

— Somos só nós agora, minha vida. Ninguém mais.

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EU…

Mais dois anos se passaram depois do episódio “morte do pai”. Voltamos da França depois do lançamento do livro intitulado “ENDLESS LOVE – O amor tudo suporta”.

Na festa de recepção que as malucas armaram para nós estavam todos lá. Lúcia e Lídia aos trancos e barrancos com o novo membro da família chamado Enrico de apenas um ano, nome do avô por parte da mãe que havia gerado o rebento, no caso Lídia.

Marina, Sílvia e o inteligentíssimo Gabriel que, com apenas quatorze anos já se encontrava na faculdade e, adivinhem, a arte fora o curso escolhido, o que deixou nossa menina eufórica e cheia de planos para o futuro.

Helena e Jess, que mostrava a barriga de oito meses enorme, apareceram para nos cumprimentar rapidamente, pois a última consulta no obstetra seria naquela tarde. Fiquei mais tranquila ao vê-las tão apaixonadas, você sabe bem o porquê.

Enfim, tudo estava do jeito que devia estar, porque, na vida, quando um amor sem fim encontra um amor para sempre o final só pode mesmo ser muito feliz.

FIM

Desculpem-me, mas postar tudo logo me livra de uma pendência que nunca quis ter, mas acontece… Um abraço a todas.



Notas:



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