Eras

Capítulo – 11 – A Natureza fala

Era madrugada e conversávamos animados. Havíamos bebido um pouco além da conta, quando um tumulto começou. Um comerciante discutia com alguém de forma alterada. Nos aproximamos para tentar conter a pendenga, mas a confusão já havia se alastrado e muitas pessoas alcoolizadas começaram a brigar. Arítes e Tétis agruparam alguns soldados para tentar segurar os animadinhos. Juntei-me a elas, mas parecia que o grupo queria briga mesmo. Esquivei-me de um punho, que veio do nada, em minha direção. Segurei o braço do agressor, puxei-o para baixo e o atirei de bruços no chão, imobilizando-o. Quando ele me olhou e viu minha farda, desculpou-se. Seus olhos transmitiam receio e pela primeira vez, senti o peso de meu atual status, como general.

Auxiliei o cidadão a ficar de pé.

— Levante-se.

— Mil desculpas, senhora.

Ele estava bêbado e tropeçava na fala, porém me empurrou para o lado agressivamente. Um homem que estava atrás mim, tinha uma madeira na mão, que resvalou no chão, assim que fui deslocada pelo senhor que acabava de me empurrar. Reagi pisando na madeira, o desarmei e gritei.

— Pare agora!

Ele parou, mas não porque gritei, e sim, porque desacordou assim que caiu sobre o bastão. Estava mais bêbado do que o outro. Olhei em volta e os focos de briga estavam serenando, sob os olhares dos soldados e dos oficiais que cercaram, em formação, a área. Era bonito de ver. Formaram tão rápido, intimidando o grupo de arruaceiros, que nem mesmo eu percebi. Arítes se adiantou chegando a mim.

— Quer dar a palavra de ordem, general?

Perguntou sorrindo para mim.

— Dessa eu passo, general. Siga em frente.

Sorri de volta.

Ela se voltou para as pessoas que estavam cercadas.

— Que esse tumulto não volte a acontecer. Voltem a se divertir, mas se acaso outra briga ocorrer, todos irão para casa mais cedo, hoje. Esquadrão, dispensados!

O grupamento se dispersou e as pessoas voltaram a conversar.

— É disso que o comando tem medo.

— Do que está falando?

— Arítes, eu sabia, em teoria, que quando tumultos acontecem, a primeira coisa que fazemos é a formação. Estudei isso com a minha mãe, mas não vivi. Minha primeira reação foi apartar a briga, como uma pessoa comum aparta brigas na rua. Em nenhum momento, passou pela minha cabeça entrar em formação para conter e acuar os agitadores. Eu não tenho a experiência e a vivência que vocês têm. Isso é fato.

Tétis e Mardox já estavam conosco, ouvindo meu discurso.

— Tenho certeza que aprenderá rápido, princesa. É uma mulher inteligente e habilidosa.

Arítes apontou para Mardox e olhou de soslaio para mim, arrematando o pensamento do tenente.

— Viu. Não fui eu quem falou e concordo com ele. Terá tempo para isso. Um exército não funciona só por formação e tática. É preciso inteligência para decisões. As regras e táticas se aprendem com facilidade.

— E pode ter certeza, você tem uma pessoa, e muito boa, ao seu lado para te auxiliar nisso. – Concluiu Tétis, olhando para mim e para Arítes sorrindo.

Suspirei. As indiretas estavam começando a me irritar.

— Fala logo o que passa pela sua mente, Tétis. Pare com insinuações e eu te respondo. Não sou de meias palavras.

Tétis olhou para Arítes, apreensiva.

— Ei, não conta comigo. Conheço Tália há muitos anos para não me meter com ela. – Sorriu jocosa dando leveza a situação.

— Não é nada, Tália…

— Diga, Tétis. O que passa pela sua cabeça?

Mardox começou a rir da noiva.

— Agora se encrencou, Tétis. Não vive me falando para “ver, escutar e calar”? Que essa é a melhor forma de se relacionar bem com as pessoas? – ele emendou em seu riso.

— Bem, é que… Bom, é que… quando te conheci, fez muitas perguntas sobre…

Ela olhou para Arítes. Senti que começaria a me encrencar com a general, se Tétis continuasse a falar, sobre o dia que nos conhecemos e que fomos ao lago. Cortei-a na hora.

— Tudo bem, Tétis. Vamos fazer assim. Eu digo que está parcialmente certa no que pensa e não falamos mais nisso.

— Para mim está ótimo!

Ela se apressou em concordar, tomando uma boa golada de sidra que Mardox havia trazido para nós. Virou-se, para olhar o movimento da praça, cortando a possibilidade de Arítes inquiri-la. Fiz o mesmo.

****

Depois daquele incidente com a garota da barraca, da briga na praça e da situação com Tétis, passamos o restante da noite de maneira agradável, conversando, bebendo e nos divertindo com nossos conhecidos.  Eram quatro horas da manhã quando retornamos. Na manhã seguinte, assim que o comando decidisse, estaria liberada para meu recolhimento e saberia se autorizaram Arítes a me acompanhar. Foi uma espera angustiante. Soube que minha mãe forçou e meu pai acabou intervindo. Não queriam liberar uma companhia para mim, mas diante dos argumentos que meu pai utilizou, cederam. Estava próximo ao cair da tarde, quando entramos em marcha na direção da cabana. Levávamos mantimentos suficiente para três dias inteiros. Eu estava feliz, como nunca estive em minha vida.

Quando chegamos na boca da floresta, paramos e batedores vasculharam, o perímetro até o lago e a cabana. Quando retornaram liberando o lugar, um regimento montou guarda e nós duas seguimos.

Arítes estava calada.

— O que foi? Parece que não está contente?

Ela me olhou e sorriu fraco.

— Estava apenas pensando, que não gosto quando meus subordinados burlam normas…

Eu entendi a linha de pensamento dela, mas não concordava, pois não estávamos burlando normas.

— Nós não burlamos as normas. As próprias normas apontaram o caminho, Arítes. Esse recolhimento é para o autoconhecimento, questionamentos e descobertas de quem chega nesse nível como cheguei. Se eu não estiver com você, meu caminho não será válido ou frutífero. Li o compêndio regulador. Os pergaminhos falam em aceitação, entendimento, compreensão de responsabilidades e, principalmente, resgate de valores e do conceito de amor. Você sabia que, antigamente, quando alguém se recolhia, era dado a ele a opção de levar um ente querido?

— Como?

Eu sorri.

— Arítes, minhas horas na biblioteca não eram em vão. Engraçado que os escritos continuam os mesmos, mas a arrogância e o poder, na nossa cúpula, mudaram tanto a interpretação deles… Quando minha mãe me sugeriu, fiquei eufórica, mas depois, me perguntei se estávamos fazendo o correto. Havia lido o compêndio de recolhimento há muito tempo. Na noite anterior à minha última disputa, fui à biblioteca. Reli o compêndio. Hoje penso, que minha mãe não é a guardiã dos “Escritos Sagrados” à toa e me alegro por ser ela. A rainha e comandante-general Êlia está tentando resgatar o que perdemos há muito tempo. Nossa dignidade, enquanto povo sagrado dos reinos da “Divina Graça”.

— Mas… mas por que levar um ente querido, se o objetivo é que entendamos o nosso papel no exército e na escola militar?

— Aí é que está. Esse não é o objetivo. Minha mãe me deu as normas que eles ensinam na escola militar. É um recorte tosco dos sete pergaminhos que compõem o compêndio. Quando ela me deu as normas, disse: “ Não se atenha a isso, procure a verdade em seu coração e no que foi escrito pelos ancestrais. Entenda o que está colocado no teor do texto real”. Foi quando procurei o compêndio para ler novamente.

— Tudo bem, mas por que ficar em recolhimento com um ente querido? Ainda não entendo. Não faz sentido para quem busca respostas dentro de si.

— Claro que faz sentido, se você tem acertos e pendências com essa pessoa, seja de que espécie for. Numa parte do texto diz que; “não se pode avançar no caminho, se você não retirou completamente as pedras que impedem a passagem. Poderá até avançar, se acaso conseguir afastar um tanto de pedras, abrindo uma greta para se esgueirar, mas sairá com muitas lesões em seu corpo”.

Ela me olhou espantada. Seu semblante parecia inquisitivo, mas, ao mesmo tempo, maravilhado. Continuei meu raciocínio, para fazê-la entender o que trazia em mim, por ela.

— Não quero uma passagem estreita em nosso caminho. Quero um caminho pleno, em todos os sentidos.  Não só o amor carnal e emocional, mas a cumplicidade, o afeto da convivência e a confiança.

Fechei os olhos, inspirando fundo, sentindo o ar puro e relaxando sobre meu cavalo.

— Tem muito mais coisas no texto regulador, além disso. Em outras partes, ele fala sobre as novas responsabilidades adquiridas e sobre a certeza dos entes queridos, no que estamos prestes a assumir. Fala, também, que o exército não se compõe de pessoas, mas de famílias, formando uma grande família harmonizada.

Balancei levemente a cabeça, dispersando a quantidade de coisas que li e que no resumo da escola, não trazia um terço. Pensei se nós já não nos afastávamos da nossa essência, há algum tempo.

— Enfim, Arítes, vale a pena ler e a norma de não seguirmos com alguém, não vem do compêndio regulador.

Arítes permaneceu calada um tempo e nós estávamos beirando as margens do lago, nos aproximando da cabana. Olhei ao longe, do outro lado, tentando divisar a cabana da sacerdotisa-curandeira. Não consegui visualizar, tamanha a magnitude dessa benção da natureza e da “Divina Graça”. O lago era imenso, lindo e cheio de vida.

Pássaros aquáticos bailavam sobre as águas na busca pelo seu sustento. Os raios solares incidiam sobre a superfície tranquila e cristalina, reluzindo cores abrasadoras. A tarde caía e, em breve, teríamos a capa da noite a nos abraçar. Chegamos e apeamos dos cavalos.

— Vou abrir a porta. Minha mãe me falou que ela mantém a cabana sempre limpa. Vamos nos instalar e eu faço uma sopa para comermos. Trouxe mantimentos para nossas necessidades.

— Sabe cozinhar?

Sorri. Como estávamos tão próximas e não sabíamos nada uma da outra?

— Cozinhei muitas vezes com minha mãe no quarto dela, para não precisarmos interromper nosso gostoso diálogo. Não era convenção. Apenas… – dispersei meus pensamentos, me reportando a esse tempo. – Apenas estávamos em uma conversa animada e não queríamos interromper para almoçar na corte.

— Muitas vezes, deixei você no quarto de sua mãe e fui para escola militar e para os exercícios do regimento. Ao mesmo tempo que me era prazeroso, queria estar com você. Queria saber o que falavam… queria viver aquela cumplicidade também.

Vislumbrei nostalgia no semblante de Arítes.

— Sentiu falta de ter sua mãe com você. — Afirmei.

Ela voltou a se concentrar na tarefa de retirar os mantimentos dos cavalos. Ficou muda, momentaneamente.

— Tive sua mãe a me apoiar e não tenho o que reclamar, Tália.

Meu coração apertou. Aproximei-me, mas não a toquei. Ela não olhava para mim. Continuava sua tarefa.

— Sem as pedras no caminho, Arítes. Lembra?

Ela parou. Não se virou para me encarar. Segurei seu braço suave.

— Olha para mim.

Nesse momento, ela se virou. O rosto sério, diria que até, em sofrimento mudo.

“Pela Divina Graça”! Quem lhe escutou nas suas dores e acalentou você por todos esses anos? ” – Pensei.

Nada falei. Apenas a abracei, embalando seu corpo junto ao meu.

— Apenas sinto ter sido a causa da morte dela. E… Deixa para lá.

Ela se desvencilhou de mim, pegou alguns sacos de mantimentos se dirigindo à porta.

Quando abrimos a porta, vi o quanto meus pais gostavam daquele lugar. Estava limpo, arrumado e todo arejado. Não entrava ali desde pequena. Alguns mimos eram vistos, de forma simples, arrumados em locais estratégicos. Nada suntuoso, mas parecia uma casa acolhedora e cheia de detalhes ternos. Um cordão feito de pedras brilhantes, vindas do lago, ornava o dossel da cama. A lareira estava limpa, assim como o chão. Tão lustroso que, parecia ser limpo todos os dias. Uma mesa simples, porém bem conservada, localizava-se próximo a uma bancada. Um tapete grosso de peles estava disposto em frente à lareira, acolhedoramente.

Admirava a simplicidade harmoniosa do espaço, quando fui envolvida por braços afetuosos. Joguei minha cabeça para trás, recostando nos ombros amorosos que me amparavam.

— Vai se acostumar com essa simplicidade toda, nesses três dias?

O tom burlão soava em sua voz.

— Mmm… vamos ver… – Falava no mesmo tom. – Uma cama, sossego, uma mulher linda a meu lado, comida e vinho. Pode ser tedioso, mas também pode ser intensamente gostoso. O que a minha companhia acha disso?

Virei-me, por entre seus braços, sorrindo e abraçando sua cintura. Ela olhou para o teto e revirou os olhos. Voltou seu rosto novamente para me fitar.

— Estou vendo que terei que fazer um enorme esforço para entreter sua alteza. 

— Entreter sim, mas a parte do esforço, é por sua conta.

Colei meus lábios nos seus, deixando-me levar pela doçura de sua boca. Nossas línguas tocavam suave, embalando um momento de carinho singelo. Apartei-me, olhando seu rosto.

— Vamos ter que começar a fazer a sopa, senão ficará muito tarde. Quero ver o sol se pôr no lago. Por conta de uma certa guarda pessoal que tive, que sempre obedeceu cegamente meu pai, não vejo essa maravilha há muito tempo.

Falei rindo e implicando com ela.

— Ah! Agora a culpa é minha? Que tal a culpa ser de uma certa princesa, que vivia sumindo e fazendo um monte de estripulias, irritando o pai? Tália, você me dava voltas. Lembra quando você cortou o cabelo, pois seu pai lhe irritou quando estava treinando? E quando você disse que ficaria lendo em seu quarto, pulou o muro do seu jardim interno e saiu em direção a Chakir? Você queria ir sozinha para a feira de cavalos anual. Lembra o que o seu pai fez?

Saí dos seus braços.

— Lembro. Ele me deixou de castigo no meu quarto duas semanas e deu o cavalo que eu havia comprado para Galian. É o cavalo do general até hoje. Eu estava irritada com você naquele dia.

— Comigo? E o que eu fiz para te irritar?

— Não lembra? Havia pedido, dois dias antes, para que me levasse à feira. Sabe como gosto de cavalos. Você negou, mas naquela noite, foi à feira com o mestre cavalariço.

— Seu pai já havia me falado que não queria que você fosse. Eu estava incumbida de escoltar o mestre para que comprasse éguas reprodutoras.

— Ah, deixa para lá, Arítes. Você nunca vai admitir que me achava superficial e muito menos, que concordava com meu pai em um monte de coisas.

Deixei meus ombros caírem.

— Tália, eu nunca achei isso, mas não podia passar por cima de ordens.

— Você nunca me perguntou o que eu sentia, e muito menos, me dava chance de me colocar. Naquela noite que foi para a feira, eu havia falado com a minha mãe. Ela me autorizou, mas você já havia saído. Fiquei magoada, pois falei a você que falaria com ela.

— Tália, já era tarde para pegarmos a estrada e…

— Arítes, vamos fazer a sopa que é mais produtivo.

Fui até a bancada, irritada, pegando alguns legumes e carne seca no alforje. Senti Arítes parada atrás de mim, durante um tempo, e depois escutei a porta abrir.

— Vou pegar lenha e levar os cavalos para o estábulo.

A voz dela soava dura. Ela também estava irritada. Descasquei e cortei os legumes, cortei a carne seca e temperei a água da sopa com um pouco de sal e algumas especiarias. Coloquei numa panela sobre os ganchos do braseiro da lareira. Só faltava Arítes chegar com a lenha e acender. Deixei tudo arrumado e fui para a beira do lago ver o pôr do sol… sozinha.

Estava sentada em uma pedra olhando o ocaso. Era lindo o reflexo dos raios na água, em conjunto com o baile dos pássaros aquáticos, sobrevoando a superfície. Escutei passos atrás de mim. Já eram meus conhecidos. Muitas vezes, em que estava nas minhas contemplações, Arítes se aproximava. Algumas vezes, apenas para ficar próxima a mim, em outras, para me alertar do passar da hora. Desta vez, ela se sentou a meu lado. Suspirou.

Ficamos, lado-a-lado, caladas durante um tempo. Quando o sol já estava bem baixo, ela se chegou e me puxou para encostar em seu peito. Aninhei-me em seu corpo. Sem palavras, ao espraiar do vento, vi o pôr de sol mais lindo de toda a minha vida. Estremeci com o frio que começava a cair sobre nós, ela jogou o braço sobre meus ombros, me acalentando. Alojei meu rosto em seu pescoço. A raiva, há muito havia passado e, queria aspirar seu perfume, me afogando em seu aroma. Tinha necessidade dela.

— Tália, me perdoe se, muitas vezes, não me fiz entender nas minhas atitudes. Eu sempre te admirei e sempre te respeitei. Até quando fazia coisas que julgava rebeldia, sem saber o que se passava, realmente, dentro de você, eu admirava sua coragem. – Suspirou. — Você nunca negou suas ações e sempre enfrentou, de cabeça erguida, seus castigos. Raras vezes, quando sua mãe contava algo seu, eu prestava atenção embevecida, por sua audácia.

— Desculpe-me também, Arítes. Sempre fui impulsiva. Talvez se tivesse sido mais branda… só que foi uma fase tão difícil. Me sentia prisioneira… Sozinha.

— Shiiii. Eu entendia as suas reações. Talvez, eu é que pudesse ter sido menos controlada nos meus sentimentos. Talvez, se eu tivesse me aberto um pouco, você também compreendesse mais de mim.

Olhei-a, ainda recostada em seu ombro e ela virou seu rosto para mim. Os vagalumes começavam a circular e a noite caía. A luz da lua abrandava a escuridão, contornando nossos corpos e projetando nossas silhuetas na água. Nos beijamos no afã de nos desculpar. Tremi.

— Frio?

— Também.

Sorrimos.

— Vamos entrar, acendi o fogo e a sopa deve estar quase pronta, isso se os legumes não desmancharam.

Voltamos pelo caminho, abraçadas. A cabana ficava a poucos passos do lago. Entramos, sendo acolhidas pelo calor da lareira.

— Ah! Aqui está bem gostoso.

Arítes olhou meu alforje sobre a cama.

— Você trouxe vários pergaminhos. O que são, Tália?

— Algumas normas do regimento que pretendo ler e alguns pergaminhos que minha mãe me deu, quando já estava de partida, e pediu que eu lesse.

— Sua mãe?

— Sim. Ela falou que se quisesse, poderia compartilhar com você.

Olhamos alarmadas, uma para a outra. Corri até o alforje que trouxera os pergaminhos. Abri apressada e Arítes, num átimo, estava postada a meu lado. Eles eram velhos, não traziam nenhuma riqueza nos detalhes dos rolos, e tão pouco, ostentavam luxo.

****

O meio da noite havia passado e a madrugada seguia alta, quando acordei com Arítes recostada em minha perna. Os rolos dos pergaminhos estavam espalhados no chão, próximos a nós, e apenas um, se encontrava em minha mão, refastelado, pois dormimos em meio a toda a leitura. Minhas costas estavam doendo, apesar do tapete ser macio.

— Arítes, acorde.

Olhei à minha volta. As tigelas com os restos de sopa estavam próximas a nossos pés.

— Mmm…

Ela resmungou e levantou sonolenta.

— Nós dormimos no meio da leitura.

Ela focou em mim e depois olhou em volta.

— É. Vamos dormir na cama. Estou quebrada e chocada com o que lemos dos “Escritos”. Não quero pensar nisso agora e, tenho para mim, que amanhã ficaremos por conta da leitura do restante.

— Pois eu tô começando a pensar que, para herdar o posto de “Guardiã dos Escritos”, tenho que ser virgem.

— O quê?

— Estava divagando na minha condição e em tudo que acontece, quando planejo algo com você. — Balancei minha cabeça. — Esquece. Vamos dormir.

Era quase o meio do dia, e o peixe que Arítes havia pescado mais cedo, estava assando, envolto em algumas folhas. Já tínhamos lido quase todos os pergaminhos dos “Escritos” que minha mãe me deu. Lemos tudo que envolveu a “Guerra do Caos”.

— Tália, eles falam que a “Divina Graça” dividiu a terra em dois, para que nós não destruíssemos o reino que criou. O que isso quer dizer?

— Não sei, Arítes. Nessa parte aqui, fala o seguinte: “Dois reinos foram criados. Um para os seres humanos, outro para os seres da “Divina Graça”. O reino que permaneceu, não poderá ver o reino criado para as criaturas divinas, até que nasça a “guardiã da indulgência”. Ela dividirá o trono com aquela que brande a “Espada Macha”. ” O que isso quer dizer, também não sei.

— O que me desespera, é saber que fazíamos parte das criaturas divinas, até que veio a “Guerra do Caos”. Tínhamos a magia em nossas vidas, vivíamos entre os elementais da natureza e mesmo com a chegada dessa guardiã, abrindo os portais e liberando a magia, os reinos nunca mais voltarão a se fundir. Nunca mais veremos os elementais, embora eles nos vejam.

Fiquei calada, pois tinha em mim uma sensação estranha. Como se estivéssemos sendo observadas. Sacodi minha cabeça.

— O que foi?

Arítes me perguntou, vendo minha reação.

— Não sei… é uma sensação como se estivessem nos olhando.

— Ãh?

Arítes imediatamente pegou a espada.

— Não, Arítes. Não é alguém nos observando realmente. É uma sensação de… esquece. Já senti isso antes e sempre vem quando algo importante acontece.

— Assim você me assusta.

— Não se assuste. Não é mal. É mais ou menos como; quando fui procurar a sacerdotisa-curandeira, achando que havia algo errado com meu pai. Coisas boas vem a partir disso.

Ela me sorriu e levantamos do tapete.

— Vamos comer? Ainda quero caçar algo para comermos à noite.

****

Era próximo ao entardecer e havia limpado e temperado um “tecugi” que Arítes havia caçado para o jantar. Deixamos o braseiro bem baixo, pois queríamos ver novamente o entardecer na beira do rio e deixaríamos o assado na brasa. Fizemos as orações em agradecimento pelo alimento e em reverência ao pequeno animal que nos daria nosso sustento.

O entardecer chegou maravilhoso. Desta vez, levamos as mantas. Estendemos uma delas sobre a relva, pouco antes da margem do lago e sentamos. A outra manta, ficou ao lado para quando o frio viesse. Estava entre as pernas de Arítes, recostada em seu peito. Ela me sustentava e seu caloroso corpo me confortava. Mais uma vez, o bailado das aves, das libélulas e a luz do sol, criavam uma paisagem mágica, rica em cores e movimento. A água, plácida, espelhava os raios solares, cunhando a visão de um arco-íris maravilhosamente belo. O lago era tão cristalino que podia-se ver peixes nadando sob a superfície, e ainda o reflexo de lindas pedras de variadas matizes.

Ficamos em muda contemplação, da admirável vida que nos cercava e descortinava diante de nossos olhos. Cheguei, mais, a seu corpo. Não queria pensar em nada que havíamos discutido, sobre os “Escritos”, desde a noite de ontem. Queria apenas olhar, respirar, sentir o que nos rodeava, sob a imensidão do céu, que nos cobria e entre as nuances da natureza, que nos cercava. Para além da paixão pulsante, meu ser se embriagava pela enorme calma experimentada nos braços desta que, há muito, não saía de meus sonhos, minha vida e minha alma.

Senti seus beijos miúdos em meu pescoço, no momento que via uma ave voar baixo, cortando a superfície da água com seu bico perscrutador. Cerrei levemente meus olhos, apreciando o carinho delicado, depositado com reverência, ao mesmo tempo que sentia seu ardor. Minha respiração curta, denunciava minha reação, mesmo sem querer, ao toque sutil de seus lábios.

Abri meus olhos que, contemplaram no exato momento em que foquei, os feixes de luzes multicoloridas, sendo irradiadas da água, que recebia o beijo caloroso do sol do ocaso. Vi-me embalada por braços amorosos, num delicado modificar de posição, fazendo-me recostar na manta, que forrava o conforto de nossos corpos. Saudei o rosto dela com um pequeno sorriso, denunciando meu entendimento de sua atitude. Acariciei seu corpo, olhando o céu alaranjado, e sentindo sob meus dígitos, a brandura e o contorno de suas curvas. Meus lábios foram agraciados com seus lábios doces, de sabor delicado. Meu corpo aquecia sob seus toques seguros, desvendando minha nudez, sem pressa. Os laços que prendiam minhas vestes foram desfeitos por ela. Meu corpo foi revelado, assim como o amor, sob seu olhar atento. Estremeci.

— Está tudo bem?

Seu questionamento, embora fosse confortador, não tinha razão de ser. Estremeci na antecipação de meu desejo, não por desagrado.

— Sim. Apenas quero que me ame, na mesma medida que meu corpo deseja ser amado por você.

Sorri. Ela devolveu o sorriso. Um sorriso aberto, tão bonito, quanto sincero, na apreciação das palavras que eu acabava de proferir. Elevou seu corpo e desfez os laços de sua própria veste. Não consegui reagir ou ajuda-la, pois me vi capturada, na tarefa de contemplar os traços que desnudavam diante de mim. Aquele corpo que embalou minhas fantasias, tanto tempo, estava aparecendo agora. Sem atropelos, sem reveses, sem embaraço. Vi-me raptada pela sutileza de seu gesto, tanto quanto a força de sua forma.

Senti o calor que emanava do corpo amado, a me cobrir por inteira. A força que o som do gemido proferido por mim rompeu o ar, me assustou sobejamente. Com tão poucos atos, perdi o controle sobre mim e de meus pensamentos, quando senti a mão ansiada, envolver um de meus seios e a boca almejada por fartar-se de meu corpo, depositar beijos sobre a pele cálida de meu colo.

Meu desatino aumentou. Meu outro seio era agraciado com aqueles lábios, que lembrava, deixar minha alma desprendida, toda vez que beijava minha boca. O ar fresco do entardecer, circulava por nós e eu perdia o restante de minha razão, quando minha auréola foi sugada fortemente. Ouvi o gemido de prazer vindo dela. Aquela que era o princípio de meu amor e o fim de minha inocente agonia, à espera dela mesma. Nada mais importava, além de querer fazê-la feliz e me fazer feliz com ela. Se meu corpo e minha alma, neste momento, fizesse essa felicidade, queria que ela tivesse tudo de mim.

A mão que abarcara meu seio anteriormente, caminhava por meu ventre, despertando sensações, das quais, nunca imaginei existir. Meu ventre contraía involuntariamente, meu sexo pulsava descontroladamente em frissons, até que dedos sequiosos, embrenharam, brincando, por entre as dobras de meu deleite.

— Arítes… Arítes…

Minha mente difusa, mergulhava na sensação embriagante do prazer carnal. O líquido quente, que denunciava minha lascívia, escorria abundante pelos dígitos dela. Eu sabia, tinha certeza, que ela era minha, e naquele momento, ela me fez sua, quando seu dedo resvalou, seguro, para dentro de mim. A dor não foi forte, tanto quanto o prazer de tê-la ali e ouvi-la gemer alto, aninhada em meu pescoço, tentando aplacar sua luxúria. A sua marca estava estampada em minha perna, molhada por ela, num fluxo profuso. Seu movimento parou diante de meu lamento.

— Não para… está gostoso.

Proferi em seu ouvido, animando-a. Estava longe de querer que esse momento acabasse. Meu peito aqueceu.

— Ah, Tália… como eu te amo.

Senti meu ventre aquecendo mais, com os movimentos dela dentro de mim. Seus dedos ganharam velocidade e minhas entranhas contraíram em uma força involuntária, fazendo-me gritar sem controle, seu nome.

— Arítes! Ah…

Enquanto ela fazia me perder na delícia de seu toque em meu interior, beijava meu pescoço, minha boca e falava palavras, causando um reboliço em meu corpo, me fazendo contrair inteira. Minha respiração cessou num átimo, quando senti, uma última vez, meu corpo reagindo ao resvalar de dedos poderosos, dentro de mim.  

Nunca esqueceria esse momento lindo e de extremo prazer a seu lado e, provocado por ela. Entrei num estado letárgico, estranho a mim. Mal conseguia abrir meus olhos. Escutava o barulho do vento, das águas e das aves ao redor. Quando consegui abrir, de vez, meus olhos, vislumbrei sobre nós, os últimos raios do ocaso, encimando nosso amor. Ela jazia sobre mim, ainda arfante. Seu rosto se escondia na curva de meu ombro.

Acariciei seus cabelos e senti sua mão afagar a pele de minhas laterais. Ela ergueu seu tronco ligeiramente, apoiando seus cotovelos no chão, ainda sobre mim.

— Tália, me desculpa se…

 Calei suas palavras com meus lábios. Forcei, sutilmente, minha língua que foi recebida por sua boca cobiçosa. Nosso beijo se tornou insuportavelmente prazeroso. Queria dar a ela, o mesmo prazer que ela me proporcionou, mas minha ignorância na arte de amar, talvez fizesse esse momento tão lírico, se desfazer sob minhas mãos. Tentei não pensar. Tateei seu corpo, da mesma forma como fez comigo, e onde me lembrava de ter sentido prazer. Mas como, se havia tido prazer em todos os toques que ela me presenteou?

Suspirava entre os beijos que depositava em seu pescoço. Deslizei minha mão por seu peito, alojando em um de seus seios. Procurei novamente seus lábios, no afã de tocar com os meus e sentir a maciez da boca carnuda que me tirava o tino. Nossas peles se tocavam em toda parte e nem o ar frio da noite, que caía sobre nós, conseguiu diminuir o calor que emanávamos. Ela se afastou de meus lábios, pegando uma de minhas mãos e, inadvertidamente, abarcou com sua boca dois dedos meus, sugando-os devagar, fazendo mais um gemido rouco brotar de minha garganta. Era sensual, erótico e inebriante. Eu ainda acariciava seu seio com a outra mão e outra vez, ela me pegou de surpresa. Senti minha mão ser conduzida pela mão dela, com meus dedos molhados pela sua saliva, tateando curiosa seu paraíso. Ela pressionou seus dedos sobre os meus, empurrando para dentro da cavidade ardente, e pedinte, sussurrou em meu ouvido. — Mexe dentro de mim… —  Meus dedos tomaram vida, após meus músculos contraírem em desejo, quando sua voz rouca me incitou ao mais puro prazer.

Novamente pensava que não era mais dona de minha vontade, e que meu corpo, simplesmente reagia, quando ela me assaltou outra vez, profundamente, com seus dedos, movendo cadenciada em minhas entranhas. Movíamos sincronizadas. Senti a minha respiração presa, por segundos, quando seu corpo contraiu sobre o meu, o som do ápice tão maravilhoso, proferido em meus ouvidos, levando-me junto à borda. Senti que eu molhava seus dedos, assim como senti os meus, molhados por ela.

Não tinha mais onde colocar todo amor que sentia por essa mulher. Eu transbordava, sorria, chorava, desconectava da noite que nos abraçava.

Vários sons chegaram a nós e entre beijos e sorrisos, ela se afastou para o lado, pegando a outra manta para nos cobrir. Foi quando vimos.

Várias luzes, pequenas, cintilavam num bailado sobre as águas, agora escuras, coberta pelo véu da noite. Milhares de seres, que sabíamos não ser de nosso plano, se aproximaram de nós, sorrindo e brincando entre nós, com a mais sublime magia. Eram pequenas fadas, pequenos espíritos das águas, da floresta, que circulavam despreocupados com a nossa presença. Nada que havia visto em minha vida, se comparava à visão destes seres, puros, iluminados, brincando alegres entre nós.

Ficamos estáticas, perplexas, pensando o que havíamos feito para merecer a graça da visão deste plano, que foi negado à humanidade durante tantos séculos. Mais tarde, quando eles cansaram de nos brindar com a sua presença, sumiram diante de nossos olhos, deixando nossos corações em extasia. Voltamos para a cabana, mudas, e certas que nosso amor tinha sido abençoado pela “Divina Graça” e pela “Senhora das Águas”.



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