Eras

Capítulo 22 – A força dos guerreiros

Gwinter começou a correr descendo do passadiço. Arítes foi atrás e eu os segui.

— Esquadrão, a postos! Cavaleiros na frente! – Gritou Gwinter.

Uma massa de soldados e cavaleiros formava fileiras no pátio. Pajens trouxeram três cavalos para nós.

— Tália, fique aqui. – Gritou Arítes.

— O quê?

— Tália, precisamos que lidere das muralhas. Estamos sem Hian e sem Galian. Temos que ter alguém no comando das muralhas. Os outros generais estão nas frentes de combate, lá fora!

Gwinter falava apressado e nervoso. Apenas anuí. Corri para o passadiço, deixando que eles se fossem pelos portões. Não poderíamos deixar que Natust fugisse com Belard. Vi quando os esquadrões formados em nosso pátio ultrapassaram os portões, que já não tinham mais as refregas diante das nossas muralhas centrais. Natust tinha recuado, se compactando próxima ao meio do leito do rio, e agora lutava para fugir com o príncipe de Terbs em seu poder.

De cima, pude ver o general Gwinter avançando com um grande grupamento e logo atrás, Arítes com outro. Quando avançaram um pouco mais, se dividiram e os regimentos começavam a caminhar lado-a-lado. Novamente outra manobra se fez. Começaram a se separar para que chegassem ao exército de Natust de frente, mas divididos em dois grandes grupos. Vi os nossos grupamentos do campo à frente das muralhas, que ainda lutavam corpo-a-corpo, contra os poucos regimentos natusteanos, entrarem em forma. Avançaram na retaguarda, deixando que os regimentos restantes de Natust se juntassem ao bloco principal deles.

Natust viu que estava tomado por todos os lados e se apressavam em se reunir para escoar pela ponte, que agora, estava sendo posicionada sobre o rio. Olhei à minha volta e todos esperavam pelas minhas ordens, sobre o passadiço. Vi um homem se aproximar.

— Princesa, se me permite.

— Permito-lhe me chamar de general, coronel. – Repreendi-o. – Qual seu nome?

Falei dessa forma com ele, pois sabia que se não fosse deste jeito, eu não seria escutada. Ele não teve tempo de pensar sobre minha atitude e respondeu.

— Averge, senhora.

— Então me diga. Qual a catapulta que tem mais alcance aqui no passadiço?

— É aquela que está na parte central, próxima ao portão principal, general. – Apontou.

— Então olhe para lá, coronel, o que vê? – Perguntei, indicando a ponte que era posicionada e o exército de Natust se agrupando em frente. — Quero que tragam essa catapulta para a ala oeste agora.

— Quer lançar sobre os exércitos? – Perguntou espantado.

— Quero destruir aquela ponte, antes que Natust ultrapasse. Diga para mim que é possível, coronel, pois é a melhor chance que temos de resgatar o príncipe Belard e acabar com essa guerra, ainda hoje. Gostaria de poder dormir em minha cama e que não houvesse mais mortes desnecessárias.

Ele olhou em direção ao rio e se voltou olhando em direção a tal catapulta que havia falado. Minha manobra não era convencional. Ele sorriu.

— Se alguns natusteanos morrerem pelo caminho, tem problema para a senhora? – Perguntou. — Com ela poderíamos alcançar, mas pode ser que só até a cabeceira do rio e aí, quem estivesse na beirada, próximo à entrada da ponte, pode sofrer as consequências.

— Isso impediria que eles atravessassem, certo?

— Sim.

— Faça. Aprendi, há muito tempo, que somos responsáveis pelo que fazemos, então… Que eles sofram as consequências.

O coronel riu levemente.

— Também quero voltar para casa hoje, general, se me permite, creio que dará certo. – Voltou-se para os soldados, e gritou. – Soldados! Tragam a catapulta central para a ala oeste! – Virou-se para mim. – Vou conduzir a manobra, princesa.

Curvou-se na reverencia real, e saiu. Não foi escárnio. Ele o fez com respeito. Isto me deixou mais segura. Estava no caminho certo.

Observei a movimentação das tropas de todos os exércitos. Terbs havia contido suas investidas, talvez com receio de uma represália ao príncipe Belard. Vi nosso exército tentar furar a linha de frente de Natust.  O combate se acirrou. Me posicionei na extremidade oeste para ficar mais perto e poder auxiliar, caso tivéssemos problemas, antes da nossa catapulta se posicionar corretamente.

— General! – Chamei o general de esquadrão que orientava os arqueiros no passadiço de cima.

Ele me olhou, falou algo com um coronel e desceu até mim.

— Senhora. – Fez a reverência do exército.

— Como se chama, general?

— Cutter, senhora.

— General Cutter, escolha os melhores arqueiros que tiver, lá em cima, e desça com eles até aqui.

— Que tenham uma técnica tão apurada quanto a senhora e a comandante? Só deve haver uns oito.

— Então desça eles, até aqui. Eles têm que ser muito bons, para o que quero fazer.

— Sim, senhora.

****

— São esses aqui, general. – O general de esquadrão os apresentou.

— Prestem atenção, e você também, Cutter, para que fique a par da ação. Se precisarmos de apoio, saberá a minha intenção.

— Certo.

— Daqui temos uma boa posição para darmos apoio as tropas. Vejam, — apontei — eles tentam furar o bloqueio de Natust, para não permitir que levem o Príncipe Belard para o outro lado. Vamos ajudar todos os soldados de Kamar, Terbs e Eras, que estiverem lutando com dois ou mais natusteanos. Entenderam? Livrem os soldados que estiverem ameaçados.

— Sim, senhora!

— General Cutter! Traga o grupamento de arqueiros o mais próximo que conseguir no passadiço e faça a carga de flechas, no leito do rio! Quero essas flechas fazendo uma cortina na margem para que eles fiquem acuados. Conseguem fazer isso?

— Não sei, senhora. Vamos fazer a primeira carga. Se as flechas caírem muito próximas, não é seguro para os nossos grupamentos.

Virei-me para a catapulta. Ela era grande e pesada e os soldados tinham dificuldade em posiciona-la.

— Coronel Averge, como está aí?

— Só mais um pouco, general e poderemos armá-la. Ainda estamos posicionando.

— Assim que puder acioná-la, faça-o. Não espere minha ordem.

— Sim, senhora!

Tirei meu arco e me posicionei ao lado dos arqueiros selecionados por Cutter. Procurei Arítes e Gwinter, em meio à confusão, mas não conseguia acha-los. Comecei a procurar os nossos soldados e aliados para tirá-los das dificuldades. Juntei-me aos arqueiros atirando nos soldados natusteanos. Via-os caindo sob as nossas flechas. Meu plano estava dando certo. Vi Tétis no chão, desarmada, e um soldado com a espada sobre a cabeça, pronto para matá-la.  Armei meu arco e atirei. Tétis se desvencilhou do corpo do soldado que caíra sobre ela, pegou a espada e voltou para a luta. Consegui divisar Arítes. Ela estava lutando com um homem e outro se aproximou por trás para matá-la. Nem nos sonhos dele, eu deixaria. Ele caiu aos pés deda, alvejado por minha flecha.

Uma luz rasgou o céu. A bola de fogo caiu próximo a cabeceira da ponte desarticulando a fuga deles. Foi quando vimos os exércitos pararem, momentaneamente, diante da ação. Kamar foi o primeiro a se adiantar, avançando como um bloco, pela lateral.

****

Na negociação de rendição de Natust, liderado pela rainha Chad de Kamar, tiramos todas as suas armas e permitimos que eles voltassem sem nada, desprovidos, também, até de suas montarias. Teriam que voltar para o norte, só com alguns mantimentos. Eu sabia que no futuro, eles poderiam se reestruturar, mas não teriam mais tanta confiança da vitória. Serbes estava morto e foram derrotados por nós, duas vezes. O nome “Batalha de Sangue” teve sentido, pelas inúmeras mortes causadas em apenas dois dias, principalmente no povo natusteano.  Para mim, teve sentido pelo líquido rubro derramado de meu pai.

— Tália, sei que está cansada, mas…

Tórus se aproximava, enquanto eu entrava no corredor real. Não tinha notícias de minha mãe e meu pai. Estava nervosa, com fome, suja. Arítes ainda estava no comando e disse para eu me banhar. Na falta de minha mãe e meu pai, eu assumiria interinamente o trono.

— Sim, Tórus, o que houve?

— É que a rainha de Kamar já se encontra no castelo e o príncipe Belard também. Ele está sendo tratado por nossos curadores.

— Tórus, sei que não é a sua função, mas poderia pedir para o senescal colocar a rainha Chad num dos quartos de hospede reais, aqui na ala, e quando o príncipe estiver bem, peça para colocá-lo num dos outros quartos aqui, também.

— Claro, Tália. Todos já estão se mobilizando para a arrumação geral do castelo. O senescal pediu para avisar que a cozinha está funcionando parcialmente e mandará colocar a refeição no salão central para quem quiser se alimentar, antes de se recolher. Acredito que todos devam estar cansados.

— Obrigada, Tórus.

— Tem notícias do rei e da rainha?

— Ainda não, mas sei que eles estão em boas mãos. Provavelmente a “Senhora das Águas” entrará em contato, assim que estiver tudo tranquilo com eles.

Tórus fez uma mesura.

— Tórus. – Chamei. – Obrigada por tudo, mas depois que as coisas estiverem assentadas, queria conversar com você e entender algumas coisas.

— Certamente, princesa.

 Ele fez outra mesura e saiu em direção ao salão. Entrei em meu quarto, olhei em volta. Sentia-me estranha. Era como se as coisas estivessem mudadas. Meu quarto parecia diferente de quando eu saí há alguns dias, mas a verdade era que eu estava diferente. Matei pessoas. Toda vez que minha flecha transpassava o corpo de alguém, mesmo sendo inimigo, me sentia mal, perdida. Sabia que era necessário, porém me revolviam as vísceras. Aí estava mais uma coisa da qual eu teria que aprender a lidar e a conviver.

Tomei meu banho e coloquei uma bata leve. Escutei batidas na porta.

— Entre.

Arítes passou pelo portal. Ainda estava suja, suada e com alguns machucados.

— Ei! Pensei que tivesse ido se banhar em seu quarto. Vou pedir para trocar a água do banho. Venha. Tire essa roupa.

Falei me aproximando. Ela parecia exausta.

— Não precisa…

— Shhii. Senta aí. – Levei-a até a poltrona. – Já está quase amanhecendo e precisamos descansar um pouco.

Fui até o corredor e chamei um menino-mensageiro que passava. Pedi para que avisasse para trazerem água para banho. Fui até a mesa de canto e coloquei uma taça de vinho para ela e outra para mim. Estendi a taça em sua direção. Ela aceitou de bom grado. Sentei-me em frente.

— Como estão as coisas no comando?

— Entrando nos eixos. Os grupamentos que estavam no turno de descanso assumiram a vigília e a segurança. O Exército de Terbs e de Kamar se dividiram e estão acampados, um em cada flanco do castelo.

— Embora saiba que é prudente e necessário, não acredito que eles tenham poder ou disposição para retornar e nos atacar. Voltaram para o norte sem nada. Nenhum armamento e nem cavalos.

— Concordo, mas temos que ficar alertas. Aos poucos, as coisas voltam ao normal.

Bateram à porta. Trouxeram a água do banho de Arítes e trocaram a água da banheira.  Agradeci aos meninos e eles saíram.

— Vamos lá, eu te ajudo. Você tem que ver o estrago que fizeram no seu corpo. – falei sorrindo.

— Eu vi você nas muralhas quando eu estava no campo de batalha. – Ela sorriu, suave. – Obrigada.

— Já falei à você que não se livraria de mim tão fácil. – Falei, sorrindo, enquanto ajudava a tirar o protetor do tórax.

— O coronel Averge e o general Cutter contaram a sua ação. O que levou você a pensar naquela manobra?

— Por quê? Pensei errado?

— Não. A manobra foi perfeita. Foi o que nos deu a vantagem e fez a rainha Chad poder avançar com segurança. Só queria saber por que pensou em fazer aquilo. Leu algo parecido em algum lugar?

— Não. Dessa vez não li em lugar nenhum. – Eu sorria levemente. – Só queria que a batalha não demorasse muito e queria impedir que levassem Belard. Se eles ultrapassassem a ponte, essa guerra provavelmente se estenderia por meses, talvez anos como a outra e possivelmente Belard não sairia vivo. Como a ponte era a única chance deles, pensei que seria melhor tirá-la do caminho.

Ela estava dentro da banheira e eu esfregava suas costas. Voltou-se para mim e segurou minha nuca, trazendo-me para um beijo. Nos apartamos e ela olhava bem perto, dentro de meus olhos.

— Você vai ser uma excelente general, princesa.

Sorri sem graça.

****

— Êlia. Você sabe que ele perdeu muito sangue. Conseguimos fechar o ferimento, mas agora depende dele.

— Obrigada, Bonan. Não sei como agradecer.

— Não é você quem deve agradecer, Guardiã, somos nós. Diante de tudo que viveu e passou, ainda manter a integridade e nos auxiliar todos esses anos, é uma dádiva para Tir e Tejor. Eu não fiz mais do que a minha obrigação e agradeço também à “Divina Graça”, conceder-me esse dom para poder auxiliar. A energia de Tir já está estabilizando novamente.

— Desculpe, Senhora, mas estou cansada…

— Ah! Perdoe-me. Você quer descansar no mesmo quarto de Astor?

Minha mãe e a Senhora das Águas estavam na sala dela, conversando, em frente a lareira após terem cuidado de meu pai e jantado. Tomavam um cálice de vinho.

— Não me refiro a isso, Bonan. Depois que cheguei a Tir, meu cansaço físico se foi. Parece que dormi largas horas. Falo dos anos….

— Entendo. Quando chegou e nos ajudou com Astor, suas energias também foram renovadas. Por isso não se encontra cansada fisicamente. Quanto aos anos, eu realmente não posso ajudar. Tudo que passou, está gravado em sua mente e alma. Estão aí dentro de você, e não há nada que se possa fazer para retirar esse peso. A não ser que eu apagasse todas suas lembranças. Você quereria isso?

Minha mãe esboçou um fraco sorriso.

— Não se dá o sabor do vinho, sem que se dê a dor do exagero advinda dele, não é? – Sorriu desanimada novamente. — Certamente que não. Também tive muitas alegrias e muitas coisas boas para que minhas lembranças fossem apagadas.

Bonan abriu um pequeno sorriso. Pensava que as coisas finalmente estavam nas mãos certas. Sabia, perfeitamente, o que Êlia passava. Ela mesma, se questionara muitas vezes, se valeria a pena. Era como nadar contra a correnteza de um rio, onde, na maior parte do tempo, tinha a impressão que não saía do lugar. Olhando para trás, via o quanto haviam conquistado aos poucos, mas uma conquista sólida.

— Com certeza, você também vê os benefícios das suas lembranças, por mais penosas que sejam.

— É. Algumas doídas, mas sim, vejo os benefícios. Muito do que sou, também vem dessas lembranças e da forma como as encarei.

— Vá descansar ao lado de Astor. Quando ele acordar, precisará de você, e seu coração, precisará dele para aquietar.

*****

Arítes acordou e saiu sem me despertar. Eu estava exausta e não a vi sair. Quando acordei, coloquei uma farda limpa e me apressei para ver como as coisas andavam no castelo. Fui para o grande salão de refeições, certa de que haveria pessoas circulando por ali, procurando se alimentar após todo aquele embate. Quando entrei, os guardas fizeram uma reverência e o senescal se apressou para falar comigo.

— Princesa.

Curvou-se diante de mim. Como eu achava essa firula supérflua! Se ele soubesse o quanto me irritava, principalmente após tudo que ocorreu, ele certamente não o faria.

— Pois não, Bórios. Algo que eu precise saber, ou atender?

— Não, princesa. Já está tudo correndo bem nas atividades do castelo. Algumas coisas ainda precisam de atenção, mas nada imprescindível. Não sei se a senhorita irá recomeçar os atendimentos ao povo, durante esses dias em que o rei e a rainha estão ausentes.

— Assumirei algumas atividades até meus pais retornarem, mas não hoje. Primeiro preciso conversar com o conselho e ainda temos que dar suporte à Terbs e Kamar. O príncipe Belard e a rainha Chad já se levantaram?

Bórios bloqueara minha visão do salão e não havia percebido a presença de uma mulher, sentada à mesa de refeições. Ela se levantou e veio ao nosso encontro.

— A rainha Chad já se levantou, princesa.

— Já me encontro de pé e, é um prazer conhece-la, princesa Tália. – Estendeu sua mão. – Sou a rainha Chad e tenho que lhe agradecer pela manobra de ontem. Sem ela, talvez perdêssemos muitos soldados-cidadãos de Kamar e também o príncipe Belard.

Apertei sua mão, avaliando-a. Apesar de ser um pouco mais baixa que eu, seus cabelos castanhos, assim como a sua postura, davam um ar altivo a sua figura. Devia ter aproximadamente a idade de minha mãe; uns quarenta ou quarenta e dois anos. O aperto de mão era seguro e a farda de comandante, indicava que ela não era mulher de se esconder atrás das trincheiras. Os traços fortes e olhos expressivos, emolduravam um rosto de intensa personalidade.

— O prazer é todo meu, rainha Chad. Sou grata pelo socorro que nos deram, sem vocês, talvez Eras perecesse.

— Não me esconderia atrás dos muros do castelo, sabendo o que estava em jogo. Não era só a segurança de Eras. Era o domínio de nossa terra e a subjugação de nossos povos a um único ser humano. Não sou dada à reverência despótica. – Sorriu. – Bom, já está perto do meio dia e estava comendo para me juntar ao exército.

— Sim. Todos fomos dormir quase de manhã. Vou me juntar a senhora…

— Me chame de Chad e espero poder te chamar de Tália. Conheço sua mãe de longa data e penso que podemos nos tratar informalmente, além de conhecer, bem, a sua noiva.

“O que ela quis dizer em conhecer bem a minha noiva?”

Eu não gostei da forma como ela empregou essa frase. Estreitei meus olhos e apesar dela estar de lado para mim, imaginei ter visto um sorriso em seus lábios. Sentei-me à cabeceira. Era onde meu pai se sentava e fiz questão de me colocar nesse lugar. Normalmente não o faria, pois não ligo para essas chatices, mas nessa hora, não sei o que aconteceu, quis me colocar na posição de autoridade suprema em meu reino. Ela sentou ao meu lado direito e de repente, não estava mais certa se ela tinha sorrido antes ou não. Seu rosto estava sereno.

Eu me servia de um pescado assado e legumes cozidos para acompanhar, enquanto observava, de soslaio, ela se servir também.

— Então, você conhece minha mãe e minha noiva. Como as conheceu? Conte-me. Adoro ouvir estas histórias.

— E eu gosto de conta-las. – Sorriu brejeira. – Nós nos daremos bem, pelo que vejo. – Sorriu novamente. – Sua mãe conheci ainda jovem. Eu tinha dezesseis ou dezessete anos e ela equiparava à minha idade. Ela fazia escolta de diligências de comerciantes de Eras que iam comercializar em Kamar e era a porta-voz do seu avô, rei Aderyn de Eras. Levava os acordos de comercialização para apreciação de meu pai. Eu estava na escola militar, em Kamar, mas tinha uma patente menor que sua mãe. Começamos a conversar nos almoços, que ela participava toda vez que ia e estabelecemos uma relação de amizade. Um ano e meio depois ela parou de fazer as diligências e passamos a nos ver esporadicamente, mas sempre que nos encontramos, parece que a amizade permanece.

Gostei de ouvir essa história, mesmo assim, a frase dita por ela anteriormente, ainda estava atravessada na minha garganta. Apenas sorri para que ela continuasse.

— E a sua noiva não foi diferente. – Ela falou. – Cerca de vinte anos mais tarde, era Arítes quem fazia a escolta dos comerciantes, mas nesta época quem recebia os acordos comerciais para apreciação, era eu. Meu pai faleceu e eu herdei o trono. Eu estava passando por um momento difícil, pois meu marido adquiriu uma doença que o fez definhar. Ele permaneceu durante quase um ano em cima da cama e ter conhecido Arítes me deu suporte, além do que, a doença de meu marido, veio também num momento ruim. Estávamos em vias de nos separar, quando ele adoeceu. Me separar dele numa situação dessas, não era uma opção honrosa. Não podia fazer isso com um homem que foi meu companheiro durante tanto tempo.

— Então estreitou amizade com ela nessa época…

Arítes entrou no salão e veio até nós.

— Boa tarde, Tália. – Me cumprimentou e se voltou para a rainha Chad fazendo uma reverencia – Boa tarde, rainha Chad.

Não sei porque, pensei ter vislumbrado outro pequeno sorriso nos lábios da rainha de Kamar, antes dela colocar o garfo na boca. Acenou com a cabeça para Arítes e pensei também ter visto Arítes, olhando diretamente nos olhos da rainha, encarando-a. Talvez fosse a minha imaginação mesmo, pois Arítes depositou um beijo em meus lábios e sentou-se ao meu lado.

— Como está no comando? – Perguntei para Arítes.

— Tudo correndo bem. As muralhas já estão sendo consertadas nos locais onde sofreram mais e o exército está se reestruturando. Estão vendo as baixas que tivemos para comunicar às famílias e amanhã faremos um ritual em homenagem. – Ela inspirou. – Espero que o rei Astor esteja bem. Você teve notícias?

— Ainda não.

Baixei levemente a minha cabeça e inspirei também.

— O rei Astor é um homem forte. Se algo tivesse acontecido com ele, as “Senhoras da Natureza” teriam avisado, Tália. Pelo que conheço de Êlia, ela já estaria de volta. – Rainha Chad pontuou.

O príncipe Belard entrou no salão, conduzido pelo braço por uma capitã de nosso exército. A reconheci de imediato. Ela tinha sido uma amiga, quando eu tinha cerca de quatorze anos, mas seu pai era um diplomata em nosso reino e viajou para terras além de Kardoshara. Nunca mais tive notícias dela.

— Belard, você está muito ferido! Deveria ter pedido para levar a comida em seu quarto.

Levantei para ajudá-lo a se sentar conosco.

— Nada que não cure, Tália. Obrigado pela preocupação, mas não perderia a oportunidade de estar com vocês. Acho que temos que comemorar, não?

— Sente-se aqui.

Conduzimos Belard para sentar ao lado da rainha Chad.

— Fizeram um estrago em você, Belard. – A rainha de Kamar falou, afastando a cadeira para que Belard sentasse.

A capitã que estava com ele fez a reverência real, dirigindo-se a mim.

— Como vai, princesa?

 — Eileen, deixa de tolice. Como você está? Desde que seu pai foi para Brósia, nunca mais a vi. Sente-se conosco.

Falei, abraçando-a. Ela retribuiu o abraço.

— Estou bem, Tália. Não quero atrapalhar a conversa de vocês…

— Bobagem. Não atrapalhará nada.

A rainha Chad sorriu levemente para Arítes e falou baixo. Eu não escutei, pois estava em uma conversa animada com minha amiga de adolescência.

****

— Por que está tensa, Arítes? Não está gostando da nossa companhia? – Sorriu divertida.

O cenho de minha noiva se fechou mais.

— Não faça insinuações para Tália sobre o que aconteceu em Kamar, Chad. Ela tem um temperamento forte.

Belard olhou para as duas, sem entender muito bem a conversa.

— Arítes, você me diverte. Sabe que não falaria nada, mas se minha opinião vale alguma coisa, não deveria começar um casamento com segredos. Eles normalmente trazem confusão quando descobertos.

Arítes continuava conversando, mas voltava o seu olhar para mim e para Eileen, a todo momento.

— Sua opinião vale sim, mas seu sarcasmo, por vezes, é ferino. Eu vou deixar claro, Chad, amo Tália demais para que permita que alguém se interponha entre eu e ela.

— Você está me ofendendo… ei, espere…

Chad olhou para Arítes que continuava a olhar para mim e a capitã. Mirou em nós, um pouco afastadas da mesa e numa conversa animada. Gargalhou.

— Você não está falando da situação em Kamar. Está falando de Tália e essa capitã, amiga dela. Nunca pensei que veria você com ciúmes, general! – Voltou a gargalhar, levando Belard a rir junto.

— Não tenho ciúme, apenas conheço essa garota e… ah, deixa para lá!



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