Eras

Capítulo 24 – Cansada de ser enganada

Chad deixou seu corpo cair na poltrona, relaxado e devolvia o sorriso para minha mãe.

— Eu não sei. Talvez apenas goste de pessoas com personalidades fortes…. Não me leve a mal, Êlia. Foram momentos diferentes de minha vida e vivências também.

Minha mãe pegou uma taça de vinho e encheu, dando uma boa golada.

— Ei, vai com calma!

— Chad, o que acha que minha filha vai sentir, o dia que souber que eu e você também tivemos um relacionamento?

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra, Êlia. Você e eu éramos jovens, saindo da adolescência e nos descobrindo. Um ano após pararmos com as nossas brincadeiras juvenis, você se apaixonou por Astor e eu por Gedrã. Casamos, tivemos filhos e você ainda é feliz com Astor e o ama.

— Eu não falo disso. Isso é muito claro para mim. Falo dos sentimentos de Tália. Dela descobrir que a mãe dela teve um caso amoroso com a mesma mulher que a noiva dela. Se eu tivesse me envolvido com uma mulher e Arítes com outra, não haveria o menor problema.

— Eu não entendo porque vocês escondem essas coisas e aí a malvada da história sou eu.

— Eu nunca escondi nada, apenas nunca foi um assunto que veio para as minhas conversas com ela. Se viesse, eu não tinha por que não falar… – Minha mãe deu uma pausa e tomou outro grande gole de vinho.

— Para de beber dessa forma, Êlia. O que está pensando?!

— O que eu estou pensando? Eu estou pensando nesse exato momento, que foi melhor que este assunto não viesse às nossas conversas. Imagina o sentimento que Tália teria agora? O que ela pensaria olhando para você? Deixa eu adivinhar. Seria algo como “Essa mulher fez sexo com minha mãe e também com minha noiva”!

 — Deixa de ser ridícula! Nada disso estaria acontecendo se vocês não escondessem coisas. Seria natural!

— Sim, Chad, é natural. Mas o que surpreende, foi eu ter me relacionado com você e quase vinte anos depois, Arítes também.

— O que há de errado nisso? Me explique porque não estou compreendendo e nem alcançando.

Minha mãe se jogou na outra poltrona.

— Não é errado, só complicado. – Minha mãe falou em desânimo.

— Preste atenção, Êlia. – Chad falou calma, passando a mão pelos cabelos. – Eu entendo que Astor tenha ciúmes de nós. Quando ele começou a nutrir sentimentos por você, ainda estávamos nos relacionando, embora não fosse nada sério e ele sabia disso. Entendo que nesse momento, com essa confusão, Tália venha a ter reservas comigo. Mas não venha colocar na minha cabeça, que o meu relacionamento com você, há mais de vinte anos, e o meu relacionamento com Arítes, há mais de dois, seja considerado algo errado.

Minha mãe fechou os olhos e ficou em silêncio por uns instantes.

— Você tenha razão. Nós é que erramos para que essa situação se configurasse dessa forma. A pior coisa foi Arítes não ter contado à Tália, e muito menos eu. Vai soar muito mal isto.

— Êlia, sei que não é a hora. Tália ainda tem que se resolver com Arítes, mas quando tudo estiver ajeitado e seguro, não deixe passar. Conte também.

— Eu vou contar. – Minha mãe apontou para Chad com a cara fechada. – Mas não agora e fique com essa boca fechada.

— Desculpe-me por Tália ter sabido daquela forma, realmente foi um erro meu. Devia ter conversado com Arítes num lugar reservado.

— Ei, Arítes sabe sobre nós?

— Não, Êlia. Arítes não sabe. Quando eu soube quem era ela, tentei ter cuidado para não deixar escapar. Na verdade, queria conversar com você antes, mas não tive oportunidade e um tempo depois, nos separamos.

— Foi sério o que teve com ela?

— Digamos que para mim foi necessário e para ela uma aventura. Não nos amávamos. Juntamos carência e passamos a nos confidenciar, confiávamos uma na outra. Nessa época, soube do amor dela por Tália e ela contava para mim, que era algo impossível de acontecer.

— Que confusão! Espero que isto se resolva antes de Astor chegar. Ele ainda não sabe do relacionamento das duas. A guerra estourou e não tivemos tempo de falar mais nada a respeito disso. Não quero que ele se preocupe com esses altos e baixos que as duas passam, por conta de mal-entendidos. Ele ainda não estará curado.

— E eu espero não estar mais aqui, quando Astor chegar.

Minha mãe estreitou os olhos em direção a Chad.

— Ele não é um monstro, Chad. O que acha que ele faria se te visse aqui? Ele sabe muito bem o que houve entre nós e sabe que eu o amo. Nós três já estivemos juntos em recepções, antes.

Chad sorriu de lado, desfazendo um pouco dessa crença da comandante.

— Não é ele que não quereria me encontrar, Êlia. Sou eu que não gostaria de encontra-lo.

Minha mãe olhou diretamente nos olhos da rainha de Kamar.

— O que você quer dizer, exatamente, com isso?

A comandante pendeu ligeiramente a cabeça, aguçando a visão, enquanto Chad, mais uma vez, lançava um sorriso fraco na direção de minha mãe.

— Para você foram apenas descobertas e vivências, não é, Êlia?

— O que…. Por que está falando isso? Você disse na época que estava tudo bem, que era só isso…

Chad se levantou, foi até a mesa e pegou um cálice de vinho, deglutindo de uma só vez. Minha mãe a olhou com espanto.

— Quem está exagerando na bebida, agora, é você.

A rainha de Kamar olhou de lado, sobre o ombro. Estava de costas para minha mãe e sorriu suave.

— Vou te contar uma história, Êlia, mas não se sinta culpada ou constrangida. Aquele sentimento era meu.

— Chad…

— Espera! Deixa eu falar.

Inspirou forte e exalou todo o ar dos pulmões com a mesma força, levando-a a inspirar novamente.

— Estávamos nos divertindo, sim. Era uma época sem grandes preocupações para ambas. Você conhece a minha história. Sabe que eu já havia me relacionado com um jovem intendente e a filha de um sábio do templo. O sexo não era novidade para mim, mas você me trouxe uma coisa nova: cumplicidade. Pelo menos, era isso que sentia com você. – Fez uma pequena pausa e continuou. — Você já havia tido um breve relacionamento com algum companheiro de esquadrão, também. Para você era instigante, sem compromisso, mas eu… eu me encantei com você.

— Chad, eu não sabia. Você dizia… Eu era nova e…

Minha mãe estava desconcertada.

— Não! Por favor, Êlia. Não estou revolvendo o passado. Você não está entendendo. Apenas não quero levar para o túmulo, uma dívida com a minha consciência. Deixe-me terminar.

— Tudo bem, continue.

— Eu também era nova. Só que você me pegou de jeito. – Sorriu. – E que jeito, mulher! – Gargalhou vertendo mais um cálice. – Quando percebi que não estávamos na mesma sintonia, deixei que acontecesse do jeito que o destino queria. Apenas isso. Minhas suspeitas se confirmaram, quando você parou as diligências e pouco ia para Kamar. Já observava que Astor e você estavam se entendendo.

Minha mãe sacodiu a cabeça e levantou da poltrona. Aproximou de Chad e a abraçou por trás.

— Me perdoa. Eu não tinha noção e nem tive sensibilidade. Eu realmente não achava que esse sentimento permeava seu coração. Perdoa a minha incapacidade de retribuir.

— Não se desculpe, Êlia. Sei que a vida não é uma trilha suave e sei que as coisas caminham da forma que tem que ser. – Aconchegou-se ao corpo da comandante, sorvendo o momento único. — Conheci um homem maravilhoso, que foi Gedrã. Partilhamos excitações, alegrias, companheirismo, um filho maravilhoso, amor e por fim, nos perdemos de nós. E segui.

— Não estou me desculpando pelo que não senti por você. Estou me desculpando, por não ter a sensibilidade de perceber o que foi para você.

Chad se desvencilhou de rompante se dirigindo à poltrona.

— Para! Já estou curada. Quer me pegar nesse sentimento novamente?

Riu debochada, se jogando na poltrona.

— Desculpa, Chad… – falou desolada.

— Não, Êlia. Quando vi você no seu casamento, eu entendi. Tinha acontecido para mim e não para você. Não te culpo. Ninguém tem culpa disso. Segui em frente e não posso dizer que fui infeliz, porque eu fui feliz. Só não me peça para encarar Astor, pois aí é demais!

Minha mãe sorriu.

— Sabe o que penso?

— Não me venha com essas frases filosóficas, pois fico com mais raiva. Soube por meu filho que você era Guardiã dos Escritos. Por que nunca confiou em mim?

— E você queria que eu falasse o que, naquela época? “Eu sou a Guardiã dos Escritos Sagrados”?! – Fez um gesto com as mãos, revirando os olhos. — Pelo amor da Divina Graça, Chad!

— Tá, tudo bem! – Abanou a mão impaciente. – Ninguém, no mundo conhecido, sabe que essa merda existe mesmo.

Minha mãe gargalhou com vontade. Amava o jeito escrachado da rainha de Kamar. Sabia que por trás, havia uma mulher de incríveis virtudes.  Remeteu seus pensamentos a tantas mulheres e homens que circulou por sua vida, em todas as instâncias. Muitos de bem, outros tantos duvidosos. Os tempos haviam mudado e com ele, muitos conceitos. Não conceitos de falso moralismo, que se prendem às formas retrógradas de viver, mas conceitos de verdadeiras virtude e respeito.

— O que está pensando? O pouco que ainda conheço, esse olhar diz que tá tramando alguma coisa.

Minha mãe abanou a cabeça, ao ouvir as palavras de Chad. Ela pegou mais um cálice de vinho, depositou o liquido rubro em outra taça e ofereceu a rainha de Kamar. Sentou-se a seu lado.

— Eu falei para a “Senhora das Águas” que estava cansada, Chad. Eu trago algo, que a minha filha ainda não tem, mas vai desenvolver. Eu vislumbro o futuro, entre os sonhos. Muitas vezes não sei se é real, mas a intuição me fala o que é e o que não é verdadeiro. Tentei fugir, mas agora com você, vejo que é uma dádiva. Eu nos vi nessa conversa há anos atrás, e não compreendi na época. Achei que fosse sonho.

— Está falando que sabia que não teríamos mais nada do que aquilo que tivemos?

Minha mãe deu um pequeno sorriso.

— Estou falando que trilhamos o caminho certo para nós.

Chad parou, momentaneamente, em seus pensamentos e concluiu.

— Não seríamos felizes. É disso que fala?

Minha mãe meneou a cabeça afirmativamente, levantando-se. Pegou o cálice da mão da rainha Chad e os depositou na mesa. Pegou sua mão e fez com que ela levantasse. Cingiu-a pela cintura, segurando sua nuca e unindo seus lábios aos da rainha de Kamar. Chad aprofundou num beijo lento e cheio de saudosismo, lembranças e certezas. Certeza de que tudo caminhava bem, numa trilha harmônica. Haviam viajado pela vida, na senda acertada para elas. Cessaram a união de seus corpos, serenas. Certas de terem findado mais uma etapa.

— Não. Não seríamos felizes.

A Guardiã dos Escritos falou com tranquilidade, transbordando alegria por seus olhos. Transpôs mais uma etapa de sua vida.

Virou-se e caminhou para a porta.

— Não vai jantar? – Perguntou Chad.

— Não. Vou jantar com minha filha. Há tempos que não comemos juntas. – Sorriu.

A rainha de Kamar assentiu com a cabeça em compreensão.

— Só mais uma coisa, Êlia.

— Sim. – Minha mãe se voltou para ela.

— Vou me juntar às tropas na alvorada e levantar acampamento. Voltarei para Kamar pela manhã. Continuo não tendo disposição para encarar o humor de Tália, a supremacia que Astor tem sobre a situação e a força que sua presença exerce sobre mim.  Teve sorte. Mais um pouco e você não sairia de meu quarto esta noite.

Gargalhou ao ver o rubor estampar o rosto de minha mãe, que balançou a cabeça, rindo, descrente que ouvira tais palavras.

****

Jantei com minha mãe feliz, naquele dia. Jogamos conversa fora, como em outros tempos e nos desfizemos de tensões. Somente ela e eu, como sempre fizemos durante toda a nossa vida. Mas na manhã seguinte…

****

Na manhã seguinte, Arítes abriu a porta de seu quarto e se deparou com minha mãe.

— Comandante!

Fez a reverencia do exército assustada. Ela não esperava que minha mãe já estivesse em Eras.

— A coisa está feia mesmo, Arítes. Me siga.

Falou se voltando e não deixando margens para que fosse questionada. Arítes não hesitou e a acompanhou. Chegando ao quarto de minha mãe, Arítes tratou, imediatamente, de se explicar, temendo uma reprimenda.

— Comandante Êlia… rainha, eu…

— Cala a boca, Arítes, e para de me chamar de comandante ou de rainha. Pensei que já tivesse superado isso!

— Desculpa, é que eu queria explicar que o que aconteceu entre mim e a rainha Chad…

— Não interessa saber o que você e Chad viveram, mas infelizmente, agora interessa à Tália e vou te dizer, ela está muito furiosa! Nem a mim ela escutou.

— Merda! — Arítes exclamou espremendo os olhos e contraindo os ombros. – Tá ruim assim?

— Muito. – Minha mãe falou em preocupação. – E se segura, pois hoje na recepção você vai sofrer.

— Merda! – Falou novamente, se voltando de costas e passando as mãos pelos cabelos.

— Valeu a pena? – Minha mãe perguntou.

Minha noiva se voltou para a minha mãe desolada.

— Olha, eu não imaginava que um dia eu conseguisse namorar Tália…

— Eu não estou perguntando se valeu a pena ficar com Chad, disso eu sei, quero saber se valeu a pena esconder da sua namorada.

— Claro que não valeu… espera, você disse: disso eu sei?

— Ora, Arítes, conheço Chad há muitos anos… fomos amigas e confidentes, sei como ela pode ser uma pessoa… mmm… como poderia falar, é…

Minha mãe se enrolou para explicar e apesar de Arítes ter achado estranho esse comportamento atípico de minha mãe, ela estava mais aflita em resolver a questão comigo.

— Tá. Deixa para lá. O que eu faço para remediar isso com Tália?

— Eu que sei? Olha. Tália sempre me escutou. Por pior que a situação fosse, ela tirava um tempo e ponderava. Jantei com ela ontem, conversei com ela de forma amena, só que, quando fui fazer o desjejum com ela hoje de manhã… definitivamente ela está magoada com você.

— Mas eu não tinha nada com ela!

— Mas não é porque você teve algo com Chad. É porque você escondeu dela! Será que você não vê? Ela te perguntou sobre seus relacionamentos anteriores e você não falou de Chad!

— Êlia, se você não está com raiva de mim, por quê está gritando? Desculpa aí, mas você disse para eu deixar as formalidades e está surtando comigo!

Minha mãe estava andando de um lado para outro e sua voz estava alterada. Nem em uma guerra, ela tinha desequilibrado tanto. Ela parou estanque e olhou para Arítes, avaliando.

— Quer saber mesmo? Então, vou lhe contar. Eu e Chad tivemos um relacionamento na juventude.

O rosto de Arítes empalideceu.

— Então é por isso que ela…

— Não, não é. Esse que é o problema. Eu nunca falei disso. Imagina se ela souber antes que vocês se acertem?

— Merda! Merda!

Arítes andava pelo quarto com as mãos na cabeça em desespero. Minha mãe se aprumou. O silêncio reinou no quarto durante alguns minutos. Minha mãe começou a rir, novamente. Minha noiva olhou para ela com estranheza.

— Desculpa, Arítes – ainda ria da situação. – Passei por guerras, mortes, e outras situações difíceis, mas Tália sempre me surpreende. Ela me colocou para fora do quarto hoje mais cedo.

— O quê?!

— É isso mesmo que ouviu. Quando falei com ela de manhã, que talvez fosse melhor te procurar, para que você se explicasse, ela me colocou para fora do quarto. Fiquei tão desnorteada que cheguei a pensar que ela já sabia de mim e de Chad. Aliás, isso me lembra que você não pode, em hipótese nenhuma, falar sobre isso com ela! E isso é uma ordem! O que ordenei agora foi como sua comandante!

Arites engoliu em seco, não tanto pela forma que minha mãe falou com ela, mas pela forma como eu tratei minha mãe.

****

O almoço de confraternização chegou. Me arrumei com a farda de gala, passei uma loção feita de flores silvestres e ervas aromáticas, que havia pedido para o mestre do herbário preparar há algum tempo. Eu era uma general e a herdeira do reino. Como disse Tórus, eu não precisava me impor, mas precisava me colocar no meu lugar.

Cheguei a porta do salão de jantar e pedi para me anunciarem. Àquela hora, possivelmente todos já estariam presentes. Atrasei propositalmente, para que Arítes e minha mãe, já estivessem no salão.

O guarda real bateu a lança no chão três vezes. “Toc. Toc. Toc.” Engoli em seco, pois nunca havia pedido para que me anunciassem em uma recepção. Meu coração disparava. Parecia que o tremor de meu corpo refletia sobre meus cabelos curtos e penteados, displicentemente rebeldes. Eu os havia cortado novamente. Escutei as palavras que pedi para ele anunciar e prendi a minha respiração, momentaneamente.

— Atenção, todos. Com vocês a princesa herdeira do trono e general do exército de Eras, Tália Renoir de Cadaz e Eras!

Enquadrei meus ombros e lancei um sorriso em meu rosto. Caminhei, segura em meio a recepção. Vi generais e oficiais se perfilarem. Damas e conselheiros se curvarem, e olhos admirados em minha direção. Se eu gostei? Gostar não foi exatamente o sentimento que tive. Senti apreensão, vergonha e orgulho ao mesmo tempo. Consegui ver Tórus entre as pessoas e ele tinha um enorme sorriso em seus lábios. Acho que aprovou minha conduta. Devolvi o sorriso. 

O que mais gostei dessa recepção? Foi ver Arítes. Ela estava linda em seu uniforme de gala e… seus olhos baixos, como deveriam estar, depois da cachorrada que me fez! Vingativa, eu? Não. Não sou vingativa. Só não me peçam para ser esse poço de bondade, virtude e bla, bla, bla, e, “a bobinha da indulgência”. Chega! Sou humana. E minha mãe? Ao lado dela. Pois que ficasse. Vi que ela estava com um enorme sorriso, e acredito até, que de orgulho.

Cumprimentei alguns convivas e sentia olhos sobre mim. Em meio a todos, vi o diplomata Dório e olhei em seu entorno. Sim. Eileen estava ao lado do pai. Me desvencilhei de algumas pessoas e fui ao encontro dos dois.

— Se segura, Arítes. — Minha mãe cochichou ao ouvido da general. – Não é hora.

Minha namorada balançou a cabeça, espremendo os olhos.

— Me fala que isso não está acontecendo.

— Está e eu vou te falar. Se você não for mansa, dessa vez, o óleo esquenta. Ela nem veio falar comigo. – Minha mãe retrucou.

— E o que eu faço? – Arítes perguntou desesperada.

— Como eu vou saber? Tália nunca me tratou assim, Arítes.

Passei algum tempo conversando com as pessoas e circulando pelo ambiente. Soube, logo pela manhã, que Chad havia seguido com seu exército para Kamar. Eu não estava com raiva da rainha. Apesar de meu ciúme, ela foi a única que me tratou com respeito, perante a situação. Sempre fui impulsiva sim, mas Arítes deveria conhecer meus defeitos e minhas qualidades. Ela me acompanhou durante anos e sempre fui clara como as águas de um rio, para ela. O que ela achou que eu faria se ela me contasse na ocasião que conversamos? Que eu berraria para todo mundo o relacionamento que ela teve com Chad? Que eu não ficaria com ela por conta disso?

À mesa, fui educada e cortês com todos. Inclusive com minha mãe e Arítes. Acho que elas não gostaram muito da distância, embora eu estivesse ao lado de minha mãe à mesa. Nós duas sentávamos à cabeceira, lado-a-lado e coloquei Tórus, à minha esquerda juntamente com a sua esposa. Minha mãe colocou Arítes ao lado dela. Não esperava menos que isso, afinal, ela era uma general e era a mulher que minha mãe sabia que eu amava. Após o almoço, começaram algumas danças no salão.

— Ei, Eileen. Seu pai está ótimo e ainda conta boas piadas.

— Piadas sem graça, você quer dizer.

Rimos juntas.

— Que nada. Ele é divertido.

— Gostei de ver Galian e Hian bem. Eles ficaram até ontem à noite na enfermaria, por conta dos efeitos do feitiço de Vergás.

— Vergás não, Serbes. Soube hoje de manhã que Distêmona foi morta por ele na investida. – Falei abalada. – Achava a garota chata, mas isto? Ele não amou nem a filha?

— Ela não era filha dele. A mãe de Distêmona era viúva quando ele casou. A garota já era nascida. Hoje desconfio se ele não matou a mulher também. – Eileen esclareceu.

— Como você sabia disso?

— Meu pai me contou. Também fiquei chocada quando soube do ocorrido e comentei com ele. Ele me contou a trajetória de Serbes aqui no castelo. Disse que chegou há muitos anos, vindo de Tenara. Supostamente, ele era filho de um coronel, que atuava no posto avançado de Tenara e de uma comerciante da localidade. O pai, ao que parece, havia sido morto em uma emboscada durante uma diligência. Este fato realmente ocorreu com um coronel que estava alocado em Tenara, o que levou o general e conselheiro Cétriz a abriga-lo. Serbes, ou Vergás na época, se mostrava um homem inteligente e perspicaz, fazendo com que o conselheiro começasse a orientá-lo e introduzi-lo nas reuniões do conselho. Tórus ainda era muito jovem. Ainda não fazia parte do conselho.

— Pela Divina Graça! O conselheiro Cétriz morreu, subitamente, logo depois que Tórus foi aceito no conselho! – Eu estava chocada. – Será que Serbes… que ele matou o conselheiro Cétriz por conta dele ter colocado Tórus no conselho? Teria uma dificuldade maior para lidar com duas pessoas tão próximas…

— Pensei o mesmo que você quando meu pai me contou toda a história. Agora nunca vamos saber.

— Não quero pensar quando Arítes souber dessa história. Ela vai ficar arrasada. Amava muito o avô…

Enquanto conversávamos, conduzi Eileen para a varanda que se estendia ao longo do salão do castelo. Queria me afastar do barulho e do burburinho da recepção.  Nunca fui de dançar, pois sempre vinha alguém, sem graça, me tirar para a dança. A música alta estava começando a me incomodar. Apoiei meus braços no beiral, com o cálice de vinho em uma de minhas mãos. Olhei ao longe e depois para a praça central, que se descortinava abaixo de nós. Eileen sorriu de lado e me olhou brejeira com jeito que queria me perguntar algo. Facilitei para ela.

— Por que está me olhando assim?

— Você está querendo fazer ciúmes em Arítes comigo?

Ela me perguntou se colocando a meu lado, na mesma posição.

— Claro que não. Por que me pergunta isso?

— Porque ontem à noite, quando lhe procurei para dar o recado da Senhora das Águas, você me procurou para desabafar, assim que a Senhora das Águas deixou seu quarto. Pelo que estou percebendo, você ainda está furiosa com Arítes e, pelo visto, com a comandante também.

— Eu não esperava que você fosse um oráculo, no entanto me alegrei por isto. Aliás, desconheço muita coisa das pessoas de Eras e isto que me irrita, Eileen. Fui cercada por tantos cuidados pela minha mãe e meu pai, que só agora descubro coisas de pessoas que eram ligadas a mim. Pela Divina Graça, Eileen, eu sou uma Guardiã das Escrituras e nada sei da vida de Tejor! Você não sabe como me assustei com você batendo à minha porta e dizendo que era um oráculo e que trazia uma mensagem da Senhora das Águas.

— Sua mãe não sabe que sou um oráculo. A gente não sai por aí falando essas coisas, Tália.

— Você, Melorne, o filho de Chad. Quantos oráculos existem?

— Pode ter certeza que em cada cidade existe pelo menos um. Eu sou o oráculo de Brósia, apesar de ter nascido em Eras. Há uns anos, nasceu um menino em Brósia que herdará meu lugar. Devo retornar a Eras, pois pertenço a esta cidade e aqui, não temos oráculo algum. Em compensação, tem duas Guardiãs e uma sacerdotisa-curandeira. – Riu displicente.

— Está vendo? Com posso ser uma Guardiã se nada sei?

 — Pode ser, na medida que, tem o coração de uma. Sua mãe, ainda hoje, não pode falar que vocês são da casta das guardiãs, Tália. Olhe à volta e você conseguirá contar nos dedos, quantas pessoas sabem sobre isso em Tejor inteira. Hoje, nós que somos oráculo sabemos, porque houve essa guerra que Serbes provocou, mas garanto que daqui alguns anos, depois que formos desse chão, a casta das Guardiãs voltará a ficar no anonimato, assim como aqueles que são oráculos.

— Que seja. Isso não tira o fato de que sendo quem sou, tenha ficado às escuras a vida toda. No mínimo, eu deveria saber que os oráculos existiam espalhados por aí. E agora isso. Minha namorada escondendo algo que temia me falar e minha mãe a apoiando, porque também escondeu coisas de mim e teme que eu saiba.

— Ela teme lhe magoar mais, por conta da situação.

— E por que? Porque teve um relacionamento na juventude com alguém diferente de meu pai? Ela nem namorava meu pai e eu nem era nascida, Eileen! Sei que a Senhora das Águas veio me falar sobre isso ontem à noite, porque uma hora eu descobriria e a coisa ficaria pior. Ela se antecipou para que não houvesse um estrago maior. Só por isso a Senhora das Águas veio até mim. Para contar de uma forma que não chegasse a informação enviesada.

— Então não está com tanta raiva assim, como está fazendo parecer?

— Não estou chateada por conta desta situação específica. Estou chateada por todas as vezes que fui colocada de lado. Em dois meses, descobri mais coisas escondidas do que em toda a minha vida. É por isso que estou chateada.

— Ora, Tália…

— Por que estão se escondendo aqui? Todos estão se divertindo no salão.

Olhei por cima de meu ombro para ver Tétis chegando sorridente e… ligeiramente desconfortável. Sabe quando você olha para uma pessoa e vê que está ali só para sondar?



Notas:

Olá, pessoal! Este capítulo foi elucidativo em alguns aspectos, mas gostaria de fazer um esclarecimento. Quando coloquei o relacionamento de Êlia com a Rainha Chad na adolescência, não foi para dizer que o mundo é gay! Rs Na verdade, o que penso é que se existisse uma sociedade em que não houvesse qualquer tipo de distinção com relação a sexualidade, o natural não seria que houvesse experimentações na fase de amadurecimento sexual? Ou pelo menos, ninguém se importaria se houvesse ou não. E se estas experiências acontecessem, elas não marcariam negativamente alguém. Apenas seriam vivências. As pessoas seriam o que são e nada mais que isto.
Bom é isto. Não foi sem propósito ter colocado Êlia tendo uma experiência com uma mulher e nem foi para alegrar corações de quem é fã da nossa comandante, embora acho que deu para alegrar alguns corações. Rs
Um grande beijo a todas e até o próximo!




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