Eras

Capítulo 26 – A Batalha “do” Sangue – Epílogo

Alguns anos mais tarde

– Mãe, onde está papai?

– Quando chegamos ele foi para o comando e eu vim ver você. Achei que estivesse reunida com o conselho.

– Nos reunimos mais cedo. Tórus está adoentado e sua pupila, Thara, está substituindo-o. Sei que ela vem sendo preparada por ele há anos, mas como senti falta dele na reunião…

– Ela é uma boa conselheira, Tália. Não se prenda pela idade, pois Tórus desde cedo a tem orientado. Ela tem o “dom da sabedoria” e ele viu isso, antes mesmo de aceita-la como pupila.

– Eu sei, eu sei, mãe.

– Como está a situação?

– A rainha Chad e Belard estão a caminho de Kamar com o exército de Terbs. Pela Divina Graça! O que Natust está pensando com essa ação?

– Eles estão fazendo uma ação desesperada, Tália. Dezessete anos, quando tentaram nos invadir, na “Batalha de Sangue”, eles tinham a crença em um Deus e, quando matamos Serbes, o povo do Norte ficou desorientado. Já haviam deixado o culto da Divina Graça de lado, há tempos. Não que acreditar em Deuses faça você prosperar, ou que a Divina Graça os castigue por isso, mas um povo cuja cultura foi destruída, não consegue se orientar. Não conseguem se reerguer e estão passando fome. O povo do Norte está muito pobre.

– E por que não nos chamam para uma conversa e acordos comerciais? Eu não me negaria a conversar com eles.

– Por orgulho e por terem se desestruturado. Eles perderam o rumo, Tália.

Passei a mão por meus curtos cabelos. Estava com trinta e oito anos e Brenna, minha filha e de Arítes, já tinha dezessete. Parecia que uma vida inteira tinha se passado desde a “Batalha de Sangue”. Minha mãe e meu pai, no auge de seus cinquenta e sete anos, me ajudavam a governar. Não conseguiram se afastar completamente, como falaram, quando abriram mão do trono, em meu nome. Eles eram ativos demais para isso. Minha mãe nunca deixou realmente o exército e continuava a treinar todo dia. Agora era só conselheira do comando e muito bem-vinda. Galian falecera de uma doença que o pegou de súbito, mas o general Gwinter, também, nunca se afastou do comando. Era o braço direito de Arítes, ao lado de minha mãe. Tétis tinha chegado a patente de general de exército, juntamente com seu marido Mardox.

– Ah, mãe! Como a senhora me suportou, naquela época? Como a senhora suportou o fato de, eu e Arítes, termos aquele papel na “Batalha de Sangue”?

– Por que pergunta isso, Tália? – Minha mãe arqueou a sobrancelha diante de minha pergunta.

– Porque eu tentei convencer Brenna a fazer parte de meu esquadrão e ela recusou. Pedi para Arítes conversar com ela, para leva-la sob o comando dela, e Arítes disse que ela se irritou com isso. Está de cara virada para mim, agora. À beira de uma batalha e fico pensando em por que eu deixei Brenna entrar na escola militar tão cedo?

Minha mãe esboçou aquele sorriso cínico que eu odiava, quando ela fazia. Sabia que iria soltar, por aquela boca, alguma coisa para troçar comigo.

– Simplesmente, porque você quis educa-la diferente da educação que lhe dei. Não se sinta mal, eu fiz o mesmo com você, lhe educando diferente do que minha mãe e veja no que deu?

Ela gargalhou e eu a acompanhei.

– A verdade, Tália, é que não existem formulações mágicas para isso. Aprendemos a ser mãe, à medida que ensinamos aos filhos e de acordo com a nossa experiência. Graças a Deusa, ela tem amor suficiente de vocês e de nós, para que se torne uma grande mulher.

– Mas ela tem um temperamento… Não podia simplesmente aceitar o convite de mudar de esquadrão? Ela tem só dezessete anos, embora já seja tenente. Merda, mãe! Não é só porque é herdeira do trono, mas é minha filha e não acho que esteja preparada para ir à guerra!

– Acho que você deveria ter aprendido comigo a ser um pouco mais impositiva. Deixa que eu cuido dela.

– O que vai fazer?

– Se ela não quer mudar de esquadrão, acho que o esquadrão dela vai ganhar um general a mais…

– Como? Não entendi.

– Que tal o esquadrão “vinte e dois” ter o apoio de uma velha comandante-general?

 – O quê? Está louca! Não vou permitir que a senhora entre nessa batalha!

Estávamos caminhando lado a lado pelo corredor, indo em direção ao comando e minha mãe estancou o passo, olhando-me com uma expressão séria.

– Está me proibindo de ir à guerra? – Arqueou a sobrancelha. – Entendo que ache que estou velha, e realmente sinto os traços do tempo, mas acho que você se esquece de algumas coisas que lhe ensinei.

– Mãe, não é isso…

– Cale-se, Tália, e escute. – Ela olhou em volta. – Ou melhor, venha.

Voltou a caminhar pelos corredores e entrou na sala de treinos. Vocês se lembram? Essa mesma. Aquela que quando eu era pouco mais que uma adolescente, ela me treinou e me deu muitas surras até o amanhecer.

– Pegue o takubi.

– Mãe, para.

– Pegue o takubi. Não é sua melhor arma? Não crie dramas, Tália. É só um pequeno divertimento, para relaxarmos.

Eu não estava enferrujada, pois continuava a treinar com o exército e quando as atividades do governo ficavam muito intensas, Arítes treinava comigo, ou Tétis. Minha mãe se surpreenderia na sua aura de arrogância, pois nessa hora ela foi bem atrevida. Eu não era mais aquela menininha de outrora e ela não estava mais no vigor da força plena. Será que ela não via a sua idade?

Foram quase duas horas duras e eu simplesmente… perdi.

– Droga, mãe! Isso foi sujeira!

– E por quê? Você tinha me desequilibrado e a estante estava a meu lado. Eu iria perder. Por que não derrubaria a estante em cima de você? Dê uma razão.

Meneei minha cabeça em negativa, e sorri. Quase me danei toda me esquivando de todas aquelas armas caindo em cima de mim. Ela era a pessoa mais aguerrida que já conheci e a mais petulante. Que a Divina Graça nos protegesse, pois eu poderia ordenar que ela não fosse, agora que era a soberana, mas como faria isso sem desrespeitar minha própria mãe e sem agredir as nossas leis?

Saímos da sala e eu estava mancando. Minha mãe quis que fossemos a seu quarto para fazer uma tala. Recusei. Tínhamos perdido tempo demais. Entramos na sala do comando e papai, Arítes, Gwinter, Hian, Tétis, Mardox, Averge e Cutter, estavam discutindo em volta de uma mesa com mapas abertos sobre ela. Quando nos olharam, Arítes veio a meu encontro.

– O que aconteceu, Tália? Por que está mancando? Por que está com a calça rasgada? – Perguntou alarmada.

Franzi o cenho e olhei de cara feia para minha mãe. Ela se colocara ao lado de Gwinter e papai, me olhando imparcial.

– O que aconteceu? Sua sogra que aconteceu para mim, hoje. Ela quer seguir em campanha com o exército e resolveu dar uma surra na rainha e filhinha querida dela.

Gwinter gargalhou, levando todos, menos meu pai, a rirem junto.

– Êlia, o que está pensando? – Meu pai perguntou. – Você enlouqueceu?

Minha mãe abanou a mão, impaciente.

– Tália está fazendo drama. Não há nada demais em seguir com o esquadrão vinte e dois. Ele ficará na retaguarda e não tirarei a autoridade do general de esquadrão. Minha neta está nele e, se a conheço, precisa de alguém para colocar freios. Quer que Brenna siga, sem ter alguém de nós a olhando?

– Então serão dois a seguir com o esquadrão vinte e dois.

– Eu não acredito. Vocês dois enlouqueceram? – Falei indignada. – Quem ficará em Eras? Não podemos ir todos!

A mesa inteira olhou para mim em uma mudez incômoda. Demorei a me atinar sobre o que estavam sugerindo, silentes.

– Ah, mas não mesmo! Acham que vou me esconder aqui dentro com o exército em marcha?

– Essa teimosia de Tália e Brenna é sua, Êlia. Agora aguenta.

Meu pai falou mal-humorado. Todos olharam para minha mãe.

– Não, Astor. A teimosia de Tália admito que pode ser minha, mas a de Brenna é da mãe dela e de Arítes juntas. Ela não vê a razão, mesmo que estivesse embaixo do nariz e com todos os ensinamentos que tem recebido, desde criança.

Os olhares se voltaram para mim e para Arítes.

– Ei! Não me coloquem nessa discussão de vocês, não. Eu tenho a cabeça muito no lugar. Essa obstinação é da família de vocês. Se Tália tivesse deixado eu ensiná-la, como fui ensinada, Brenna não seria tão teimosa.

Olhei indignada para Arítes, diante da afirmação dela.

– Você queria colocar Brenna na sala de treinos com onze anos de idade, e fazer com ela o que mamãe fez com você! Acha que eu permitiria isso naquela idade?

– Ela quis entrar para a escola militar naquela idade, não foi? E você deixou. Por mim, ela só entraria mais tarde. – Arítes retrucou.

– Eu não a impediria de entrar. Você mesma ingressou no exército com doze anos, minha mãe com treze e meu pai na idade de Brenna.

– Então, por que estamos discutindo? Com dezesseis anos, eu já fazia diligências e com dezessete, liderava a diligência para Kamar. Ela é uma tenente responsável e conhece suas atribuições!

O sangue me subiu.

– Eu sei bem qual eram as suas atribuições nas diligências que fazia a Kamar, Arítes!

Minha esposa me olhou furiosa. O assunto tomava outra direção. Quando a gente começa a se irritar, parece que paramos de pensar racionalmente. Meu pai interrompeu.

– Já chega! – Bateu na mesa.

Eu estava bufando, mas voltei à minha razão.

– Tem razão, pai. Vamos parar de lavar roupa suja aqui na sala do comando. Estamos à beira de uma guerra e tendo discussões familiares. – Falei num tom severo. – Sou teimosa. Brenna, mamãe, Arítes e o senhor não ficam longe. A única que pode abusar da insensatez é Brenna, por conta da idade e, não nós. Alguém vai ter que ficar em Eras! – Falei, alterada. – A família inteira não pode seguir. Não podemos deixar o governo sem alguém de nós.

****

– Eu juro, Êlia, que um dia vocês ainda se darão mal com as artimanhas de vocês. – Meu pai bufava.

– Foi consenso, Astor. O que eu posso fazer?

– Você chama aquilo de consenso? Todo o comando se absteve do voto, pois não queriam se meter com uma pendenga familiar. Minha própria filha e minha mulher votaram contra mim. Fui vencido por dois únicos votos. Seu e dela e, mesmo assim, porque você deu uma surra nela mais cedo de invejar ao demônio Tevé. Você sabe que deveríamos obrigar Brenna a ficar. Ela é jovem e é quem herdará o trono. O que farei se algo acontecer?…

– Tudo bem. Se você conseguir convencer sua neta a ficar, eu fico. Sei que posso auxiliar no comando e na estratégia, mas sei que não sou mais uma garotinha e não tenho mais disposição para as refregas, no entanto daria a minha alma para protegê-la. – Deixou relaxar os ombros antes de entrar no quarto, acompanhada de meu pai. – Astor, eu e Tália somos passionais. Você é quem tem a cabeça no lugar da nossa família.

– E o que acha que farei com a minha cabeça no lugar, se perder vocês? – Falou sussurrando, com pesar.

A rainha Êlia se aproximou de meu pai e beijou seus lábios, suavemente, segurando suas mãos, fazendo-o cingir sua cintura. Apartou o rosto, mirando seus olhos, que estavam pesarosos e, respondeu sem muito ânimo.

– Casar com uma mulher mais nova e ter filhos para continuar a linhagem de Eras e do lago, ou deixar o trono para seu afilhado.

– Para, Êlia. Isso não é brincadeira. – Ele se separou dela, aflito. – Você acha que essa é a resposta que quero ouvir? Não esqueça que meu afilhado também estará em campanha e não quero nenhuma outra mulher a meu lado, ouviu bem? Sabe que não podemos ordenar que Brenna não vá. Quebraríamos todos os nossos conceitos. Ela é uma oficial, e não podemos simplesmente dizer para que fique.

Minha mãe sentou na cama e deixou o corpo cair sobre o colchão.

– Uma coisa você tem razão, Astor. Essa teimosia vem da minha família. – Bufou.

Meu pai estava de pé no meio do quarto e olhou para ela. Via que seu semblante estava preocupado. Haviam passado por tantas batalhas e problemas e, agora, Kamar estava sendo sitiada. Um reino que sempre os apoiou. Se virou e tomou o rumo em direção à porta.

– Ei, onde vai?

– Você não disse que se Brenna ficasse, você ficaria? Eu não posso impedir que Tália vá. Ela é a governante de Eras, general e é seu papel ir junto com o exército. Mas eu posso tentar colocar alguma coisa na cabeça da minha neta. Não custa tentar, não é verdade?

Minha mãe sorriu leve, sem muita esperança. Pensou que, de todos da família, Astor era aquele que tinha a cabeça mais correta e algum senso.

– Adoraria se você conseguisse… Boa sorte.

– Prepare-se, Êlia. Depois que eu falar com ela, Brenna virá falar diretamente com você. Vai estar uma fera. Aí vai depender de você.

– O que você está pretendendo, Astor?

– Você não diz que tenho a cabeça no lugar? Não fui eu quem governou Eras durante tantos anos? Ensinamos Tália a governar e, sinceramente, hoje acho que ela é bem melhor do que nós o fomos, mas agora é hora de ensinar a Brenna. Eu vou iniciar uma guerra entre você e nossa neta e você vai ter que terminar a guerra, Êlia. Nada que uma comandante-general como você, não consiga. – Riu irônico. – Espere na sala de treinos. Ela vai procurar você lá.

A noite já caíra e as batidas fortes de meu pai na porta do quarto de minha filha, eram firmes e secas. A porta se abriu e o rosto de semblante tranquilo, cabelos castanhos e olhos azuis cristalinos, apareceu sorridente.

– Vovô! – Se apressou em abraça-lo. – Estava com saudades. Vocês chegaram hoje?

– Voltamos assim que sua mãe Tália mandou nos avisar da investida de Natust contra Kamar.

Meu pai adorava a neta e se derretia sempre com ela. Devolveu o abraço, cingindo-a completamente.

– Precisamos conversar, Brenna…

Minha filha se apartou com visível contrariedade.

– Pode parar por aí, vô. A rainha Tália já veio me cercar e a comandante Arítes da mesma forma. Eu faço parte do exército e não vou me esquivar de minhas responsabilidades. Que respeito eu terei depois, se ficar aqui com a bunda pregada em alguma cadeira do castelo? – Falava impaciente.

– Não é isso, Brenna. Eu preciso da sua ajuda em outro assunto. É ligado a você, mas, na verdade, é muito mais delicado e ligado a sua avó.

– A vovó? O que aconteceu com a vovó?

Brenna perguntou alarmada. Minha filha era voluntariosa, mas seus avós eram as pessoas que ela mais amava no mundo, além de mim e Arítes. Às vezes, eu chegava a ter ciúmes dessa relação, achando que ela amava mais meus pais do que a nós, que éramos suas mães.

– Vamos para a biblioteca. Quero lhe contar algumas coisas que ocorreram, enquanto você estava no esquadrão, hoje à tarde. Digamos que é um assunto de estado.

Meu pai se virou, sem esperar que ela retrucasse, ou quisesse saber mais detalhes. Se dirigiu à biblioteca, entrou, deixou que Brenna passasse e trancou a porta com o ferrolho. Pegou uma jarra de vinho, que havia levado para lá antes de bater à porta do quarto dela. Serviu calmamente dois cálices.

– Vô, o senhor não gosta que eu beba. O que está acontecendo? – Perguntou preocupada.

Ele sorriu, levemente. Seu semblante era introspectivo.

– É. Eu não gosto que você beba, pois é minha menininha e sempre será. Sua mãe Tália também era minha menininha, Brenna, e não pude impedir que ela crescesse. Hoje ela governa com sabedoria um reino próspero, enquanto eu fico me divertindo por aí com minha esposa. – Suspirou.

– Vô, está me deixando preocupada, o que houve?

Meu pai suspirou novamente. Estendeu o cálice para Brenna e tomou um grande gole de vinho do cálice de sua mão.

– Você, Tália e Êlia são as pessoas que mais amo na vida. Tália vai seguir na batalha, pois é general e governante de Eras. Justo. Você vai seguir com o exército, pois é tenente e está assumindo seu dever. Também é justo. Mas minha esposa não precisaria ir e, pelo bendito sangue de vocês “Guardiãs”; teimosas, aguerridas e maravilhosamente nobres, vou ter que ficar com a “bunda cravada numa cadeira aqui em Eras”, orando para a Divina Graça, para trazer de volta as três mulheres mais importantes da minha vida. Isso eu não acho nenhum pouquinho justo.

– O que? Minha vó quer seguir conosco?!

Meu pai olhou para Brenna, dramático, e verteu o restante do vinho, bebendo em um só gole. Vocês não estão entendendo. Por isso que minha mãe e eu, sempre que não tínhamos mais saída, nos surpreendíamos com a sagacidade do rei Astor. Ele era astuto. Não peitava, mas sabia jogar os pauzinhos direitinho. Nessa hora, ele colocou minha mãe numa encrenca do inferno das covas de lava. Ao mesmo tempo, ele conhecia nós três como ninguém. Sabia que ia provocar uma guerra interna em nossa família, levando minha mãe e minha filha a travarem uma batalha, que talvez acabasse num impasse. Ele só tinha uma única certeza, que não contarei agora, mas vocês verão.

– Pois é. Ela disse que não admitiria ser contrariada. Passou por guerras e não deixaria sua filha e neta, sem o seu apoio. Disse que pode auxiliar na estratégia.

– E minhas mães estão deixando? Eu não acredito!

– E o que acha que suas mães poderiam fazer, Brenna? Elas poderiam impedir, por exemplo, você de ir?

– Não é a mesma coisa! – Esbravejou.

– Ah, não? E por quê?

Minha filha o olhou e viu sua indignação nos olhos, como se ela o tivesse agredido através de suas palavras. Ela não poderia falar que Êlia Renoir de Cadaz e o rei Astor de Eras, não poderiam atuar como comandante e como rei, só porque estavam com mais de cinquenta anos. Independente de eu, Tália Renoir de Cadaz e Eras, ser a atual soberana e minha esposa Arítes de Eras e Eras, ser a atual comandante dos exércitos, nossa conduta moral, não permitiria sobrepujar a autoridade instalada de meus pais.

– Desculpa, vô. – Ela caiu sobre a poltrona que estava atrás de si. – Não quis insinuar nada, só… Só estou chocada com a atitude da vovó.

– E você esperava outra coisa de sua avó? Até parece que não a conhece.

– Ela é… ai, às vezes tenho vontade de matar minha mãe Tália e minha avó! Minha mãe Arítes também, não fica atrás… – Bufou e deglutiu todo o conteúdo de sua taça de uma só vez.

– Ow, wow! Te dei vinho, mas não vira assim, na minha frente! – Meu pai ralhou.

– Desculpa, vô. Mas isso que o senhor falou me deixou sem chão. Por que ela quer fazer isso?

– Porque ela discutiu com sua mãe Tália, exigindo que uma de vocês ficasse. Tália falou que tudo que poderia fazer era conversar com você, pois como governante, não poderia ficar. Aí a briga foi feia. Chegaram a ir para a sala de treinos, disputar.

– O quê? Minha mãe está louca! Ela não bateu na minha avó, bateu?!

Meu pai franziu o cenho. Sabia que a neta conhecia a história de como Tália chegou ao alto comando e ela se orgulhava disso. Aliás, se orgulhava da história das duas mães. Recebeu os ensinamentos de Guardiã, tanto de Êlia, quanto de Tália. Apenas estava na idade de se afirmar e não queria que pensassem que ela galgaria posições, por conta de seu status. Queria alcançar prestigio por si só, tanto quanto sua mãe Tália, o fez um dia. 

– Eu acho que você não conhece Êlia direito, conhece?

– Minha avó bateu na mãe Tália? Não acredito! – fez cara de espanto.

– Bater não foi exatamente o que aconteceu. Digamos que chegaram num impasse. Sua mãe Tália chegou no comando, hoje, com os trajes rasgados e sua vó com hematomas. Aí a discussão se aferrou. Pois nessa hora eu estava lá, e acabara de saber que Êlia queria seguir na guerra.

Meu pai contou todo o resto, de um jeitinho insinuado. Ele perdeu no voto e se a guerra não as trouxessem de volta… haveria uma crise no reino.

– Eu vou falar com minha avó.

– Você? Minha neta, se conhece um pouquinho sua avó, sabe que estará com você no esquadrão vinte e dois.

– Isso é insano! Onde ela está?

– Agora? Na sala de treinos. Ela disse que ia desenferrujar um pouco.

Brenna nem se despediu de meu pai. Levantou-se e saiu à procura de sua avó. Meu pai sorriu vitorioso. E o pior, ele ainda jogou comigo. Depois que minha filha se foi, me procurou em meu quarto. Mas isso, deixemos para depois.

********

A comandante Êlia estava terminando de arrumar as armas na estante. Quando meu pai pediu para ela esperar lá, resolveu arrumar a bagunça que tínhamos feito. Encaixava a última lança, quando escutou ser chamada.

– Vó!

Ela se voltou e viu Brenna caminhar em sua direção. Sorriu, como se nada soubesse da conversa com seu marido, Astor. Na verdade, não sabia do teor da conversa, mas esperava uma explosão. Esperaria a neta falar, para se inteirar e lidar com a situação em que meu pai a colocara. Não podia reclamar, afinal ela o colocara em uma posição muito pior. Ficar no castelo, vendo seu marido, filha e neta ir à guerra, não era para minha mãe, mas ela soube empurrar, direitinho, essa função para meu pai e tinha que segurar o troco.

Andou em direção da minha filha e a abraçou, antes que ela expressasse qualquer coisa.

– Oi, meu amor! Como me encontrou? – Se apartou nos braços de Brenna, ainda a segurando pela cintura.

– Vó, o que a senhora está querendo fazer?

A comandante Êlia franziu o cenho e mirou diretamente os olhos de Brenna. Viu que a neta tinha um semblante preocupado e sério.

– O que Astor andou falando para você?

Parte – 2

– Meu avô falou da loucura que você quer fazer, vó. Eras não pode ficar só e minhas mães e eu, temos compromissos; a senhora não tem mais o compromisso de seguir com o exército!

Minha mãe arqueou as sobrancelhas, colocou suas mãos para trás e se calou, séria, apenas olhando Brenna. Essa postura que minha mãe assumia, costumava me deixar desconfortável até hoje, imaginei o que causou na minha filha. Mas Brenna era peituda. Não costumava demonstrar seu medo, mesmo que estivesse se borrando.

– Como é? Agora você e Tália resolveram decidir o que são, ou não, meus compromissos? – Falou com o tom grave e baixo.

Brenna cerrou, ligeiramente, as pálpebras e abriu, inspirando profundamente. Ficou vermelha, por saber que não poderia retrucar, pois era o direito de minha mãe. Tentou acalmar o sangue que fervia, consciente que se falasse de forma assertiva, não conseguiria convencer a comandante Êlia.

Confesso que nesse quesito, minha filha tinha mais tato que eu. Herdou o melhor e o pior de mim e de Arítes. O sangue quente da minha linhagem, e a têmpera da linhagem de Arítes. A minha obstinação e, por vezes, o coração duro, irritantemente severo de Arítes. Estava na plena adolescência e, me pegava imaginando como isso deveria ser conflituoso dentro dela. Tempos mais tarde, pensei que minha mãe e meu pai foram perversos ao submete-la a esse conflito.

– É seu direito, mas não é sensato, vó. – Falou seca.

– Mmm. Bom, pelo menos você admite que posso ainda tomar as rédeas de minha vida. De qualquer forma, é questionável seu discurso sobre sensatez.

Minha mãe se virou para a estante, displicente. Pegou um par de takubi em uma mão e uma espada na outra. Brenna estava se segurando para não estourar com minha mãe. Apesar de travar um combate verbal com a comandante, sua vontade era de rachar a cabeça da avó e colocar as suas ideias lá dentro.

– Qual a arma que mais gosta, além do arco, Brenna? Eu a observei algumas vezes com o arco e fiquei feliz ao ver que tem uma técnica excelente, parecida com a minha e de Tália.

– O arco é a minha arma, mas no combate corpo-a-corpo, gosto da espada. Não sou mal com o takubi, mas prefiro a espada.

– Tália prefere o takubi para combate corpo a corpo e eu prefiro ter uma espada na mão. Sua mãe Arítes é ótima com uma lança, usando como um cajado, no combate, mas a preferida dela também é a espada.

– Eu sei o que está pretendendo, vó. Eu não vou me engalfinhar com você nessa sala. Sei que perderia. Eu sou só uma tenente e sei das minhas limitações.

Brenna suspirou, certa de que perderia na argumentação, mas resolveu tentar convencer sua avó por outros meios e continuou a falar.

– Um dia, num treinamento do exército, o alto comando se agrupou para fazer demonstrações e treinar individualmente com nosso esquadrão. Não faz muito tempo isso. Nós escolhíamos os generais que lutariam conosco. Escolhi minha mãe Tália, pois meus amigos brincavam comigo e queriam ver um combate meu com uma de minhas mães. Ela me quebrou toda. Vovô falou que vocês se pegaram hoje aqui e ela perdeu para você. Não vou contestar a sua capacidade bélica em detrimento da minha.

– Então por que quer me convencer a ficar aqui? Acho bom você ser rápida, pois ao amanhecer marcharemos. – A comandante Êlia retrucou.

 – Vó! Eu e minhas mãe estamos indo, vovô ficará aqui sozinho. Por que você e minhas mães não querem deixar que eu siga com meu destino naturalmente?!

Expressou todo seu desespero. Minha filha era esperta. Apelava para o lado emocional.

– Isso também é discutível. Se falarmos em termos de destino, que não sabemos qual é o de cada um, realmente, você seria a primeira a ter que ceder. É a mais jovem, e quem herdará o trono. Veja bem, Brenna. Se algo acontecer comigo, eu já cumpri muito do meu papel aqui nesse chão e apenas oro a Divina Graça para que a proteção da Senhora das Águas esteja comigo. Se algo acontecer a todas nós, seu avô ainda poderá ter uma família e Eras estará em boas mãos com a sabedoria dele.

– E o clã das Guardiãs? Terminará?

– Diga-me você. – A minha mãe arqueou as sobrancelhas. – Eu não posso ter mais filhos. Apenas você e Tália poderiam ainda perpetuar nosso clã.

Nesse momento, minha filha titubeou. 

– Pensando estrategicamente, é uma pena que você seja uma Guardiã tão experiente, vó. Que merda!

Brenna falou irritada e nesse momento, minha mãe não conseguiu se conter. Ela gargalhou, fazendo minha filha virar de costas. A comandante Êlia tinha consciência da importância pessoal que a batalha significava para minha filha e lhe doía. Ela sabia o que era para uma Guardiã, ser castrada de suas ânsias e seus impulsos. Mas pensou que talvez ela se sentisse melhor se visse determinadas razões.

– Eu lhe faria uma proposta irrecusável para o combate, mas você não quer nem tentar…

***

Eu entrei em meu quarto e Arítes já estava tirando seu uniforme para se banhar. Iríamos sair ao amanhecer e eu nem havia comido nada. Depois da discussão na sala do comando, montamos a estratégia e fui conversar com os conselheiros. Observei a forma calma de Thara, a pupila de Tórus, lidar com as questões. Minha mãe tinha razão. Thara era muito mais parecida com Tórus, na forma de pensar, do que os outros conselheiros. Só tinha um “quê” diferente; ela era mais assertiva.

 Havia feito dezoito anos há bem pouco tempo, tinha crescido sob a orientação do tio de minha esposa. Desde os onze anos ela acompanhava Tórus e lia os milhares de pergaminho da biblioteca do reino. Seus pais haviam percebido nela um “dom diferente”. Mesmo sendo camponeses, viram que a garota desde criança, era muito mais avançada para a sua idade na escola, do que as outras crianças e resolveram procurar ajuda, na casa de sábios do reino. No dia, Tórus se encontrava em uma discussão dialética com os estudiosos e se encantou com a perspicácia da menina e com a incrível facilidade que tinha em discutir assuntos tão complexos na tenra idade. Se tomou de amores e abraçou a educação dela para si, já que seus filhos quiseram seguir outros caminhos. A sua esposa adquiriu um carinho especial, pois sempre quis ter uma filha e assim, Thara veio parar tão jovem na sala do conselho, em um momento tão delicado em que Eras estava envolvida.

A pupila de Tórus era dona de uma beleza exótica. Caracterizava sua linhagem atribuída ao povo do fogo pelos cabelos ruivos e os olhos amarelos. Tinha-os ligeiramente puxados e, a pele era tão branca quanto a uma pena de uma pomba real. Olhei para minha amada esposa, de pele amorenada, e conclui que apesar de Thara ser bela, nunca chegaria a chamar minha atenção. Era apaixonada pelo tom de pele moreno de minha esposa e me perdia, sempre que a olhava, nas nuances de seus traços. Suspirei, chamando sua atenção, que se voltou para mim, nua em pelo. Ela ainda estava aborrecida comigo pela discussão mais cedo no comando, mas acreditei que meu olhar era de paixão e que denunciava todo o meu amor através dele, pois ela ficou parada, estática, e desmanchou o semblante pesado que trazia no rosto.

– Ah, Tália! O que eu faço com você? Não podia ter pegado mais leve?!

Andei ao encontro do corpo dela e a cingi pela cintura. Beijei de leve seus lábios e expirei o ar de meus pulmões, demonstrando visível cansaço.

– Me perdoa, amor. Às vezes sua sogra ainda me tira do sério. Não entendo como, depois de tanto tempo, ainda me surpreendo com ela.

– Sua mãe e minha comandante… – falou irônica – … ainda faz a gente parecer duas garotinhas. Ela dá nó em rabo de cobra e tenho certeza que será assim até o dia que alguém de nós descansar nos braços da Divina Graça.

Arítes me apertou mais em seus braços e deu um sorriso sacana. Esta mulher mexia comigo, mesmo depois de tanto tempo. Estremeci em seus braços e senti uma umidade em meu sexo. O que eu podia fazer? Ela estava completamente nua e colada a mim.

– O que foi? – Perguntei para dissipar meu ímpeto de jogá-la na cama.

– A Brenna vai se danar. Agora eu quero ver ela lidar com a avó. – Gargalhou.

– Que maldade, Arítes. Brenna não é nenhuma louca irresponsável! – Bati no braço de minha esposa, rindo. – Ela só está na idade de afirmação. Entendo-a de verdade. Eu com quatro anos a mais que ela, fiz tudo que fiz, pelo reino. Tinha certeza que nossa filha não deixaria sua responsabilidade, com o exército, para trás. – Suspirei.

– O problema, meu amor, não é a responsabilidade e sim a impulsividade. Há anos que não vemos as “Senhoras dos Reinos”, pela paz que se instalou em Tejor, mas pela Deusa! Brenna é a nossa sucessora e é uma Guardiã. Queria que a Senhora das Águas ou a Senhora da Floresta aparecessem só para colocar alguma razão na cabeça dela.

– Pois para mim, estou pouco me importando com isso. Ela é minha filha e é o suficiente para que não a queira dentro dessa guerra! O povo do norte é aguerrido e estão desesperados. São orgulhosos demais para largar uma rivalidade de séculos e fazer acordos. Podem estar com o corpo enfraquecido, mas o espírito deles e o desespero, podem fazer dessa guerra um tormento.

Larguei o corpo de minha esposa para me distanciar. Não sabia como resolver esta situação e iria para guerra com a cabeça no esquadrão vinte e dois. Minha mãe e minha filha estariam fora do alcance de meus olhos e isto me angustiava. Arítes me puxou de volta e antes que eu pudesse protestar, me beijou amorosamente. Não demorou para que reagisse ao seu sabor. Precisava do carinho dela e meu corpo acendia em seus braços.

– Vem. Toma banho comigo e vamos relaxar que a gente consegue pensar melhor.

Atendi ao seu pedido e nosso banho foi permeado de carinho e entrega; quando vi, já estava na cama sob o corpo de Arítes. Seus lábios passeavam pela minha pele e tomavam meu seio de assalto. Gemi pelo imenso prazer que a sua boca causava, sugando a aréola. A língua resvalou, lambendo o bico túrgido e passando para o outro, não dando tempo de qualquer dos dois, sentirem-se órfãos. Minha pele arrepiou e gemi forte. O líquido de meu prazer escorria, livre, pelas minhas coxas me fazendo pressionar as duas, tentando aplacar a dor do prazer em meu sexo.

As mãos de Arítes vasculhavam, cuidadosamente, cada porção de pele que encontrava, me levando a outro gemido alto. Essa mulher era meu paraíso e meu suplício. Ansiava terrivelmente por seus lábios entre as minhas pernas, para aplacar a agonia da espera do gozo.

– Por favor, Arítes…

Sua mão descia por minha coxa, enquanto sua boca, em meu ventre, bebia de mim, aumentando o desespero instalado em todas as minhas células.

– Vai, Arítes!

A urgência de minhas palavras fez com que ela reagisse, gemendo em igual intensidade e descendo em beijos miúdos, até alcançar meu clitóris e segurá-lo, perversamente entre os dentes, me levando a loucura. A língua quente, penetrou minha entrada e resmunguei, na incapacidade de expressar outra coisa qualquer. Minha mente se encontrava em um estado de desorientação e apenas os meus sentidos, faziam meu corpo reagir. Ela burilou o clitóris com a ponta da língua, fazendo todo meu corpo retesar diante do estímulo intenso. Não conseguia mais segurar e quando Arítes me assaltou com seu dedo me penetrando, veio a descarga de toda tensão acumulada desde que começamos a fazer amor.

Meu corpo estava lasso e jogado na cama, sem reação. Senti o beijo, acalentador, em minha fronte e abri, débil, minhas pálpebras. Sorri. Estendi minha mão e retirei uma mecha do cabelo castanho que lhe caía sobre os olhos. Ela estava deitada sobre mim e suspirou, com um leve sorriso bordando seus lábios. Ah! Como eu a amava! Comecei a perceber o corpo quente jogado sobre mim e elevei minha coxa para encaixar entre as suas, iniciando um bailado, forçando seu sexo. Ela gemeu alto, jogando a cabeça para frente e escondendo-a entre meu pescoço e meu ombro. O líquido viscoso dela escorria, proporcionando a incrível sensação de deleite. Minha coxa deslizava com facilidade e ela movimentou a pelve, tentando aumentar a pressão e seu prazer. Normalmente fazia amor com ela com calma, para extrair todo o sentimento que podia dessa maravilhosa mulher, mas hoje eu estava com meu sangue agitado e louca para vê-la gritando meu nome. Sem aviso, introduzi meu dedo e movi dentro de sua cavidade quente. Ela gritou e pude escutar meu nome como eu queria. Ensandeci. Aumentei o ritmo colando meus lábios ao dela e não demorou muito a sentir meu dedo preso em suas paredes, numa contração espasmódica e Arítes retesar-se diante do gozo. Desabou diante de mim e antes de me retirar de dentro dela, ouvi batidas apressadas na porta.

 – Merda! – Exclamei e minha esposa sorriu ainda sem forças.

– Vai lá, Tália. Não temos a opção de ignorar hoje.

Essa era minha amada esposa. Sempre ponderando, mesmo que estivesse incomodada com a interrupção.

– Eu vou, mas se a guerra não tiver chegado, quem quer que esteja batendo, vai ter o nariz quebrado com a cara na porta. Eu ainda nem almocei e já são nove da noite!

Levantei e joguei uma bata por cima, deixando Arítes se enrolar no lençol. Abri a porta e meu pai estava de pé com olhos aflitos.

– O que houve pai? Espero que o castelo esteja pegando fogo, pois não comi nada o dia todo e pretendo descansar. Amanhã sairemos às quatro da manhã.

Ele olhou minhas vestes mal colocadas e só elevou a sobrancelha como quem dissesse: “Sei que fome você estava matando”. Fiquei mais irritada e antes que pudesse soltar os bichos, ele abanou a mão e se apressou em falar.

– O castelo não está pegando fogo, mas a sala de treinamento está. Sua mãe está com sua filha lá. Não quis ficar para ver quem estava batendo em quem, mas posso apostar que não é Êlia que está apanhando. Vim direto falar com você, pois se eu interferir é capaz de ficar viúvo e sem neta. Minha vontade é de matar as duas!

– Que merda! Minha mãe está perdendo o juízo e a sensatez?

Arítes chegava por trás enrolada no lençol. Acredito que tenha ouvido meu pai falar e parecia que não acreditava nas palavras dele.

– Não acredito. A comandante Êlia tem bom senso e Brenna pode ser impulsiva, às vezes, mas não cairia numa provocação da avó a esse ponto.

– Eu também achava isso, Arítes, mas não foi o que eu presenciei ainda há pouco.

– Vocês dois sigam para a sala do conselho, antes chamem Thara e mande-a seguir para lá também.

– O que vai fazer, Tália?

Arítes perguntou e eu já estava colocando meu uniforme para seguir para a sala de treinos.

– Não se preocupe. Confie em mim. Eu vou resolver isso ainda esta noite, ou não sou a rainha de Eras e Guardiã dos escritos sagrados.

Terminei de me vestir e saí apressada.

 ****

– Vocês podem me dizer o que está acontecendo aqui?!

Gritei para que ouvissem, pois as espadas se tocando faziam um som alto, ecoando pelas paredes de pedra. Elas pararam e me olharam, Brenna assustada e minha mãe contrariada. Minha mãe baixou a espada e encarou meu olhar raivoso.

– Nada demais, Tália. Estou treinando com minha neta, não posso?

– Não me tire por burra, mãe. Não foi isso que meu pai falou. Além de todas as loucuras da tarde e da teimosia de seguir em campanha, deu para mentir agora, também?

Seu rosto se tornou sério e endurecido. Ela só esqueceu de uma coisa, aprendi a lidar com sua postura e não me retraía mais. Continuei com meu olhar severo na direção das duas.

– Não estou mentindo, Tália. É uma questão de perspectiva. Quantas vezes eu e você viemos para cá, ao longo de nossas vidas?

– Não me interessa! – Esbravejei e não a deixei continuar. – Quero vocês duas, agora, na sala do conselho! E não demorem!

Virei e saí, caminhando a passos largos. Percebi que era seguida e não me dei ao trabalho de olhar para trás. Quando entrei na sala, meu pai, Arítes e Thara já estavam presentes. Meu pai sentava à cabeceira. Olhei-o séria e ele não entendeu meu recado, através do olhar. Tive que colocá-lo no lugar.

– Pai, o senhor poderia sentar em outra cadeira. Se não reparou, Thara está aqui e isto não é uma reunião familiar.

Todos me olharam e a única que continuou com o semblante sereno foi Thara. Ela ainda não conhecia profundamente a todos nós. Estava ali numa posição de substituta de seu mestre adoentado e, raras vezes, via a todos, pois não costumava circular pelos corredores, se atendo a sala do conselho e a biblioteca em seus estudos.

Minha filha estava assustada com a minha reação. Dava para ver na expressão de seu rosto, pois nunca me viu tão contrariada. Eu não costumava ter estes arroubos com ela. Eu era completamente cativa do coração de Brenna, e em poucas ocasiões, ela me tirou o tino. Quem de nossa família, normalmente, a trazia para o juízo, era Arítes. A educação de minha esposa foi um pouco mais conservadora, e sua personalidade prática, fazia com que colocasse as balizas necessárias na orientação de Brenna.

Às vezes penso que a história que envolveu este caso, ocorrido em nossa família, fez com que passasse a todos uma ideia de que nossa filha era uma doidivana, o que não é verdade. Brenna tinha a cabeça no lugar, mas estava constantemente em conflito com o sangue quente da nossa casta de Guardiãs e a ponderação e incrível senso de responsabilidade que assumiu no exército. Ela era apaixonada em determinados momentos e terrivelmente dura em outros.  O conflito interno no palácio e na família quem fez fomos nós, por não querer que ela fosse à guerra tão nova e inexperiente, com todo o borbulho de seu sangue a correr em suas veias. Tínhamos agora a consciência dos erros de nossa educação. Eu deveria ter deixado Arítes treiná-la, mas supervisionando para que minha esposa não exagerasse, como minha mãe fez com ela. Isso foi o que me levou a impedir esta atividade tão natural em nossos clãs, que era aprender a lidar com as armas.

Meu pai se levantou, constrangido por eu ter chamado sua atenção e sentou-se à minha direita. Minha mãe me observava e vi um pequeno sorriso em seus lábios, direcionados a meu pai. Poderia ser um sorriso de escárnio, mas não foi o que vi em seus olhos. O que vi foi um olhar de aceitação. Estranho, muito estranho vindo da comandante Êlia. Ela se dirigiu à mesa, se sentando à minha esquerda. Arítes sentou ao lado de meu pai e, quando Brenna caminhava para sentar-se ao lado de minha mãe, Thara se dirigiu a ela.

– Tenente Brenna, sente-se na outra cabeceira. Eu ficarei de pé, pois se fui chamada, acredito que a rainha Tália me conte algo, para intermediar alguma questão do estado.

Minha filha e Thara me olharam, para saber minha posição.

– Assim é, Thara. Sente-se a cabeceira, tenente Brenna.

Falei com a mais completa seriedade a instrução de seu cargo, para que não houvesse dúvidas a respeito de minhas atitudes e decisões. Enquanto sentava em minha cadeira, vi Thara colocar a mão sobre o ombro de minha filha, direcionando-a, delicada, até a sua cadeira. Elas se miraram por breves segundos. Observei que o olhar de minha filha passava da apreensão para a calma em segundos. Sacudi minha cabeça.

“Não, Tália, não é isso que está enxergando. Você está vendo coisas e é muito maldosa”.

Esse foi meu pensamento, ao perceber que Thara, o poço de imparcialidade que costumava ver, se desconcertou ao voltar seu olhar para mim e compreender que eu vi candura em seus olhos, depois de interagir com minha filha. Aprumou-se e se dirigiu a mim, séria.

– Pois não, rainha Tália, o que deseja de mim?

Ela perguntou e aí, eu tive certeza dessa interação. Não existiam esses salamaleques, a não ser quando necessário. Thara costumava me chamar de Tália, pois eu mesma deixei isso totalmente claro para ela. Olhei para minha mãe, pai, e Arítes. Acho que não foi só eu que vi. Todos estavam olhando para a mesa, com os olhos cinicamente sorridentes, apesar de seus rostos demonstrarem seriedade. Contive-me para não rir. Minha família era a coisa mais sacana do mundo. Nos engalfinhávamos, nos amávamos e nos divertíamos muito.

– Então, conselheira Thara…

Relatei todo o ocorrido desde que a Tenente Brenna resolveu não aceitar a oferta de que mudasse de esquadrão para que estivesse sob a nossa tutela. Contei, também, sob juramento sagrado que a conselheira prestou, o que era o clã das Guardiãs e tudo que envolvia a situação. Discorri sobre as atitudes de minha mãe, para tentar estar ao lado de Brenna em batalha e por fim, perguntei:

– Conselheira Thara, diante de tudo que ouviu, peço que sua sabedoria avalie a minha atitude deste momento. Vou proibir que minha mãe, comandante Êlia Renoir de Cadaz e minha filha, Brenna de Cadaz Eras e Eras, sigam em campanha. Existe algum empecilho, seja legal ou moral, para que não tome esta atitude? Não quero ser arbitrária e ir de encontro aos nossos costumes e leis e nem interferir no pleno direito da comandante e nem da tenente, mas a situação extrapolou as linhas familiares e agora está na esfera da conduta.

Thara escutou toda a explanação com serenidade, virou-se para a estante, passando seus olhos em escrutínio, enquanto todos à mesa a observavam. Estendeu a mão, pegando um pergaminho, calmamente, desenrolou e começou a ler.

– “Entenda-se por atos sublimes e desinteressados para a plena sabedoria de governar: O governo está além do nosso gozo pessoal. Cabe ao soberano, decidir qual o rumo da nação, favorecendo seus súditos em detrimento aos ganhos pessoais”. – Virou-se para Brenna. – Tenente, pelo que a rainha Tália falou, você é a única herdeira do trono e a única da casta das guardiãs na descendência. Seria prudente que ela deixasse você seguir em campanha, com suas atuais habilidades em combate e, arriscando assim a sucessão do governo? Não falarei o que é o certo ou errado. Todos vocês têm suas razões e pelo que vi, a maioria é pessoal.

Ela nos olhou, e vejam, que olhou a todos sem distinção. A garota, apesar de nova, era corajosa. Ela continuou.

– No entanto, existe um benefício maior para o reino e para a terra de Tejor, além de todas as questões familiares, que você permaneça. Eu lhe pergunto, princesa Brenna: o que você acha sensato e o que você decidiria se governasse no lugar de sua mãe?

Brenna a olhou intensamente. A fúria tomou seu olhar. Levantou-se e se dirigiu a porta, nos deixando atônitos. Antes de sair, pronunciou ainda de costas:

– Faria o que você está sugerindo, mas isso não quer dizer que gosto da decisão, ou que não me contrarie. Vocês todos armam e espero que, pelo menos, façam isso parecer digno para mim, pois se ficarei, terei que ter uma boa desculpa para meu esquadrão não achar que sou uma covarde!

Minha filha saiu nos deixando desconfortáveis e pensando o que faríamos dali para frente, em relação a ela. Eu a entendia e minha mãe também e, como a entendíamos!

– Então, Tália. O que dirá no comando para que ela não seja tratada como idiota por seus companheiros? – Minha mãe perguntou e concluiu. – Não estou dizendo que sua decisão foi errada, apenas que ela está numa situação delicada.

Suspirei. Estava faminta e dormiria pouco antes do alvorecer, depois de todo esse dia cansativo. Lembrem-se; tudo isso aconteceu ao longo de um único dia. Levantei resoluta, caminhando para a porta.

– Designarei oficialmente que ela seja a minha substituta no trono, com a tutela de vocês dois e, que Thara seja a sua conselheira pessoal. – Olhei para trás e completei, exausta. – Vocês me enfiaram nisso, agora aguentem. – Me dirigi diretamente à Thara. – E você não facilitou, Thara. Boa sorte, pois ela tem argumentos de dar inveja às Senhoras dos Reinos. Se vira, mas sinto que gostará do desafio. – Sorri.

Enquanto caminhava pelos corredores, pensava em tudo que ocorreu e, definitivamente, meus pais estavam por trás de tudo. Eu não era mais ingênua e os conhecia muito bem, depois de tantos anos. Só não sabia de quem tinha sido a ideia, pois dessa vez, acreditava que minha mãe estivesse mais que imbuída em seguir em campanha. Escutei passos atrás de mim e pela cadência, sabia que Arítes me abraçaria para caminhar a meu lado e mais uma vez, me dar o suporte de seu amor e seu carinho.

– Gostei de ver. – ela falou.

– O quê?

– Dessa vez não me deu trabalho. Não abri a boca para mediar nada que pertence a vocês. – Gargalhou.

Empurrei-a com o ombro rindo, sem graça. Ela tinha razão. Em todas as confusões de nossa família ao longo dos anos, normalmente quem resolvia era Arítes. Comecei a acreditar que éramos loucos.

– De quem você acha que foi esse estratagema para fazer Brenna ficar aqui? De meu pai ou de minha mãe?

Arítes ficou muda, pensando por instantes.

– Sinceramente, acho que dos dois. Sua mãe iniciou tudo e jogou a bola em fogo na mão de seu pai para ele resolver. Ele desesperado, soube muito bem como colocar a bola em brasa na sua mão, para saírem da situação como bons elfos encantados do reino de Tir.

Ela gargalhou, me levando junto em sua risada. Abri a porta do quarto e vi a mesa posta, lindamente, para saciar meu estômago.

– Quando fez isso? – Perguntei animada e deliciada com a atitude de carinho de minha esposa.

– Quando, furiosa, ordenou a mim e seu pai para irmos para a sala do conselho. – Riu beijando meus lábios, brevemente. – Sabia que sairíamos tarde e não comeria nada até o amanhecer. Pedi para um menino-mensageiro falar com a cozinha para trazer o jantar para nós.

Me desvencilhei de seus braços, correndo para a mesa e atacando uma coxa assada de “aciori”.

– Pela Deusa! Como amo você! – Falava de boca cheia.

– Estou vendo. – Ela riu de meu jeito. – Vou jantar também, mas senta para comer, Tália.

Coloquei a comida em meu prato e Arítes vendo minha afobação, abanou a mão para que continuasse a comer. Serviu-se de uma porção e depois de algumas garfadas, olhei-a, sorridente.

– O que foi aquilo de Thara? Ela nem conseguiu disfarçar. – Ri.

– Só de Thara? – Gargalhou. – Nenhuma das duas conseguiu disfarçar e você não é fácil. Colocou a coitada para aturar o humor enviesado de Brenna durante estes dias. Sabe que a nossa filha saiu batendo o pé, porque justo a pessoa com que ela se encantou, colocou-a numa situação difícil, não é?

– E Thara não me colocou numa posição difícil? Que ela tome como um auxílio para estreitamento de laços.

– Hum, sei…

– Acha que Brenna já teve alguém ou uma relação sexual? Ela nunca me contou nada.

O silêncio de Arítes me incomodou.

– Não acredito que ainda tem segredos comigo, Arítes!

– Esse não era o meu segredo, era o de Brenna, Tália. Já discutimos isso várias vezes. Ensinamos a ela que a confiança é uma virtude. O que seria de mim se quebrasse essa confiança com ela?

– E o que tem demais eu saber que minha filha se relacionou com alguém?

– Não tem nada demais, só que ela tinha consciência que não amava o rapaz, mas se atraía e queria experimentar. – Arítes suspirou e pousou os talheres no prato. – Tália, ela conhece toda a nossa história e sinceramente, ela te admira muito. Ela é jovem e acho que sente que… que um dia quer lhe contar o que foi o seu verdadeiro amor. É isso que honestamente eu acho.

****

– Astor, desta vez você me superou e muito. Que raio foi esse de colocar Tália para mediar? Nunca imaginei que ela pudesse me interditar e a própria filha!

Minha mãe exclamou, assim que entrou no quarto, confrontando meu pai. Apesar da aparente calma na sala do conselho, ela estava bufando.

– Não me acuse de nada, Êlia. Você disse que se Brenna ficasse, você ficaria. Se eu deixasse vocês duas decidirem, isso não aconteceria nunca. – Sorriu. – Como tenho tranquilidade de deixar Tália no poder! Ela é peituda! – Seu riso ecoou no quarto. – A cara de Brenna foi imperdível. Só me preocupei com você, se não sairia com uma das suas, para se livrar da interdição. – Abraçou minha mãe por trás. – Deixe a inquietação da batalha de lado, Êlia. Agora temos Brenna para torna-la tão boa governante quanto Tália, ou melhor que ela. E você tem o dever de passar os ensinamentos de Guardiã.

Minha mãe suspirou e virou-se para meu pai, beijando-lhe os lábios.

– Tália está aí para isso. – Beijou-o novamente.

– Sabe que ela é melhor como rainha que como Guardiã. Já colocou Thara no caminho de Brenna. Viu aquilo?

Os dois gargalharam.

– Eu me senti como se estivesse nos vendo quando jovens, ou quando via Tália e Arítes naquela luta para se descobrirem. – Minha mãe falou. – Tália foi direta nessa.

– Que a Deusa tenha piedade da pobre coitada, enquanto essa guerra durar. – Respondeu meu pai.

– Que a Divina Graça tenha piedade de Tejor, e que a guerra não dure muito. Que aconteça o melhor para todos. – Conjurou minha mãe. – Se nós conseguirmos fazer nossa parte, Brenna, a “Guardiã da União”, começará a integração de todos os clãs. Não haverá mais quatro clãs e quatro etnias. O povo será um só! – Declarou minha mãe.

****

E assim, terminou a “batalha do sangue” da família “Eras”. Querem saber sobre a batalha do povo do norte contra Kamar? Ou sobre a “Guardiã da União”? Bom, isto são outras histórias que deixarei relatadas nos meus pergaminhos pessoais. Um dia, quem sabe, mostrarei a vocês.



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