Gringa Grudenta

17. Primeiros contatos

Um mês se passou desde a Algarve Cup.

Crista começara a fazer sessões de terapia nas quintas-feiras à noite (para o alívio da treinadora Moon, que não perde a oportunidade de fazer observações de como pela primeira vez a atleta a estava escutando e levando algo a sério) e não apenas isso, está à procura de um apartamento próprio já há algumas semanas. O que mais motiva ela na procura desse apartamento é a ideia de que finalmente vai poder ter um gatinho, seu sonho desde criança. Antes, não podia pela falta de dinheiro. Depois, por estar vivendo na casa de outras pessoas. Ah é, não depender mais de outra pessoa também soa ótimo.

Carmen a tem ajudado com isso de procurar um apartamento. Crista ainda não decidiu se quer comprar um ou alugar. Sabe-se lá até quando vai jogar pela Red Phoenix, afinal… não que esteja pretendendo sair tão cedo. 

A equipe tem jogado muito bem na reta final da temporada, tanto na Superliga quanto na Taça de Alter. É uma das quatro a ter chegado às semifinais da Taça Alter e continuam à frente das Royal Foxes na disputa pelo primeiro lugar da Superliga, sempre por uma quantidade ínfima de pontos separando ambas as equipes: desde o jogo que opôs as Royal Foxes e a Red Phoenix no começo do ano, ambas as equipes venceram praticamente todas as partidas, nunca dando paz uma à outra.

Um dos fatos que tem surpreendido Crista desde sua volta à Alter é o quanto Aglaia tem se aproximado. Começara com Lumia chamando Crista para sair com ela e seu grupinho de amigos mais vezes, até Aglaia passar a tomar a iniciativa no lugar da amiga, sempre acompanhadas no mínimo por Lumia e Jay, às vezes por outros amigos. Até mesmo Carmen e Flora já as acompanharam nessas saídas.

Imaginava que o que ocorreu em Portugal ficaria por lá, mas continua percebendo aqueles olhares de flerte de Aglaia vez ou outra. Se beijaram algumas outras vezes em momentos em que ficaram sozinhas, mas a loira continua a recusar as investidas de Crista quando elas começam a se tornar mais sexuais.

“Não consigo sacar qual é a dela”, é o seu confuso pensamento.

Nesse momento, elas se encontram na frente do principal teatro da Universidade de Calisto, para aquela apresentação à qual havia sido convidada por Indigo Eliah algumas semanas antes. Por insistência de Carmen, haviam saído de casa muito antes do horário e chegaram adiantadas. Carmen e Flora usam vestidos simples casuais e permanecem de braços dados durante o caminho do carro até a entrada do teatro, enquanto Crista vem logo atrás delas em roupas bem mais casuais: regata cinza, shortinhos jeans e chinelos havaiana para lidar com o calor abafado que faz na capital.

É claro que Jaylene fora a única do apartamento a recusar a noite.

Um homem branco, alto e com jeito de importante chama a atenção de Crista, ao chegar no ambiente causando uma pequena comoção. As pessoas abrem espaço para ele como se fosse um leão prestes a atacar. Ele caminha, altivo e arrogante, pouco reconhecendo a presença de outras pessoas.

– Quem é? – pergunta Crista.

– Rudolf Phoenix – afirma Carmen, falando baixinho como quem confia um segredo.

– Não é flor que se cheire – completa Flora. Crista encara a garota das flores por longos momentos.

– Não entendi.

– Ele não é uma boa pessoa – experimenta Carmen. Ela percebe que Crista compreendeu pela expressão que faz.

– Por quê?

Carmen tira o celular do bolso, digita alguma coisa e entrega para Crista. Ela vê a tela do google tradutor.

“Rudolf Phoenix é o homem mais rico de Alter. Vamos apenas dizer que ele usa seu dinheiro para tentar influenciar demais a política e suas ideias realmente não são algo que eu toleraria. Ele também tem uma tonelada de processos judiciais por causa de fraudes, violações dos direitos dos trabalhadores, evasão fiscal, etc. Oh, aliás, ele também é o dono da Fênix Vermelha”.

– Então esse otário é o nosso patrão? – se pergunta Crista, encarando com raiva a parte que diz “violações dos direitos dos trabalhadores”. Ela não entende de leis, não sabe como sustentar seu argumento, mas tem certeza que muito do que seus patrões fizeram contra sua  mãe enquanto crescia era violação dos seus direitos. Carmen, que não entende o que ela diz mas sente a raiva em sua voz, assente.

– Ele, é… tem umas ideias bem malucas sobre “Alter deve ser feita para os alterianos em primeiro lugar”. Soa bem… xenofóbico para mim.

– É racista, e homofóbico, e transfóbico – replica Flora, com um tom de mágoa na voz. Carmen puxa a namorada para um meio-abraço, como se a tranquilizando.

– Sim.

– Que filho da puta. Ele não viu minha cor antes de vir me contratar não? – murmura Crista.

– Crista! Carmen! – uma voz conhecida, animada e que não pronuncia seu nome como uma gringa a chama. A brasileira se vira para dar com a única outra brasileira que conhece em Alter, Storm, de braços dados com sua esposa, Mirta. Ela veste um elegante terno branco, enquanto sua esposa traja um longo vestido roxo.

– Mirta! Há quanto tempo! – Flora dá um rápido beijo e abraço na esposa de Storm.

– Flora! Como você está?

– Vocês nunca mais nos chamaram para almoçar, assim eu fico magoada!

– Não esperava ver vocês aqui – diz Storm, sorridente, trocando um abraço rápido com Carmen e outro com Flora, antes de apertar a mão de Crista.

– Crista me mostrou esses dias que recebeu um bilhete de graça pra assistir a peça – conta Carmen, fingindo inveja – pensei que fazia tempo que não íamos ao teatro, mas agora ela fica se exibindo por ser “VIP”.

– Sou VIP memo ué. Ganhei bilhete de graça da estrela da noite – concorda Crista, presunçosa, e arranca risadinhas de Storm.

– Ei, acho que ainda não nos conhecemos. Prazer, eu sou Mirta – a mulher de cabelos rosas vem cumprimentá-la, sorrindo educadamente – minha esposa fala muito sobre você.

– Ah… olá – Crista aperta sua mão, olhando para Storm por cima dos ombros dela, insegura do que fazer – Crista.

Quando Mirta se distrai conversando com Flora e Carmen, Crista sorrateiramente escorrega para o lado de Storm.

– Véi, que que eu faço?

– Sobre o quê?

– Sei lá mano, aquelas coisa que eu falei. Eu peço desculpas? – Storm solta uma risadinha momentânea.

– Nah. Esquece aquilo. Faz tempo e eu prefiro que ela não saiba que aconteceu. Só não falar aquele tipo de idiotice de novo, nem sobre ela nem sobre ninguém.

Crista assente.

– Mano, a Carmen falou agora há pouco que o cara que é dono do nosso time é um puta babaca. É real isso aí?

– Ah. Sim, é verdade – Storm assente como quem sente dor – ele é tipo o nosso próprio Bozonaro de Alter. Ainda bem que aqui quase todo mundo acha ele um imbecil.

– Porra, mano. Bozonaro? Tá tirando, né?

– Não, ele é bem assim mesmo. Sempre diz umas coisas populistas sobre “Alter deveria ser dos alterianos”. Volta e meia solta alguma merda racista ou homofóbica e acha que é normal, manda uns papos clichês sobre “tradição” – ela faz aspas com as mãos – falando a verdade eu já cansei de sentir raiva dele, então eu só ignoro.

– Todas as melhores mina do time que ele memo é dono é preta ou sapatão, ou os dois! Só olhar pra nóis duas aqui! Que porra é essa véi!

– É, eu sei – Storm dá de ombros – acho que o que importa pra ele é a gente ser lucrativa. Se você reparar, vai ver que ele sempre fala horrores dos times da Red Phoenix, tanto do futebol masculino e feminino quanto outras modalidades, mas é sempre marketing, dá pra sentir o cheiro de falsidade de longe.

– Pau no cu do caralho!

– É…

Crista sente seu celular vibrar.

Aglaia

Hey gatinha ;*

Acabamos de chegar :3

Onde vcs estão?

Crista levanta o olhar para Storm.

– Como que eu digo “entrada”? Entrance

[…]

À sua direita senta-se Aglaia e, ao lado dela, Jay, Lumia e outros amigos do seu grupinho. À esquerda, vê Storm, sua esposa Mirta, Carmen e Flora. As luzes ainda estão acesas e as conversas tomam o salão lotado. Nesse momento, Storm explica a peça para Crista, cujo o título é “For the people of Alter”, que ela traduziu como “Pelo povo de Alter”. Durante a introdução da história, quando não há ninguém sobre o palco, um narrador de voz profunda explica como em tempos coloniais, Alter foi dividida ao meio pelas lutas independentistas e como uma certa raposa esperta foi quem reunificou o país, pacificamente, lançando as bases da democracia alteriana. Após um silêncio dramático, o lema dos partidários de Abigail Fox é citado: “pelo povo de Alter, por paz aos nossos filhos e prosperidade aos nossos netos”.

Um brasão de família no telão de fundo se torna cada vez mais luminoso. Crista não consegue deixar de notar uma semelhança entre a raposa laranja cercada por vinhas verdes e bordas douradas e o escudo das Royal Foxes.

– Abigail Fox é uma das maiores heroínas de Alter – explica Storm, traduzindo o discurso para a colega – quando as Treze Colônias dos Estados Unidos se revoltaram contra a coroa britânica, Alter foi a décima-quarta colônia, a que se dividiu entre revoltosos e lealistas. O Reino Unido estava ocupado com suas guerras na Europa e não pôde enviar reforços e, assim, Abigail Fox liderou sem apoio os esforços pela reunificação de Alter. Ela não queria guerra, por isso se recusou a engajar em massacres contra os revoltosos, operações ofensivas, prisões políticas. Ela era uma mulher forte, culta e carismática, mas acima de tudo, uma pacifista.

– E as Royal Foxes…? – indaga, incapaz de ignorar a similaridade do escudo do time com o brasão familiar pique nobreza exibido no palco.

– Sim, o time é nomeado em honra dela.

– Oh. Uau – quando Crista torna para o outro lado, dá com Aglaia a encarando e sorrindo igual uma idiota. Crista levanta as sobrancelhas para ela, tentando lê-la – então… seu time, Abigail Fox?

– Sim! Por isso o time se chama “Royal Foxes”! O nosso escudo é uma referência ao brasão da família dela! – Crista lentamente vira o pescoço para Storm.

– Cê sabe me dizer que que ela disse? Eu num saquei porra nenhuma – Storm ri e traduz para Aglaia, que fica com cara de tacho. Em seguida, traduz para Crista o que Aglaia havia dito.

– Aqueles leais à família de Abigail à época usavam peças de roupa laranjas para se identificar – explica Storm – por isso o uniforme das Royal Foxes é laranja. 

– Ah tá, achava que era só porque raposas são laranjas mesmo – murmura Crista. Storm solta uma risadinha.

– Talvez seja por isso que os partidários dela usavam uma faixa laranja – teoriza.

As luzes todas se apagam e Aglaia começa a tentar silenciar Jay e Lumia, que não param de conversar e rir em voz alta, fazendo “SHHH” furiosamente. Quando as cortinas se abrem e os holofotes se acendem, uma figura alta, esguia, de longos cabelos loiros e metida num longo vestido bufante se revela no centro do palco, apoiada a uma mesa de escritório, com dois outros atores mais ao fundo vestidos nas roupas vermelhas de soldados britânicos e carregando mosquetes falsos.

– Era maio de 1775 quando Abigail Fox recebeu as más notícias… – o narrador continua. Um quarto ator entra correndo no set, carregando uma carta, e a entrega à pessoa caracterizada como Abigail no centro do palco.

– Governadora Fox, uma mensagem do continente!

– Aquele é Indigo Eliah? – surpresa, Crista sussurra baixinho no ouvido de Aglaia, que assente – porra, ele tá interpretando uma mina!

Aglaia vira o rosto pra ela, levemente confusa, perguntando “o que disse?” com o olhar.

– Huh, he acts a womanHe plays a woman – se corrige Crista.

– They – corrige Aglaia. “Elu” – Indigo é não-binárie. 

– Ah. Ah tá, foi mal – Crista torna os olhos para a apresentação novamente. Pensando bem, faz sentido, não faz? Ela nunca teve muita certeza do gênero dele… delu, aliás. Fica um pouco confusa por um momento, se fazendo aquela pergunta, “o que elu tem lá embaixo, afinal”, mas chega à conclusão de que não é da sua conta e torna a atenção à peça.

Indigo Eliah recebe o envelope e o abre delicadamente. Anda de um lado para o outro, fazendo como se lesse a mensagem e, por fim, para de frente à audiência e anuncia, numa voz doce e grave, completamente diferente da sua voz mais rouca e aguda natural.

– As 13 Colônias do continente declararam guerra à Coroa Britânica – anuncia dramaticamente. O mensageiro e os dois soldados agem em surpresa e Abigail põe a mão no peito – eles declaram que muitos em Alter são patriotas, e rebelar-se-ão com eles! Oh Deus, por que nos joga tais aflições?

– Oh, não! – o mensageiro cruza um dos braços sobre a testa.

– O povo de Alter permanece unido! – anuncia um dos soldados, batendo com o pé no chão.

– Unido! – o outro reforça, também batendo o pé.

Nesse momento, quatros novos atores vestidos em roupas azuis da milícia norte-americana invadem o palco, os mosquetes apontados para os soldados britânicos e a governadora.

– Mãos ao alto, lealistas malditos! Nós somos o exército do povo alteriano. Rendam-se ou sofram as consequências!

– Nunca nos pegarão vivos! – os dois soldados britânicos apontam seus mosquetes contra os invasores, enquanto o carteiro corre para trás deles, aflição em seus olhos.

– Parados aí, traidores! – pelo outro lado do palco, outros três atores nas mesmas roupas azuis da milícia e vão se postar ao lado de Abigail, apontando suas armas aos milicianos rebeldes – vocês não representam o povo de Alter! Nós permanecemos leais!

– Morram, bastardos!

– Morram!

As armas disparam fumaça e, um a um, os soldados caem no chão, simulando ter sido feridos, enquanto Abigail se abaixa atrás da mesa e grita por socorro. Ao final do tiroteio, ela é a única ainda viva. Abigail se levanta de trás da mesa, carregando uma expressão mortificada no rosto, e caminha entre os corpos mortos dos soldados e do mensageiro.

– Oh, Deus! O que é essa violência? Esse derramamento de sangue desnecessário? Será um mero desacordo tudo o que é preciso para transformar bons homens em bestas selvagens, em assassinos impiedosos? Oh, meu Senhor! Por que me colocaste nessa situação?! Só o que eu desejo é paz, meu bom Deus, e prosperidade ao povo de Alter!

As cortinas se fecham e se abrem de novo. Dessa vez, Abigail se encontra num tipo de palanque, cercada por civis, onde ela faz um discurso anunciando o início da guerra revolucionária no continente e como muitos são os que querem destruir a paz e a estabilidade alteriana.

Apesar de Crista não entender boa parte do que é dito, ela logo se vê completamente consumida pela peça. Isso é muito interessante. Ela nunca havia visto uma peça de teatro antes. É como ver um filme ao vivo. Se assistir futebol ao vivo é muito mais legal do que pela televisão, então ver um filme ao vivo é melhor do que pela televisão também, certo? Na verdade, a lógica não faz o menor sentido, mas a novidade a atiça. Por alguma razão que não consegue mais lembrar, ela realmente achou que iria se entediar e em cinco minutos já estaria implorando pra ir embora.

– Agora é a melhor parte! – sussurra Aglaia, animada. As cortinas se fecham e quando abrem de novo, o alto-falante transmite um som de praia, os atores no palco se posicionam sobre duas enormes props de proa de navios que ficam face-a-face, uma contra a outra. Do lado direito do palco quatro milicianos de azul apontam seus mosquetes e do outro, a própria Abigail, um soldado britânico de vermelho, dois milicianos de azul e um marinheiro no timão, todos eles com faixas de um laranja forte amarradas nos braços.

– ATACAR! – berra um dos rebeldes. Eles disparam contra o navio do outro lado, forçando os soldados e Abigail a se abaixarem por trás do casco, enquanto o capitão do navio gira o timão alucinadamente e grita ordens para seus marujos. Três outros homens em roupas de marinheiros surgem por trás do set, puxando cordas, içando velas e gritando desesperadamente uns aos outros que trabalhem mais rápido, junto de um som de ambientação produzido por algum rádio escondido que faz parecer haver muito mais marinheiros sobre as props e ondas de verdade batendo contra os cascos. Um dos marujos é atingido e cai agonizando no chão, com algo vermelho que simula sangue espirrando de sua roupa.

– O que fazemos, sra. Governadora?!

– Malditos rebeldes, nos emboscando covardemente!

– Tenham calma, homens! – Abigail ordena – capitão, recuar! Retornemos ao porto!

As cenas seguintes mostram o navio lealista fugindo dos rebeldes, com Abigail segurando os nervos dos seus homens para que revidem apenas com fogo supressivo. Quando se aproximam mais do porto, um marinheiro do topo do mastro faz sinais com duas bandeiras vermelhas e outros dois outros navios lealistas, representados por props menores carregadas por grupos de atores vestidos de preto, deixam o porto e cercam o agressor, atacando casco-contra-casco um por cada flanco, sob gritos de “pelo povo de Alter”, até que ele esteja praticamente destruído, e forçam sua rendição. Os soldados lealistas comemoram e debocham de seus inimigos, trazendo-os à terra, amarrados uns aos outros pelos pulsos.

É quando Abigail se destaca da multidão.

– Alterianos, vede isto! Observai vossa situação! – ela levanta o braço amarrado de um dos soldados rebeldes, silenciando os seus próprios homens. Os rebeldes esperam que a governadora deboche deles por sua captura, como demonstra um rápido diálogo entre dois deles, que é encenado como se Abigail e os lealistas não pudessem ouvi-los. Ao terminar o diálogo, a governadora continua – refleti sobre a barbárie que vivenciamos: alterianos matando alterianos, e para quê? Que razão temos para lutar? Não somos todos de carne e osso? Não temos todos entes queridos em casa, filhos, maridos, esposas, pais que lamentariam nossas mortes? O que toda essa violência nos trará?! Nada, eu vos digo, além de dor e desgraça!

Rebeldes e lealistas ambos ficam em silêncio. Abigail volta-e aos prisioneiros.

– Por favor, respondei-me! O que a morte de tantos, pais, maridos, filhos, ganhará a Alter? Vossa própria vida vale menos do que a vossa causa? Como justificar-se-á o sangue em vossas mãos!?

O soldado rebelde desvia o olhar em vergonha.

– É claro que tu dirias isto! – outro soldado rebelde grita – és a governadora, a mulher mais poderosa de Alter! Sabes o destino que te aguarda quando a revolução triunfar! Teus discursos bonitos não nos enganam, Abigail Fox: nós sabemos que és exatamente como todos os reais britânicos, ricos, envoltos em conforto a um mundo de distância daqui, que pensam ter o direito de tirar nossas riquezas e chamá-las de obrigação cidadã!

Abigail caminha lentamente até o homem e fixa seus olhos nos dele. Mesmo à distância, mesmo sendo só uma peça de teatro, Crista consegue ler aqueles olhares, aquelas expressões corporais, como se estivesse presenciando a cena ao vivo, lá em 1700 e alguma coisa. O homem mantém-se altivo, recusa-se a baixar o olhar, orgulhoso, enquanto Abigail o analisa profundamente e lentamente se torna um olhar de admiração.

– Como te chamas, meu bom senhor?

– Capitão Harold da segunda brigada rebelde.

– Capitão Harold, eu compreendo tudo o que dizes e no que acredita. Compreendo tua lógica e as tuas razões, porém eu acredito que é possível chegarmos a um acordo de forma pacífica. Acredito que é possível que os dois lados discutam seus pontos de vista e encontrem um meio-termo. Não importa o que dizes, é simplesmente impossível me convencer que as vidas de tantos alterianos precise encontrar um fim brutal pela ponta de um mosquete para que cheguemos a uma conclusão.

– És a governadora, sra. Fox. Nunca pegastes num rifle, numa espada, ou mesmo numa enxada. Não sabes o quão trabalhador o povo alteriano é ou o quão importante é garantirmos o nosso futuro. Podemos até morrer por isso. É impossível que uma mulher de poder como a senhora entenda, mas para alguns de nós, a vida não é tão querida assim. Ela é dura e todos os dias são de batalhas.

– Porém, queres de fato morrer por isso? Se eu mandasse aos meus soldados que te executassem, aqui e agora, não sentirias medo? Não terias arrependimentos? Caso tenhas uma família, não desejarias vê-los uma última vez? Não te preocuparias com como eles ficariam depois que partires deste mundo?

O homem abaixa a cabeça pela primeira vez.

– Tens razão. Eu não sou uma guerreira ou uma camponesa. Nasci e fui criada numa família de burocratas e comerciantes e para isso estudei e trabalhei desde que me lembro. Isso não torna meus sentimentos quanto a esta triste guerra menos válidos. É por isso que, independente do resultado, eu gostaria de conversar com as lideranças rebeldes para que cheguemos a um acordo, de forma pacífica. Eu me comprometo a ouvi-los, seja o que for que tenham a dizer.

Abigail volta-se aos seus soldados.

– Libertem os prisioneiros – ela comanda.

– Senhora! – um dos soldados britânicos se exaspera – não podemos deixá-los à solta. Eles retornarão! Podem matar mais dos nossos homens!

Abigail gira sobre os pés mais uma vez, encarando o capitão Harold.

– Eu gostaria que pedisseis aos vossos líderes que comparecessem no senado da capital, daqui sete dias, para discussões oficiais e, caso seja possível, um fim à guerra.

– Uma armadilha óbvia – zomba o comandante rebelde.

– Não é uma armadilha – ela garante – trazei quantos homens quereis, armai-vos como quereis. Enquanto mantiverdes a vossa palavra e honrardes a trégua, nada tereis a temer, mas se trairdes a nossa confiança, o povo de Alter não mais confiará em vós. A escolha está em vossas mãos.

A cortina se fecha, anunciando o fim de mais um ato. Quando o ato seguinte começa, o cenário muda para o que parece um parlamento. De um lado do palco, os atores vestem as faixas laranjas como parte de seus trajes, e do outro, não. Vários deles carregam mosquetes ou espadas. A discussão que encenam é tensa. Nenhum dos dois lados se dispõe a ceder nada ao outro até a intervenção de Abigail, que os convence a escolher candidatos para disputar uma eleição por voto popular, onde os eleitos formariam um parlamento para resolver as questões de conflito da guerra civil. Os lealistas sob Abigail discordam, mas acabam cedendo ao desejo da sua governadora de liberar todos os prisioneiros de guerra sem qualquer pena ou acusação, como prova de boa-vontade aos revoltosos. O resto do ato inteiro mostra a governadora ganhando a confiança dos soldados e líderes rebeldes e fazendo-os trabalhar em conjunto com os lealistas e, ao final do ato, um parlamento é formado com vários representantes não só dos lealistas e dos rebeldes, como também de outros grupos, como fazendeiros, mercadores e artesãos, homens que nunca pegaram em armas pela guerra.

O último ato age como um epílogo, mostrando Abigail cumprindo suas promessas aos rebeldes e lutando diplomaticamente para tornar Alter mais politicamente independente do Império Inglês, mas ainda se mantendo alinhada à capital e instaurando aos poucos o sistema de um senado eleito pelo voto popular, baseado naquele primeiro parlamento.

Quando as cortinas se fecham pela última vez, a plateia irrompe em aplausos. Logo os atores aparecem de mãos dadas por trás das cortinas, Indigo Eliah no centro em posição de destaque, para agradecer ao público. Quando Aglaia e Storm ambas ficam de pé para bater palmas, Crista as imita. Gostaria de entender melhor inglês para compreender melhor a história, mas foi interessante mesmo assim. Ela faz uma anotação mental de levar sua mãe e seus irmãos ao teatro quando voltar para o Brasil.

– Ei, quer dar uma saída? – ela ouve Aglaia sussurrar em seu ouvido. Crista assente e logo as duas escapam de seus amigos para fora do teatro. Assim que cruzam a porta, Aglaia entrelaça seus dedos aos de Crista, atitude essa que causa um certo estranhamento à brasileira, mas ela acaba aceitando. Aglaia dá risadinhas bobas e sorri para ela, que tenta retribuir como pode.

“O que essa mina quer?”, se pergunta, encucada.

– O que achou da peça? – pergunta Aglaia. Crista assente. Ainda acha muito estranho como “peça de teatro” é “play”, que deveria significar “jogar”. Inglês é tão confuso…

– Legal – ela diz, resgatando as palavras na memória – nunca… ir em teatro antes.

– Nossa, sério? Eu sempre vou, desde criancinha!

As duas seguem o caminho do campus meio sem rumo, até chegarem numas mesinhas entre algumas árvores. Deve ser um lugar muito agradável durante o dia. Aglaia puxa Crista para perto de uma das mesas e a envolve num abraço de lado, enquanto com a outra mão tira o celular do bolso.

– Selfie! – anuncia. Mesmo se preparando para o flash, Crista acha que piscou e faz a outra tirar mais uma.

– Não publicar – ela pede – manda Messenger.

– Não se preocupa! – Crista sente o celular vibrar, notificação de Aglaia lhe enviando a foto.  Decide checar depois. Aglaia torna a guardar seu próprio celular no bolso da calça – por que você nunca tinha ido num teatro antes?

– Sei lá. Não sei onde.

– No Brasil não é normal as pessoas irem no teatro?

– Sei lá. Nóis vai nuns baile, lá onde eu moro. Morava – ela se corrige e começa a pensar em como traduzir. Imita uma batida de funk para ver se Aglaia entende – tchu tchu tchá, tchu tchu tchá?

A loira apenas a encara sem reação.

– Baile funk – ela tenta explicar – festa de funk brasileiro.

– Eu não sei o que é isso – Aglaia passa a mão na cabeça, rindo encabulada. Crista alcança seu celular e entra na sua playlist de funk batidão no youtube. Com uma expressão maliciosa, ela faz Aglaia se sentar num dos bancos, já traçando um plano na sua mente para chocar essa gringa tímida. Ela começa a dançar para Aglaia no ritmo da música, a princípio de um jeito até bastante tranquilo e comportado, apenas balançando o corpo e deixando Aglaia à vontade, esperando o drop da música, aos poucos virando de costas para a garota.

Quando o drop chega, Crista começa a rebolar na cara dela frenética e intensamente, descendo até os joelhos dela, levantando de novo e então repetindo o movimento, rindo por dentro com o quão vermelha a estrangeira deve estar de vergonha.

Quando termina a sua coreografia, Crista torna para encarar a gringa, que esconde o rosto entre as mãos e tem até a ponta das orelhas completamente vermelhas. A brasileira ri estrondosamente.

– Yo, Aglaia. Hey, olha pra cá – ela chama, cutucando seu ombro.

– Não tem nenhuma Aglaia aqui. Eu morri e fui enterrada – afirma a outra.

– Ei. Olha para mim – pede Crista. O sorriso no seu rosto é tão intenso que chega a doer seus músculos. Aglaia dá uma espiadinha entre os dedos e logo torna a esconder o rosto entre as mãos.

– Não! Você vai zombar de mim!

– Ai caralho, eu quebrei a gringa – ela ri, olhando nos arredores como quem procura ajuda. Sem encontrar nada, torna à loira e sussurra, perto do seu ouvido – Aglaia, se cê num olhar pra mim eu vou sentar em você, tô nem zoando.

Aglaia, obviamente, não entende.

– Eu avisei – diz Crista, se sentando no colo de Aglaia de frente para ela, apoiando os joelhos no banco ao lado do seu corpo. Aglaia solta um gritinho agudo.

– Crista! O que você está fazendo?! – exasperada, Aglaia tira as mãos do rosto e é surpreendida por um beijo de Crista nos lábios.

– Tô sentando em você – ela responde ao final do beijo, de forma maliciosa, no pé do ouvido de Aglaia.

– Eu percebi! – Crista começa a rebolar de leve no colo de Aglaia – ai meu deus Crista, não…

– Tô sentando em você – repete, em meio a gemidos fingidos. Morrendo de vergonha, Aglaia abraça Crista só pra enterrar o rosto em seu corpo – boa. Também quero meter a cara nos teus peito depois – provoca, mesmo sem saber como dizer a frase em inglês.

– Para – pede Aglaia, rindo baixinho – sua ridícula.

– Não, você – retruca Crista em tom brincalhão, lentamente envolvendo Aglaia num abraço. A loira tira o rosto do peito de Crista e as duas se encaram.

Do lado de Aglaia, é um olhar bobo, intenso. Do de Crista, penetrante. Ela tenta entender essa loira, que sempre fica tão boba e fácil na sua mão mas nunca aceita “ir até o fim”. No passado, talvez a tivesse pressionado um pouco mais, mas desde que começou a viver em Alter, tem sentido partes de si mudar. Aquela bofetada na cara de Storm alguns meses antes tem seu efeito na mente de Crista, que tenta adotar uma atitude menos invasiva. Aglaia não é como as garotas dos bailes em São José, nem como Melina ou Camila. Isso é óbvio. Às vezes ela pensa se não deveria desistir logo dessa loira: o olhar bobo apaixonado no rosto dela costuma ser algo de que Crista foge como o demônio foge da cruz, mas nesse caso, ela ainda quer ver um pouco mais.

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notas finais:

Um pouco de worldbuilding sobre Alter.



Notas:



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