Influências e Decisões

Parte II

O BEM E O MAL

(Danilo Caymmi)

Eu guardo em mim

Dois corações

Um que é do mar

Um das paixões

Um canto doce

Um cheiro de temporal

Eu guardo em mim

Um Deus, um louco

Um santo

Um bem um mal

Eu guardo em mim

Tantas canções, tanto mar

Tantas manhãs, um canto doce

E o cheiro de um vendaval

Guardo em mim

O Deus, o louco

O santo

O bem e o mal

Eu guardo em mim

Tantas canções, tanto mar

Tantas manhãs, um canto doce

E o cheiro de um vendaval

Guardo em mim

O Deus, o louco

O santo

O bem e o mal.

Havia terminado por aqui (Influências), mas depois de um tempo, me veio uma “continuação”. Então… aí vai.

DECISÕES

Dia terminado, Fernanda e Monica saem do trabalho e resolvem partir pra happy hour. Vão no carro de Monica, alegres, conversando, pegam a marginal para chegarem à cidade.

Fernanda, a contragosto dos pais, é química alimentar e trabalha na indústria alimentícia onde Monica é secretária da vice-presidência. Começaram a trabalhar no mesmo dia, há seis anos, se conheceram no R H e se tornaram amigas.

Embora Fernanda tivesse interesse em usar seus conhecimentos para produzir alimentos saudáveis que mantivessem os sabores, não era uma tarefa fácil em um mundo interessado no lucro rápido, mesmo assim se esforçava e conseguira alguns progressos na fábrica que tinha um bom mercado, mesmo sendo de porte médio, justamente pela qualidade conseguira a confiança dos consumidores.

Monica era super eficiente e costumava dar apoio disfarçado às ideias da amiga, junto à chefia. Era uma boa parceria, até mesmo para a firma.

Naquele fim de tarde, na faixa do meio da pista, sexta feira, enquanto cantavam junto com o som, não se sabe de onde, surge um caminhão descontrolado, empurrando tudo à sua frente e atinge a lateral do lado do passageiro. Elas não percebem se o carro gira ou tomba, apenas sentem-se perdidas, sem controle, a dor e o apagão.

Socorridas, foram conduzidas ao hospital mais próximo. Monica teve uma perna quebrada e duas costelas fraturadas, Fernanda foi bem mais grave. Cirurgias, coma induzido e UTI. Depois de uma semana, fisioterapia para evitar problemas maiores quando a retirassem do coma.

A mãe de Fernanda, dona Yolanda, culpava Monica pelo acidente, mesmo com a perícia policial mostrando que o verdadeiro culpado fora o freio quebrado do caminhão. O motorista havia morrido no local, houve vários veículos envolvidos e muitos feridos.

Dizem que as pessoas em coma são boas ouvintes, que tudo dito à sua volta é captado, então a fisioterapeuta ao fazer os exercícios, explicava em voz baixa, calma, tudo que faria, se desculpa por forçar, diz como está o tempo, se algo importante aconteceu no hospital, faz massagem. Fernanda às vezes sente, embora como se estivesse a quilômetros dali, mãos macias e cuidadosas.

A enfermeira que lhe dá banhos também conversa, fala que está melhorando aos poucos, palavras de ânimo. É transferida para o CTI.

Fernanda sente-se ora flutuando, ora apagada. Sabe que pessoas entram e saem de onde ela está, mas não as distingue, só entende algumas palavras de duas mulheres e parece-lhe, certo carinho delas.

– Então, mocinha… – apaga momentaneamente querendo muito ouvir o que ela está dizendo.

– … disse que já está na hora de…

“Quem disse o que? Está na hora de fazer o que”?

– Ela é a melhor, não se preocu… – apaga de novo.

Está sempre tentando vê-las, saber quem são, como são quando está no limbo.

“Quanto tempo faz que estou aqui? Alguém está entrando.”

– Olá mocinha, como estamos hoje? Vou te deixar limpinha e se prepare porque parece que Ale… – vuuush.

… “Quem? O que?”

– …çar a te espetar.

“Espetar!?”

“Acho que apaguei, será que a outra já veio?”

– Boa tarde, Fernanda! Como está com aspecto bem melhor e aposto que a linguaruda da dona Estela falou que vou te espetar hoje. – Leve riso. – Ela gosta de se referir assim à acupuntura. Não dói e vai te ajudar muito, garanto.

“Ah, dona Estela deve ser a enfermeira então! A voz mansa vai fazer acupuntura? Não gosto de agulhas.”

– Vamos fazer alguns exercícios antes, espero que me desculpe se doer um pouco.

“Não sinto dor quando faz os exercícios! Então você é a fisioterapeuta.” Apaga.

– Vou mexer nas agulhas, talvez sinta pressão nos locais, o que seria ótimo. Não disse que não doía?

“Já fizemos os exercícios e já me espetou?”

Fernanda começou a perceber melhor e mais amiúde o entra e sai.

Sem saber o tempo ocorrido, um dia abre os olhos. As coisas estão desfocadas, mas parece que está… cheia de agulhas!? Tenta falar.

– Olá! Seja bem vinda, mas não se esforce pra falar ainda. — Alexandra pede. –Tenha calma que vai se recuperar totalmente. Daqui a pouco, tiro as agulhas e o médico vem te ver. Pode dormir.

“Estou cansada de dormir, quero me movimentar, sair daqui”, mas dorme.

– Olá, mocinha! – Estela fala. – Soube que acordou toda espetada ontem, muito bom! Hora do banho que por enquanto é na cama, breve vai poder ir pro chuveiro. Não é ótimo? Quando quiser pode começar a falar devagar.

– Onde… onde estou? – Fernanda pergunta.

– No hospital, no CTI. – Responde Estela.

– Quan… quanto tempo? – Quer saber Fernanda.

– Três semanas, esteve em coma induzido por causa das muitas fraturas e cirurgias que sofreu. Graças a Deus, está voltando pra nós, porque agora não vai mais ficar completamente sedada. – Estela responde.

– Quem é você? – Fernanda indaga.

– Ah é! Desculpe, eu sou Estela, enfermeira que dia sim dia não, estou com você.

– E quem é… ?

– A que te espeta? – Estela ri.

– Isso.

– Alexandra, a fisioterapeuta. Daqui a pouco, ela vem. Descanse.

– Não quero mais descansar!

– Mas precisa. Vai tomar analgésicos para as dores, porque ainda não está inteiramente curada. As fraturas estão indo bem, mas fez cirurgias, então tem que ir com calma. Esteve entubada por vários dias, talvez ainda sinta algum desconforto ao falar, mas os órgãos internos estão todos em ordem agora.

Fernanda deixou-se banhar, enquanto tentava se inteirar de tudo e Estela tentava responder antes que ela terminasse as frases. Percebeu que falava entrecortado, muito pausado e que se sentia cansada. Resolveu fechar os olhos por um momento. Uma mão passou gentilmente em sua testa, arrumando o cabelo. Abriu os olhos.

– Olá! Desculpe se te acordei. — Alexandra fala. – Fiquei contente quando dona Estela disse que conversou com ela. Vamos aos exercícios?

“Ah! A voz mansa, a fisioterapeuta. Eu ainda não concordei, porque ela já começou a me movimentar?”

– Oi! – Fala Fernanda.

– Quer me dizer alguma coisa? – Indaga Alexandra.

– Fazemos… todo dia? – Fernanda pergunta.

– Há duas semanas já.

– Pode… podemos não… fazer hoje?

– Não quer fazer a fisioterapia?

– Conversar.

– Ah, quer conversar um pouco! Podemos conversar, mas não podemos deixar a fisio de lado, senão vai demorar mais tempo pra se recuperar e sair do hospital.

Foi colocada de lado com cuidado e sentiu que sua perna direita era mexida.

– Pode começar a falar quando quiser.

– Ale… Alexandra

– Isso, eu sou Alexandra. A família achou que eu poderia ser grande quando nasci. – Alexandra sorri.

– E… não é?

– Um e setenta e três, então não sou pequena, mas daí a ser grande…

– Você coloca… choque?

– Às vezes, nas agulhas. Você sentiu alguma vez?

– Ouvia você… e… Estela. Não gosto… agulhas.

– Quase ninguém gosta! – Alexandra responde, sorrindo. – Mas precisamos de energia correndo livre pelos seus meridianos, então acupuntura é ótimo e os choquinhos ajudam a ir com mais rapidez.

Alexandra continuou seu trabalho avisando o que faria antes e como fazia. Quando parou.

– Sinto… um boneco.

– Não, não é! – A fisioterapeuta ri. — Agora vamos colocar as agulhas.

– Não!

– Sabe que já fizemos várias vezes. O que você não sabe é que te ajuda na recuperação muito mais rápido. Daqui a uma hora, Dr. Frederico vem te ver e devemos já ter terminado. Eu coloco as agulhas, deixo por meia hora, fico aqui com você durante este tempo e depois tiro tudo e você não vai sentir dor, só uma ligeira picada. Não acredita em mim?

– Frederico… –  Fernanda se dá conta de que ouvira este nome alguma vez.

– Teu ortopedista. Ele e o Emanuel, o cirurgião cuidaram de você desde que chegou, na emergência verificaram, viram que era grave e já te mandaram pra cima.

– Você e Estela… todo dia…

– Não! Estela é a enfermeira mais sociável e amável do hospital, conversa com todo mundo, trabalha 12 por 24. Isto é, trabalha dia sim, dia não. Minha especialidade é traumas graves, por isso trabalho mais na UTI e CTI.

– Então… quando eu… melhorar

– Vai pra outra ala e não nos verá mais, a não ser que venha nos visitar. Preparada?

Não, não estava, mas ficou quieta e Alexandra, pareceu-lhe que colocou agulhas nela inteira.

– Viu? Todas colocadas e você está bem. Quer saber novidade sobre algum assunto enquanto estava fora do ar?

– Você consegue… fazer… relaxar qualquer…

– Está dizendo que falo muito mole?

– Não! – tentando rir – Ai! Você fala… tranquilo… calma… sem pressa.

– Hum, doeu?

– O abdômen.

– Foi mexido, mas logo volta tudo ao normal, não se preocupe. Depois precisa ver se não vai precisar de psicólogo ou psiquiatra.

Continuaram conversando, dado o tempo Alexandra retirou as agulhas e se despediu.

Logo depois o médico entrou para ver a evolução de Fernanda.

– Olá garota! Parece que em dois dias vai para um quarto normal. Acho que tua família vai ter que se revezar para te acompanhar. – O médico informa.

– Pois eu acho… que vão pagar… uma enfermeira. – Fernanda replica.

O médico estranhou, mas achou melhor não tocar mais no assunto.

Depois de dois dias na mesma rotina, foi pro quarto. Esperou a enfermeira no horário costumeiro, mas foi outra que apareceu.

– Cadê dona Estela?

– Ela só trabalha lá em cima, eu sou Isabela, vai me ver bastante.

– Vou continuar a fisioterapia?

– Ah vai! Quer que eu veja quem será teu fisio?

– Não posso continuar com a doutora Alexandra? Ou outra vai me encher de agulhas?

– Esteve fazendo acupuntura? Vou perguntar porque não são todos que sabem medicina oriental.

– Tomara que ela possa continuar, acostumei-me com ela.

– Ah ela é uma pessoa fácil de se gostar, é super do bem. Vamos à medicação e banho?

Por volta das 19h00.

– Está acordada? – Alexandra pergunta.

– Estou! – Fernanda responde. – Pensei que estaria sem fisioterapia hoje.

– Estava ocupada lá em cima. Você é minha última paciente do dia.

– Precisa se apressar pra ir pra casa?

– Não! Por que a pergunta?

– Não sei. Você poderia ir embora se não tivesse que me ajudar.

– Esta é a profissão que escolhi, estudei muito, gosto e jamais deixaria de ajudar a quem possa e que queira minha ajuda.

– Oi, maninha! Fiquei sabendo agora à tarde que você veio pro quarto –beijou-a – E aí, como está se sentindo?

– Oi, Marcela! Bom te ver. – Fernanda responde. – Esta é Alexandra, a fisioterapeuta que tem me ajudado muito. Doutora esta é minha irmã.

– Olá! Pode continuar o que fazia. – Marcela fala.

– Não se assuste com as caretas dela. – Alexandra brinca.

Enquanto Marcela contava todas as novidades para Fernanda, Alexandra fez tudo que precisava.

– Hoje vou colocar só cinco agulhas, tá. – Informa Alexandra.

– Não preciso do estojo todo? – Fernanda suspira aliviada. – Que bom!

– Você odeia agulhas! – Marcela ri. – Agora é na veia pingando e mais no corpo!

– Não doem, além da picadinha. – Responde Fernanda.

– Ah, essa eu quero ver! – Marcela duvida.

Marcela quase subiu na cama para ver como Alexandra colocava as agulhas.

– Nossa, ela ainda mexe nelas no corpo!! – Marcela se espanta.

– Fica quieta, Mar! – Pede Fernanda.

Alexandra terminou de colocá-las, disse que voltaria pra tirar e deixou as duas sozinhas.

– Tem um olhar macio. – Fernanda observa.

– Maninha! – Ralha Marcela.

– Nada a ver, Mar! Eu até gostaria de ter alguém para amar, mas…

– Mas o que?

– Para de querer me arrumar mulher! Conta como estão as coisas aí fora.

– Só quero te ver feliz, amando alguém e sendo correspondida! As coisas estão como sempre, nenhuma novidade boa.

– E tem alguma ruim?

– Bom… não queria te contar ainda, mas vamos lá. Tua bondosa mãezinha pretende processar a Monica pelos teus ferimentos.

– O que?? Ela é doida? Monica não teve nenhuma culpa.

– Todo mundo sabe, mas tua mãe resolveu que alguém tem que pagar os custos do teu tratamento…

– Pois diz pro advogado que vou testemunhar a favor de Monica. E diz pra tua mãe que eu pago meu tratamento, nem que seja uns dez anos de prestações!

– Calma! O que o convênio não cobrir, eu pago. Só quis te prevenir porque Monica é uma amigona sua e poderia acabar por se magoar com você também. Então, queria saber se posso ligar pra ela e deixá-la de sobreaviso.

– Por favor! E diz que estarei totalmente do lado dela e à disposição, se dona Yolanda insistir neste processo. O telefone está no meu celular, pega ele que coloco a senha pra você.

– Não vim antes porque o hospital avisou os pais e eles não disseram nada pra gente. Deixei o meu número para avisarem a mim qualquer novidade a teu respeito, tá.

– Obrigada.

– Quando tiver alta vai pra minha casa. Vou pegar tua chave pra apanhar tua correspondência e algumas roupas.

– Tá bom. E teu marido concorda?

– Claro! Sabe quem está preocupada com você e poderá cuidar durante o dia?

– Não, quem?

– Dona Madalena.

– A bá!? Já está aposentada, não quero dar mais trabalho pra ela não.

– É, demos trabalho à ela, né? Mas, contei pra ela sobre o acidente e ela se ofereceu pra cuidar de você. Vai ser mais pra te dar carinho, comidinha na boca – Marcela ri –  fazer companhia. Pro resto a gente contrata uma enfermeira.

– Será que vou demorar a ficar normal?

– Ah, isso você nunca foi!

– Te daria uns tapas se conseguisse.

– Mas voltando à vaca fria, me conta sobre a gracinha da fisioterapeuta.

– Para, Mar! Nem a conheço, faz só cinco dias que falo com ela.

– O tempo não importa nestes assuntos. Com o rosto mais bondoso que já vi, impossível ser tão diferente do que aparenta.

– É mesmo, né! Olhar macio e expressão bondosa. Mas, nem pensar.

– Ué! Por que não?

– Pessoal bom no seu trabalho, ainda mais quando é da área da saúde, trata todos da mesma forma, com respeito, carinho, mesmo não tendo interesse diferente por nenhum paciente. Conhecem a gente no pior de nossas vidas.

– Com licença! – Alexandra fala, entrando no quarto.

– Oi, Alex. – Fala Marcela. – Já vai desfazer a almofada de alfinetes?

– Já deu o tempo, mais uma semana e ela deve ir pra casa, então melhor fazer todo o possível enquanto está por aqui né! – Alexandra responde, sorrindo.

– Claro!

Retirou as agulhas e se despediu.

– Sabe que sempre tive curiosidade sobre acupuntura? – Marcela fala. – Será que ela atende fora do hospital, ou tem consultório aqui?

– Não sei, pergunta na recepção. – Responde Fernanda.

– Vou perguntar. Bom, já tenho o telefone e zap da Monica, a chave da tua casa e vou embora. Amanhã eu volto, tá.

Beijou Fernanda e se foi.

Perguntou na recepção, mas informaram que somente Alexandra poderia dizer sobre atender fora do hospital. Perguntaria na próxima vez que a encontrasse.

Quando voltou no dia seguinte, antes de ir ver a irmã procurou por Alexandra. Foi informada que poderia estar no berçário ou na neonatal.

Viu-a pelo janelão da neonatal com uma mulher. Observou-as um pouco e resolveu conversar com Alexandra mais tarde.

– Oi, maninha! Como está hoje?

– Bem melhor! E você? Como está a ideia de processo da tua mãe?

– Parece que o advogado aconselhou desistência depois que falei a ele que você seria testemunha. Acho que dona Yolanda não deve ter gostado. Monica está se recuperando, quase voltando ao trabalho e te mandou um beijão. Ahhh, sabe quem eu acabei de ver na companhia de uma modelo boazuda?

– Como é que vou saber?

– Tua fisio.

– Alexandra?

– Ela mesmo, com uma mulher lindona de olhar triste.

– Te pareceu que havia algo entre elas?

– Que? Tá com ciúme? – Marcela pergunta, rindo. – Não te falei que a lindona tem olhar triste? Pareciam amigas, só estranhei estarem no meio dos bebês com problemas.

– E o que você foi fazer lá?

– Estava procurando-a pra saber sobre atendimento de acupuntura, mas como estavam conversando, achei melhor esperar ela vir aqui.

Logo em seguida, Alexandra entrou.

– E mais um dia de espetadas! – Brinca Marcela.

– Oi! Não, hoje sem agulhas. – Responde Alexandra. – Vamos começar a levantar e forçar a andar. Amanhã, banho de chuveiro, com cadeira própria no primeiro dia, mas, espero que só no primeiro dia. É bom você estar aqui se puder, pra animá-la e ajudar se necessário.

– Vou estar com certeza! – Marcela confirma.

– Será um alívio um bom banho! – Responde Fernanda.

– Então vamos aos exercícios de fortalecimento.

– Queria saber se você atende fora do hospital.

– Só alguns pacientes que estiveram internados e com certas particularidades e necessidades. No hospital, tem a clinica de fisioterapia muito bem aparelhada no primeiro andar. É onde atendemos os não internados.

– É que ando querendo fazer acupuntura, pode-se fazer na clínica?

– Pode sim!

A porta foi aberta, com violência.

– Quem você pensa que é, mocinha, pra se intrometer nos meus negócios?

– Mãe!? – Marcela e Fernanda respondem ao mesmo tempo.

– E você – apontando para Alexandra – para o que estiver fazendo, e saia. Não tinha que interferir no processo contra aquela irresponsável. Como se atreve a se colocar contra mim, a favor de uma ninguém?

– Mãe, por favor, para de gritar! – Suplica Marcela.

– Cala a boca você também, virou menina de recado de tua irmã? – Yolanda grita.

– Ela não é uma ninguém, não é irresponsável e Monica é minha melhor amiga. E não teve culpa alguma do acidente. – Fernanda responde.

– Pois isso… – Yolanda continua.

– Senhora, por favor, se acalme. – Pede Alexandra.

– Não vou me acalmar nada, não se meta e já mandei você sair!

Alexandra parou o que estava fazendo, se colocou bem em frente à dona Yolanda, encarando-a com uma cara de dar medo. Sua voz sibilava.

– Eu pedi por favor, agora estou mandando. — Alexandra fala. – Pare de gritar que aqui é um hospital! Aquela é minha paciente e a senhora interrompeu um trabalho importante e necessário. Além de estressar perigosamente sua própria filha! Se não tem a mínima noção de educação e respeito, saia. Se quiser ficar, porte-se como uma pessoa deve na atual situação. Fui clara?

Dona Yolanda ficou pálida e sem ação por alguns segundos.

– Vou falar com o chefe do hospital, tua atitude é inadmissível com uma cliente! Vai ser despedida!

– Aqui não é loja! Você não é cliente, ela é paciente. Parece que não ficou claro o que eu disse, portanto, saia ou chamo a segurança para tirá-la.

Dona Yolanda saiu bufando direto para a recepção do andar, buscando informação sobre a chefia do hospital a fim de fazer a reclamação. Foi atendida, a reclamação registrada e foi embora com a promessa de que tomariam providências a respeito.

As irmãs olharam espantadas para Alexandra.

– O que aconteceu com aquela mulher meiga, atenciosa e suave que conheci? – Marcela questiona.

– Continua aqui! – Alexandra sorri. – Mas exige respeito. Eu posso aguentar choros convulsivos por razões de sofrimentos, posso aguentar manhas de crianças doentes, posso aguentar descontroles dos que perdem alguém que amam, posso suportar muita coisa, mas falta de educação, prepotência e falta de noção, de jeito nenhum!

– Francamente, eu tive medo de você! – Diz Marcela.

– Essa era a ideia.

– Desculpe! – Fernanda fala. – Não imaginei que ela chegaria a este ponto!

– Ela é sempre descompensada assim?

– Só quando a ignoram, desobedecem, ou acorda de mau humor, o que é constante. – Marcela responde.

– Nossa! E seu pai?

– Tivemos, eu e Marcela, uma babá que é mais nossa mãe que ela, infelizmente não tivemos um babá para ter alguém no lugar de pai. — Fernanda explica. – São eles contra tudo. Nós fomos criados para substitui-los. Meus irmãos até que deram certo, mas eu não. É mais um motivo para ela ficar puta comigo.

– Você está bem?

– Vou ficar. – Responde Fernanda.

– Nós nos ajudamos, sempre superamos o que os pais nos aprontam. – Explica Marcela.

– Acho que agora entendi porque só tua irmã vem ao hospital desde que você foi internada, mas e os outros irmãos?

– O mais velho foi educado diferente de nós e seguiu bem o exemplo dos pais. – Esclarece Marcela.

Conversaram até o fim dos exercícios, com alguns gemidos de Fernanda. Quando Alexandra saiu:

– Amo esta mulher! – Marcela fala.

Antes de ir pra casa, Marcela passou pela clínica de fisioterapia. Viu Alexandra acompanhada por um médico, conversando muito intimamente. Despediram-se com abraço e beijo no rosto. Marcela deu meia volta, sem saber bem porque, deixando a marcação para outro dia.

Enquanto isso em outra parte da cidade.

Há um ano, *Denise fazia terapia. Os pais não sabiam porque ela queria fazer, mas mesmo com receio, concordaram. Finalmente achava que tinha todos os pingos e acentos nos lugares certos, então resolveu que era hora de enfrentar tudo. A primeira parte ela até poderia fazer só, quanto à segunda parte, precisaria do apoio do irmão.

Contou a ele quando e como pretendia fazer. *Raul resolveu participar das duas etapas. E no sábado à tarde:

– Pai, mãe. – Denise chama. – Nunca quis mentir pra vocês, embora tenha sido mais uma omissão, um segredo.

– Segredo!? – Daniel pergunta. – Que segredo, filha?

– Calma, pai! – Pede Raul. – Deixa ela explicar tudo, depois vocês falam o que quiserem.

– Essa terapia que eu quis fazer foi para me ajudar a ter certeza de algumas coisas sim, mas foi também pra verificar se não estava influenciando a minha vida o que aconteceu no passado. E descobri, há mais de um ano, sobre o que houve quando eu tinha sete anos. – Denise fala.

– Ai, meu Deus! – Camila fala, aflita.

– Não chora, mãe. – Pede Denise. – Raul ajudou a juntar as pontas. Agradeço tudo que fizeram pra me proteger, mas eu tinha que saber porque sentia um foquinho de escuridão, um lapso dentro de mim e eu tinha que saber se isso me fazia ser como sou.

– E o que descobriu com esta terapia, filha? – O pai questiona.

– Que o passado só fazia perceber que tinha um vazio que precisava ser preenchido, mas não me transformou no que sou. Nasci assim, cresci como sou em sentimentos, emoções, em personalidade e, simplesmente sou gay, nada me transformou em.

O pai ficou pasmo e sem palavras, a mãe gaguejava querendo formar frases conexas.

– Pai, você está bem? – Raul pergunta.

– Deveria ter percebido! – Daniel responde aturdido. – Vamos procurar ajuda pra você esquecer esta bobagem de ser gay. Aquele desgraçado até hoje está te afetando! Eu deveria tê-lo matado.

– Você não ouviu o que eu disse, pai? – Denise replica. – Não sou lésbica pelo que aconteceu na minha infância, eu nasci assim! Eu tive receio que tivesse influenciado e alguém me impulsionou a fazer terapia. Fiz e tenho certeza disto. Poderia mentir e disfarçar pra vocês, mas resolvi ser clara e sincera porque os amo e respeito. Só preciso de respeito, se isto os fizer deixar de me amar.

– Nunca, filha! – A mãe de Denise, Camila, responde. – Nos dê tempo para nos acostumarmos com a ideia, não é, querido?

O pai agora chorava.

– Tive um tio gay. – O pai, Daniel, revela. – A família o desprezou e me lembro do sofrimento dele, de como foi maltratado. Não quero isto pra nenhum filho meu.

– Os tempos são outros, pai! – Fala Denise. – Tem ainda muitos perigos para os diferentes, seja lá como for a diferença, mas quando a família nos apoia tudo é mais fácil. Consegui trabalho em laboratório multinacional para pesquisas farmacêuticas, eu cresci protegida pelo amor de todos vocês e espero e gostaria de continuar contando com ele.

Os pais e o irmão se aproximaram e foi um abraço coletivo. Ao se separarem:

– Você tem alguém na vida, filha? – A mãe questiona.

– Não, mãe, não tenho ainda. Tem alguém que amo e por quem vou lutar.

– Foi essa pessoa que te “impulsionou” a fazer terapia?

– Foi, mãe! Porque não queria que eu me desiludisse mais tarde. Porque se preocupou comigo e com vocês. Porque queria que eu tivesse certeza e força pra lutar.

– Você está sempre com ela? – Daniel pergunta.

– Há mais de um ano que não a vejo, só morro de saudade.

– Quem é ela, filha? – Pergunta a mãe.

– É uma longa história que será contada outro dia. Já foi muito por um dia, não acham?

Eles queriam a história toda, mas os filhos não se deixaram convencer.

*Personagens do Conto Influências

Nova tarde de um dia como os outros para Fernanda. Chegou a hora da fisio e depois seria o banho de chuveiro tão aguardado. Alexandra fez toda sequência de exercícios com Fernanda.

– Agora prefere ficar só com tua irmã, quer a enfermeira, ou prefere que eu a ajude? – Pergunta Alexandra.

– Prefiro que você fique com Marcela. – Responde Fernanda.

– Tá bom. Vamos levantar devagar. Marcela, só segure se necessário.

Indicou para Marcela ficar de um lado, enquanto ela ficava do outro. Quando Alexandra estendeu as mãos para ajudá-la a se levantar, Marcela fez menção de segurar o braço para puxá-la.

– Não! Deixa ela tentar, eu a ajudo o mínimo, não se preocupe. Fique perto, caso ela perca o equilíbrio.

Fernanda se esforçou e, com o apoio de Alexandra, sob as vistas de Marcela que parecia uma galinha choca, conseguiu chegar ao banheiro. Foi colocada na cadeira para banho embaixo do chuveiro, tiraram o avental do hospital e a banharam com o chuveirinho. Pra ela foi como se estivesse em uma banheira, depois de tanto banho na cama. Marcela, sem cerimônia, tirou a roupa, pendurou-a, pegou o sabonete e shampoo e enquanto Alexandra jogava água, banhou a irmã caçula da cabeça aos pés. Fernanda chegou a chorar.

Enxugou-a, usou a mesma toalha para se secar e enquanto Alexandra colocava um avental limpo em Fernanda, se vestiu. Levaram Fernanda pra cama da mesma forma que a tinham conduzido para o banheiro.

– Que cansaço, mas também que alívio! – Constatou Fernanda. – Parece que tirei uma sujeira enorme da minha pele.

– Não se preocupe, não entupiu o ralo. – Brinca Alexandra.

Riram.

– Bom, como tudo está correndo bem, parece que alguém logo vai pra casa. Se quiser fazer a fisio aqui, é bom deixar marcado os dias e horas. Seria bom quatro vezes por semana na primeira quinzena e ir diminuindo a partir daí. Em dois meses, deve estar pronta para voltar ao trabalho.

– Ainda com acupuntura? – Pergunta Fernanda.

– Só se quiser, mas se fizer uma vez por semana, vai ajudar muito nos desbloqueios da energia.

– Vou pensar.

No dia seguinte, realmente teve alta hospitalar. Marcela levou-a para casa, onde dona Madalena já estava à espera com um caloroso e amoroso abraço.

Mais tarde:

– Estive na clínica, outro dia, para marcar a fisioterapia pra você e vi Alexandra com um gatíssimo. -Fala Marcela.

– Sério? – Pergunta Fernanda. – Um dia com uma médica linda, outro dia com um gatíssimo, caramba!

– Que foi?

– Não sei! – Fernanda fala, chateada – Ela não parece ser o tipo galinha.

– Tá com ciúme! Eu disse que a médica parecia amiga, já o gatão, acho que algo mais. Quis te dizer para que não criasse expectativa.

– Nem posso ter ciúme! Não sei nada dela, não a conheço, só a vi algumas horas por algumas semanas.

– Mas tem interesse nela, não tem? Te conheço desde que nasceu.

– Talvez seja por ela ter cuidado de mim desde o acidente. Ouvi-a, às vezes, e a enfermeira da UTI quando em coma. Sua voz macia, carinhosa, talvez meu inconsciente tenha misturado as coisas. Não quero ficar me martirizando com isso.

– Tá bom. Não vamos mais falar nisso. Prefere outra clínica de fisioterapia?

– Não! Eu… gostaria de vê-la, algumas vezes pelo menos. Não vou misturar as coisas… só vê-la e ouvir.

Abraçaram-se.

– Tá bom, pequena, tá bom.

Marcela tinha marcado horário das 14h00 para Fernanda, por acreditar ser melhor o trânsito e compatibilizar com seu horário de trabalho. Contratou uma home care para as noites e dona Madalena fez questão de cuidar durante o dia. Só não sabiam quem seria a ou o fisioterapeuta.

Um rapaz atencioso às atendeu, pegou a ficha de Fernanda para realizar a fisio. Fernanda olhava o tempo todo para a entrada verificando se Alexandra entraria, mas naquele dia ela não o fez.

– Sinto muito, pequena! – Sussurrou Marcela.

– Não tem importância, sabia que não era certeza encontrá-la. – Responde Fernanda.

Marcela beijou a irmã e levou-a para casa.

No dia seguinte, o mesmo rapaz profissional a atendeu e quando terminou com os exercícios

– Por favor, aguarde. Vou levá-la ali naquela sala para a acupuntura.

– Ótimo! – Responde Marcela.

Assim que o rapaz saiu, depois de conduzi-las à sala.

– E aí, maninha, sonhando? – Marcela fala, provocando.

– Não é só ela que faz acupuntura, você mesma me disse. – Fernanda responde.

Três minutos de ansiedade depois.

– Oi, meninas! – Alexandra entra, alegre. – Então, como estamos?

– Hei, Alexandra! – Marcela fica feliz. – Que bom que é você quem vai aplicar as agulhas.

– Acompanhei desde o início, então vou até a alta. – Explica Alexandra. – Os exercícios, o pessoal pode te ajudar, mas as agulhas – piscou sorrindo –  é questão energética. Só mudamos, se necessário. Isso não vai atrapalhar teu trabalho, Marcela?

– Já liguei informando hoje, mas seria bom eu saber os dias que ela vira almofada – Marcela responde, rindo -, aí ela vem de táxi com a Bá.

– Terça e sexta nestas duas semanas e na quarta nas próximas. Acredito que logo virá sozinha. Como está se sentindo, Fernanda?

– Me esforçando. – Responde Fernanda. – Levantando sem ajuda, andando devagar, tentando ficar imóvel o menos possível e não abusando dos analgésicos. Seguindo as ordens médicas e tuas.

– Muito bem!

Fernanda continuou se esforçando e ansiosamente esperando os dias de acupuntura, juntando assuntos pra conversar, embora ficasse quarenta minutos sozinha em silêncio com as agulhas pelo corpo, valia a pena os minutos que tinha a companhia de Alexandra. Apenas uma vez por semana, depois uma vez por mês e, então, alta.

Voltou a trabalhar, ainda sem a vitalidade total, mas se recuperando bem. Reencontrou Monica que voltara antes e não fora visitá-la por medo de encontrar com dona Yolanda. Sete meses depois do acidente, a vida de todos os envolvidos voltou ao normal.

Em uma sexta, Fernanda saiu à noite com Monica, a primeira vez depois do acidente. A amiga decidiu acompanhá-la a um bar gay, já que fazia tempo que não saiam e Monica não quis deixá-la só. O pessoal dançando na pista animou-as a fazer o mesmo. Como as duas entraram e dançavam juntas ninguém as incomodou. Então, uma mão pousou suavemente no ombro desnudo de Fernanda, um toque conhecido. Teve medo de se decepcionar ao virar.

– Oi, Alexandra! – Fala Fernanda, com o coração quase parando.

– Olá. – Alexandra sorri. – Pelo jeito está ótima!

– Não imaginava encontrar você por aqui!

– Por quê? Imaginava me encontrar em outro lugar?

– Sim! Hã…não! é que…

– Tua namorada?

– Hã!? Ah, Monica! Não, é minha melhor amiga. – Fernanda se dá conta de que tinha se esquecido dela.

– A parceira de acidente?

– Oi! Me conhece? – Indaga Monica.

– Só de nome. – Explica Alexandra.

– A briga com minha mãe. Que vergonha! – Fernanda lembra.

– Não tem porque ter vergonha, não foi você quem fez o escândalo. – Alexandra esclarece. – Desculpe ter interrompido vocês, só vim dar um oi, agora vou voltar pra minha mesa. Ciao.

Responderam e Alexandra voltou para uma mesa onde uma mulher a esperava.

– Esta é a tal fisioterapeuta? – Monica pergunta.

– Ela mesma.

– Bom gosto, hein, amiga!

– Para! Parece que ela também tem bom gosto.

– Nossa! Elegante a acompanhante, né?

– Muito!

– Tá, para de respirar fundo e vamos dançar, ou mudamos de bar. Agora sabe que jogam no mesmo time, por que não vai falar com ela?

– Não, vamos dançar. Ela está acompanhada como você percebeu.

Na mesa

– Então o Universo conspira mesmo pelo amor! – Fabíola brinca.

– Para, Fabíola, só fui dizer oi. – Explica Alexandra.

– Ou foi descobrir se é a namorada?

– Humm… não é. Só descobri que é lésbica e que está sem namorada.

Riram. Perto da uma da manhã foram embora porque *Fabíola não estava se divertindo.

*Personagem do conto Influências

Fernanda viu quando foram embora e a imaginação começou a funcionar a respeito de onde estavam indo fazer o que. Foram embora logo depois.

– Preciso vê-la, Raul. – Denise fala. – Morro de saudades. Chega das influências horríveis daquele homem. Será que ela não pode ser feliz? Tomar outra decisão?

– Sei que tem saudades, mas ainda tem o grande problema dela ser filha daquele bosta! – Raul se lamenta.

– Infelizmente, isto não pode ser mudado, mas até quando vai interferir em tantas vidas? Não a vejo, há mais de um ano, e nada mudou no que sinto por ela. Estou mais adulta, mais madura e continuo amando-a. Sei que não será fácil para os nossos pais, mas tenho que viver também!

– Toda vez que tento falar com ela pra encontrar com você, ela diz não e pede pra não insistir que seria uma barra muito pesada para a aceitação dos teus pais, que não colocaria você em uma posição que te traria tanto sofrimento.

– Quem disse que meus pais precisariam saber quem é ela? Quem disse que eu não prefiro a companhia dela, mesmo com sofrimento do que essa ausência forçada e essa dor da falta dela?

– Você não está namorando a… Lurdes?

– Foi coisa de um mês! Já tive ficantes, mas nenhuma me fez esquecer dela ou do seu beijo de uma única vez, de um único dia. Quero e tenho o direito de amar e ser amada, de ser feliz. Meu lado profissional está bem, quero também meu lado emocional resolvido.

– E se ela não te amar assim?

– Então, que seja feliz com quem escolher e eu seguirei em frente, tentando com alguém que venha a gostar porque amar da forma que a amo, nunca mais.

– Ah, maninha, vamos resolver isso juntos!

– Se você amasse alguém pra valer, a colocaria em uma situação desta? – Fabíola indaga. – Escolher entre você e a família dela? Ela e a família já sofreram demais.

– E você, não?  – Alexandra questiona. – Se esta pessoa decidisse que eu valho a pena, com certeza enfrentaríamos juntas o que viesse pela frente.

– Ela é muito jovem para ter tanta maturidade!

– Ela é cinco anos mais nova que você, exagerada!

– Você não tem ninguém pra esticar ou espetar agora, não?

– Sempre tenho, mas nada impede que eu tente colocar juízo na cabeça de uma amiga. Até quando vai deixar o passado influenciar teu presente e destruir teu futuro, Fabíola? Já se esforçou demais, estudou demais, se formou antes que o pessoal da tua idade por ser mais inteligente e esforçada, mas quando se trata do teu coração, a inteligência some, não toma decisões acertadas.

– Sei que torce por mim, Alexandra, mas deixa isso de lado, por favor.

– Por hoje. Vamos até a emergência, vou encontrar Frederico.

Sexta feira chegou novamente. Fernanda e Monica se despediram, porque o noivo de Monica viera buscá-la e Fernanda se dirigia para seu carro, quando ouviram gritaria e uma mulher dizendo “pare” em altos brados. Ao olharem mais de perto, viram dois homens segurando os braços de uma mulher e um outro rindo, dando soco em outra que já sangrava no rosto. Monica gritou:

– Parem com isso! O que está acontecendo? Larguem esta mulher!

O homem que batia na mulher caída, que Sérgio, o noivo de Monica e Fernanda tentavam socorrer, todo cheio de si:

– Esta vagabunda não quis sair comigo e agora estava beijando esta outra, bem na minha frente!

– E o que você tem com isto? – Monica fala. – Ela sai e beija quem ela quiser! E vocês estavam segurando ela por quê?

– Pra não deixar ela tentar segurar ele e apanhar também.

– O quê!? – Monica fica indignada. – Vocês tinham que segurá-lo para que não batesse em ninguém!

Os seguranças chegaram esbaforidos

– Quero o nome desses três na minha mesa cedinho, na segunda. Já chamaram a polícia? – Monica pergunta.

– Polícia, pra quê?

– Porque você agrediu uma funcionária da firma, ainda dentro da propriedade, seu… – Esclarece Monica.

– Mas ela…

– Não tem mas algum! – Monica fala. – Você é um agressor covarde, preconceituoso e seu “amigo” cúmplice de uma agressão.

Sérgio e Fernanda levaram a funcionária agredida até o carro para ser conduzia ao hospital.

– Avisem à polícia quando chegar que ela está no hospital, vou levá-la agora. – Fernanda fala. – Pode deixar que qualquer coisa aviso.

Enquanto Fernanda a levava junto com a acompanhante, a polícia chegou e logo após ouvirem as testemunhas e os agressores, foram para o hospital.

Fernanda entrou na emergência pedindo uma maca ou cadeira de rodas para levar a vítima pra ser socorrida. Chamaram o médico para atendê-la. Vinte minutos depois os policiais chegaram para terminarem a ocorrência. Falaram com as envolvidas, com Fernanda e com o médico que a atendia e forneceu os dados dos ferimentos, entre os quais o braço esquerdo quebrado. Quando Fernanda conversava com os policiais:

– Fernanda! O que aconteceu? Você está bem? – Aflita, Alexandra indaga.

– Oi, Alexandra! – Fernanda explica. – Comigo nada, mas uma funcionária, que a namorada voltando de viagem foi buscá-la e a beijou, foi vista por um troglodita que também trabalha na fábrica e já tinha sido dispensado quando a convidou pra sair. Ele a agrediu com raiva, enquanto dois amigos seguravam a namorada pra mostrar quem é o homem. Que raiva!

– Que susto! Fiquei preocupada quando a vi com policiais.

Fernanda olhando pra Fabíola que nada dissera:

– Ficou mesmo?

-Ah, desculpe! Fernanda, esta é Fabíola, minha melhor amiga depois de minha irmã.

– Sua amiga!? Oi.

– É! Por que este espanto?

– Não… nada. Pensei que fosse tua namorada!

– Ela é mais que apaixonada por outra pessoa.

– E você?

– Eu?! Atualmente, sem ninguém. Por que a pergunta?

– Pequerrucha! – Frederico se aproxima.

– Oi, Fred, estava indo te encontrar. – Fala Alexandra.

– Pois já me encontrou. Vamos jantar com os chefes?

– Hoje é o dia do aniversário de casamento, então sim.

– Ah! Você veio acompanhando a mulher agredida, não é? Ora, eu te conheço! Você foi minha paciente.

– Fui? – Fernanda pergunta confusa.

– Ele atende na emergência, é ortopedista. – Explica Alexandra.

–  Ah, quando do acidente!

– Vou me trocar e te encontro daqui a pouco.

Beijo barulhento na bochecha de Alexandra.

– Teu… irmão? – Indaga Fernanda.

– É, sim. – Alexandra confirma. – Mas, voltando ao assunto, ainda não me respondeu.

– Preciso… por isso não adiantou a reclamação da minha mãe a teu respeito? Por seu irmão ser médico do hospital?

– Não! Porque sabem como eu trabalho e a prioridade do hospital, como disse à ela, são os pacientes não parentes histéricos.

– Que bom. Preciso ir ver a agredida. Até mais. – Despede-se Alexandra.

– Então essa é a tal ex paciente! – Pergunta Fabíola.

– Que achou? – Alexandra questiona.

– Hum, casal interessante. Acho que vale a pena tentar.

– E você? Faz um tempão que está sozinha, quando vai voltar a viver emocionalmente?

– Pelo amor de Deus! Você não dá folga, né? Estou bem assim, me deixa em paz, mulher.

– Por enquanto. Lá vem o Fred, vai ficar ainda?

– Vou sim.

Beijaram-se para se despedir. Alexandra e Frederico foram jantar com os pais.

Como a funcionária agredida ficaria em observação, depois de dado todas as informações que sabia à policia, Fernanda resolveu ir pra casa tomar um bom banho, jantar com Marcela e, quem sabe, dar uma saída. Lá pelas 23h20 realmente foi.

As amigas eram quatro, duas namoradas e as outras duas, como costumavam dizer, estavam em temporada de caça. Fernanda era do tipo a ser caçada, tímida pra dar o primeiro passo.

Dançava com as amigas, ergueu os braços no balanço e alguém segurou seus pulsos no alto, encostou em suas costas e a fez girar, desceu uma das mãos até sua cintura, fazendo-a juntar-se totalmente àquele corpo.

– Oi, atrapalho? – Alexandra sussurra.

– Oooii! – Fernanda se surpreende.

– Que abusada! Conhece a peça, Fernanda?

– Conheço, sim, Veronica, tá tudo bem.

As amigas voltaram a dançar.

– Está mesmo tudo bem? – Pergunta Alexandra.

– Um pouco apertado. – Fernanda balbucia.

Foi ligeiramente solta.

– Assim está bom?

– Você é bem forte, né?

– Tenho que me manter em forma, a profissão exige.

– Não sabia que frequentava aqui, venho com amigos já faz um bom tempo e não me lembro de ter te visto.

– O dia que estava com Fabíola foi premeditado pelo Universo, hoje… foi proposital. Quer sentar, ou prefere continuar dançando?

– Dançando. Como assim, proposital?

– Sabia que estaria aqui.

– Ah, então veio para me encontrar!?

– Foi. E estou adorando o encontro.

– E como soube que eu estaria aqui?

– Não é bom a gente ter amizade com quem é amiga de quem estamos interessadas?

– Está interessada em mim?

– Não tinha percebido? Então serei menos sutil ainda. – Alexandra fala rindo.

– E quem seria essa amiga que me traiu?

– Por que você acha que foi “traída”? Não poderia ser alguém que te ama e quer te ver sempre bem e feliz?

– Marcela! Como pode ter interesse em mim se só me conhece como paciente?

– Devo confessar que quando pessoas deliram, contam muito sobre elas. Às vezes, pessoas que saem de coma induzido, por causa da dor e/ou febre deliram e se a gente prestar atenção pode saber que tipo de pessoa é.

– E eu tive delírios?

– Ainda na UTI, no período do vai e vem de consciência, até o desmame de alguns medicamentos.

– Entendi.

– Xii. Começou o bate estaca. Não quer ir a outro lugar?

– Estou acompanhada. – Fernanda responde, apontando para as amigas.

– Não, você veio com algumas amigas e agora eu sou sua companhia.

– Muito convencida você!

– Não, apenas relatando um fato. Se quiser dispensar esta companhia, é só falar.

Alexandra ainda a segurava bem junto e o corpo de Fernanda gostou da sensação. A musica agitada, as pessoas saltitantes e ela não conseguia desviar a atenção de Alexandra.

– Peraí! Eu levei uns três dias depois que acordei para conseguir dizer uma frase curta. Como você teria entendido meus delírios?

– Ah, tá bom! Você não delirou. Eu te observei muito, todas suas atitudes desde que acordou. Como tratava as pessoas que cuidaram de você, defendeu a amiga, o amor pela irmã.

– Podemos não funcionar juntas. – Fernanda fala.

– Só há um meio de saber. Mas, podemos dar o primeiro passo já.

Colocou uma das mãos suavemente na nuca de Fernanda e aproximou as bocas, até se juntarem. Ao pararem o beijo profundo e duradouro.

– Sim! – Fernanda afirma.

– Sim, o que?

– Quero ir a outro lugar.

Alexandra segurou a mão de Fernanda, saíram e foram até o carro dela no estacionamento. Não falaram muito no caminho e Fernanda não sabia onde estavam indo. Ficou um pouco apreensiva, mas nada disse. Alexandra entrou na garagem do prédio com controle próprio. Fernanda ficou mais temerosa ainda, insegura. Estacionou.

– Vem, não precisa ter medo.

O olhar meigo e caloroso da fisioterapeuta estava de volta e isso a acalmou um pouco. Seguiu Alexandra ao elevador, depois pelo corredor e quando a porta do apartamento foi aberta dando-lhe passagem, hesitou, mas um sorriso a convenceu. Entrou.

Não sabia o que dizer, como agir e quando Alexandra colocou música suave em tom baixo, pediu para ir ao banheiro. Olhou-se no espelho, usou o vaso, lavou o rosto, respirou fundo pensando em como fugir e, finalmente saiu.

Primeiro susto. As luzes da casa estavam apagadas! Olhou em volta e quase caiu de costas. Encostada no portal de um cômodo, com a única luz da casa acesa às suas costas, luz de um azul suave, completamente nua, pés cruzados, ombro esquerdo apoiado no batente da porta, lá estava Alexandra.

Fernanda queria dizer algo, fazer algo, mas não conseguia parar de olhar. Alexandra sorrindo, levantou a mão direita com a palma para cima e com o indicador fez sinal, chamando-a para perto. E Fernanda veio sem pensar, ansiedade crescendo. Assim que chegou bem perto, Alexandra começou a despi-la devagar enquanto ia andando lentamente para trás, até chegarem à cama.

– Se quiser que eu pare, é só dizer. – Alexandra propôs.

O toque de pele morna e macia, o beijo suave e quente, pronto. Finalmente a timidez de Fernanda foi pro espaço. Derrubou Alexandra na cama, veio junto e parecia contorcionista querendo tocar cada milímetro do corpo que ali estava. Nada falou, mas sua boca e suas mãos pareciam ter vidas próprias ligadas àquela pessoa com quem dividia o espaço.

Beijou com tesão explícito, lambeu como quem lambe o último pedaço do doce favorito na colher, mordiscou, entrou e o calor permissivo parecia que a enlouquecera.

Cada toque, beijo e estocada que recebia em contrapartida não amenizava sua necessidade de possuir Alexandra, de demonstrar seu amor, seu querer.

Quando finalmente parou estafada, estava com uma sede enorme. O cheiro que sentia a deixava inebriada sem querer se distanciar de Alexandra.

– Tá tudo bem, Nanda? – Sussurra Alexandra.

– Sede! – Fernanda fala.

– Estamos! – Alexandra ri. – Vou buscar água, mas pra isso tenho que me levantar.

A contragosto tirou a perna de cima das pernas e metade do tronco de cima do peito de Alexandra.

– Prontinho, hidratando! Tua irmã disse que você é super tímida em assuntos emocionais, mas acho que neste aspecto ela se enganou.

– Não se enganou, não! Pra dizer a verdade quase fugi daqui logo que entrei, por isso fui ao banheiro, pra ver o que diria para ir embora. E… foi a primeira vez que me portei deste jeito.

– Sério!? Pois me pareceu bem à vontade. Você está corando, que bonitinho!

– Não ria, por favor! Não é que eu não tenha feito sexo com outras pessoas, já tive namoradas, mas sempre foi mais… mais…

– Não seria menos?

-É, acho que sim. Não sei o que me aconteceu!

– Pois eu adorei cada segundo do acontecido. Vem cá, vamos descansar um pouco.

– Nossa, já é de manhã!

– Sete e quinze. Vamos dormir um pouquinho, depois tomamos café ou vamos almoçar, dependendo da hora que acordarmos. Hoje é sábado, vem, relaxa.

Deitaram-se. Fernanda se aconchegou à Alexandra e dormiram.

Acordou por volta do meio dia, levou alguns segundos para perceber onde estava. Saiu devagar da cama, tomou banho rápido, se vestiu, parou pensando como sair sem acordar Alexandra e trancar a porta.

– Fica! – Alexandra pede.

– Desculpe, não quis te acordar. – Fernanda fala. – Tenho que ir, às 14h00 almoço em família. Tradição uma vez por mês sem falta, como um balanço da “indústria familiar”.

– Que chato! Volta depois do almoço?

– Não sei. Você tranca a porta?

– Hum hum, pode deixar.

Saiu às pressas, usando a obrigação como desculpa para não ficar mais um pouco, porque se ficasse…

– Boa tarde, maninha! – Marcela a cumprimenta. – Tá diferente, cheiro diferente. Ahá! Como foi a noite? Não deu tempo de passar na tua casa?

– Para, Ma! – Pede Fernanda. – Quer que teus pais escutem?

– Não vão ouvir, estão no escritório e você chegou quase atrasada. – Marcela ri. – Me conta os detalhes fora daqui, mas o essencial fala rápido, antes que dê o horário de prestações de contas.

– Você aprontou pra mim?

– Só dei a dica de onde você poderia estar. Conta logo!

– Contar o que? Que me portei como louca por imaginar quantas mulheres ela teria levado para aquela cama?

– Atacou o ciúme?

– Ciúme possessivo pra caramba. Fiquei até envergonhada, acho que enlouqueci temporariamente.

– Sério!? E ela? Correspondeu? Achou ruim?

– Sem reclamações de ambas as partes. Queria que eu ficasse, depois de explicar que não podia, pediu pra voltar depois do almoço.

– Legal! E, você… vai voltar?

– Não!

– Por que não?

– Por que não o que, meninas? – Questiona Yolanda.

– Oi, mãe.

Beijo no rosto como cumprimentassem conhecidos que se encontram.

– Nada para que você dê importância, mãe. Filmes. – Marcela esclarece. – Cadê papai?

– Já está vindo, acomodem-se.

– Teu filho favorito não vem? – Questiona Fernanda.

– Está viajando a trabalho. – Yolanda responde. – Teu marido não quis vir, Marcela?

– Tiago foi jogar com amigos.

– Que desperdício de tempo!

– Não é, mesmo! – Marcela ironiza. – Então somos só nós.

O pai entrou e cumprimentou-as da mesma forma que a mãe.

– Não há novidades, meninas. – Edward fala. – No setor de Marcela, ela já tem ciência de tudo, nos demais continuamos bem, as ações estão seguras. Vamos almoçar, enquanto colocamos vocês em dia.

Típico almoço de negócios, como se apresentassem a sócios ou acionistas a análise do faturamento mensal. Por volta das 15h15, as duas irmãs deixaram a casa dos pais completamente informadas sobre as finanças, aplicações, ações, produção, etc…

Às 16h30, a campainha do apartamento de Fernanda toca. Como não esperava ninguém, nem teve aviso do porteiro, assustou-se. Olhou pelo olho mágico e abriu a porta.

– Oi, Mar, aconteceu alguma… – Fernanda abre a porta.

– Oi, Nanda! – Alexandra fala.

Encostada no batente da porta, onde não seria vista pelo olho mágico, daquele jeito de cruzar os pés e deixar o peso no ombro junto à madeira, lá estava Alexandra.

– Oi!!

– Eu a encontrei e resolvi trazê-la pra você. – Explica Marcela.

– A encontrou!?

– Pois é. Como está entregue, eu me despeço. Bye!

Virou-se e foi embora.

– Posso entrar ou vai me expulsar? – Pergunta Alexandra.

– Desculpe, por favor, entre! – Fernanda, ainda surpresa, responde.

Fernanda permitiu que ela entrasse, fechou a porta e se virou. Quase trombou com Alexandra de tão perto ela estava.

– Desculpe se não gostou da visita, deu saudade, mas se não me quiser aqui é só dizer.

– Verdade que deu saudade?

– Verdade verdadeira. Por que não me ligou, depois do almoço?

– Vamos sentar? Esses almoços me deixam irritada, de saco cheio. A insistência em que eu faça parte dos negócios deles que já têm dois filhos, mas não conseguem me deixar em paz. Rrrrrrrr

– Calma! Quer conversar? Talvez eu possa te ajudar a relaxar.

– Alexandra!

– Não é o que você pensou, não! – rindo – Estou falando de massagem, acupuntura, meditação, qualquer coisa que prefira. Estou vendo que está sentindo exatamente o que falou, não é momento para clima romântico! Ou se quiser desabafe e eu ouço.

– Ah, me desculpe! Me dá colo?

– Claro!

Alexandra havia se sentado no sofá e Fernanda colocou as pernas ao lado e abraçou-se a ela. Foi segura firme, mas com carinho. Apenas ficaram assim por dez minutos.

– Como é tua família?

Escorregou no sofá e ficou com a cabeça na coxa de Alexandra que começou a acariciar sua cabeça.

– Bem diferente da sua. Estamos todos, praticamente, no mesmo ramo.

– Que ramo?

– Saúde. Meus pais são médicos, ela gineco e obstreta, ele cirurgião gastro e possuem dois hospitais em Sampa; não são grandes como os famosos, mas não são minúsculos. Têm todas as especialidades. Meus três irmãos também são médicos e, eu fisioterapeuta, especialista em terapias orientais. Fiz vários cursos em Beijing.

– Sério? Foi à China?

– Várias vezes.

– Não usou dessas terapias ontem, né?

– Claro que não! Só uso em pacientes, em quem precisa. Entre a gente, não vi necessidade de usar nada, além de nós mesmas.

– Alex!

– Oi.

– Acho que agora estou no momento do clima romântico.

– Iuuupiii!!

– Onde minha irmã te encontrou? – Fernanda ri.

– Ela ligou e me convidou a te fazer uma visita surpresa.

– Marcela está ficando alcoviteira!

– Eu não me incomodo com isso!

– Sem vergonha. Vem.

Foram para o quarto. Fernanda tirou rapidamente a roupa e Alexandra quis beijá-la.

– Espera um pouco, preciso de um banho antes.

Foi pra baixo do chuveiro e mal começou o banho passou a ter companhia.

– Morria de inveja das enfermeiras, mas acho que posso fazer melhor que elas.

Pegou o sabonete e começou a passar pelo corpo de Fernanda com uma mão, enquanto a outra em seguida deslizava fazendo espuma. Colocou-se às costas de Fernanda, usando o próprio corpo para espalhar a espuma, ao mesmo tempo em que “lavava” a frente do corpo de Fernanda. Nos seios demorou um pouco mais. Continuou descendo e Fernanda começou a gemer. Quando chegou ao abdômen, agachou-se para lavar internamente as pernas e ao chegar aos tornozelos começou a subir. Encostou-se novamente no corpo de Fernanda, lavando os poucos pelos e lentamente foi-se colocando ao lado, soltou o sabonete, a mão esquerda deslizou por trás e a direita pela frente. Acariciando, provocando, quase entrando.

Fechou o chuveiro, ficou à frente de Fernanda, beijou-a profundamente, encarou-a e se ajoelhou. Dois dedos entraram e a língua bailou no clitóris e a boca sugou quando Fernanda gozou quase caindo pelo fraquejar dos joelhos. Alexandra a segurou, abriu o chuveiro por cinco minutos permanecendo abraçadas e saíram do box para a cama. Já passava das 21h00 quando a fome e o cansaço as atingiram.

Fernanda não tentou mais evitar nada e, dois meses depois, continuavam namorando e em uma sexta feira resolveu fazer uma surpresa para Alexandra, indo buscá-la no hospital para um jantar, um filme.

Foi informada que Alexandra poderia estar onde ficavam os consultórios, provavelmente no de psiquiatria. Ficou tensa, mas foi até lá. Contrário à sua índole, não bateu, simplesmente abriu a porta – ah o ciúme e o medo de perder o amor!.

Alexandra estava lá com uma mulher encostada na mesa, abraçada a ela, com a cabeça em seu ombro. Fernanda não sabia o que fazer, mas Alexandra a viu e fez sinal para que entrasse, sem desfazer o abraço. Depois de entrar e fechar a porta, percebeu que a mulher estava chorando. Depois de alguns minutos.

– Estou tão cansada, Alex! – Fabíola fala.

– Eu sei, Fa, eu sei. – Alexandra responde. – Vamos ficar com você hoje, tá.

– Não precisa, você tem tua vida e Fernanda deve estar te esperando, pode ir.

– De jeito nenhum e Fernanda já está aqui, logo não está me esperando. Vem cá, amor, se lembra da Fabíola, minha grande amiga.

Fernanda se lembrou da irmã comentando sobre a bela mulher que parecia amiga de Alexandra e do dia da agressão da funcionária, quando foram apresentadas rapidamente.

– Oi. — Fernanda fala. – Algum problema?

– Oi, Fernanda, está tudo bem, pode levá-la. – Fabíola responde.

– Não está nada bem, amor, a avó dela, a mulher que a criou, faleceu agora à tarde e não vou deixá-la sozinha. – Explica Alexandra.

– Claro que não! – Fernanda concorda.

– Viu? Não te disse que ela entenderia! Já está sendo tudo providenciado, vamos te levar pra casa pra descansar um pouco.

– Não precisa… – Fabíola reluta.

– Sem mas nem meio mas, vamos indo.

Saíram as três da sala e um homem que acabara de chegar, chamou por Fabíola.

– Raul!

– Oi, minha linda! – Abraçou-a com carinho – Como você está?

– Momentaneamente arrasada, mas vai passar.

– Mas não sozinha. Oi, eu sou Raul, amigo de Fabíola.

– Prazer, eu sou Alexandra e esta é Fernanda. Estávamos levando, na marra, esta teimosa pra casa. Tem que descansar um pouco. Amanhã, o dia vai ser longo.

– Se não se importam, eu também vou.

– Vamos, então.

Levaram Fabíola pra casa, conversaram um pouco com ela. Alexandra praticamente a obrigou a, depois do banho e um calmante leve, ir pra cama.

– Vou ficar com ela, hoje. – Fala Alexandra. – Amanhã, será que dá pra você não deixa-la sozinha pela manhã? À tarde a gente se reencontra pro… enterro.

– Tá ótimo! – Concorda Raul. – Assim ela não fica sozinha nem um pouco. Mais uma tijolada na cabeça.

– Pois é! Você fica comigo, amor? – Pergunta Alexandra.

– Fico sim. – Fernanda afirma.

– Obrigada. Até amanhã, Raul, pena termos nos conhecido nesta situação.

Alexandra e Fernanda ficaram para passar a noite, vigiando Fabíola.

– Ela não tem família?- Questiona Fernanda.

– A avó a criou desde os doze anos, mesmo ela, na época, ter pais. – Alexandra esclarece. – O pai faleceu faz uns dois anos, o irmão faleceu antes do pai e a mãe ela nem sabe por onde anda, ou se está viva.

– Credo! Minha mãe é um horror, mas acho que gostaria de saber como e onde está se perdesse o contato.

– Não julgue amor, por favor! Vou pedir algo pra gente comer e vou te contar a história desta mulher e depois você me diz o que pensa.

Como Alexandra conhecia um pouco a casa, depois de fazer o pedido pra jantarem, providenciou a arrumação da mesa.

– Você a conhece faz tempo?

– Desde o primeiro ano, estudamos no mesmo colégio e depois na mesma faculdade. Nos tornamos amigas um pouco antes de entrarmos na faculdade, mas a história da vida dela só soube há um ano, porque a surpreendi chorando em sua sala. Acho que fora eu só tem um amigo que sabe. Se conheciam na infância e agora ele é jornalista e se chama… como é mesmo? Hum… Raul!! Caramba!

– Que foi?

– É o amigo que sabe toda merda que aconteceu na vida dela! Estava tão preocupada com ela que nem me liguei que seria ele. O irmão do amor de sua vida.

A comida chegou. Sentaram-se à mesa e enquanto comiam Alexandra contou a história de Fabíola para Fernanda. Ao final já se aproximava as quatro da madrugada.

– Que horror! Coitada, até do amor ela desistiu por causa deste monstro?

– Ela acha que entre as duas haverá sempre a sombra do pai, que toda vez que olhar pra ela vai se lembrar da dor que ele causou. Até os cinco anos de diferença de idade ela usa, dizendo que quem ela ama não tem maturidade pra lidar com isso, que a família de Raul jamais aceitaria.

– Você a conhece?

– Não. Mas, vou conhecer. Minha amiga tem direito de ser feliz.

– Também acho.

– Vou dar uma olhada nela e a gente tenta descansar um pouco também.

Por volta das 07h30, Fabíola acordou. Assim que se levantou, Alexandra demonstrando que estava atenta à amiga também acordou e levantou rápido.

– Oi, tá tudo bem? – Alexandra pergunta.

– Dormiu aqui? Fernanda não achou ruim?

– Ela ficou comigo, não se preocupe. Opa, o interfone.

Era Raul chegando, trazendo coisas para o café da manhã para quatro pessoas.

Depois do café, Alexandra e Fernanda foram para casa pra se banharem e trocarem de roupa. Iriam se encontrar no  velório lá pelas 13h00.

Quando chegaram, Raul apresentou sua mulher que o acompanhava.

– Norma! Você não é amiga da Marcela? – Fernanda indaga.

– Ah, você é Fernanda, a caçulinha como ela sempre diz! – Confirma Norma.

– É, é assim que ela fala e me apresenta.

Ficaram conversando baixo, perto da porta e Alexandra foi ao encontro de Fabíola. Havia várias pessoas presentes, todas acima dos 70 anos, amigas da avó de Fabíola e algumas mais jovens que tiveram algum tipo de contato com ela. Era uma senhora querida.

Por volta das 16h30, tudo estava terminado. Fabíola, entre Raul e Alexandra, parecia carregar toneladas nas costas. Vendo-a assim Alexandra tomou uma decisão. Faria o impossível para ver sua amiga ter um mínimo de alegria e só havia uma única pessoa que poderia fazer acontecer. Precisaria de ajuda, mas tinha que conseguir. Colocaria o plano em andamento durante a semana, agora tinham que cuidar de Fabíola. Pegou o numero do celular de Raul.

– Fique em casa o tempo que precisar, aviso minha mãe. – Alexandra fala.

– Segunda estarei lá, tenho pacientes que precisam de mim e, de certa forma, vou precisar deles. – Fabíola responde.

– Você que sabe, mas hoje e amanhã tem que se alimentar e dormir direito, senão nada feito.

– Prometo!

– Melhor que promessa, você vem com a gente agora, janta lá e depois te deixo em casa, amanhã  eu vou te visitar à tarde pra ver como você está.

– Não! Vai curtir Fernanda, vai se divertir que você trabalha demais.

– Vou me divertir também com uma amiga hoje. Anda, vem logo.

– Fernanda, fala pra ela me soltar.

– Acho que você a conhece melhor que eu e, uma vez que ela decidiu, é difícil convencê-la do contrário. Estou pensando em fazer um prato especial pra gente. – Fernanda fala.

– Ah, meu Deus! Tá bom, tá bom, estou indo. – Fabíola cede.

Perto das 23h00 deixaram Fabíola na casa dela, já que não queria dormir fora.

– Gosto de você como amiga. – Fala Fernanda.

– Ué! Por quê? – Alexandra se assusta.

– Você realmente cuida dos amigos.

– Claro! Quando precisam cuido, quando eu preciso cuidam de mim. Não tenho muitos, mas os que tenho são valiosos pra mim, bem como meus irmãos. – Alexandra sorri.

– Como Marcela e Monica pra mim.

– Exato. Amor, vou precisar da tua ajuda em uma coisa.

– No que?

– Amanhã vou ligar pro Raul e dependendo da resposta dele, pretendo armar uma armadilha para Fabíola e a irmã dele.

– Não é perigoso, amor?

– Dependendo da resposta dele, não.

– Tá bom, mas vai me contar depois que ele der a resposta né?

– Nos mínimos detalhes. Talvez precisemos de Marcela.

– Nossa! Aquela metida a Santo Antônio vai topar na hora, é só dizer que é pra unir duas pessoas que se amam que ela se joga.

– Se importa de Fabíola ter ficado com a gente hoje, e amanhã à tarde eu ficar com ela?

– Tenho ciuminho, ela é um mulherão, mas sei que são amigas e ela precisa muito de pessoas que a amam. Ela tem um abraço gostoso! Já teve algo entre vocês?

– Não! – Alexandra responde, rindo. – Nunca pintou este tipo de clima entre a gente. Já com você foi quase de imediato, mesmo você estando estropiada quando te conheci.

– Sem vergonha! E eu era tua paciente.

– E justamente por isso te respeitei e não disse nada até deixar de ser minha paciente.

– Com quantas outras aconteceu?

Contando nos dedos com ar pensativo

– Perdeu a contagem?

– Posso jurar que você foi e é a única. Alexandra responde gargalhando.

– Jura?

– Juro.

Chegaram à casa de Fernanda.

– Teus pais têm a chave?

– Claro que não! Deus me livre, já me cansam demais, não quero mais intromissão na minha vida particular.

– Então podemos compensar esses últimos dias com tranquilidade.

– Plena!

No domingo pela manhã, Alexandra ligou para Raul.

– Oi, Raul, desculpe incomodá-lo no domingo, mas preciso muito conversar com você à respeito de uma amiga em comum e a tua irmã.

– Por que você e Fernanda não vêm almoçar aqui em casa às… 13h30, e a gente conversa?

Concordou na hora, anotou o endereço e se despediram. Fernanda também concordou e às 13h20 chegaram à casa de Raul e Norma, onde foram gentilmente recebidas.

Raul estava impaciente para saber o que Alexandra tinha para conversar e enquanto Norma terminava o almoço sentou-se perto pedindo para que ela falasse. Fernanda foi ajudar Norma.

– Olha só, Raul, tua irmã é o amor de Fabíola. Ela jamais vai fazer algo à respeito e nós dois sabemos os porquês. Se a gente não fizer nada, ela nunca será feliz. Então, a menos que tua irmã tenha alguém ou a tenha esquecido, estou disposta a fazer qualquer coisa para uni-las.

– Minha irmã já andou namorando por breves períodos, mas desistiu porque ama Fabíola. Acho que vou contar pra ela que dona Ângela faleceu. Tenho certeza que irá correndo ver como Fabíola está e eu aproveito para começar a preparar o terreno com meus pais. Denise já contou que é lésbica e que ama alguém por quem está disposta a lutar.

– Então ela também depende da nossa ajuda.

Almoçaram tentando encontrar a melhor estratégia para obrigar Fabíola a baixar a guarda. Raul ligou para Denise contando sobre a morte de Dona Ângela.

Após o almoço, Alexandra e Fernanda foram para a casa de Fabíola levando algo para obriga-la, se necessário, a comer. Quinze minutos depois de estarem conversando e confirmado que Fabíola comeu, a campainha tocou. Fabíola foi abrir a porta e teve o maior susto da sua vida, instintivamente deu dois passos para trás.

– Denise!

– Oi, Fabíola!

Não falaram mais nada, apenas se olhavam com sentimentos palpáveis. Alexandra e Fernanda sentiam a áurea de dor e  e saudade entre as duas quase estátuas em que só os olhos mexiam, dos de Fabíola lágrimas começaram a escorrer sem controle.

– Por favor, entre, Denise.

Denise entrou e se agarrou a Fabíola que não teve como não abraçá-la. O abraço foi demorado e forte.

– Acabei de saber da tua avó. Você está bem?

– Não! – Responde Fabíola. – Não deveria ter vindo.

– Deveria, sim. E vou vir mais vezes aqui, no consultório, onde for necessário pra você me aceitar.

– Não faça isso comigo, por favor!

– Eu continuo te amando, Fabíola, não há terapia que possa mudar isto e, ao contrário de você, não vou deixar um monstro já falecido influenciar a minha felicidade.

– Pensa bem, Denise, pensa na tua família.

– Já passei muito tempo pensando nos meus pais, fiz tudo que podia pra me manter afastada de você, mas não funcionou, então, agora chega. Vou pensar em mim mesma e na minha felicidade.

– Eu não posso, minha querida!

– Vamos ver, sou insistente quando quero. Me beija.

– O quê?

– Me beija e depois me diz que não faço falta na tua vida.

Denise se aproximou, segurou o rosto de Fabíola, obrigando-a a baixar um pouco a cabeça e beijou-a com toda saudade acumulada.

– Pode me dizer?

– Não, nunca!

– Então, até a próxima, porque vou insistir. Vi que não está sozinha e sendo cuidada, mas saiba que eu vou fazer isso logo e pro resto de nossas vidas. Ciao para todas.

Saiu com toda certeza que voltaria.

Enquanto isso, Raul conversava com os pais.

– Quero contar a história de uma pessoa importante pra mim. – Raul fala. – Gostaria que ouvissem com atenção. Lembram que o canalha do Orlando tinha dois filhos?

– Por que falar neste lixo desgraçado agora, filho? – Pergunta o pai.

– Deixa eu contar a história que vai entender, pai. A filha dele, que reencontrei há cerca de três anos mais ou menos, é minha amiga. Sabem o que aconteceu depois que a gente saiu da cidade?

Menearam negativamente as cabeças e Raul contou toda história, incluindo seu sentimento de culpa quanto ao assassinato de Orlando e a reação de Fabíola quanto ao fato, sem contudo dizer que era ela a psiquiatra que atendeu Denise.

– Na sexta feira, dona Ângela faleceu, um ataque fulminante.

– Meu Deus! – Camila fala. – Este cretino foi pior do que eu achava que poderia ser. Pobre menina, o pai só lhe trouxe problemas e dores. Mas, por que está nos contando isto agora, filho? Por causa da morte de dona Ângela?

– Também, mãe, mas podem ouvir falar de Fabíola e gostaria que, se um dia a encontrassem, não a tratassem mal. Ela é tão vítima dos pais, ou talvez, até mais do que as outras pessoas.

– Você gosta muito dela, não é, filho? – Camila, a mãe de Raul, questiona.

– Gosto sim, muito. É uma pessoa boa, doce, sempre disposta a ajudar, apesar de tudo que já sofreu.

– Foi bom você ter contado tudo isto pra gente. – O pai fala. – Tem algo mais pra gente saber a respeito dela, filho?

– Por enquanto não, pai. Bom, tá na minha hora e Norma está à minha espera.

Beijou os pais e saiu, encontrando Denise que chegava.

– Oi, grandão! Veio ver os velhos? Tá tudo bem?

– Vim, sim, e já estou indo pra casa. Tudo tranquilo.

Beijaram-se se despedindo.

Fabíola estava mais triste que nunca, continuava a boa profissional atendendo seus pacientes, tratando bem as pessoas, passando mais tempo no berçário e Alexandra resolveu que aquilo tinha que acabar.

Conversou com Raul e Fernanda e, de acordo com os dois, pediu um favor à Marcela.

Fabíola estava prestes a deixar o consultório no fim do dia e o telefone toca.

– Alô!

– Fabíola?

– Sim.

– É Marcela, irmã de Fernanda – a voz estava desesperada.

– Aconteceu alguma coisa? Posso ajudá-la?

– Pode sim… acho que ela surtou… não sei! Não consigo encontrar Alexandra… por favor, pode… pode vir aqui?

– Aqui aonde?

Anotou o endereço, ligou para Alexandra e como ninguém atendeu, resolveu ir até o local que Marcela passara.

O porteiro já estava ciente que ela viria e a deixou subir. Depois de tocar a campainha do apartamento:

– Alexandra!?

– Obrigada por vir, Fabíola, entre. – Alexandra a recebe.

– Que aconteceu? – Preocupada, Fabíola questiona.

– Queremos uma reunião com você e, se soubesse não viria, então criamos um subterfúgio. Desculpa, mas foi necessário.

– Queremos? Quem?

– Nós todos aqui.

Estendeu a mão, mostrando as pessoas na sala. Denise, Raul e Fernanda.

– Denise!

– Oi, amor. – Denise responde.

– O que… o que… – Fabíola, assustada, pergunta.

– Sente-se, Fabíola, e hoje você vai ouvir. – Alexandra fala firme.

– Estou cansada de sonhar com você. – Denise expõe. – Quero uma vida plena com você. Quero amar e ser amada, mesmo que tenha algumas coisas a enfrentar, sei que podemos fazê-lo juntas.

– Eu não posso te colocar…

– Chega disso, Fabíola! – Raul interfere. – Minha irmã tem sofrido com tua falta, tem enfrentado os pais com sinceridade e está disposta a ser feliz ao teu lado. Você está cada dia mais só e triste, não acha que tá na hora de virar esta página? Criar coragem e tomar uma decisão boa para ambas?

– E se a gente ficar juntas e, um dia, ela…

– Desculpe, não te conheço tão bem nem há tanto tempo quanto eles, mas acho que enquanto você não se perdoar pelo pai que teve, não tentar esquecer, não vai seguir em frente. – Fernanda também interfere. – Está presa mais que todos no passado, então eu te pergunto, por quê? O que teu pai te fez que te faz pensar que poderia tê-lo impedido de atacar tantas vítimas pelo caminho? Os primeiros que este tipo de gente ataca são os que estão mais próximos.

Fez-se silêncio. Ninguém tinha atentado para este detalhe antes. Denise se ajoelhou em frente à Fabíola que tinha lágrimas livres em seu rosto e segurou suas mãos.

– Ele atacou você?

– Quando eu tinha seis anos, estávamos sozinhos em casa… ele se aproximou todo carinhoso… dizendo que me daria um… banho. Começou a me apertar… machucou, eu gritei… ele tentou me fazer… parar de gritar… minha mãe chegou. Minha avó ligou à noite e eu contei pra ela. No dia seguinte, ela estava em casa. Ameaçou ir à policia, dizendo que ele continuava… o mesmo porco. Minha mãe chorou, implorou e… ela só disse que se ele encostasse a mão em mim novamente pagaria para que o castrassem e daria suas bolas pros cães de rua, antes de o entregar a policia… se ela tivesse feito!

– E tua mãe? – Denise perguntou.

Um sorriso triste

– Disse que crianças imaginam coisas. Como sempre o defendeu.

– Você era uma criança! – Alexandra exclama. – Você precisava ser protegida.

– Você não tem culpa de nada, minha querida!  – Raul concorda. – Ele foi denunciado mais de uma vez e não parou. Ele foi preso e não parou. Nunca quis mudar. Nada que tivessem feito na época, mudaria o que aconteceu depois. Você foi só mais uma vítima dele, talvez a mais atingida. Precisa deixar o passado, por favor.

– Algum risco de você não se envolver com homens, por causa do teu pai? – Alexandra indaga.

– Não! Sempre me sentia atraída por mulheres, desde pequena, antes de tudo acontecer que o corpo feminino me pareceu mais belo. A maioria dos casos de abuso, de alguma forma provoca fechamento emocional. Há os que se tornam viciados em sexo. Uns poucos se tornam agressores até violentos. Mas, não transforma ninguém em gay!

– Mais um motivo para seguir tua vida agora que tem chance e um amor. – Alexandra afirma. – Me diz francamente quando, sem tomar alguma medicação como quando do enterro da tua avó, dormiu por várias horas com tranquilidade.

– Aos seis anos!

– Deixa eu te ajudar, amor.  – Denise pede. – Todos aqui estão dispostos a te ajudar.

Abraçou-a com força, saudade e imenso amor.

Fabíola chorando agarrou-se a ela desesperadamente. Tinha amigos verdadeiros, um amor verdadeiro, era todo suporte que precisava para ser feliz, para se perdoar de uma culpa que nunca fora dela.

– Teus pais jamais me aceitariam. – Fabíola ainda reluta.

– Meus pais são problema somente meu. – Afirma Denise. – Se de fato eles não te aceitarem, eu aceito. Não me lembro do teu pai quando te olho, é você que faz  isso quando me olha. Acabou, ele está morto.

– Não forçaria nunca a fazer este tipo de escolha!

– Não tenho escolha, não vê? Estarei com você e se não me quiserem por causa disto, o que eu duvido, então continuarei amando-os e torcendo para que, um dia, mudem de ideia, mas não vou deixar você me abandonar de novo. Não preciso mais deste tipo de proteção.

–  Estou tão cansada!

Fernanda levantou, indicou o quarto para Denise e, enquanto esta ajudava Fabíola a se levantar para ir até lá, entrou antes, pegou alguma roupa para o dia seguinte. Quando Denise entrou apoiando Fabíola, Fernanda saiu e fechou a porta.

Denise fez Fabíola se deitar na cama, descalçou os calçados das duas, deitou-se ao seu lado e Fabíola se enrolou encostando o máximo de seu corpo nela e dormiu em segundos. Depois de tantos medos, sonhos, esperanças, assim foi a primeira noite juntas. Uma noite de descanso reparador para uma que não tinha desde criança e a maturidade, aconchego e compreensão da outra. Teriam muitas noites e dias para outras coisas que não fosse dormir.

Fernanda foi para a casa de Alexandra, afinal não estavam tão cansadas quanto Fabíola.

No dia seguinte, Raul acompanhado por Norma, foi falar com os pais. Tinha começado a contar a história e, como bom jornalista queria termina-la, torcendo muito para um final feliz.

– Oi, querido! – Camila os recebe. – Não sabia que vinham almoçar, não fiz nada especial.

– Ah, mãe, se não der, a gente pode ir a um restaurante.- Raul propõe.

– Claro que dá, mas é comida do dia a dia! – Camila sorrindo responde.

– Dona Camila, sua comida é sempre saborosa, não se incomode, nós é que devíamos perguntar antes de vir. – Norma explica.

– Imagine! Não precisam perguntar é só avisar se quiserem comer um pouco melhor que o comum.

– Você sabe onde tua irmã está? – Daniel pergunta. – Não veio pra casa noite passada!

– Sei sim, pai. Não se preocupe, ela está bem. Depois do almoço preciso conversar com vocês.

– Algum problema, filho? – A mãe questiona. – Norma está grávida?

– Não, mãe! – Raul sorrindo, responde. – Ainda vai levar pelo menos um ano pra isso.

Continuou brincando, falando de várias coisas até o final do almoço.

– Pai, mãe. Vocês se lembram que outro dia contei a história de Fabíola e perguntaram por que eu estava contando?

Acenaram afirmativamente.

– Agora vou contar o resto da história e o porquê, antes que Denise volte, porque não quero que ela enfrente sozinha esta barra.

– Que barra, filho? – Pergunta Daniel, estranhando a fala do filho. – Tua irmã está com algum problema?

– Deixa eu contar tudo e vocês entenderão. Primeiro, deixa eu dizer como e quando encontrei Fabíola.

Contou detalhadamente, deixando bem claro que ela quis se afastar e ele não deixou sabendo que conhecendo a história, ela protegeria Denise. Por último, contou sobre a reunião do dia anterior na casa de Fernanda.

– Ela foi vítima do pai com a conivência da mãe, bem antes dele atacar Denise. Desde então, ela dorme mal e só ficamos sabendo disto ontem.

– Meu Deus! – Camila se assusta. – Como uma mãe pode agir assim?

– Então, por tudo isso é que Denise não quis dizer por quem está apaixonada e também os motivos de não se verem por tanto tempo?! – Conclui Daniel.

– É isso, pai. Ontem, Fabíola simplesmente desmoronou. Denise ficou com ela e eu sei que finalmente vai contar pra vocês, porque está feliz por se acertarem.

– Eu tinha pensado que as duas não se viam porque a tal mulher se achava melhor que minha filha. – Supôs Daniel. – Acho que estava enganado, né?

– Redondamente pai! Não queria que Denise sofresse, tinha medo da reação de vocês por causa do pai dela e não queria que Denise tivesse que escolher entre os pais e ela. Sabe que, qualquer que fosse a escolha, não lhe faria bem, então se afastou.

– Não sei como vou reagir se minha criança apresentar ela pra mim. – Camila reluta. – Nunca achei que ela fosse amar uma mulher!

– Vai ser estranho agora que é real. – Pondera Daniel. – Ela tinha dito que é gay, que amava uma mulher, mas eram só palavras, agora é real e eu não sei o que fazer.

– Por tudo isso que resolvi contar toda história para deixar vocês preparados, pra dar tempo de pensarem e, por favor, não maltratem mais uma pessoa que já foi tão maltratada por quem devia protegê-la. Podem até dizer que não querem vê-la, até aceitarem a ideia, mas não a magoem mais do já foi magoada.

– Não é só tua irmã que a ama, né, filho? – Daniel questiona.

– Não, pai! Algumas pessoas que a conhecem bem a amam, eu entre elas, e torcemos muito por ela.

– Seu Daniel, é só ver que Denise é a mesma pessoa de sempre e que ama alguém do bem e esse alguém também a ama e fará tudo que pode para fazê-la feliz. – Norma afirma. – Uma pessoa que só ajuda os outros, que não prejudica ninguém a não ser ela mesma, às vezes, pra não trazer sofrimento pros demais. Não precisa gostar dela, apenas respeitar uma pessoa íntegra.

– Respeitar para não atrapalhar a felicidade de minha filha… acho que posso fazer isso. – Pondera, mais uma vez, Daniel.

– Podemos sim. – Concorda Camila. – Com o tempo, a gente descobre como vai ser quanto a gostar ou não dela.

– Oi, pessoal. – Denise chega, cumprimentando a todos. – Raul, Norma, vieram almoçar?

– Viemos e já almoçamos. – Raul responde, feliz.

– Que bom! Pai, mãe, reencontrei aquela pessoa que amo e falei pra vocês e a gente se acertou. Conversamos muito agora de manhã, almoçamos e vim pra casa contar pra vocês. Ou responder tudo que quiserem me perguntar, se preferirem.

– Vai sair de casa, filha? – Camila indaga.

– Vou, mãe. Ela não é uma desvairada, já a conheço faz tempo. Raul e Norma também. Virei sempre  aqui, não vou desaparecer e só vou trazê-la em casa, se resolverem que querem falar com ela, ou encontrar em local neutro.

– Por que acha que não gostaríamos de conhecer a pessoa com quem você vai viver? – Pergunta Daniel.

– Vocês a conheceram quando ela era criança. É Fabíola, filha de um monstro chamado Orlando e uma cretina chamada Marta.

– Oh, meu Deus! Sabendo de tudo você a aceita, filha? – Camila se espanta.

– Ela não tem nada em comum com aqueles lixos, mãe! Eu a amo. A falta dela dói demais. Eu espero que vocês a respeitem, só isso. Se não quiserem vê-la, a gente entende. Vou contar tudo sobre ela, quem é agora, o que passou e depois de ouvirem tudo não acredito que possam odiá-la.

– Nós não a odiamos, filha, só nos dê tempo para entender, pra pensar. – Daniel explica.

– Eu já contei tudo a eles sobre Fabíola, pequena. – Raul esclarece. – Desculpe se você queria contar.

– Tudo bem, Raul! – Denise fala. – Você sabe até mais que eu a história dela, a conhece há mais tempo.

– Só nos dê tempo, filha, e vamos sim querer conhecer ela melhor. – Pede Camila.

– Nada mais justo, mãe. Só não vamos forçar nada, não se preocupe, também não vou deixar de estar presente para vocês.

– E aí, amor, quando vou ser apresentada pros sogros? – Indaga Alexandra.

– Tá doida!? – Fernanda se assusta.

– Não! Sábado, vamos jantar com minha família pra você ser apresentada.

– Eu vou!? Tua família que me conhecer?

– Claro! Sabem que estou amando alguém, que sou correspondida, estamos namorando, então querem te conhecer.

– Pois a minha, com exceção de Marcela, não faz ideia se sou lésbica, ninfomaníaca, trans, frígida, nada.

– Que horror!

– Horror nada! Melhor assim, não quero meus pais se metendo na minha vida mais do que já fazem. Se souberem que sou homo são capazes de me internarem.

– Credo! Mas uma hora vai ter que contar. Quem sabe fica livre das reuniões depois?

– Ao menos uma vantagem, né?

– Falando sério, uma hora vão saber e será pior se for através de fofocas, se for distorcido. Quanto antes contar, melhor. Você não precisa deles.

– Talvez você tenha razão. Vou pensar no assunto.

O sábado chegou e Fernanda estava uma “pilha” o dia todo. Alexandra tentou acalmá-la, mas acabou desistindo. Por volta das 18h00 chegaram à casa dos pais de Alexandra. Dona Isadora abriu a porta.

– Oi, meninas!

Abraço caloroso na filha, seguido de um beijo na testa.

– Então, esta é Fernanda! – Isadora exclama. – Como está, mocinha?

Mais um abraço e beijo na bochecha. Fernanda sorria, sem saber como se portar.

– Entrem logo que estão esperando. – Isadora fala, sorrindo.

E foi puxando Fernanda pela mão casa adentro, enquanto ia dizendo alto que elas haviam chegado. Os três irmãos com seus respectivos cônjuges, mais o pai de Alexandra, já estavam vindo de encontro. Todos as abraçaram e beijaram sorrindo, dando a certeza a Fernanda que era aceita. O alívio veio logo. Os quatro sobrinhos de Alexandra estavam no quintal dos fundos da casa brincando e também foram apresentados.

Nem voltaram pra casa naquela noite, porque depois de muito papo, o jantar lá pelas 21h00, as crianças apagaram e os adultos continuaram conversando, bebericando, brincando e ficou tarde. Dividiram as mulheres e os homens nos três quartos restantes da casa, já que um ficara com as crianças e outro com os donos da casa, claro.

Alexandra e seus irmãos ainda tinham coisas na casa dos pais, inclusive pijamas que dividiram com os convidados. Só foram embora depois do café da manhã do domingo.

Fernanda ficara encantada com a família toda, com o carinho, intimidade e amor entre pais e filhos e até com os novos componentes. Ah, se a família dela fosse assim! Mas não era. Provavelmente nunca contaria sobre ela e seu amor.

Pelas conversas ficou sabendo que 10% dos leitos dos hospitais da família eram para os mais necessitados. E que cada um dos irmãos, uma vez por semana iam a algum lugar aonde não chegava ajuda médica de outra espécie.

Soube também que doutora Isadora, mãe de Alexandra, tinha um irmão gay e que o doutor Alfredo, o pai, tinha uma irmã lésbica, talvez por isso não criaram caso quando Alexandra, aos 13 anos, informou-os, como ela dizia, sua “gaysisse”. Apenas a preveniram a ter cuidado, não dizer pra todo mundo por causa dos preconceituosos, que não ficasse trocando de namoradas como quem troca de roupa, pensar e conhecer antes de se envolver e só apresentar à família a pessoa por quem se apaixonasse.

Quanto a ela, já que a pessoa da família consanguínea que a interessava já conhecia seu amor, resolveu, talvez pra saber a reação, apresentá-la a quem tinha sido mais sua mãe do que quem a gerou. No sábado seguinte, convidou Alexandra a fazer uma visita surpresa em um lar modesto. Tocou a campainha no portão alto e aguardou.

– Nandinha!

– Oi, Bá, que saudade!

– Fiquei magoada quando não quis que eu cuidasse mais de você, mas parece que está bem.

– Ah fica, não! Sabe que te adoro e você tem tua vida, teus filhos e já fez demais por mim.

– Entrem. Não vai me apresentar tua amiga? Não foi isto que te ensinei, menina!

– Desculpe, Ba – rindo – ela é o motivo da minha visita surpresa. Bá, esta é Alexandra, a mulher que amo e pretendo me casar.

– O que? Está apaixonada? Tua família sabe?

– Só Marcela.

– Venha cá, Alexandra, me dê um abraço e presta muita atenção. Essa menina vale ouro, cuide bem dela.

– Pode deixar, dona…

– Madalena, menina. Quando é que vão se casar?

– Acabei de saber que vou me casar! – Alexandra, surpresa, responde.

– Ainda não conversamos sobre isso, né! – Fernanda ri com a carinha de Alexandra.

– Não, mas já vou convidando as madrinhas. – Alexandra responde. – Quando vai ser?

– Não seria melhor depois de contar pra família? – Pondera Madalena.

– Acho que vou ter que fazer isto, né? – Fernanda responde.

As duas balançaram as cabeças afirmativamente.

– Mas até que isso aconteça, vamos entrando. – Convida Madalena.

Até então estavam no quintal, ao entrarem foram surpreendidas com o casal de filhos de dona Madalena que a visitava, bem como seus cônjuges e filhos. Há muito Fernanda não os via. Foi uma tarde de recordações e carinho entre amigos.

Finalmente Fabíola foi convencida a encontrar os pais de Denise. Seria um almoço na casa de Raul, território mais ou menos neutro. Chegaram às 13h00 e os pais já estavam sentados na sala, nervosos e apreensivos. Cada um de seu lado tinha motivos para que não fosse fácil aquele encontro.

Os olhos de Fabíola, assim que entrou e se apercebeu dos dois, umedeceram. Dona Camila olhou-a nos olhos e viu dor e muito medo. Instintivamente, em sua cabeça, passou a história daquela mulher que Raul tinha contado com detalhes. Algo subiu de seu peito para o cérebro e tudo que pode retribuir em meio as lágrimas foi amor e entendimento. Abraçou-a como quem abraça uma filha. Seu Daniel entendeu porque conhecia bem a mulher a quem amava. Também chorou e as abraçou.

Raul apenas observava com o braço nos ombros de Denise.

– Graças a Deus! – Denise falou, emocionada.

Norma entrou na sala e viu todos chorando.

– Gente! Tá tudo bem?

Todos se separaram e acenaram que sim.

– Que bom! Acho que todos se entenderam, não é? – Norma concluiu.

O almoço foi bem tarde, mas houve muita conversa e entendimento naquele dia.

– Sério!? – Fernanda pergunta. – Foram completamente aceitas, que maravilha!

– Eu demorei a ter coragem pra ser feliz, mesmo orientando pessoas a fazerem suas próprias escolhas, mesmo tendo ajuda valiosa para isso. – Conta Fabíola. – Se você quer ter sua própria vida, sem medos, assuma-se e chute o balde, Fernanda. Não deixe mais teus pais a dirigirem. Sei o que influências fazem, pro melhor e pro pior. Ou vai continuar indo às reuniões, aos sábados?

– Acho que cansei de fato de tudo isto! – Expressa Fernanda.

– Ela vale a pena? – Denise questiona.

– Ela é a pessoa que sempre procurei, acho que, desde outras vidas em que não nos encontramos.

– Vai ficar disfarçando, escondendo quem você é até quando? – Fabíola indaga.

– Covardia, né?

– Continua tendo medo dos teus pais? Duvido. – Deduz Fabíola. – Acho que não é medo que você tem, já que seguiu tuas vontades na vida profissional, e não as ordens deles.

– Talvez medo do que possam fazer com quem eu esteja. Dinheiro fala alto e prejudica muito quando usado por quem não liga pra moral, pra respeito. Mas, você tem razão, se não quiserem mais me ver, tenho certeza que a irmã que amo continuará sendo minha irmã, os outros mal conheço. Se quiser casar com alguém, como posso não ser sincera comigo mesma?

– Tem todo o meu apoio! – Fabíola aponta. – Olha lá, tua futura mulher e amor de sempre chegando.

De fato, Alexandra aproximava-se da mesa que Fabíola, Denise e Fernanda ocupavam no restaurante. Cumprimentou a todas com beijo no rosto.

– Desculpem o atraso, meninas.

– Só espero que não estava até agora massageando uma gostosa safada! – Fernanda implica.

– Era uma gostosa de 82 anos que ainda cuida de netos porque todos da família trabalham duro e sábado é o dia que ela tem horário disponível. – Alexandra explica, rindo.

– Dá pra não amar esta abnegada mulher? – Brinca Fernanda.

– Dona Maria José? – Alexandra mexe com a namorada.

– Não, engraçadinha, você! – Responde Fernanda.

– Até eu que a conheço há menos tempo já a amo. – Denise entra na brincadeira.

– Hei! Menos, foi só um comentário, não precisa amá-la, não! – Fernanda implica.

Todas riram e o papo seguiu sobre ciúme, casamento, amor e a decisão de Fernanda em deixar claro à família, sua “condição” sexual.

No próximo sábado da malfadada “reunião” familiar

– Tem certeza que vai cutucar a onça hoje? Tá todo mundo presente. – Marcela indaga.

– Vou.

Os pais e o irmão entraram na sala, cumprimentaram-na como sempre e foram para a mesa.

– Então, Heitor, alguma novidade para contar para tuas irmãs? – Yolanda questiona.

– Ah sim! Como sabem… – Heitor começa a relatar.

Fernanda mal tocou na comida, nem ouvia as explicações de cada um sobre o trabalho deles. Antes da sobremesa:

– Eu quero dizer algo e vou ser direta e rápida. – Fernanda fala. – Estou amando alguém com quem pretendo me casar em breve e deixar claro que é uma mulher. Sou lésbica desde sempre, apenas não havia contado antes porque não havia ninguém, mas agora encontrei o amor da minha vida e resolvi lhes contar.

– Hum. – Yolanda resmunga. – Você nunca segue as normas ou as melhores coisas pra todos, não é? Não precisa mais vir às reuniões mensais, assim podemos fazê-la na firma com todos reunidos para as reuniões com a diretoria e acionistas. Tem algo a dizer, Edward?

– Melhor nos apressarmos, porque o recital para o qual Humprey nos convidou é às 17h30. – Edward responde.

Marcela estava pasma. Heitor pegou a sobremesa como se o que fora dito fosse de um desconhecido. Fernanda, com sorriso sarcástico, beijou Marcela e saiu.

– Peraí! Mãe, pai, sério!? – Marcela pergunta. – É só o que têm a dizer?

Olharam-na como se tivesse dito um absurdo, suspiraram e saíram. Marcela olhou o irmão que tranquilamente, acabava a sobremesa e teve vontade de chorar, de esmurrá-lo, mas achou melhor ir atrás da irmã.

Fernanda já estava no carro, manobrando para sair. Parou quando ouviu a irmã chamá-la.

– Como você está? – Marcela indaga.

– Triste, mas acho que sabia que a reação seria mais ou menos assim. – Responde Fernanda.

– Pois eu não estou nada bem. Que raiva!

– Não esquenta, nós duas fomos criadas pela Bá, lembra? Aprendemos a respeitar, a amar e eu amo você nesta família, já os outros…

– Vou querer ser a madrinha deste casamento com amor, que te deu forças pra ser quem você realmente é.

– Te aviso a data assim que decidirmos qual será.

– Acho que a família do lado de lá ganhou mais uma pessoa.

– Do jeito que são acredito que aceitam mais uma irmã, cunhado e sobrinhos.

– Ótimo. Dá um beijão na minha cunhada por mim. Eu vou sair com o maridão e os filhotes, acho que esta casa não vai mais me ver.

Dois meses depois.

– Oi, Marcela, desculpe, mas acho que vai ser testemunha, madrinhas e padrinhos só na igreja e a gente se casa só no cartório. – Explica Fernanda.

– Detalhes de nomenclatura, eu serei a madrinha e ponto. E vou fazer uma festa! – Afirma Marcela.

– Não vai não, os pais de Alexandra já estão providenciando.

– Falou com eles, antes de mim?

– Estávamos jantando com eles ontem, falamos de casamento, Alex sugeriu uma data, eu aceitei e pronto, já começaram os festejos! Mas pode ter certeza que aceitam tua ajuda. Aliás, querem te conhecer logo.

– Pois vou conhecê-los no sábado!

Na segunda feira, no hospital, doutora Isadora recebe a visita de dona Yolanda. Assim que entra no escritório.

– É a segunda vez que venho falar com você sobre uma das suas funcionárias. — Yolanda, arrogante, exclama. – Da primeira vez, pelo jeito, não se tomou nenhuma providência. Ela foi absurdamente grossa com uma cliente, no caso eu, mas continuou trabalhando aqui normalmente. Outro dia minha filha anunciou que está namorando uma mulher, mando investigar e não levou mais que um dia pra descobrir quem era. A mesma pessoa que me destratou aqui dentro. Quero ela fora deste hospital ou vou processar você como responsável.

Dra. Isadora apenas, como da primeira vez que Yolanda entrara em sua sala, segurava o celular de pé, filmando toda a cena e as palavras ditas.

– Boa tarde! – Isadora replica. – Pra quem veio reclamar por falta de educação de um dos funcionários do hospital, esperava ao menos uma saudação educada!

– Já disse o que vim dizer. Se não quiser um processo, tome uma providência.

Saiu sem se despedir ou fechar a porta. Isadora apenas sorriu.

À noite, ainda no hospital, chamou os filhos, o marido e mostrou as gravações.

– Então, meninos, mando a funcionária embora, ou acham que tomo uma atitude contra esta mulher? – Pergunta Isadora, sorrindo.

Riram.

– Desculpe por passar por isto, mãe. – Fala Alexandra. – Envia os vídeos pra mim que eu tomo a atitude a respeito.

– Tem certeza, filha?

– Tenho, mãe, e Fernanda nem vai saber.

– Não vai precisar de ajuda, filha? – Indaga Alfredo.

– Não se preocupe, pai, já sei quem pode me ajudar sem envolver ninguém.

Alexandra, assim que saiu fez duas ligações, uma para Fernanda avisando que ainda se encontrava no hospital em reunião e outra para Marcela contando os fatos e enviando os vídeos sobre dona Yolanda. Combinaram o que fariam para Alexandra encontrar a “sogra” e dizer o que queria.

Dona Yolanda tinha o hábito de às quintas almoçar no restaurante do clube. Encontrava algumas amigas e passava a tarde por lá se “informando” sobre as “notícias” sociais.

Alexandra entrou logo depois dela, conversou com o maître e se dirigiu à mesa de Yolanda.

– Boa tarde, dona Yolanda.

Levantou a cabeça pensando ser uma das garçonetes.

– Ainda estou… o que? Como entrou aqui?

O olhar gélido de Alexandra a convenceu a permanecer sentada.

– Fale baixo, por favor, estamos em público, dona Yolanda. Não vou nem me sentar, serei muito breve. Observe um trecho deste vídeo. Sua filha não sabe de nada sobre ele e pretendo que continue assim. Entrei aqui porque minha família, da mesma forma que a sua, tem uma situação econômica melhor que a maioria da população e pode pagar para frequentar um clube como este, embora raramente o façamos. Diferente de você, gostamos das pessoas e as tratamos bem. Quer saber por que minha mãe, a Dra. Isadora, não me mandou embora? Bom, ela me criou, conhece muito bem cada um dos filhos e sabe como ninguém defender o que importa.

– Tua mãe!?

– Minha família possui mais de um hospital e uma clínica onde atende pessoas que não podem pagar, são todos médicos. Eu sou fisioterapeuta especialista em traumas severos, medicina oriental, coisas alternativas que, de fato, ajudam e muito na recuperação mais rapidamente. Amo sua filha, mas não a você porque é uma pessoa desprezível. Posso até usar seus vídeos para processá-la ou colocar na internet, tuas amigas iam adorar.

– Como se atreve…

– Ainda não terminei! Está acostumada a ter controle de tudo, através do dinheiro, e nada de humanidade. Pois adivinhe, desta vez teu dinheiro não vai funcionar. Só vou dizer mais duas coisas antes de sair. Lembre-se que conhecemos tudo sobre dor, sobre coisas que podem matar, coisas que envenenam a um toque, ou em algum alimento, uma pequena picada, pressão em determinado nervo, coisas infindáveis, bem como quem atende quando acontece algo assim. E, pasme, podemos frequentar os mesmos lugares que você! Então, cuide de sua vida e nos deixe em paz e nunca mais nos ameace. Esqueça que existimos e não nos lembraremos de você. Adeus.

Yolanda que antes tremia de raiva, agora tremia de medo. O olhar daquela mulher transformava em pedra gélida seu semblante, em punhais cada piscada e Yolanda acreditou nas palavras ditas. Lá fora:

– E aí, você falou poucas e boas pra ela? – Pergunta Marcela.

– Hum, disse algumas coisas sim. – Responde Alexandra.

– E ela ficou calada? Não gritou?

– Tentou, mas fui convincente. Ainda bem que ela não conhece o caráter da minha família que é ajudar as pessoas e salvar vidas, nunca prejudicar alguém de forma alguma.

– E o que pretende fazer?

– Nada! Mas ela acreditou que eu poderia fazer e isso é o que importa. Lembre-se que é segredo.

– Pode deixar, tô apagando que um dia te ajudei a ficar cara a cara com minha mãe. Vamos almoçar?

– Vamos, mas não tenho muito tempo, vamos lá, perto do hospital.

Dona Yolanda, se não as esqueceu, fez de conta. Nunca mais as procurou, nem à família de Alexandra.

Marcela foi almoçar com a família de Alexandra.

– Olá! Vamos entrando e me dê um abraço. – Isadora a recebe. – Cadê teu marido?

– Era para trazê-lo? – Marcela indaga. – Desculpe, não sabia e ele foi jogar com alguns amigos.

– Fica pra próxima. E os filhos?

– Caramba! Nem pensei que queriam conhecer a família inteira. A babá está em casa até eu voltar.

– Então venha conhecer o resto da família que está por aqui hoje e acertar algumas coisas pro casamento. No próximo, traga todos.

– Tá bom!

Foi apresentada ao pai e a irmã de Alexandra e também aos pais de Denise que estavam por lá. Foi fácil a amizade surgir, afinal eram pessoas boas com alguns interesses em comum, sendo o primeiro da lista, o planejamento do casamento que de repente, passou a ser em duplicata, porque Fabíola e Denise poderiam se casar no mesmo dia que Alexandra e Fernanda, embora ainda não soubessem.

Os encontros passaram a ser corriqueiros e logo Marcela e família já eram como velhos amigos e frequentadores da casa da Dra. Isadora e as crianças se enturmaram mais rápido ainda.

Com tanta gente planejando, as que se casariam – inclusive as que foram “intimadas” a preparar a documentação para o mesmo dia – não precisaram se preocupar com nada.

Desta vez não foi difícil convencer Fabíola a aceitar. Até que enfim, as influências do pai em sua felicidade pareciam estar se desfazendo.

Quando o grande dia chegou, as noivas descobriram que tinham muito mais amigos do que pensavam. As mães e a irmã não esqueceram nenhum. Caso alguém passasse mal não teria problemas porque tinha mais médicos ali que no hospital mais próximo. Advogados, babás, pessoas da fábrica, amigos de infância, de escola, etc… muita gente de várias classes sociais, de credos, cores, gêneros, opiniões diferentes, mas que sabem respeitar o outro, que ouvem outras ideias antes de dar opinião. Havia bebidas, mas não houve excessos, buffet sem muita frescura para não constranger ninguém.

Música, dança, bom papo, tudo depois dos sim, da alegria, dos choros de felicidade. As agora casadas, foram para lua de mel juntas no mesmo carro, em uma “peregrinação” pelo litoral brasileiro, para conhecer as praias mais rústicas, sem muito turistas. Todas, com um mês de férias, para poderem curtir a Natureza e, principalmente nutrir e desfrutar o amor entre elas.

FIM.



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