Intuição

Intuição

INTUIÇÃO

O dia estava quente e tranquilo até o momento; e a Sargento Sonia já se preparava mentalmente para o que faria assim que chegasse à Companhia que trabalhava e passasse a viatura, quando seus pensamentos foram interrompidos pelo som de várias buzinas dos carros à frente que não se mexiam, mesmo com o semáforo verde.

Ah, não! Logo no fim do serviço acidente de trânsito e eu tinha que estar perto!” – pensou – “Bem, lá vou eu.”

– Espera aí, Walter, vou dar uma olhada pra ver o que está acontecendo. Apanhou o hand talk e foi andando, enquanto o motorista aumentou o volume do rádio da viatura e saiu, permanecendo de pé com a porta aberta e vigilante.

No espaço de aproximadamente quatro carros pra chegar ao semáforo, havia um carro importado parado, motor ligado e, ao chegar ao lado do motorista, este estava com a cabeça tombada sobre o peito, os braços para baixo. Aproximou-se com cautela olhando o vidro abaixado, ar condicionado ligado, o que estranhou e então viu um pequeno filete de sangue escorrendo pelo pescoço. Nem precisou pensar muito, simplesmente acionou o HT (hand talk).

– Viatura 154 informando um homicídio ocorrido na Avenida Paulista, próximo ao farol com a…

Passou todos os dados que tinha, pedindo para acionarem o pessoal do Trânsito e da Polícia Civil e um talão para a ocorrência. E o dia tranquilo, deixou de ser, bem como o término de seu serviço. Depois de dez minutos, o Trânsito chegou com cones providenciando o desvio seguro. E após mais dez minutos chegou uma viatura da Civil, com a investigadora chefe da Homicídios.

– Hei, Sonia! Você não está trabalhando pela manhã?

Abraçaram-se.

– Oi, chefia!, Ué, atendendo ocorrência? Eu estava no final do plantão, a caminho da Companhia, para ir embora quando isso me parou.

– Que merda, Sonia! Logo no final do serviço? Passa aí como foi exatamente.

Contou todos os detalhes e que não havia nada de suspeito até começarem a buzinar e o motorista logo atrás do carro em que ocorrera o crime, estava ocupado no celular enquanto o semáforo estava fechado e também não vira nada, além dos vidros escuros do veículo da vítima não deixarem ver bem o interior.

– Quando avisaram no Distrito Policial, passaram a placa e descobriram que o dono do auto é Jordan Duchantoise que, aliás, está sempre com motorista e segurança. Daí me interessei no ato.

– Por quê? O cara é importante?

– A família veio da França, no final de 81, início de 82, de um jeito meio suspeito. Dizem que não há máfia por lá, mas tem algo parecido, envolvendo várias pequenas organizações criminosas e três dessas famílias vieram para cá na mesma época.

– Como e por que sabe disto? Já se envolveram antes em algo sujo aqui no Brasil?

Enquanto conversavam, algumas pessoas haviam parado na ciclovia, olhando o movimento dos policiais. Sonia olhou distraidamente apontando para o soldado Walter mandá-los circular, a fim de evitar outros acidentes, quando se deparou com olhos cor indefinido que a olhavam fixamente. Divagou por alguns segundos até Ingrid trazê-la de volta.

– Hei! Que nada, estão discretos por aqui, pelo menos até agora, mas faz uns doze dias acho, que o chefe da família que veio pro Rio, um tal Louis Chermont, foi morto misteriosamente e o crime não foi esclarecido ainda. Fomos alertados pelo pessoal do Rio que investigou um pouco e ficaram preocupados. Depois deste, acho que vou falar com meus primos franceses.

-Ah é! Você tem um primo na Interpol, né?

Sonia olhou para os ciclistas, mas Walter já tinha feito eles saírem.

– Tenho sim.

– Sempre me esqueço que você é francesa!

– Sou alemã de nascimento, depois francesa na criação até a adolescência, mas sou brasileira pela vida afora. Moro no Brasil desde os 14 anos, me naturalizei aos 15 e meio e já estou com 43. Tenho mais milhagens por aqui.

– A perícia chegou.

– Não acho que vai ser difícil descobrirem que foi envenenado, a questão é só descobrir o como; e nós o quem.

– Esqueceu o porquê.

– Hum, acho que não importa muito. Alguém queria matar o sujeito e sabia exatamente onde e quando agir. E fez certinho!

– É! E aí, como vai Bianca*?

– Maravilhosa como sempre.

– Ahhh o amor! – Riram.

– E aí, chefia, chegou logo hein! O cara deve ser importante.

– Fala, Carlos! Importante acho que não, mas metido em alguma coisa grande. Palpite, mas até hoje não falhou.

– Libero logo o local pra vocês.

– Obrigada.

Sonia e Ingrid continuaram conversando, enquanto o pessoal da perícia vistoriava o corpo e o carro. Eram amigas fora do profissional.

*Ingrid é personagem principal do conto Destinação e faz parte do conto Intolerância, quando conheceu Bianca.

– Hei, Ingrid, nada do carro. Parece que o cara abriu a janela e levou uma espetada certeira na jugular. Já pedi o rabecão pra levar o corpo para a autópsia. Só lá é que vão saber como ele morreu.

– Obrigada, Carlos, até mais. Hei, Ernesto, me faz um favor, anota os dados da vtr da Sonia pra gente liberá-la, já passa da 17h00, você não sairia às 14h00?

– Pois é, sairia, fazer o que? Não deixa o Ernesto descansar?

– Quando a gente se aposentar ele descansa, mas concordou em ficar na minha equipe quando fui promovida, agora aguenta. Somos amigos, a gente sabe que pode confiar e contar um com outro a qualquer hora. Adoro os filhos dele e da Carmem.

– Então tô indo. Até sábado e beijos pra Bianca.

Na Companhia, fez o relatório e foi cuidar da vida pessoal pensando qual seria a cor exata daqueles olhos.

***

No dia seguinte, ao chegar à Companhia no fim de seu horário.

– Sargento Sonia.

– Eu!

– Ligaram para a senhora, não deixaram recado, mas a mulher disse que vai ligar às 14h00 até conseguir.

– Não foi a Ingrid da Homicídios?

– Não. Tinha sotaque diferente, parecia que era gringa.

Mal acabou de falar o telefone tocou, ele atendeu e era para Sonia.

~Sargento, é ela de novo pra senhora.

– Alô!?

– Oi, sargento Sonia, boa tarde!

– Quem fala?

– Nicole Beaumont. Vimo-nos ontem em um momento nada agradável, mas gostaria de conversar com você.

– Você é a ciclista que vinha no sentido contrário ao carro que eu preservava?

– Eu mesma. Podemos conversar?

– Você viu algo? Ou alguém próximo ao carro, antes do fato?

– Na verdade, sou do Consulado Francês.

– Então é melhor falar com os encarregados da investigação ou com a Federal.

– Preciso falar com você.

– Hããã… desculpe, esse telefone é do serviço de dia e não pode ficar ocupado com conversas mais longas, então se você puder dar o número do seu celular, ligo mais tarde.

– Claro! Anote. – Havia decepção na voz.

Sonia anotou, desligou e foi trocar a farda por roupa civil para sair, pensando se ligaria ou não, afinal não tinha nada mais a falar sobre a ocorrência.

Mais tarde, resolveu ligar só pra saber o que a tal Nicole queria. Atendeu no primeiro toque.

– Alô, sargento Sonia?

– Eu! Como sabe meu nome?

– Perguntei a um policial dizendo que precisava falar com a encarregada da sua vtr que eu tinha anotado o número.

– É mesmo? E quer falar comigo o quê?

– Foi um crime diferente, interessante, não foi?

– E só um breve olhar já te mostrou que há algo interessante no crime? Está de passagem pelo Brasil?

– Não, estou a trabalho.

– Ahh, pensei que fosse turista.

– Errou! Vim a trabalho, eu te disse que trabalho no Consulado e talvez fique por muito tempo. Que tal um almoço, um jantar, qualquer coisa assim?

– Pensei que tivesse alguma informação sobre o crime.

– Talvez esteja interessada sobre o crime e possamos falar sobre ele.

– Vou pensar, mas agora preciso ir.

– Posso te ligar mais tarde?

– Hum… durmo cedo. Pode ligar amanhã à tarde ou a noite se quiser.

– Obrigada. Até lá, então.

No dia seguinte, encontrou Ingrid que foi até a Cia para conversar com ela.

– Hei, chefia! Que surpresa é esta? Já descobriu o assassino da Paulista?

– Tudo bem, Sonia? Quem me dera! A coisa é um pouco mais complicada. Sabia que às quartas-feiras é o único dia que o sujeito saia sem motorista e guarda costa, no período das 13h00 às 15h00?

– Como assim? Sabia não!

– Bom, falei com meu primo da Interpol e o trio que veio para o Brasil, era suspeito, com mais duas famílias que ficaram na França, de vários crimes pesados na década de 70, início de 80, inclusive extermínios de famílias que possuíam pequenos vinhedos que, em seguida pegavam fogo misteriosamente e eram adquiridos a baixo preço pelos investigados.

– São tão perigosos assim?

– Eram suspeitos, mas enquanto as duas famílias mais importantes permaneceram na França, os que poderiam ser presos para averiguar e quem sabe abrir o bico, mudaram para o Brasil antes que se pudesse juntar provas, papéis sumiram, o promotor foi desacreditado e transferido e a coisa ficou por isso mesmo.

– Barra pesada. Será que é alguma quadrilha inimiga, ou será que já aprontaram por aqui e não descobrimos ainda?

– Acho improvável ser daqui, embora não se descarte a probabilidade de continuarem sendo criminosos que diversificaram a forma. Vieram com dinheiro, aplicaram bem e têm negócios estabelecidos e rentáveis, o que não elimina a lavagem de dinheiro.

– Ah, antes que eu me esqueça, tinha uma mulher entre os ciclistas que ligou e quer me encontrar pra conversar.

– Uma que você ficou encarando de volta, bonita, olhos cinzas e cabelo curto?

– Você a viu?

– Só depois de você ficar meio parada olhando pra ela. –  Ingrid respondeu, rindo – É claro que não é sobre a ocorrência que ela quer falar. A farda continua sendo fetiche.

– Orra! Pensei que você nem a tinha visto. E pode parar. Disse que tem interesse no crime e é do Consulado Francês.

– Então, vai firme. De repente, ela viu algo e quer contar pra você!

– Não sei. Tem algo estranho, sinto uma coisa inexplicável que não sei o que seja. É lá dentro querendo gritar, mas não encontra o caminho.

– Nada a ver com aqueles olhos cinzas então? – Ingrid pergunta, com ar preocupado.

– Não é isso! Ela chama a atenção, sim, mas há algo mais nisso.

– Mais um motivo para encontrá-la, para conhecer um pouco sobre ela e descobrir até onde ela chama a atenção e, quem sabe, um caminho pra essa coisa sair.

– Talvez você tenha razão. Ela disse que vai ligar; então, se realmente ligar almoçamos amanhã.

– Depois me conta.

Por volta das 19h30, ela ligou e Sonia marcou almoço para o dia seguinte, já que estaria de folga.

Encontraram-se às 12h00. Sonia já estava na mesa do restaurante, constatou que os olhos eram realmente cinzas e lindos, assim como o sorriso estampado, – embora carregassem certa tristeza. Cabelos lisos, cheios e curtos, castanho claro, um delicado chapéu, uma blusa azul marinho com decote não muito profundo, mas que fazia a imaginação não ter trabalho demasiado e, alta, muito alta pensou Sonia, mas… uau! O cumprimento foi um pouco constrangedor, porque além do boa tarde, de repente não sabiam como agir. Então, optaram por simplesmente se sentarem e esperar a conversa aparecer.

– Está de folga hoje?

– Estou. E você, não trabalha?

– Eu disse a você que vim para o Brasil a trabalho! Sou tradutora e trabalho no Consulado Francês, tenho horários bem elásticos.

– Tradutora só de francês – português?

– Não! – Respondeu e lá veio o sorriso de novo. – Fui criada pelos meus tios e minha tia, irmã do meu pai, queria que eu estivesse bem preparada. Falo seis idiomas, além do francês.

– Nossa! Eu só falo “paulistanês” mesmo!

– E fala divinamente!

Sonia enrubesceu de imediato. Nicole ficou encantada, mas nada comentou.

– Sonia, você acredita em reencarnação?

– Acredito, frequento a Umbanda!

– É médium?

– Não! Apenas gosto de onde frequento. Pregam e fazem a caridade, não matam animais, trabalham com cura, explicam sobre a Umbanda e pedem respeito pelas outras religiões que buscam os mesmos objetivos de forma diferente. E, todos precisam de alguma proteção, de alguma fé. Devido minha profissão, acho que sem essa proteção já teria deixado este mundo.

– O que seria um desperdício imperdoável!

A garçonete se aproximou, pediram e continuaram a conversa.

– E você, tem alguma religião?

– Não. Acredito em Deus e espero que me baste.

– Que te baste? Estranho!

– Por que?

– Porque parece que há algo a mais nesse “espero que me baste” Parece-me que, quando acrescentado a uma frase tão simples quanto a “acredito em Deus”, traz um peso de… arrependimento, não sei.

– Então, preciso parar de acrescentar algo que me revela tão bem!

Os pratos foram trazidos e começaram a almoçar.

– Quer dizer que acertei e você tem mesmo um arrependimento?

– Enorme.

– Posso saber qual é?

– Posso te dizer que é uma promessa que fiz à minha tia, de resto não vou dizer mais nada, senão teria que te matar.

Sonia olhou-a espantada e ela gargalhou. Sonia acabou rindo também.

– Desculpe, estava brincando, mas você fez um jeitinho tão espantado.

– Que susto! Pensei que fosse uma espiã francesa que tinha segredos de estado.

– Ah, sua boba! Estava… hão… como se diz? Não é brincando, é…

– Não estava zombando, não! Foi um reflexo do que e do jeito que você tinha dito. Mas, me diz qual é o arrependimento, desde que eu não corra risco de vida.

Riram novamente.

– Fui criada pelos meus tios desde bebê e minha tia me forçou, ao longo da minha vida, a algumas coisas, entre elas, aprender vários idiomas, artes marciais e uma promessa que eu não queria e ultimamente me arrependi enormemente de tê-la feito. Acabei me tornando refém dela.

– Posso saber qual foi a promessa?

– Talvez, um dia, mas hoje não. Já descobriram algo sobre o incidente com Duchantoise? Ou é segredo?

– Eu não investigo, isso é com a Policia Civil. Meu contato com esse crime foi o fato de estar pelo local naquele momento.

– Então foi um crime? Assassinato?

– Era esse seu interesse? Interrogar-me?

– Não! Já li isso no jornal, vi na tv, estava só puxando conversa para saber o que te interessa de fato.

– Por que, exatamente?

– Exatamente ainda não sei, mas você me chamou a atenção; o que não é muito comum.

– Em 5 segundos?

– Eu acredito nisto! Tem gente que olho e a intuição me diz que vale a pena conhecer ou me afastar. Costumo segui-la e só me arrependi quando não o fiz.

– Bom, agora que já me conheceu o que tua intuição diz?

– Mulher inteligente, séria, desconfiada, boa amiga, boa profissional, eficiente, interessante, tem senso de humor, calma e, espero, solteira.

– Descobriu tudo isto em um almoço?

– Primeiro, soube que estando na hora de sair do trabalho não se furtou a ver o que estava acontecendo e seguiu calmamente os procedimentos no assassinato de Duchantoise. Quando a investigadora chegou, se abraçaram e em nenhum momento gritou com seu parceiro, isso demonstra amizade e respeito por subalternos, o que indica boa profissional. Sorriu e riu aqui comigo algumas vezes, então tem senso de humor; e tudo isto indica inteligência!

– E que tal me dizer algo sobre você? Como o que ainda não disse sobre algo escondido aí dentro – Sonia apontou para a cabeça de Nicole.

– Muito perspicaz, Sonia, mas não posso dizer mais nada sobre mim. Pergunte o que quer saber e te respondo se puder.

– Tá bom! De onde você é?

– Vivi minha infância em Lille, com meus tios que me criaram. Fica cerca de uma hora da Paris Gare du Nord. É uma cidade antiga, com prédios do século XV.

– Seus pais não viveram com você por quê?

– Eu não os conheci, faleceram quando eu tinha seis dias.

– Sinto muito!

– Obrigada, mas meus tios cuidaram bem de mim, não posso reclamar de oportunidades.

– Tem filhos? Onde mora aqui em SP?

– Não! – Respondeu Nicole e, em seguida, passou o endereço.

– Marido, namorado, mulher, alguém, além de seus tios?

– Nossa! – Nicole riu com gosto. – Isso é que é resumir perguntas. Não, ninguém além de meu tio. Minha tia morreu há cinco anos.

– Foi pra ela que fez a tal promessa?

– Foi sim. Fez-me jurar, pouco antes de morrer o que não tinha conseguido até então.

– O tipo de promessa que não se pode deixar de cumprir.

– Pois é. Enfim… apareceu algo sobre o crime? Você disse que a polícia civil que investiga, mas duvido que sua amiga…

– Ingrid.

– Ingrid não tenha te contado sobre a investigação.

– Ela é muito profissional!

– Imagino, já que é tua amiga, mas também confia em você.

– Vou te dar o número do telefone do distrito para você se informar. – Sonia sorri. – Foi um prazer conhece-la, mas tenho que ir.

– Parece que você sempre tem que ir a algum lugar! – Nicole fala, retribuindo ao sorriso. – Não se preocupe em me dar o telefone do distrito, eu o tenho. Podemos nos encontrar outro dia?

– Não sei. Me liga um dia desses, e quem sabe. Boa tarde.

– À bientôt!

Dois dias depois, Sonia encontrou-se com Ingrid.

– E aí Ingrid, o que te traz por aqui?

– Queria conversar com você a respeito do assassinato do francês para ver se me ajuda com uma luz.

– Você tem mais meios que eu!

– Quero conversar sobre ideias, não sobre meios. Você é sagaz e duvido que vendo o leque das coisas que ligam o crime do Rio com o daqui, não tenha nenhum pensamento a respeito.

– Vejamos. Você disse que os caras mortos são de famílias amigas e, vamos chamar de mafiosos para ficar mais fácil, que cometeram vários crimes na França e três dessas famílias teriam fugido para o Brasil. Os que ficaram por lá, deram um jeito de tirar o promotor do caso que poderia acabar com eles. Depois de 30 anos, membros das famílias que estão aqui começam a morrer. Será que não fizeram nada por aqui mesmo? Não teriam se envolvido com tráfico?

– Se fizeram foi muito bem feito, porque, por mais que a gente investigue, ainda não descobrimos nada.

– Então foi algo que fizeram por lá e só agora conseguiram acha-los?

– Pode ser! Tem muita gente que veio da Europa para o Brasil nos últimos 30 anos.

– Mas eles agiam só na França, não é?

– Pelo que sabemos, sim. Acho que vou tentar descobrir quantos franceses vieram para cá, desde os anos 70.

– Os Consulados ou a Embaixada devem ter a lista.

– É. Ahá! E a francesinha, ligou pra ela?

– Claro que não!

– Claro por que? Sei que almoçaram juntas e tiveram um papo agradável. Vai dizer que não gostou da gracinha?

– Tá, gostei sim. É bonita, inteligente até demais. Muita areia pra minha carroça, nem digo caminhão porque pelo jeito a mulher está muito além das minhas possibilidades.

– Ah nem vem! Menosprezar-se agora é burrice. Ela foi pedante, chata, esnobe?

– Não! Nada disso. Pera aí… como sabe que almoçamos juntas se estou falando com você só hoje?

– A francesinha foi ao DP acompanhando o funcionário que está cuidando do caso e conversamos um pouco, me pareceu super do bem.

– Sei. No DP e conversaram sobre o almoço?

– Eu perguntei. Ela abriu um sorriso lindo, me contou até que usou o crime como desculpa para se aproximar e que gostaria de voltar a te encontrar. Foi num momento em que ficamos sozinhas.

– Ficaram sozinhas por acaso, né? Não escolheram ficar sozinhas pra “fofocar”.

– Não direi nada que possa me comprometer. – Ingrid riu. – Deixa de ser boba e aproveite a chance. Nem todas são como aquela sua ex imbecil que te trocou por uma ameba. Inteligente, gostosa e interessada, que mais pode querer?

– Amor!

– Às vezes, para se chegar a isso, é preciso tempo, conhecimento e confiança. Como você pode adquirir isso, se não deixa ninguém se aproximar? Desliga essa barreira! A mulher está interessada e já deixou claro, mas você não liga pra ela, não abre nem uma janela pra ela entrar. Depois da Clarice, você ficou muito magoada e desconfiada, mas já tá na hora de voltar à vida, lembre-se que ela é curta.

– Ela é legal, parece interessada e interessante, mas… tem algo que minha intuição diz que está errado, ou faltando.

– Mais um motivo para se aproximar, tentar descobrir.

– Tá bom! Vou ligar pra ela e ver o que dá.

– É isso aí!

À noite ligou.

– Olaaa! Que surpresa boa!

– Nossa, nunca fui tão bem atendida em uma ligação!

– Por mim, será sempre bem atendida. Pode ter certeza

– Obrigada! Só liguei pra saber se podemos conversar.

– Claro! Agora?

– Não! Quando você pode?

– Pra você, a qualquer dia a qualquer hora.

– E o trabalho?

– Já disse que faço meus horários.

– Então, que tal amanhã à noite?

– É só dizer hora e local.

Passou o endereço do restaurante que gostava e marcaram para às 20h00 o jantar e com reclamação de Nicole pela brevidade da ligação, desligaram.

Depois do trabalho Sonia foi dormir um pouco para sair à noite, já que pretendia estender a saída.

Cumprimentaram-se com beijinhos no rosto quando Sonia chegou às 20h00 pontualmente e Nicole já a esperava à mesa, há quinze minutos.

– Você não é de falar muito, não é, Sonia?

– Não, prefiro falar o que é preciso e economizar saliva do que falar demais e acabar sem dizer nada.

– Eu adoro falar, claro que não com todo mundo.

– Pra quem gosta de falar, você fala muito pouco sobre você.

Nicole olhou-a fixamente por uns dois minutos em silêncio e Sonia sustentou o olhar. Não dava para perceber se era tensão, surpresa ou uma procura de entendimento, uma pesquisa mútua.

– Já te disse pra perguntar o que quiser que responderei se puder ou direi que não posso, mas nunca vou mentir pra você.

– Mente pra muitas pessoas?

– Todos os dias.

Novo silêncio.

– Seu nome é Nicole mesmo?

– É sim.

– Você é tradutora do consulado?

– No momento, sou também.

– E o que mais faz na vida pessoal?

Um sorriso triste.

– Tento te encantar.

– Seu interesse em mim é verdadeiro ou um meio para se aproximar de Ingrid e saber das investigações sobre o crime?

– Não preciso de nenhum subterfúgio para me inteirar sobre as investigações! Não usaria você para isso.

– Tem algo obscuro em você que não consigo definir e isso me deixa desconfortável.

– Me dê tempo e se dê tempo de me conhecer um pouco, pra conseguir definir ou me aceitar como sou.

– Não pretendo tentar mudar nada em ninguém, apenas… quer ir a outro local? Já acabamos de jantar.

– À sua disposição e escolha!

Cada uma pagou sua conta, saíram juntas e foram para um bar gay próximo. O local não era pequeno, mas também não muito grande. Havia uma divisória entre as mesas que proporcionava o ambiente para conversa e uma pista de dança. Pegaram uma mesa.

– Gostei do lugar!

– Que bom. Quer dançar?

– Claro!

Sonia se arrependeu de ter feito o convite. Dançavam uma frente a outra e Nicole sensualmente provocativa, mexia com sua libido ao extremo. Tentava se segurar, desviar o olhar, mas estava muito difícil. Depois de três músicas, resolveu voltar para a mesa.

– Mas já?

– Acho que jantei muito, depois a gente dança mais. A não ser que tenha que ir embora.

– Sou toda sua a noite toda.

Quem me dera, pensou Sonia, enquanto sorria. Sentaram-se.

– Você é de Lille mesmo?

– Eu fui criada lá. Pensei que tivesse acabado o interrogatório.

– Não, nem comecei ainda.

Riram.

– Olá, dançarina, não quer dançar um pouco pra mim?

– Que?

– Vi você dançando e gostaria de dançar com você.

– Não percebeu que estou acompanhada?

– Não me pareceu que estão juntas, que sejam namoradas.

– Só não somos porque ela não quer dizer sim, mas mesmo que fosse só uma amiga, não acho que seja esse seu jeito a forma educada de fazer um convite.

– Ora, que é isso? Vamos dançar!

– Ela já disse alto e claro que não!

A mulher colocou as mãos frente ao corpo com as palmas abertas viradas para Sonia.

– Desculpa!

– Mon Dieu! Acabei de ver a atitude da sargento em atividade! Acho que ela ficou com medo e eu também. Que tom imperativo!

– Parece que a tua forma de dançar chamou a atenção de algumas pessoas.

– Menos a de para quem eu dancei.

– Tem certeza?

– Me mostre que estou errada, passamos por um hotel legal aqui perto.

Sonia pensou um pouco, afinal estava a fim e não tinha nada a perder, mas aquela coisinha insidiosa não a abandonava.

– Melhor não! Minha libido pode estar a 998, mas ainda tem aqueles 2% de desconfiança do que ainda não me disse, de algo que me falta saber.

– Que mulher controlada! Que pena, porque a minha libido está a mil.

Sonia foi obrigada a rir.

– Você é sempre direta assim?

– Só no que e em quem me interessa de verdade. Mas, já que mantém sua libido controlada e a noite ainda mal começou, vamos dançar? Prometo me comportar.

Dançaram até por volta das 04h00, quando Sonia resolveu que estava na hora de se despedir. Nicole tentou argumentar em vão, tentou beijar os lábios, ao invés da face quando se abraçaram na despedida, mas viu que Sonia intuía suas atitudes. Isso apenas aguçava sua vontade daquela mulher.

***

Dias depois.

– Boa tarde, Ingrid.

– Boa tarde, Nicole! A que devo a honra da tua visita, de uma representante do consulado? A investigação está mais lenta que tartaruga.

– Não vim falar com a chefe dos investigadores da homicídio, vim, se não for muita petulância, conversar com a mulher Ingrid.

– Nada sobre a investigação?

– Não. Sobre uma pessoa certinha, mas encantadoramente sedutora, embora não se aperceba disto.

– Ahhh Sonia!

– Sonia.

– Não conseguiu convencê-la a sair?

– Saímos, mas quero mais que isso. Ela não te contou?

– Não a vejo há dias. Trabalho demais. Está querendo minha ajuda pra que exatamente?

– Ela me atrai demais! Olho para ela e meu tesão vai às alturas. Já estive com muitas mulheres, em camas bem variadas, mas por coisas ocasionais, nenhum envolvimento de nenhuma das partes.

– Não vou ajudá-la a levar mais uma pra outra cama!

– Não quero isto! Não com ela. Quero conhecê-la, namorar, cama também, mas não como as outras. Fazer o que nunca fiz antes, mas sempre desejei.

– Tem certeza?

– Tenho! Infelizmente, não sei como lidar com ela. Parece que não confia nas pessoas, mas posso te jurar que pode confiar no que sinto por ela.

– Ela pode confiar que você não vai traí-la?

– Pode.

– Ela pode confiar que nunca vai mentir pra ela?

– Pode. Posso não falar em alguns assuntos, mas não mentir e deixar claro que é algo que não posso falar.

– Ela é muito intuitiva e costuma seguir sua intuição. Sabe que há algo em você, como ela disse, escondido.

– Ela me contou isso. Perguntou o que era, mas não posso contar. Pelo menos, por enquanto.

– Você é da DGSE, não é?

(DGSE – Direction Générale de la Sécurité Exterieure)

– Sou.

– E sabe bem mais do que nós sobre as mortes recentes dos franceses, não sabe?

– Sei!

– Por que está dizendo pra mim e não diz pra ela?

– Disse a ela que responderia, sem mentir, a tudo que me perguntasse, ou diria que não posso responder. Essas perguntas ela não fez.

– Existe alguma chance que se descubra o autor ou autores destes assassinatos?

– Ninguém melhor que você pra isso.

— Eu? Por quê?

– Sua descendência, seus contatos na Europa.

– Pelo jeito, já leu a minha ficha.

– Desculpe, mas faz parte do meu trabalho saber sobre quem está envolvido nas coisas que dizem respeito à França.

– Tem algo a ver com o passado esses crimes, não tem?

– O passado nos persegue. Raramente não nos atinge, pode às vezes, nem deixar que tenhamos presente, menos ainda um futuro. – Disse Nicole, quase para ela mesma.

– Atualmente, usa seu nome verdadeiro no consulado?

– Não! No trabalho agora, sou Haydée Daphné.

– Você é uma pessoa triste, Nicole. O que causa isso? Amor?

– Não. Amor poderia ser minha redenção se um dia eu puder vir a ter. A conversa está ficando pesada, melhor eu deixar você trabalhar. À tout l’heure!

Saiu quase correndo, sem esperar resposta de Ingrid que lhe inspirava tanta confiança, a ponto de falar mais do que devia.

Ingrid, assim que saiu do trabalho, foi falar com Sonia.

– Oi, Ingrid! Que milagre é esse, você aqui em casa!?

– Ah, não exagera! Já vim aqui antes.

– Em doze anos que a gente se conhece, acho que umas cinco vezes.

– Mentira! Tenho testemunha para comprovar.

– Bianca não é imparcial e os aniversários não contam. Já jantou?

– Não, acabei de sair do serviço direto pra cá.

– Opa! Isso não é uma visita social.

– É e não é.

– Estava terminando o jantar, vamos comer enquanto conversamos. Fiquei preocupada agora. Já avisou Bianca?

– Já sim. – Sentando-se à mesa. – Adivinha quem foi me visitar, hoje, lá no DP?

– Nicole?

– Uau, de prima! Com tanta gente no planeta e você acerta na bucha? Tá nos vigiando?

– Vejamos. O caso mais atual e problemático que você está tentando resolver e tem conversado comigo, é sobre os assassinatos dos franceses. Você tem tentado me convencer a me envolver com uma tradutora que trabalha no consulado e que já esteve no DP para falar sobre o crime, logo…

– Tá bom! Pois é, ela foi conversar comigo, mas nada sobre a investigação, só falar mesmo com uma pessoa.

– Ela está à procura de uma amiga.

– Acho que sim. Disse que te deu sinal verde para perguntar tudo que quisesse sobre ela, mas você fez poucas perguntas.

– Gosto de fazer perguntas que me deem respostas verdadeiras e úteis. De que adianta perguntar e ouvir não posso dizer, ou respostas vazias?

– Nossa! Pois eu fiz várias perguntas e obtive várias respostas.

– Como ela ser só, carente, inteligente e pertencer ao serviço secreto francês?

– Você tinha perguntado isto a ela?

– Não! Mas, quem trabalha como tradutora em um consulado, por mais idiomas que fale e faz o próprio horário?

– Menina, você é mais esperta do que eu já pensava! Será que era isso que te deixava cismada?

– Não. É algo dela, mais profundo. Uma certa dor no olhar, um certo medo de se mostrar por inteiro, não sei.

– Achei-a triste. Perguntei o motivo e ela pareceu que se afundou e se despediu rapidinho.

– Tá vendo? Tem coisa escondida, talvez a promessa que fez.

– Promessa?

– É, fez pra tia quando ela estava morrendo.

– Xiii, essa é a hora que jamais se deve prometer algo.

– Pelo que entendi, era algo que Nicole não queria fazer, mas acabou prometendo que faria no leito de morte da tia.

– Ferrou! Ela sabe coisas sobre os crimes dos franceses.

– E te contou?

– Não. Disse que tenho a possibilidade de descobrir. Orra, este strogonoff está de arrasar!

– Obrigada. Já conseguiu a lista dos franceses imigrantes?

– Deve chegar amanhã.

Depois do jantar conversaram mais um pouco, não chegando a nenhuma conclusão.

– Pretende se encontrar com ela de novo?

– Não sei. Gosto de sua companhia, mas talvez não ligue mais.

– Se ela não ligar e você sentir vontade de vê-la, ligue você pra ela. Sabe o sobrenome dela? E de onde veio?

– Vou pensar. Acho que o sobrenome é Beaumont e veio de… Lille, acho.

Despediram-se com carinho.

Enquanto conversavam, Nicole, em seu apartamento, apanhou seu caderno especial, onde anotava as coisas importantes desde seus dez anos. Suas vontades sempre contrariadas por ordens da tia. Sua infância perdida na preparação para um dia fazer a vontade da tia, que embora não quisesse, acabou por prometer fazer, por falta de coragem em negar algo a alguém que morria, mas não esquecia o passado. O carinho do tio. A falta dos pais, a perda dos irmãos. Sua solidão que parecia infindável e escreveu a profundidade de seus sentimentos.

Três dias depois, Thierry Girani estava no restaurante jantando com seus associados quando pareceu engasgar, levou a mão à garganta procurando ar desesperadamente, tentou pegar o celular para chamar os dois seguranças que estavam na porta do lado de fora ou o motorista, enquanto tentava andar até eles, mas caiu antes. Devido aos gritos, os seguranças entraram, mas o elegante senhor não conseguiu falar. Levaram-no para o hospital mais próximo, mas ele faleceu no caminho. O médico constatou que fora alergia a algo que ingerira e o coração que já tinha problemas, não aguentou. Como a vítima sabia de sua alergia a nozes, jamais comia algo que tivesse o menor resquício da castanha. A polícia foi chamada para investigar.

Na manhã seguinte, Ingrid tomou conhecimento do fato, já que a Homicídios estava de sobreaviso sobre ele, o terceiro imigrante francês, suspeito de antigos crimes.

O chef e todo o pessoal da cozinha, negaram ter colocado nozes no molho no pedido do francês. Ele era freguês assíduo e aquele era o prato favorito dele. A única pessoa estranha à cozinha, fora um rapazinho que viera entregar uma encomenda. Ninguém o conhecia, ou lembrava-se de como ele era, ou se alguém tinha feito alguma encomenda, devido à correria do horário. Não foi encontrada encomenda alguma ou algo de diferente na cozinha.

Agora, depois do novo crime, resolveram investigar mais a fundo ainda as vidas dos franceses assassinados. Eram aplicadores na bolsa, mas a procedência do dinheiro e o montante, bem como contas internacionais que nem as famílias tinham pleno conhecimento, jamais haviam sido declarados.

Alguns dos associados desapareceram do país quase instantaneamente à morte de monsieur Girani. Seguindo informações de alguns documentos recolhidos nas casas das três vítimas, que só então tanto as autoridades francesas quanto um juiz deram autorização, encontraram contêineres com contrabandos variados em armazéns no porto de Santos.

Passados os fatos à polícia do Rio que finalmente tiveram liberdade para todos os meios de investigação, acabaram por descobrir que junto com Chermont, os outros dois continuavam na vida de crime, mais cautelosos e discretos agora, mas bem rentáveis, incluindo o tráfico humano, sem descartar crianças. Para a sociedade não fariam falta, no entanto, eram homicídios a serem solucionados.

Uma semana depois do fato do restaurante, Nicole ligou para Sonia, por volta das 15h30min.

– Estive esperando você me ligar, mas parece que não faço nenhuma falta mesmo!

– Oi, Nicole! Pensei que estaria envolvida nas investigações dos assassinatos. Até Ingrid não tem tido tempo pra conversar, mesmo com a Federal envolvida.

– Eu sempre tenho tempo pra você. Mas, não tenho porque estar tão envolvida assim na investigação!

– Pensei que o consulado se interessasse em solucionar os casos!

– O consulado até está, mas eu, pessoalmente, não me preocupo em demasia com este tipo de gente.

– Então você sabia que eram criminosos?

– Desconfiávamos que não haviam mudado, tínhamos alguns indícios, mas nenhuma prova. Mas, não liguei pra falar de crimes. Queria te ver, conversar um pouco. Pelas minhas contas você está de folga amanhã, não está?

– Nossa, guardou minha escala!?

– Pra você ver. Sai comigo?

– Estou querendo ir ao cinema.

– Posso te fazer companhia?

– Tudo bem.

Combinaram de se encontrar para a sessão das 18h10min de Star Wars.

Ao se encontrarem:

– Sério que você gosta deste tipo de filmes?

– Você não?

– Eu não sei, vai ser o primeiro que vejo.

– Você gosta de filmes mais… cult né?

– Vou pouco ao cinema, vejo mais DVD quando tenho tempo, mas, pra dizer a verdade, vejo mais romances e policiais.

– Espero que não durma ou me xingue depois.

– De jeito nenhum, qualquer que seja o programa o que vale é a companhia.

Após o filme.

– Muito diferente pro teu gosto?

– Muito diferente do que estou habituada, mas gostei!

– Que bom!

– Podemos prolongar o encontro ou, pra variar, está com pressa?

– Não estou com pressa.

– Janta comigo?

– Claro! Mas, saiba que farei perguntas.

– Tudo bem.

– Por que você não chama teus tios de pais, já que te criaram desde os seis dias de nascida?

– Eu os tratei a minha vida toda como tal, mas minha tia, desde que comecei a entender as coisas, sempre deixou claro que eram tios e que meus pais já tinham morrido. Só os vizinhos mais próximos sabiam que eu era sobrinha e não filha, mas até se esqueceram disto.

– Eles não tinham filhos?

– Não. Só eu mesma, ela pode se dedicar inteiramente a mim.

– Você diz isso com tristeza!

– Se você fosse criada por um casal e só o “pai” te desse carinho e atenção, enquanto a “mãe” fosse só exigências, como você se sentiria?

– Entendi. Sinto muito!

– E você? Seus pais estão vivos? Tem irmãos?

– Só minha mãe, meu pai faleceu há oito anos infelizmente e, tenho um casal de irmãos, três sobrinhos e muitos primos.

– Que maravilha! Gostaria de ter crescido com irmãos e primos.

– Foi uma vida solitária, né?

– Foi sim e ainda é. Estava sendo preparada para enfrentar a vida sem medos e com “segurança”.

– Amigos?

– Não tinha tempo disponível, minha tia cuidou para que eu tivesse foco em “me aprimorar” e ser forte.

– Já fez terapia?

– Não. Até outro dia tinha um único propósito na vida e muitos sonhos acorrentados.

– A vida é tão efêmera quanto uma borboleta, tem que ser vivida.

– Eu sei, mas me parece que você não a tem vivido há algum tempo.

– É, você tem razão.

– Precisamos remediar isto. Alguma possibilidade de fazermos isso juntas?

– Quem sabe!

Depois do longo jantar, despediram-se com abraço caloroso e demorado. Ambas querendo prolongar o encontro, mas a desconfiança de um lado e a insegurança do outro, separou-as momentaneamente.

Nicole voltou a escrever em seu caderno especial de momentos importantes. “Hoje tive a certeza de querer alguém, de querer viver uma vida diferente, de nunca ter feito a promessa, de ser outra pessoa. Sinto muita falta de amigos, por ter conhecido alguém que me inspira confiança para uma amizade verdadeira. Por ter enfim encontrado alguém de quem não quero me separar.

Mas como fazer? O que fazer? Serei aceita”?

Sonia e Nicole foram a mais alguns filmes e jantares, aproximando-se mais a cada dia, mas mantendo ainda a emoção controlada. Sonia não deixou que ficassem isoladas sozinhas para não se entregar.

Ingrid resolveu contatar seu primo da Interpol francesa, para esclarecer algumas dúvidas surgidas. Temia por Sonia, sabia que ela estava se envolvendo com Nicole, mesmo se esforçando por não o fazer. Temia por Nicole, que parecia sincera e só, mas tinha que ter certeza.

Enquanto aguardava a resposta, procurou estar mais próxima de Sonia e conversou algumas vezes brevemente com Nicole.

E quinze dias após o pedido, a resposta chegou. No dia seguinte, chamou Nicole e Sonia para uma reunião à tarde em sua sala. Só souberam que estariam as duas juntas quando lá chegaram.

– Oi, Ingrid! É uma reunião? Pensei que fosse uma conversa.

– Não é apenas uma conversa, Nicole, é A conversa. Entrem.

Entraram e sentaram-se estranhando o momento. Ingrid apanhou um envelope grande e tirou várias folhas escritas e começou a ler.

– Louis Chermont, Jordan Duchantoise, Thierry Girani, juntamente com Charles Lafaiete e Michel Fournier, considerados criminosos perigosos, sob investigação desde 1975. Embora se tenha certeza de vários crimes cometidos por eles e seus comparsas, não se conseguiu provas que os levasse à prisão. Os três primeiros, residindo atualmente no Brasil, no Rio de Janeiro e São Paulo, também se associaram a narcotraficantes e a DGSE enviou agentes para mantê-los sob vigilância constante a fim de conseguirem provas.

A DGSE não quis especificar qual a ordem dada a seus agentes a respeito dos criminosos, caso não conseguissem provas. Graças aos últimos acontecimentos e às mortes dos residentes no Brasil, vieram à tona vários documentos que reabriram casos antigos contra todos os envolvidos que enfim provocaram várias denúncias de famílias vitimadas por eles e, finalmente foram detidos e aguardam julgamento em prisão, sem condições de soltura, devido à gravidade dos crimes praticados.

Apanhou outros papéis.

Nicole Beaumont, nascida em 19/03/1981, em Ribeauvillé como Nicole Esme, passando a usar o nome dos tios que a adotaram por sua família ter sido assassinada em 26/03/1981, pelos criminosos citados nos documentos em anexo, sendo que sua casa foi queimada para destruição de provas. Foi encontrada na madrugada do dia 27/03/1981, desidratada, mas bem, sob o corpo de sua mãe que a protegeu. Seus irmãos de 3 e 5 anos não tiveram a mesma sorte. Entrou para a DGSE aos 20 anos de idade.

Este é o resumo que Philipe, meu primo, me enviou. Está tudo correto Nicole?

Num fio de voz, Nicole responde: – Está!

– Por isso que disse que não havia ninguém mais indicada que eu para descobrir a verdade? E por causa do envolvimento do serviço secreto francês, a Federal daqui abafou o caso?

– Sim, para ambas as perguntas.

– Por que não nos contou tudo isto?

– Não podia, Sonia!

– Você os matou?

– Eu orquestrei a eliminação dos três, mas eliminei pessoalmente Duchantoise.

– Por isso estava lá naquele dia! Como não a vimos nas imagens das câmeras? Eu as vi com Ingrid.

Nicole estava mortificada, a tristeza era mais que visível.

– Vocês me viram, apenas não me reconheceram.

– Disfarce?

– Sim.

– Como fez? – Indagou Ingrid.

– Deixei a bike por perto, conhecia a rotina de visita à amante, esperei e quando apareceu no horário de sempre, usei uma arma especial que lança uma pequena agulha envenenada que libera o veneno e se dissolve em contato com a pele. Depois fui até a bike, tirei o disfarce e vim pelo caminho inverso.

– Ainda bem que não me envolvi com você. – Sonia sussurra. – Como pode se aproximar de mim? Pra que?

– Você é quem pode me livrar do passado, de toda essa coisa horrível. Porque confiei em você, vi você e queria muito que você me visse! Eu amo você e mudaria minha vida por você. Não sabia como te contar tudo, além de muitas coisas não poder contar.

– E esta história de promessa é mentira? É tudo por vingança?

– NÃO! Minha tia queria vingança pelo irmão que adorava. Desde sempre me criou com regras rígidas, fez mesmo tudo que já contei a vocês. E sempre falando que eu deveria procurar e me vingar. Graças a meu tio que conversava comigo, dizia que era errado, sempre respondia que não podia fazer o que ela queria. Quando eu estava com dezessete anos, ela adoeceu gravemente, talvez por acumular tanto rancor. Todos os dias queria que eu prometesse que os mataria e eu negando, até que no dia que morreu, usando chantagem emocional, me fez prometer. Eu, que já não tinha vida, também acabei enterrada com ela. Aos vinte, entrei para o DSGE, seria mais fácil encontra-los. Você é minha primeira e única chance de viver!

Ingrid se controlava. Sonia e Nicole choravam quase em silêncio. De repente, Sonia se levantou.

– Desculpe, mas tenho que sair daqui.

E saiu. Então Nicole desabou. Ingrid aproximou-se e a abraçou com carinho, até que parasse de chorar, o que demorou um pouco. Finalmente.

– Ela me odeia agora, não é?

– Não! Apenas foi muita coisa pra entender, para pensar. Dê tempo a ela.

– Não acho que vá adiantar. De qualquer forma, os dois filhos mais velhos de Duchantoise e Girani, estão assumindo os lugares dos pais e eu não quero mais estar envolvida nisso. Vou sair do DGSE. Se quiserem a tradutora tudo bem, mas estou cansada demais de conviver de perto com tanta sujeira, cumpri a promessa, acabou. Sabe do que sinto mais culpa? De só lembrar dos meus pais por fotos que minha tia fazia questão que eu visse sempre. De não entender o porquê de vingança por quem nem conheci, que nem sei se sinto falta, porque não me deixaram tempo nem para perceber isto.

– Vai dizer para Sonia?

– Humpt! Provavelmente nunca mais fale comigo. Adieu.

– Acho que é melhor você não ficar sozinha. Daqui a pouco eu saio e você vai pra casa comigo.

– Não, merci! Estou acostumada a decepções e solidão. Fique de olho nos filhos dos mortos.

Ingrid levou a sério o aviso e resolveu colocá-los sob vigilância. Naquela noite ainda, ligou para Sonia.

– Oi. Como você está?

– Puta comigo mesma, por como agi quase fugindo, sei lá.

– Eu acredito nela.

– Eu também, por isso estou brava comigo.

– Então a procure.

– Se der vou amanhã mesmo, depois do trabalho.

– Cuidado com os “ses”, vá de qualquer jeito.

– Tá.

Sonia estava meio brava, meio magoada. Por não ter agido como deveria diante da verdade, por ter saído impulsivamente e por acreditar nos sentimentos de Nicole.

Nicole voltou ao único e fiel amigo, embora não respondesse às suas palavras e escreveu.

“Cada inocente criança que vejo, eu me preocupo.

Cada jovem com roupas ousadas que vejo, eu me preocupo.

Cada adolescente com copo ou cigarros nas mãos, que vejo, eu me preocupo.

Cada mulher que faz de tudo para chamar atenções, que vejo, eu me preocupo.

Cada homem que fixa os olhares em partes do corpo de alguém, que vejo, eu me preocupo.

Cada pessoa que vive fazendo de seus animais o centro de seu universo, que vejo, eu me preocupo.

Cada jovem que maltrata um animal, que vejo, eu me preocupo.

Cada jovem que se acha o máximo, enturmado(a), por ser grosseiro, dizer todos os palavrões o tempo todo, que vejo, eu me preocupo.

Cada pessoa que defende a imoralidade que vejo, eu me preocupo.

Cada pessoa que faz qualquer coisa para provar estar certa, que vejo, eu me preocupo.

Cada pessoa que se diz pai ou mãe e não educa seus filhos, que vejo, eu me preocupo.

Cada pessoa que se diz pai ou mãe e maltrata seus filhos, que vejo, eu me preocupo.

Cada horror, violência, destruição, desrespeito que acontece em qualquer lugar do mundo, seja de humanos contra humanos ou contra Gaya, que vejo, eu me preocupo.

Pelas crianças, pelos caminhos que seguirão e as dores que podem encontrar nesses caminhos, torcendo para que haja mais alegrias.

Pelas jovens, com as consequências de suas atitudes.

Pelos adolescentes, pela saúde, capacidade, encurtamento de vidas.

Pelas mulheres, por seus vazios âmagos.

Pelos homens, por suas desilusões futuras quando chegar o amadurecimento.

Pelas pessoas, por sua solidão.

Pelas pessoas irracionais, pela cobrança que virá.

Pelos jovens enturmados, pela desesperança que chegará

Pelos violentos, pelo retorno.

Pelos imorais, pelo charco que que acabará.

Pelos irredutíveis, pela incerteza que os derrubará.

Pelos pais e mães ausente, pelo descaso que um dia virá.

Pelos pais e mães que ferem, pelas marcas que um dia voltarão.

Pelos humanos, pela cobrança que a Natureza faz.

Pela humanidade, pela esperança que jaz e as lágrimas que podem vir a jorrar.

Por mim, em meu quase desespero, por ter encontrado tarde demais, ou simplesmente ter encontrado um alguém que me traz motivo para querer viver pela primeira vez, que provavelmente, o passado impedirá. ”

No dia seguinte Sonia tentou ligar para Nicole e o número era inexistente. Queria falar com ela, dar um voto de confiança a ela agora que já tinha todas as respostas para aquele estranho je ne sais quoi que sentia antes. Resolveu ir até sua casa na próxima folga.

Os filhos dos franceses eliminados entraram em contato com o consulado, procurando o encarregado da segurança. Foram ao Distrito Policial, atrás de informações sobre o crime que seus pais foram vítimas. Estavam caçando qualquer pista dos agentes que mataram os pais.

Ingrid foi recebendo os detalhes das andanças deles. Estava claro que desconfiavam que os franceses houvessem eliminados seus pais e procuravam os responsáveis para se vingarem.

No consulado “descobriram” que Haydée Daphne, residente em certo local, era a encarregada da segurança.

Sonia, como já havia decidido, foi à procura de Nicole no endereço que tinha e informou Ingrid.

Enquanto Sonia ia ao encontro de Nicole, esta ligou para Ingrid.

– Boa tarde Ingrid.

– Nicole! Como você está menina? Ainda no Brasil?

– Sim, estou. Liguei pra saber se é teu pessoal que está seguindo os rapazes franceses.

– É meu pessoal mesmo. Não estão fazendo um bom trabalho se vocês os viram!

– Estão sim. É que nossa vigilância é mais profunda.

– Tem certeza que é só por isso que me ligou?

– Como ela está? Troquei o celular, o endereço que usava com o disfarce também e troquei o nome fictício.

– Mudou de endereço?

– É de praxe. Mas era mais de fachada, tenho meu apartamento. Já pedi meu desligamento do DGSE, vou tentar ficar com o trabalho de tradutora, se não der certo, paciência.

–  Sonia tentou te ligar e como não conseguiu falar com você, está indo pro endereço que tinha seu.

– NÃO!!

– Que foi?

– É uma armadilha para os filhos dos criminosos, para pegá-los em flagrante e força-los a entregar o resto dos negócios. Se eles estiverem indo pra lá agora… vou verificar com o pessoal. Impeça-a, te ligo daqui a pouco.

As duas saíram apressadamente enquanto apertavam as teclas dos celulares, cheias de preocupação.

Nicole voltou a ligar para Ingrid.

– Eles acabaram de chegar lá Ingrid. Falou com ela?

– Não! Não está atendendo. Estou indo pra lá.

– Eu também.

Ingrid ligou a sirene e dirigiu como nunca.

Nicole estava desesperada de uma forma que nunca tinha acontecido antes, com um medo atroz.

Sonia ia apertar a campainha quando percebeu que a porta da casa estava aberta, apenas encostada. Levou a mão onde estaria a arma e lembrou-se que estava à paisana e desarmada. Viera para conversar o tempo que fosse necessário, sem interrupções. Não trouxera arma nem celular. Entrou com cuidado.

– Haydée!

Sonia se virou para de onde viera a voz e viu o cano de uma pistola apontada para seu peito e três homens na sala.

– Não, eu não sou…

Sonia não soube precisar se ouvira primeiro os sons de tiros, se vira o fogo saindo do cano da arma voltada em sua direção. Ouviu um grito e sentiu-se deslocada. Um salto inacreditável, impensado, a dor queimante. Tudo parecera apenas um instante.

Caiu no chão pesadamente com Nicole sobre ela. Ingrid, seus policiais e os agentes franceses estavam no cômodo. O homem que atirara contra ela estava morto, assim como um dos amigos que atirara contra os policiais e o outro ferido. Ingrid a ajudou a se sentar, trazendo Nicole junto, não conseguia soltá-la.

– Nicole. Fala comigo.

Em seus braços, Nicole abriu os olhos e sorriu levantando uma mão acariciando sua face. Um leve beijo nos lábios com gosto ácido de sangue.

– Je t’aime. Pardon.

A mão caiu inerte. Um grito que Sonia nunca havia dado, lágrimas densas.

Um instante, a tênue linha da vida. A dor, a esperança, um amor… e se tivesse…

O Resgate chegando, viaturas policiais, explicações à imprensa, câmeras… qual a importância de tudo aquilo se o que mais importa… pereceu?

Sonia pensava acompanhando Nicole na ambulância. Perdoar o que? A omissão em não dizer o que não estava autorizada, que não podia? A vida sem alegrias, sem brilho, sem infância? A tristeza e até a dor constante naqueles olhos que amava? O cumprimento de um juramento chantageado? Nada havia a ser perdoado! Quanto tempo perdido por desconfiança, por medo, que idiotice!

A perda do que poderia ter sido!

A bala atingira um pulmão, a poucos centímetro do coração. Os médicos operaram e conseguiram tirar o projétil. A recuperação exigiria um pouco de cuidados e algum tempo, mas ficaria bem.

Como era cidadã francesa, envolvida em ações determinadas por seu governo, tudo foi resolvido “diplomaticamente”. Para a imprensa, uma história de invasão da residência de uma servidora do consulado, por franceses aqui residentes, mas procurados na França que teriam sido reconhecidos pela tal servidora, levando-os a tentarem matá-la para escapar da justiça. Graças à intervenção de policiais brasileiros, as coisas não foram piores.

Devido ao prejuízo temporário em seu pulmão, e o trabalho realizado, o DGSE concordou que não mais faria trabalhos de campo e que poderia ficar no consulado como tradutora e consultora, quando estivesse totalmente restabelecida.

Haveria tempo para conversas, esclarecimentos e um futuro. A vida é efêmera, mas pode ser bem vivida.

FIM.



Notas:



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