2. Conto: Joia do Tempo

2. Conto: Joia do Tempo

Joia do Tempo

Ideia-tema de Aniversário: Carla – Viagem Temporal

Texto: Naty Souza

Revisão: Carolina Bivard e Nefer

Ilustração: Tattah Nascimento


“… Sem mais, nos beijamos e, aos poucos, chegamos em uma cama. A deitei já sem suas roupas e terminando de tirar as minhas. Não me contive e só pude pensar em me encaixar sobre seu corpo. Nossos gemidos ficaram cada vez mais intensos. A cavalguei e, ao mesmo tempo em que minha excitação crescia, tive uma daquelas viagens de uma vida inteira se passando como um filme em minha frente.

Eu via aquela cabeceira de madeira maciça, na qual me apoiava, toda torneada, em tons escuros, assim como toda a mobília antiga do quarto, que contrastava com os tons coloridos das suas roupas. O colorido dos seus olhos, do seu sorriso aberto. A alegria dos seus gestos despojados, desde que a conheci naquela passeata. Quando estava perto do ápice, olhei nos seus olhos e pude ver seu amor por mim. Não pude me segurar mais!”  

Marta acordou, sentando-se na cama, quente, suada, olhando para os lados. Ela estava sozinha em sua cama. Era um alojamento, com certeza. Estava aturdida com o sonho. Esfregou os olhos, o rosto, coçou os cabelos escuros com fios brancos, buscando algum entendimento. Parecia tão real… Nunca havia tido um sonho desses. Quem era aquela mulher? Aliás, pensava que devia ter assistido algum filme que se apossou de sua mente. Era a única explicação! Ela e uma mulher que mais parecia uma hippie? Gargalhou sozinha. Muito tempo sem alguém e, também, sem sexo. Pelo menos, não virtual. Sim, essa era a explicação para aquele sonho descabido! 

Levantou-se, colocou uma roupa de trabalho e focou naquilo que era a sua jornada ultimamente: encontrar uma parte perdida da história das mulheres de séculos atrás. Marta era arqueóloga e estava com outras colegas em uma escavação localizada há dezenas de quilômetros da cidade que havia sido o centro financeiro do país.  Pensava, aliás, que naqueles dias, quem teria esse tipo de nome, Marta. Só mesmo quem era de uma família que gostava de coisas do passado.

Após o café da manhã, a pesquisadora entrou em sua sala e repassou os recentes avanços, mostrados em telas digitais à frente. Pedaços de uma civilização que, há tempos, não existia mais, após surto de raiva que dizimou uma parte significativa do mundo que, até então, era conhecido. 

Olhou com curiosidade detalhes de um estilo de vida que lhe parecia estranho e sem sentido. Recorreu aos livros de história para entender melhor onde aquelas descobertas se encaixavam. Passou o dia todo às voltas com a agitação pela lembrança do sonho.  

A arqueóloga resolveu ir a campo, coisa que há muito tempo não fazia. Trabalho duro, é disto que precisava para clarear a mente! Pegou suas ferramentas e, em pouco tempo, chegou ao sítio. Todas se assustaram ao ver sua chefe, porém, continuaram a rotina. Resolveu ir para o lado oposto do ponto onde estavam trabalhando. Após algumas horas de busca, se deparou com um objeto que não se parecia com nada daquela época. Parecia uma joia. Com cuidado, o limpou. Ele tinha um magnetismo que a impelia e, sem poder resistir, o tocou. A sensação de ser sugada por algo a tomou. Marta fechou os olhos, com medo do desfecho. Em alguns segundos, após o brilho sumir, escuta sons vindos de carros e vozes, que não se parecem com os que ela conhecia.  

O medo ainda estava lá, entretanto a curiosidade foi maior. Não existia mais sítio arqueológico nem suas colegas. Não havia uma colina morta, e sim, muitas casas, alguns carros, movimento. Ela viu um monte de jovens com roupas coloridas e cartazes clamando por justiça, igualdade e paz andando pelas ruas. Cabelos e vestes desalinhadas a lembraram do tal sonho.  

Chacoalhou a cabeça para dispersar os pensamentos e tentar entender o que se passava. Ergueu-se, pegou o equipamento de comunicação. Nenhum sinal. Dispositivos de localização, relógio, nada funcionava! Se viu perdida, sem ideia do que estava acontecendo. Desnorteada, se sentou em um toco de madeira e colocou as mãos na cabeça. Fechou os olhos e acreditou que nada fazia sentido. Respirou profundamente, pensando que aquela peça não passaria sem retaliações. Essa realidade virtual estava perfeita demais, todavia quem a colocou lá teria seu troco. Ao abrir os olhos, tentou usar o dispositivo para sair de qualquer realidade alternativa, mas tudo continuava igual.  

Olhou adiante, e a frase gritada pelo grupo ficou mais alta: 

– Amor e paz! Amor e paz! Amor e paz! 

Aquilo lhe chamou atenção. Realmente, não fazia sentido! Estavam em paz há alguns séculos, depois daquela guerra que chegou ao nosso território e destruiu quase tudo. Sim, a derradeira guerra mundial esteve em, praticamente, todos os países do mundo, inclusive aqui nos trópicos. E esse povo pacífico sofreu as consequências do seu silêncio e por optar por governantes que apoiavam a militarização de tudo. 

Um país que demorou a se reerguer após a Pandemia da raiva e, em seguida, entrou em uma batalha perdida. Neste ínterim, muitos dados, relíquias e acervos físicos foram destruídos; e agora, arqueólogos tentam recuperar coisas que não constavam nos registros oficiais ou que foram apagados dos mesmos.  

De repente, ela viu surgir no meio da multidão a mulher que estava em seu sonho. Talvez ela pudesse esclarecer os recentes acontecimentos! Saiu desvairada, correndo, esbarrando nas pessoas. Viu um rapaz se aproximando da loira, com o semblante fechado e uma barra de metal na mão. Aquilo não parecia uma atitude normal. Cutucou as costas do tal moço e ele, assustado, se virou para Marta.  

– Tudo bem? Você pode me dizer que horas são? – Perguntou, focando em seu relógio de pulso. 

– São onze horas e cinco minutos. – Ele respondeu. 

– Você pode me dizer a nossa localização? – Insistiu. 

– O quê? Localização? Você quer dizer rua, bairro, cidade? – Ele para e a olha divertido. – De onde você saiu com essa roupa que mais parece feita de plástico, senhora?  

– Plástico? Não, esse tecido não é composto de petróleo. Qual seria a cidade? – Respondeu com outra pergunta. 

– Estamos em São Paulo! Meu Deus, a senhora é louca? Está com eles? Veja bem, eu preciso parar esta passeata de malucas! – Ele se exalta. 

– Você vai ferir alguém com esta barra de ferro? A violência não é a solução, rapaz. Se acalme, vamos conversar. – Ela tenta dissuadí-lo do ato. 

Sem nada responder, ele avança sobre a pesquisadora com a barra. Ela, que não esperava que atos como aqueles ainda existissem, caiu desacordada.  

Em algum momento, acordou com uma dor monstruosa na cabeça e nas costelas. Mal conseguia respirar sem que o corpo todo doesse. Tentou se sentar e falar algo, contudo uma moça muito branca, de cabelos escuros e encaracolados se precipitou ao seu lado, segurando seus braços. 

– Shhhh… Tente não falar e se levantar. Continue deitada. Isso. Fique calma, respire devagar. Eu sou a Lu. Luíza. – Disse calmamente, mas com um olhar preocupado. 

– Ai… – Gemeu. Fechou os olhos, novamente. – Eu sou a Marta. Seria um prazer se eu não estivesse me sentindo assim. – Gemeu novamente, levando a mão às costelas. 

– Acho que você não se lembra do que aconteceu, não é mesmo? – Ela perguntou. 

Chacoalhou a cabeça e levou a mão à cabeça, desta vez. 

– Você sofreu um ataque por parte de um rapaz que achou que estava conosco na passeata. Seu objetivo era nos atacar. Azar o seu de ser pega sem ter nada a ver com nosso movimento. Me desculpe por isso, e obrigada. – Ela, sem graça, explicou. 

– Por que está me agradecendo? – Ficou confusa. 

– Porque pudemos nos dispersar e nenhuma das meninas se machucou. – Luíza falou. 

– Meninas? – Resmungou. 

– Sim, somos um grupo de mulheres jovens que quer a igualdade entre os sexos para as decisões em relação ao planejamento familiar, ao nosso corpo, ao trabalho, às orientações sexuais. No entanto, o fazemos de forma pacífica, queremos que tudo aconteça através do amor. Que as pessoas tenham uma nova consciência e que os governantes sejam contra o uso de armas nucleares no mundo. Já não basta o que aconteceu no fim da segunda guerra mundial? – Ela praticamente vomitou as palavras, exasperada. – Me desculpa, falei demais? Ai, esse assunto me deixa muito irritada! 

– Luíza, fique tranquila. Está tudo bem. – Falou baixo, sem muita energia. 

– Bicho, você precisa descansar. Vou parar de falar. Mais tarde, a Dra. Elza vai passar aqui para ver como você está. – Disse ela, se levantando. — Tome este remédio para dor, que ela deixou. E você precisa ir à delegacia prestar queixa deste ataque. 

– “Bicho? Foi assim que ela me chamou? Que estranho.” – Pensou a arqueóloga.

Tudo estava esquisito; resolveu não reclamar. Olhou para a mão estendida. Há muito não tomava pílulas. Elas pareciam obsoletas. Mas, se era para melhorar aquela dor insana, que fosse. Engoliu os comprimidos com água. Após muitos minutos, ela relaxou e dormiu. Acordou tempos mais tarde com uma conversa cochichada na porta do quarto. Virou a cabeça e aquela mulher da passeata estava lá, conversando com Luíza. 

– Boa noite, eu sou a Elza. Sou médica, e passei pra ver como você está. Marta, certo?  

– Sim. Prazer. 

– Vou te fazer algumas perguntas para avaliar se a pancada na cabeça será motivo para mais exames. Você sabe em que cidade estamos? – A médica inquiriu. 

– São Paulo. – Respondeu. 

– Qual o dia da semana, do mês e do ano? 

– Cinco de setembro. – Chutou. Será que era o mesmo dia? – Pensou. 

– Correto. E o ano? – Insistiu. 

– Não tenho ideia! – Resolveu não arriscar. Falar que era 2947 não seria de bom tom, já que em nada se parecia com o que lhe era conhecido. 

– Você se lembra do que comeu no café da manhã? – As questões continuaram. 

– Sim. Frutas, pão, café. – Respondeu prontamente. 

– Essas roupas saíram de alguma peça de teatro, filme futurista? Parecem de plástico. – Novas perguntas. 

– Não são feitas de polímeros de petróleo! São térmicas e biodegradáveis. São usadas em campo, nas pesquisas. – Tentou explicar de forma simples, sem muitos detalhes. — E o ano, qual é? – Não conteve a curiosidade. 

– 1960. Você não se lembra mesmo? Que estranho… Você está conversando normalmente, tem um raciocínio lógico… Façamos assim: amanhã pela manhã, você vai ao hospital comigo. Não é maravilhoso, mas temos equipamentos de raio-X. Poderei avaliar melhor esta lesão e se coágulos se formaram. Combinado? – Ela sorriu e ofereceu sua mão para um cumprimento. — E precisa ir à delegacia também. – Completou. 

Marta não sabia bem o que fazer e ofereceu a mão, também. A médica apertou delicadamente, olhando-a fundo nos olhos. Os seus, castanhos, sorriram para cor de mel. Se sentiu com a face queimando, desviou o olhar, a garganta secou. Não entendeu a reação àquele simples toque. Somente assentiu com a cabeça para Elza, que se levantou, despediu-se e saiu. Deixou a outra olhando para a própria mão e um redemoinho que começava na cabeça, terminava no peito e refletia nas pernas, mais precisamente, no meio delas.  

A morena se sentia muito louca, naquele momento. Aparentemente, aquele objeto que havia tocado a levou para quase mil anos antes do tempo em que vivia. Ela estava no lugar no qual tentava achar traços em sua busca arqueológica. Como isso era possível? Como voltaria para casa? Onde estava o tal objeto? Ela não sabia a resposta para nenhuma daquelas perguntas. A sua vida era uma sequência de questões sem resposta. E, por um momento, sentiu que não deveria procurar uma explicação, somente aproveitar o momento.  

Seus pensamentos foram interrompidos por Luíza, que entrou no quarto com uma espécie de cigarro muito cheiroso. Ofereceu: 

– Quer dar um tapa? 

– Dar um tapa em quem? Não, claro que não quero descontar minha raiva em você! – Respondeu, achando um absurdo aquilo. 

Ela riu e continuou com o cigarro esticado.  

– É só modo de dizer. Quer um trago do baseado? Ou melhor, uma peruana vai te relaxar, é isso! – Ela dialogou consigo mesma.  

Sentou-se ao lado da outra, que estava deitada na cama e, meticulosamente, retirou quase toda a cinza do cigarro, e então o colocou ao contrário na boca. Ela fez um sinal para que se sentasse. Sem entender nada, ela levantou o tronco vagarosamente, e quando ia perguntar algo, a moça enfiou aquele cigarro na sua boca e soprou.  

Surpresa, a arqueóloga aspirou a fumaça e se engasgou. Luíza tirou o cigarro da boca, deu um trago e, com uma voz estranha, de quem tentava segurar a fumaça, indagou: 

– Você não é acostumada a fumar? – Expeliu a fumaça, depois de alguns segundos. 

Ainda tossindo, ela fez um “não” com a cabeça.  

– Bicho, devia começar! Vai ajudar com a dor. – Ela sugeriu. – Acho que a peruana foi muito.  

– Por que você está me chamando de bicho? – Perguntou, já intrigada. 

– Só modo de dizer. Afinal, não somos todos bichos? – Explicou. 

– Faz sentido, apesar de eu achar inusitado. Se esse tal baseado vai ajudar com a dor, vou tentar mais uma vez. – Cedeu. 

Meio desajeitada, pegou e tentou tragar. Mais algumas tentativas, seguidas de tosse e começou a se sentir relaxada. A conversa ficou animada, cheia de gargalhadas, até que o estômago roncou alto. A anfitriã teve uma crise de riso e a puxou pela mão, delicadamente, para a cozinha.  

– Vem, vamos pegar algo na horta para fazermos uma salada e ovos no galinheiro. Temos arroz, feijão. Devem bastar. 

A morena não saberia dizer se já tinha experimentado aquele cardápio, simples e saboroso. Estava tudo delicioso. Fazia muito tempo que não via ninguém cozinhar, pessoalmente. Queria começar a organizar, porém não encontrava a máquina de lavar louças. Tentou entender como as pessoas limpavam sem equipamentos. Vendo a cara de interrogação, Luíza  puxou sua hóspede de novo para o quarto: 

– Esquece a louça. Amanhã, a gente vê isso. Ela não vai sair correndo da pia! – Troçou. 

No quarto, ela se despiu sem cerimônia alguma. Embaraçada, Marta olhou para o lado e reparou que só havia uma cama de casal no cômodo. Fez menção de sair, e ela, vestindo uma blusa larga, perguntou: 

– Onde a senhorita acha que vai? – Rindo perguntou. 

– Para a sala. Creio que eu devo dormir no sofá. – Respondeu incerta. 

– Vem, linda, deite-se comigo. – Ela convidou de maneira sexy. 

– Olha Luíza, você é linda, mas eu realmente só estou pensando que preciso dormir agora. 

Depois de uma risada gostosa, ela comentou: 

– Tá bom, então!  

Ela se ajeitou na cama e a outra no sofá. Depois de uma noite com algumas dores e posições incômodas, acordou com o cheiro de café. 

– Bom dia… – A morena disse bocejando, pensando em Luíza, mas se deparou com Elza.  

– Bom dia. Você está melhor? 

– De onde você surgiu, como entrou aqui? – perguntou, confusa. 

– Eu tenho a chave, apesar de não morar nesta casa. Você deve ter percebido que tenho alguns anos a mais que as meninas. Porém, somos do mesmo grupo das lutas pelos direitos das mulheres. Acabo vindo muito aqui. Minha casa não é longe. Vem tomar um café pra gente ir. A lotação vai passar em breve! – Ela disparou. 

– Lotação?  

– Sim, o nosso transporte até chegarmos ao hospital. – Ela disse, pensativa. 

A arqueóloga concordou e se pôs a comer algo e tomar café. Pegou calça e blusa emprestadas e, em alguns minutos, ganharam a rua, parando o tal ônibus.  

O transporte foi lento, precário e mal cheiroso, devido a algumas pessoas presentes. Pareciam pacientes psiquiátricos e teve a certeza quando o ponto que dava acesso à estrada para o hospital se revelou. 

Quando o ônibus parou, muitos desceram e Elza se dispôs a ajudar os que tinham dificuldade de locomoção. Marta fez o mesmo, até que alguns enfermeiros assumiram a tarefa, de uma forma não tão delicada.  

Ambas entraram no recinto e a arqueóloga viu a médica se dirigir à ala feminina. A seguiu de perto, reparando nas muitas portas fechadas, espalhadas pelo caminho. O local era gigantesco. 

Entraram em um consultório simples e desgastado, onde Elza deixou seus pertences e sinalizou para que a outra a seguisse. Em outra sala, deu instruções para uma enfermeira sobre o raio-x, preencheu os documentos necessários e lhe chamou: 

– Vem, Marta; a Odete vai te acompanhar no exame. Tem algo de metal em seu corpo ou está usando algum adereço? 

Retirou o cordão e seguiu a senhora negra. Após alguns minutos, lhe disse para voltar para o consultório da doutora. Assim que terminasse de revelar as “chapas”, levaria pessoalmente. 

Quando chegou à sala, não havia ninguém. Viu ali sua chance de andar livremente pelo local e tentar descobrir mais alguma coisa.  

Alguns quartos eram revestidos de colchões pelas paredes e outros pareciam enfermarias, com dezenas de camas. Passou por mulheres brincando com bonecas, outras olhando fixamente para o teto, amarradas. Havia ali gente que não parecia estar doente. Muitas mulheres, de todas as idades. Algumas mais bem arrumadas, outras maltrapilhas. Havia algo estranho naquele lugar. 

Uma enfermeira a questionou sobre o que ela fazia ali e, ao dizer que procurava a Dra. Elza, soube que ela estava em ronda. Saiu pelo corredor para voltar ao consultório e escutou um zumbido de eletricidade, seguido de gritos.  

Instintivamente, correu para o local e, quando abriu a porta sem aviso, se deparou com o que mais parecia uma seção de tortura. Uma mulher amarrada, com um pedaço de algo que parecia madeira na boca, recebendo eletrochoques, através de um equipamento colocado na cabeça. Um forte enfermeiro gritou com a arqueóloga e a retirou à força do local. Estava a caminho da enfermaria quando a médica os interceptou e pediu que ele a direcionasse para o consultório. Trancou a porta atrás de si, empurrando a outra para a cadeira, muito irritada: 

– O que você achou que ia fazer naquela sala? Salvar a pobre moça da tortura? Você, por acaso, tem síndrome de Mulher Maravilha? Quem é você? Por que estava andando pelo hospital perguntando coisas?  

Aqueles olhos faiscando, aquela voz imponente e grave levaram Marta para o lugar mais improvável: o sonho. Parecia uma brincadeira da sua mente, mediante tal situação, se sentiu ridícula. Corou, abaixou a cabeça, não soube o que responder. 

Batidas na porta interromperam a pequena discussão. Era Odete com as “chapas”. Ela dispensou a mulher, as retirou do envelope pardo, analisou contra a luz, e concluiu: 

– Parece que sua cabeça dura está bem. Nenhuma complicação da pancada. Você vai sobreviver. Agora, se me dá licença, eu tenho muito o que fazer, e você tem que voltar para o lugar de onde veio. 

Quando ela se virou para sair, Marta a segurou pelo pulso. Assustada, a médica se virou e ficaram cara a cara. Olhos nos olhos. Olhos nos lábios. Elza desviou o olhar e sua mão escorregou pela da arqueóloga, que notou a grossa aliança de ouro no dedo anelar da mão esquerda. Ela era casada. 

– É… Me desculpe… Eu nunca estive em um lugar como este e fiquei curiosa. Então, escutei os gritos e me assustei, achei que alguém precisava de ajuda… Eu… Eu não queria causar problemas. Me perdoe, por favor, Elza.  

– Tudo bem, me desculpe por gritar com você. Eu fiquei nervosa. Temos eventuais problemas com curiosos por aqui. Então, me responda, quem é você e o que estava bisbilhotando? – indagou a médica. 

Um suspiro longo, os ombros baixos, um arrumar dos cabelos escuros e grisalhos precedeu a explicação mais simples que Marta pôde elaborar: 

– Eu sou arqueóloga. E estou tentando entender os hospitais, pois a pesquisa atual tem a ver com isso. E em como tratam as mulheres nesses lugares. Estamos tentando estabelecer hipóteses sobre o como e o porquê de virem para cá. Temos algumas, que ainda não posso divulgar, mas que, talvez, liguem este momento a outro. 

Uma feição curiosa e surpresa se fez no rosto alvo. Os cabelos loiro-escuros foram ajeitados em um coque e preso com grampos, enquanto escutava. Não emitiu sequer uma palavra. 

– Bem, será que você poderia me ajudar? – A mulher do futuro pediu. 

– Preciso ver sua documentação para comprovar o que diz. Não posso passar informações a qualquer pessoa que diz ser alguém. Você tem ideia de quantas “rainhas”, “imperadores” e “presidentes da república” eu tenho aqui dentro deste hospital? Notou que fazemos aqui tratamentos psiquiátricos e que eu sou uma médica psiquiatra, porventura? – Elza disse rindo, abertamente. 

– Eu tenho um grande problema. No dia da passeata, acabei perdendo meus pertences. Como não sou daqui, vou demorar a conseguir uma nova via para te apresentar. Isto inclui um objeto de valor inestimável, o qual preciso recuperar o quanto antes. – Explicou a pesquisadora. 

– Você precisa de ajuda para ir à delegacia? Quer que eu vá com você para testemunhar a seu favor? – A loira perguntou. 

– Se você puder, será de grande ajuda. – Respondeu a outra, segurando as mãos delicadas entre as suas. — Muito obrigada!  

A médica exibiu um rubor lindo em sua face, um tanto sem graça. Retirou as mãos, mexeu em alguns papéis na mesa, meio desorientada.  

– Fique aqui e não arrume confusão! O dia está tranquilo, só preciso checar mais alguns pacientes e avisar meus colegas que me ausentarei. Vou ver se algum carro do hospital vai para a capital e, assim, nos leva. – A médica ordenou. 

A outra assentiu e se sentou na dura cadeira de metal, pintado de um branco encardido e gasto. 

Algumas horas depois, saíram e se dirigiram ao estacionamento, onde entraram na ambulância. Marta, na parte de trás com um enfermeiro, e a médica na frente, acompanhando o motorista. Chegaram à cidade rapidamente e as deixaram em frente à delegacia.  

O policial reconheceu a médica e, rapidamente, a atendeu: 

– Dra Elza, o que a traz à delegacia? Em que posso ajudar?  

– Estou acompanhando a Sra. Marta… – sinalizou para a outra a fim de saber seu sobrenome 

– Senhorita Marta Costa – a arqueóloga continuou. — Eu fui agredida no dia da passeata e perdi meus pertences. Na verdade, posso ter sido roubada. – Concluiu. 

– Eu estava presente e vi quando ela foi agredida. O rapaz queria acabar com a passeata e acreditou que ela fizesse parte do grupo. Como uma confusão se formou a partir disso, não se sabe se o próprio rapaz a roubou ou se alguém que estava por lá o fez. De qualquer forma, vocês precisam prender o criminoso. – A loira explicou. 

– Doutora, com todo o respeito, aquela passeata de mulheres loucas não poderia ser mais descabida e dar em algo diferente. É um disparate que elas achem que vão conseguir o que demandam! Devem ser de alguma seita do Satã para pensarem em interromper uma gravidez. Que Deus tenha pena delas! – O guarda terminou, fazendo sinal da cruz. 

– Você é um bom homem, José. Por favor, entenda que esta pessoa não estava na passeata e foi agredida. Veja bem o “galo” na cabeça dela! A polícia tem que tomar providências. Ela está sem documentos, dinheiro, pertences. Como irá voltar para sua cidade? – A médica questionou o guarda. 

Ele resolveu chamar o delegado, pois não sabia o que fazer. O superior, mais por influência de Elza do que pelo caso em si, registrou a queixa. Uma mulher agredida não significava nada. Mas a esposa contrariada de um importante comerciante e benfeitor da polícia seria complicado.  A descrição do suposto agressor foi passada para que as buscas acontecessem. 

Saindo da delegacia, a médica perguntou: 

– O que vai fazer agora? 

– Não sei, voltar para a casa da Luiza? – A morena respondeu.

– Já passamos um pouco do horário do almoço, porém na minha casa deve ter algo. Diogo já deve ter almoçado e voltado para a loja. A empregada sabe que meus horários, às vezes, não são convencionais e guarda comida para quando eu chego. – Explicou Elza. 

– Seria ótimo, obrigada. Posso te perguntar uma coisa? – Questionou a arqueóloga. 

– Se eu puder responder, claro!  

– Se seu marido é um homem com situação financeira confortável, por que você não tem seu carro ou um motorista?  

– Gasto desnecessário de dinheiro! Está tudo bem como está! Vem, vamos logo. Estamos próximas à minha casa. – Replicou a médica, sem dar chances à outra de continuar o assunto. 

Chegando à imponente casa da zona central da cidade, foram recebidas pela empregada que, rapidamente, foi preparar a refeição. Elza subiu a escadaria e a convidou. Disse que iria se trocar e que Marta poderia usar o toalete, se quisesse.  

Após lavar o rosto e as mãos, se dirigiu à porta do quarto por onde viu sua anfitriã entrar. A passagem estava levemente aberta e ela enxergou uma parte dos móveis escuros de madeira maciça. Novamente, o sonho… Perdida em seus pensamentos, viu Elza se trocando. Ela não era tão nova. Deveria ter seus 50 anos. O corpo era condizente com a idade, o que não a deixava menos atraente.

Por mais incrível que parecesse, a médica viu que era observada com raro interesse. Sentiu um grande prazer em ser desejada por uma mulher na sua idade. Já havia pensado várias vezes sobre o assunto, entretanto, nunca se abriu com ninguém a respeito. Aquela mulher forasteira parecia sentir o mesmo que ela. Poderia ser uma chance… Chacoalhou a cabeça e se condenou. Era casada! Traição era errado! Com uma mulher? Deus! Deixou algo cair, e etou sua admiradora, que voltou ao toalete, como se nada tivesse acontecido. 

Desceram silenciosamente e almoçaram. Elza parecia disposta ao diálogo e, mesmo sem que Marta tivesse apresentado suas credenciais, começou a falar do seu trabalho. A dificuldade de lidar com pessoas abandonadas à própria sorte naquela instituição. O preconceito por parte dos colegas homens, pelo fato dela ser médica psiquiatra e não estar em casa cuidando da família.

Relatou que muitas mulheres eram tidas como loucas por serem espíritas, por gostarem de sexo, por não quererem ser mães, por enfrentarem seus maridos quando sofriam violência, por não obedecerem seus pais ou maridos, por gostarem de alguém do mesmo sexo. Ou seja, se eram contra qualquer ponto da ordem estabelecida, se encaixavam naquele papel.

Estas acabavam se tornando verdadeiramente loucas, em função do excesso de medicamentos, dos eletrochoques, do confinamento. Ninguém acreditava em suas versões e nada era feito para que elas se recuperassem e pudessem ter uma vida saudável, fora das paredes daquele hospital.

A refeição, de repente, se tornou amarga para Marta. Ouvir aqueles disparates a fez fechar os olhos e se concentrar no ano em que estava. Todavia, a indignação a fez falar: 

– Como você pode trabalhar num lugar desses? Você colabora com este despautério!  

De repente, seu olhar se tornou triste, pois lembrou que era apenas uma mulher entre tantos médicos e, eventualmente, ela era ridicularizada, deixada de lado. Sua luta diária era árdua e, eventualmente, pensava em desistir.

– Pelo contrário, minha cara! Eu estou lá para que sejam melhor cuidadas, enquanto não conseguimos mudar a realidade e as leis do país para que as mulheres não sejam mais internadas por esses motivos! – Elza se exaltou. — Por que você acha que eu te socorri naquele dia? Eu estava apoiando a passeata!  

A face da médica se tornou vermelha pela indignação com as suposições da outra. 

– Tudo bem. Me desculpe, eu me precipitei, tirei conclusões erradas ao seu respeito. E seu marido, aceita sua postura, seu trabalho? – A arqueóloga continuou. 

– Diogo só se preocupa com a loja que herdei do meu pai e com o dinheiro que ela rende. Ele pretende se candidatar. E ter uma mulher médica, conhecida e caridosa ajudará na sua campanha. Eu deixo que ele acredite no que quiser, enquanto eu puder seguir fazendo o que creio que seja o certo. – Elza explicou com um olhar triste. 

Ela resolveu fechar o assunto, falando, com certo brilho nos olhos, sobre o trabalho que uma colega psiquiatra do Rio de Janeiro está fazendo com foco nas artes. Já tinha informações sobre as possibilidades destas atividades e a melhoria dos pacientes. Estava empolgada em começar logo a fazer o mesmo no local onde trabalhava.

Marta acariciou a face da outra e, com um olhar carinhoso, pensou que queria alguém com aquela força, paixão e dedicação para si. Um impulso fez com que desejasse beijá-la. Pareceu que seus pensamentos foram lidos e a outra levantou-se, abruptamente. 

A arqueóloga a segurou e a abraçou, com ternura. Percebeu-a trêmula em seus braços. Quando se apartaram, a médica terminou logo a conversa e a forçou a se despedir.

Voltou para a casa de Luíza bastante desanimada e contou à colega uma parte do dia.  A anfitriã sorriu e tentou animá-la: 

– Não se preocupe, fique o quanto precisar. Você pode ajudar com a horta, com os serviços da casa. Se cada um fizer um pouco, todos ficam bem. Mas eu tenho uma pergunta para você: está caidinha pela Elza, né? 

– O que é caidinha? – A morena ficou confusa. 

– Estar interessada, apaixonada. – Esclareceu. 

Por mais que Marta quisesse negar, não conseguia. A médica a instigava.

– Aqui nesta casa, gostar de outra mulher não é crime, viu? Fique tranquila! Eu a acho bem bonita e charmosa também. Mas ela nunca me olharia desta forma. – ela terminou, rindo de si mesma. — Vem, vamos fumar um. 

Alguns dias se passaram e nenhuma novidade sobre os pertences, ou Elza. Em uma manhã, enquanto cuidava da horta, um rapaz chegou dizendo que tinha um recado para a senhorita Marta Costa. Era um bilhete dela, para que a pesquisadora fosse à sua casa o quanto antes.  

Tomou um banho, se trocou e foi. Na entrada da casa, encontrou o marido da médica que saía com um empregado carregando malas. Ele estava de partida para Santos. Precisava resolver pendências sobre a importação de certas mercadorias da loja. Foi explicando ao rapaz ao seu lado, que parecia ser o gerente do estabelecimento, dando instruções sobre o que deveria ser feito em sua ausência e que, se tudo acontecesse da forma como imaginava, em três ou quatro dias estaria de volta. 

O homem a olhou com desdém, medindo suas roupas coloridas, emprestadas de Luíza, e chamou o empregado que carregava suas malas. 

– Benedito, veja o que esta mulher quer. Deve ser uma daquelas loucas que minha esposa insiste em tratar de forma caridosa. 

– Eu… – Marta começou a responder; e Diogo simplesmente lhe deu as costas e entrou no carro. Mil palavrões surgiram em sua mente, no entanto não ganharam voz. De nada iria adiantar.  

– Venha, minha filha. A Dra Elza tá te esperando. – Chamou o senhor moreno. 

Ela o seguiu casa adentro e foi acomodada em um sofá na biblioteca. Levantou e começou a olhar os livros. Foi surpreendida quando folheava uma edição rara em sua época. 

– Gosta de Cecília Meireles? – A voz da psiquiatra soou muito próxima ao seu ouvido; quase pulou de susto. 

– Uma das minhas favoritas. Me desculpe a intromissão. Eu procuro este livro, há tempos, e não me contive ao vê-lo ao alcance das mãos! – Explicou a arqueóloga. 

– Fique com ele. Já o li algumas vezes. E não me custa comprar outro. – Elza ofereceu. 

– É sério? – A outra indagou. 

– Sim, claro! É seu. Faço gosto. – Sorriu. — Bem, tenho boas notícias! O delegado disse que recuperaram alguns itens estranhos e quer que você vá fazer o reconhecimento. Vamos? – A loira convidou, já abrindo a porta. 

Marta, etada, não respondeu, somente acenou e seguiu pelo caminho indicado. Ao chegarem à delegacia, foram prontamente atendidas. Estavam no setor de reconhecimento de pertences o comunicador, além de mais dois pequenos equipamentos de localização um tanto amassados, e o tal objeto, embrulhado em um tecido. 

– A senhorita não deu muita sorte. Seus aparelhos estão estragados. Parece que tentaram desmontar e não conseguiram. Seus documentos e dinheiro também não foram encontrados. Pelo menos, esta joia foi interceptada antes da venda. – Relatou o policial.  

– Tudo bem, eu já estava sem esperanças de encontrar meus pertences. O mais importante é a joia. Muito obrigada! – Respondeu a morena. 

– Assine aqui, por favor. – Demandou o oficial. 

Após a assinatura, saíram do local e uma Elza acanhada convidou: 

– Marta, você quer almoçar comigo? Hoje, não tenho que ir ao hospital e Diogo viajou. Não gostaria de ficar sozinha. 

Mais que depressa, a arqueóloga aceitou e caminharam até à casa. Chegando lá, constataram que ainda era muito cedo para o almoço. Levaria pelo menos duas horas para que a refeição estivesse à mesa. A anfitriã a chamou: 

– Vem, vamos subir. Neste horário, o segundo andar é mais fresco.  

A arqueóloga se sentou no sofá da antessala que dava para a suíte, enquanto a anfitriã foi pedir um suco para ambas. Voltou ao quarto e disse que iria se trocar. 

Por curiosidade, retirou o pacote do bolso e abriu o tecido para conferir a joia. Teve medo de tocá-la e desaparecer novamente. Enquanto admirava o objeto, a médica chegou e, então começou a observá-lo, como ainda não tinha feito. 

– Onde você adquiriu isto? – A curiosidade da médica falou mais alto. 

Ela havia voltado com uma roupa leve, que mais parecia uma das batas de Luíza. 

– Eu a encontrei em uma escavação. Por quê? 

– Eu não acredito que aquele joalheiro tenha dito que fez uma peça exclusiva para mim! Paguei os olhos da cara! E agora você tem uma exatamente igual, e ainda por cima foi achada… Vou ter que pedir explicações a ele. – A médica indignada olhava a joia e falava. — Um minuto, vou te mostrar a minha. – Saindo desvairada pelo quarto, voltando rapidamente.  

– Veja se o modelo não é o mesmo! – Mostrando a caixa recém aberta.  

A arqueóloga pegou a joia das mãos de Elza e a examinou, detalhadamente. Parecia uma brincadeira do destino: eram a mesma. Até um pequeno amassado na borda e um risco ínfimo na pedra estavam lá. À medida em que comparava ambas, ficou pálida. A outra, vendo a reação e os pontos averiguados, ficou surpresa igualmente. 

– Creio que você me deve uma explicação, Marta. 

– Você acreditaria se eu te dissesse que eu não sou deste tempo? Que eu achei este objeto, esta joia, quando, numa escavação, procurando respostas para os registros de mulheres que deixaram de existir, após serem internadas em um hospital, a quilômetros de São Paulo, que eu presumo que seja onde você trabalha agora? Que penso, talvez, você tenha me chamado aqui para que esta história não se perdesse? – A pesquisadora exaltada, questionou. 

A loira a olhava etada, não conseguia concatenar os pensamentos.

– Você acha que faz algum sentido pra mim? Eu sonhei com você; no dia seguinte, achei essa joia e a próxima coisa de que me lembro foi de estar naquela passeata! – Continuou falando desembestada. 

– Você sonhou comigo? Quando? – Foram as únicas coisas que a psiquiatra conseguiu dizer. 

– Antes de te conhecer. 

A loira riu nervosa, andou em volta do sofá, passando as mãos pelo cabelo. Só poderia ser brincadeira. 

– Por que você está fazendo isso comigo? O que você quer de mim? Queria me deixar encantada por você e agora me diz esses absurdos? – A revolta aflorava. 

– Calma, Elza, por favor, vamos conversar. Olha, eu não planejei nada disso, eu nem sei como explicar. – Marta se aproximou mais e segurou as mãos brancas entre as suas, baixando o tom de voz.  — Eu queria realmente que você se encantasse por mim, eu quis te beijar desde o primeiro momento. Contudo, eu não sabia se você queria, se eu deveria. Afinal de contas, você é casada. – Completou Marta, baixando os olhos para o anel, com uma voz triste. 

– Isso explica suas roupas e aqueles equipamentos estranhos que te foram entregues na delegacia. – Ponderou. 

A pesquisadora concordou, com um aceno.

– Você promete que vai relatar o que contei nos livros da sua época? Que vai fazer justiça àquelas mulheres invisíveis? – A médica pediu, pegando no queixo da outra e levantando-o para que seus olhos se encontrassem. 

– Sim. – A arqueóloga respondeu, colocando uma mecha de cabelo da loira atrás de sua orelha. 

Olhos nos olhos, olhos na boca, uma mordida no canto do lábio inferior. Estes foram os sinais para o beijo enfim acontecer. 

– Eu… – Elza, insegura, tentou elaborar uma frase. 

– Você é linda, perfeita! Por favor, não diga nada que não reflita esta realidade! – Sussurrou a arqueóloga.

Uma porta trancada e roupas jogadas no caminho para a cama de madeira maciça que aparecera no sonho de Marta. Porém, a realidade era muito melhor que a fantasia. 

Após aquele momento único entre elas, as batidas na porta chamaram para a refeição. Desceram, comeram e se dirigiram à biblioteca.  

– Você acha que vai funcionar da mesma forma? Que você vai tocá-lo e voltar para casa? – Inquiriu Elza. 

– Eu não sei, mas creio que deva, pelo menos, tentar. – replicou a outra. 

– Vem, me dá um abraço de despedida antes de tentar. Não se esqueça do seu livro! – Puxando a pesquisadora pela mão. 

Abraçaram-se com a ternura da despedida. Um último beijo. Com lágrimas nos olhos, Elza indagou:

– No seu tempo, as mulheres já são tratadas de uma forma mais justa e menos como loucas?

– Sim, a realidade é bem diferente. A sua luta não será em vão. – Replicou a outra.

Marta retirou o embrulho do bolso, abriu com cuidado e tocou a joia. A luz novamente começou a brilhar e ela foi sugada, do mesmo jeito que antes.  

Quando abriu os olhos, estava no local da escavação. O objeto se desfez em suas mãos, como se tivesse se transformado em areia. 

– Não, não, não… – Gritou. Baixou a cabeça e uma lágrima desceu pelo rosto empoeirado. 

As colegas vieram correndo, preocupadas.  

– O que aconteceu, Marta? – Sua assistente perguntou. 

– Um objeto importante para a pesquisa se desfez em minhas mãos. – Disfarçou. 

– Que susto, mulher! Até parece que é a primeira vez que você escava – Troçou.  

– Pessoal, um livro foi encontrado dentro de uma caixa. Está em péssimas condições, entretanto creio que é possível extrair algo. Vou levá-lo para o laboratório. – Outra assistente reportou.

– Tem algum nome neste livro, do autor, quero dizer? — A chefe da missão indagou. 

– É de uma equipe médica de um hospital psiquiátrico. – A moça respondeu. 

– Meninas, eu vou voltar para o escritório. Continuem aí, e se precisarem de algo me chamem. Quando os resultados estiverem prontos, me enviem os arquivos. Bom trabalho! – a arqueóloga explicou, saindo. 

Ao chegar em sua estação, relatou a experiência e fez seu relatório. Após receber os arquivos sobre o livro recém descoberto, cruzou com alguns de história. Parece que aquelas mulheres invisíveis iriam finalmente ganhar justiça, como prometera. 

Pelas pesquisas, os hospitais psiquiátricos se tornaram depósitos de gente no decorrer dos anos, em vários estados do país. Tanto de mulheres quanto de homens, ainda mais a partir da ditadura militar. Muitos presos políticos foram trancafiados entre os “loucos”. Entretanto, uma luta antimanicomial foi travada por anos a fio por profissionais e famílias de pacientes. 

Pensava incessantemente sobre a psiquiatra, seu papel neste processo e, principalmente, sobre ela estar naquela equipe médica, autora do tal livro. Parecia que havia uma pessoa no grupo de trabalho que usava a arte como forma de tratamento. 

– Seria Elza esta pessoa? – Refletiu, prontamente.

Tentou buscar reportagens, referências, fotos da época sobre ela, tanto como médica, quanto psiquiatra, funcionária do hospital ou esposa de Diogo Junqueira. Nada encontrou. Parecia que ela, simplesmente, não havia existido…

FIM!



Notas:



O que achou deste história?

10 Respostas para 2. Conto: Joia do Tempo

  1. Naty, parabéns! Gostei muito de como você desenvolveu a ideia. Excelente.
    Tenho um caso na família, infelizmente. Minha prima foi internada pelo marido sob a suspeita de que estava enlouquecendo e era incapaz de criar os três filhos ainda pequenos. Minha tia demorou meses para saber a verdade porque, como moravam longe e o transporte era precário, era costume ficar meses sem visitas. Quando ligava para a filha, era sempre o genro que atendia e dizia que a esposa estava ausente, visitando amigas.
    Acredite se quiser, minha tia ficou sabendo, suspeitando de que havia algo errado, por uma vizinha, cuja filha trabalhava no hospital psiquiátrico na cidade onde minha prima fora internada. Cidade diferente de onde minha prima morava. Essa moça reconheceu minha prima e ficou preocupada de vê-la naquele lugar, praticamente hebetada. Suspeitou, mas teve receio de falar algo, antes de contatar sua mãe, vizinha de minha tia.
    Enfim, minha tia fez uma guerra com o genro, moveu montanhas e o obrigou a tirá-la de lá, já que o patrio poder era dele – estamos falando de mais de quarenta anos atrás.
    Tudo isso porque ela queria trabalhar fora, como cabeleireira, profissão que adorava… Detalhe: ele era barbeiro.
    Lamentável…
    Sob ameaças de perder a guarda dos filhos, ela permaneceu casada por mais vinte anos até obter a separação.

    Seu texto reabriu memórias como essa.

    Tomara que você tome gosto e nos presenteie com outros contos.

    • Nefer, sua fofa, muito obrigada três vezes! Primeiro, pela primorosa revisão. Segundo, pelo incentivo em continuar. E em terceiro, por dividir conosco esta história da sua família.
      Beijos

  2. Oiê, muito bom!!
    Na verdade , que existem muito lugares, principalmente na Espanha e que usam eletrochoques!!
    A luta antimanicomiu, acho um absurdo,hj em dia existem muitos tratamrntosr mais humanizados e devemos lutar para deixarem dd existir….
    Minha tia sofreu muito, levou muitos eletrochoques por esquizofrenia e bipolaridade, só piorou! Hoje mudou ,mas ainda existem milhares!
    Meu tio TB foi preso na ditadura( ex marido dessa minha tia)…bem, um cara muito inteligente, porém, não ficou bem..um dia disse: se eu deixo que ese demônio saia, fixo louco por isso n poso fazer terapia… imagino o quanto sofreu sendo torturada. E meu avô disse q se ele se meteu q ele q saísse, mas minha vó, como muitas mães, lutou pra liberar…n lembro como foi, voinha faleceu a alguns anos,apenas sei parte da estória e prefiro n perguntar tb…
    Fique bem, beijos de luz!!
    Ótimo tema, gostei muito!!! Parabéns!!!

    • Lai, obrigada pelo comentário, e também por compartilhar esta história da sua família.
      Abraços e bom fim de semana.

  3. Super verdadeira. minha mulher é psicologa, logo, temos amigas na mesma profissão e já ouvi muitas coisas à respeito destas prisões disfarçadas em hospitais. Infelizmente, há muitos invisíveis mundo afora e muitos que se esforçam por aumentar o número deles!

    • Ione, obrigada pelo comentário. Minha esposa também é psicóloga, e foi dos seus relatos que criei uma parte do conto. Infelizmente, ainda é uma realidade…
      Abraços

  4. Muito obrigado pelo conto. Gostei muito e principalmente pela minha ideia original ter sido desenvolvida de forma cuidadosa, inteligente e intrigante. Abs

    • Carla, boa tarde. Fico muito feliz que tenha gostado do conto! Fiquei louca com a sua ideia e roteiro, assim que li. Fiquei literalmente “babando no tema”, pra ninguém pegar. Rrrsss…
      E mais alegre ainda pelos adjetivos usados por você.
      Obrigada pelo comentário e bom fim de semana.
      Abraços

  5. Naty,
    Bom dia!
    Muito boa a sua abordagem acerca dos tratamentos dispensados na década de 1960.
    Foi de grande relevância o trabalho da Dra. Nise da Silveira, médica alagoana, no tratamento de internos com problemas ditos “psiquiatricos”.
    Parabéns

    • Sim, Marjori, sem dúvida o trabalho dela foi revolucionário! Minha esposa a conheceu numa visita técnica ao Rio, ela já estava bem idosa, mas ainda pode relatar suas experiências.
      Obrigada pelo comentário. Fico feliz que tenha gostado da abordagem.
      Abraços.

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