Luz para florescer

Capítulo 1

Capítulo 1

Eleonora acordou num sobressalto como se tivesse, subitamente, se dado conta de algo. Sentou-se na cama e se lembrou do que era: primeiro dia de aula na universidade. Olhou para o despertador que esquecera de programar sobre o criado-mudo – 06:30. “Droga”. Estava atrasada. Saltou da cama e foi direto para o chuveiro. Em quinze minutos estava pronta – tênis, calça de moletom azul e camiseta branca. Os cabelos louros e curtos pingavam molhando-lhe as espáduas, mas ela nem se preocupou em enxugá-los. “Inferno! Vou ter que pedir ao meu pai para me levar. Já está muito tarde para ir de ônibus”.

Eleonora e o pai tiveram muitas e acirradas discussões sobre a carreira a ser seguida na universidade. O pai queria Direito. Era uma opção segura, dizia, uma carreira capaz de abrir muitos caminhos, inclusive o de continuar tocando a firma da família – Cavalcanti Advogados Associados – nome tradicional e conceituado em toda a região. Eleonora queria coisa completamente diferente: Educação Física. Sonhava estudar a fundo o esporte de alto rendimento e, quem sabe, contribuir de alguma forma para a sua evolução. Ela mesma era uma atleta de basquetebol. Armadora talentosa, rápida e ágil, fizera parte da seleção estadual juvenil, mas intuía que, com um pouco mais de 1m 60cm, não tinha chances significativas na seleção nacional.

Desceu as escadas do confortável sobrado onde morava com os pais e o irmão caçula e se dirigiu à cozinha. Como esperava, o pai já estava terminando a sua refeição matinal e se encontrava pronto para sair. Desde que se lembrava, Dr. Marcos Cavalcanti, ilustre causídico, herdeiro de uma dinastia de advogados que começara com seu avô, sempre acordara e saíra para trabalhar muito cedo, impecavelmente vestido, barbeado e com os cabelos loiros como os de Eleonora cuidadosamente penteados para trás. A mãe, Dona Clarisse, estava terminando de coar o café. Eleonora pegou uma xícara. Sempre gostara de café, forte e amargo. O pai, desde que parara de fumar nunca mais tomara café. Agora, no desjejum, somente leite, frutas e cereais, entre outras indicações alimentares. Recomendações médicas para a alta taxa de colesterol aliada à pressão alta e ao estômago castigado por anos de alimentação irregular, cigarro e estresse. Com a disciplina que lhe era peculiar, Dr. Marcos adotou integralmente a nova dieta.

– Bom dia – disse Eleonora caminhando até o fogão e servindo-se de uma boa dose de café cheiroso e fumegante. Deu um beijo na mãe.

– Bom dia, filha – respondeu Dona Clarisse com um sorriso afetuoso estampado na face roliça com simpáticas covinhas e brilhantes olhos verdes.

O pai deu uma olhada desaprovadora para a indumentária da filha e falou secamente:

– Bom dia.

D. Clarisse, sempre muito falante, absteve-se diplomaticamente de qualquer comentário. Eleonora suspirou baixinho e, mesmo assim, perguntou:

– Pai, será que o senhor poderia me deixar na universidade? Eu estou meio em cima da hora.

Dr. Marcos Cavalcanti levantou os olhos para a filha mais velha e chegou a abrir a boca para dizer algo, mas aparentemente desistiu com uma expiração abafada e disse sem maiores rodeios:

– Vamos.

Eleonora deu mais um beijo em D. Clarisse, colocou a mochila sobre os ombros, cortou um pedaço de bolo de fubá e saiu comendo atrás do pai.

Foi deixada a meio quarteirão do campus da Universidade Estadual de Santa Cruz. Os alunos chegavam aos montes pelos largos portões que davam acesso ao estacionamento da Universidade e dele aos muitos prédios dos diversos cursos. Eleonora entrou sorridente, observando, curiosa, o ambiente apinhado de vozes animadas, abraços de reencontro, e dos olhares indagadores dos novatos. Já estava atrasada uns dez minutos. Decidida, encaminhou-se ao prédio da Educação Física para descobrir onde era a sua sala.

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– Srta. Suzana Maia Alcott.

Suzana caminhou resoluta como sempre e como se não estivesse apoiada em muletas para se locomover. Mesmo ligeiramente recurvada, de óculos escuros e os fartos cabelos negros presos num rabo de cavalo, todos os presentes lançaram-lhe olhares curiosos. Não era uma mulher que pudesse passar despercebida. Com mais de 1m e 80cm, um rosto de linhas marcantes e um porte naturalmente altivo, Suzana chamava atenção em qualquer lugar pelo qual caminhasse, não obstante o fato de ser uma atleta mundialmente conhecida.

Suzana sentou-se em frente à mesa de vidro imaculadamente limpa. Em cima, alguns poucos porta-retratos, um computador, um bloco de notas e uma caneta Mont Blanc em prata fosca. No recinto, predominavam tons pastéis e azuis compondo um ambiente simples e sofisticado.

Dr. Mautner não demorou a sair da sala contígua. De compleição mediana, cabelos finos e claros já escassos, óculos de fina armação dourada, um rosto liso e eternamente ruborizado, ele exalava uma aura de tranqüilidade e serena confiança.

– Bom dia, minha querida Suzana. Como tem passado?

– Bem, na medida do possível. – disse Suzana esboçando o que poderia se chamar de um sorriso e já emendando com incontida impaciência. – E, então, Doutor? Fale sem rodeios, por favor.

– Muito bem… È muito grave. Mas, disso você já sabia. O rompimento dos ligamentos foi completo. A cirurgia é complicada. A recuperação demorada, sem prognósticos e, temo dizer, dolorosa.

– Doutor! – cortou Suzana – Eu vou poder jogar novamente?

– Existe a possibilidade.

– Concretamente, quais as chances de eu poder voltar a jogar?

– Suzana, eu não posso dizer, como você quer, quais as possibilidades em termos de porcentagem, por exemplo, de uma total recuperação. Mas, não vou te ocultar o que eu penso baseado em anos de experiência. Suas chances são pequenas, mas existem. Resta saber se você está disposta a passar por consideráveis extenuantes esforços, sabendo da possibilidade deles serem em vão, pelo menos no que concerne ao seu desejo de voltar a jogar.

Suzana não disse nada. Respirou longamente e olhou pela janela como que perguntando o que fazer à grande metrópole que enxergava do 15º andar do elegante prédio comercial em que se encontrava. Ela tinha apenas vinte e seis anos. Esperava jogar mais uns nove ou dez anos e depois se tornar técnica ou dirigente de algum clube. Talvez empresária esportiva, mas sempre ligada ao esporte que tanto amava e que sempre ocupara o primeiro lugar em sua vida – o basquetebol.

Componente da seleção brasileira desde os 17 anos, era considerada uma das mais talentosas alas da história do basquete nacional. Mesmo com as inúmeras viagens e a sua reconhecida dedicação quase obsessiva ao esporte, conseguira se formar em Educação Física pela Universidade pela qual jogava desde os tempos de juvenil. Há pouco mais de um ano, fora convidada a jogar na WNBA e após uma primeira temporada em que provou a sua capacidade e consolidou o seu nome como um dos maiores do mundo na posição, torceu o joelho no quinto jogo das finais e agora encarava, apavorada, o fato de nunca mais poder jogar profissionalmente.

Suzana voltou-se para o médico e segurando bravamente, como fizera toda a sua vida, a vontade de chorar, disse com firme convicção:

– Vamos lá, Doutor. Se existe uma chance, mínima que seja, eu vou me agarrar a ela com tanta força que ela não ousará me derrubar.

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Eleonora estava apreciando a bela e moderníssima quadra de um dos três ginásios da universidade. Não via a hora de jogar nele, de experimentar as tabelas de acrílico, o piso de tábua corrida, novo, claro e brilhante com o símbolo da instituição pintado no círculo central. Assim, mergulhada em seus pensamentos, levou um susto quando a amiga Carla gritou:

– Elê!

Eleonora olhou para trás e avistou, não sem um sorriso divertido, a amiga se aproximando. O fato é que Carla sempre tivera uma forma, digamos, diferenciada de se vestir. Extrovertida e animada, parecia que a indumentária acompanhava o seu temperamento exuberante e ela fazia as mais inusitadas combinações de cores. Nesse momento, Carlinha chegava com uma calça jogging roxa com detalhes em laranja na altura da panturrilha, uma blusinha em lycra laranja com estampas de flores roxas e brancas circundando a cintura e com os cabelos partidos ao meio, presos em “Maria Chiquinha” com uma liga roxa e a outra laranja. O tênis (Graças à Deus!) era branco. Mas, a mochila… de um violento violeta (sem trocadilho) de fazer inveja a destaque de escola de samba.

– Oi, Carlinha – disse Eleonora dando um beijo carinhoso na bochecha da melhor amiga. – Eu estou aqui sonhando acordada. E aí?

– “Belê”! Como foi o primeiro dia de aula?

– Ah! Você sabe. Apresentações e mais apresentações de alunos, professores, grade curricular, e por aí vai. E você, como é o terceiro período?

Carla já estava no 2º ano de Educação Física. Era alguns meses mais velha que Eleonora e como as famílias eram vizinhas há muitos anos, elas eram amigas desde crianças.

– Parece que é legal. Pelo menos eu tenho certeza de que será melhor que o 1º ano, por que esse ninguém merece.

Eleonora deu uma risada sonora e agradável. Era de conhecimento geral os “shows” de Carlinha no laboratório de anatomia – matéria do 1º ano – quando a turma ia estudar em cadáveres. Foram tantos os faniquitos e desmaios que, por fim, Carlinha fora dispensada de assistir às aulas práticas no laboratório.

– Você é única, Carlinha. Cadê o Gianne?

– Sei lá, Elê. Esse meu namorado parece que toma chá de sumiço toda vez que se aproximam as eleições para o DCE. Mas, ele deve estar enfurnado no Centro Acadêmico urdindo plataformas políticas e se preparando para ser um futuro senador da república. Só pode ser! Qualquer dia eu me canso dessas infindáveis reuniões e mando o Gianne passear.

– Sei, sei – duvidou Eleonora.

Carla e Gianne namoravam desde os 15 anos. Ela, uma maluquinha adorável. Ele, um CDF, estudante engajado, desses de jeans surrados e óculos de aro redondo. Completamente diferentes e totalmente apaixonados.

– E aí, você vai fazer o teste da semana que vem? – perguntou Carla.

– Que teste?

– Ai, sua tonta! O teste para entrar no time de basquete da Universidade. Você não viu o cartaz afixado no quadro de avisos do salão central?

– Não eu… tinha tanta gente no salão e no pátio… eu não prestei atenção no quadro de avisos. Preferi vir conhecer o ginásio.

Carla saiu puxando Eleonora pela mão.

– Então vamos lá dar uma olhada agora, sua distraída.

“Às interessadas em fazer parte do time de basquetebol da Universidade que irá disputar uma vaga para participar da Liga Nacional”.

“Teste de seleção – segunda-feira, 19:00, no ginásio central”.

Paradas de frente para o aviso, Carlinha apoiou a mão sobre o ombro de Eleonora que, ao seu lado, lia o aviso pela décima vez e perguntou:

– Você vai?

Eleonora respondeu sem tirar os olhos do aviso.

– Eu não perderia isso por nada desse mundo.

*********

– Não sei, Camilla. Obrigada pela proposta, mas, não sei se terei disposição para isso. Estou sem paciência alguma e…

– Suzie! – cortou Camilla.- Olha só! É juntar a fome com a vontade de comer. Você faz a sua fisioterapia aqui na Universidade que conta com uma das mais modernas instalações do país, sob a supervisão de uma das mais conceituadas fisioterapeutas do Brasil, esta modesta amiga que vos fala, faz um favor a um grande amigo meu e, de quebra, trabalha com o que você mais gosta na vida que é o basquetebol. Poxa, Suzana, não tem nem o que pensar. Aceita, vai.

– Vou pensar.

– Vai pensar nada. Eu conheço esse seu “vou pensar”. Você vai é se enfurnar na sua auto-suficiência de sempre e nem vai se lembrar mais da minha proposta. E, tem mais. Olha, Suzie, eu vou falar isso por que sou sua amiga e os amigos também servem para isso: nos fazer encarar a realidade de vez em quando. Então, aí vai. Você tem que considerar a possibilidade de não poder mais voltar a jogar e a oportunidade de treinar o time de uma das mais conceituadas universidades do país será, sem sombra de dúvida, uma experiência importantíssima se você tiver, como eu sei que você tem, pretensões futuras de continuar trabalhando com o basquete.

Silêncio.

– Você pegou pesado – falou Suzana com a voz grave e aveludada em tom mais baixo que o normal.

– Eu sei, minha querida – concordou Camilla com suavidade. – Peço desculpas por isso. Mas, eu sei também que, às vezes, esta é a única forma de se penetrar nessa sua cabeça dura, minha amiga.

Novo silêncio.

– Está bem, Camilla.

– Sensacional!

– Mas, existem algumas considerações.

– Diga.

– Hospedagem.

– Meu apartamento. E, nem comece com o “não quero incomodar”, senão leva uma bronca.

Suzana resmungou algo incompreensível do outro lado, mas não retrucou e prosseguiu.

– Minha pouca mobilidade. Você sabe que eu só me desloco de muletas, ainda assim vagarosamente, e tenho que me sentar constantemente.

– Já cuidei disso. Você terá um auxiliar técnico, aliás, o mesmo do professor Leônidas, que se encarregará de repassar as suas instruções quando necessário. E, já providenciei uma cadeira especialmente para você com um suporte para a sua perna – gentileza da Clínica de Fisioterapia Dra. Camilla Carvalho. Mais alguma coisa?

– Não, Milla. Você é totalmente impossível. Só agora eu percebi que já tinha perdido a batalha mesmo antes dela começar.

– Perfeito, Suzana. Eu estou te esperando na próxima segunda-feira pela manhã.

– Mas, Camilla, é daqui a cinco dias…

– Dez horas, está bom?

– Milla, eu não terei tempo para nada. Eu preciso de pelo menos…

– Maravilhoso! Então, até lá.

– Camilla! – gritou inutilmente, Suzana – Inferno! – praguejou já pensando no que levar na mala e estruturando mentalmente o plano inicial de treinamento.



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