Luz para florescer

Capítulo 11

A segunda-feira chegou mais fria em relação aos últimos dias, prenunciando uma semana bem mais gelada que a anterior. Friorenta, Eleonora agasalhou-se bem, equipou-se com gorro e luvas e saiu para mais uma semana de trabalho com a famosa Suzana Alcott. Dirigia o carro pensando na inesperada facilidade com que estava trabalhando com Suzana e antevendo, numa perspectiva otimista, contudo palpável, uma recuperação física mais rápida do que ela esperava, a julgar pelo excelente resultado dos primeiros dias. Pelo andar da carruagem, a maior ala brasileira de todos os tempos não demoraria a treinar com o resto do grupo. Além do mais, em poucos dias ela estaria com Luciana. Sorriu satisfeita com a perspectiva. Foi ao encontro de Suzana com excelente humor.

À jogadora, não passou despercebida a mudança de humor da sua preparadora física. Eleonora estava mais descontraída e chegou a fazer algumas brincadeiras durante o treino. Em alguns momentos, pareceu a Elê de outros tempos, com suas traquinagens e o seu eterno sorriso meigo. Encantada e disposta a prolongar a trégua amigável o máximo possível, Suzana mostrou-se também mais solta e até se permitiu ser discretamente charmosa. Para o alívio de ambas, apesar do esforço sacrificante atinente ao treinamento de resistência física, o clima no ginásio beirava ao agradável.

Naquela sexta-feira, ao final da manhã, Suzana fazia o alongamento final, supervisionado por Eleonora, enquanto conversavam tranquilamente sobre o processo de recuperação atlética de Suzana que se mostrava interessada em cada detalhe do planejamento traçado por Eleonora. A jovem preparadora física respondia com segurança e paciência às indagações da jogadora e parecia achar coerente que ela quisesse saber mais sobre o treinamento ao qual se dedicava com tanto empenho.

A verdade é que Suzana elaborava perguntas somente para ouvi-la falar movimentando as mãos alvas e delicadas enquanto discorria apaixonadamente sobre os meandros do seu trabalho. Nesses momentos, Suzana podia observá-la livremente sem trair a atração crescente que sentia a cada dia que passava. Fato perfeitamente plausível, pensava Suzana. Afinal, Eleonora era bonita, inteligente, charmosa…Nada mais natural que ela se sentisse atraída.

Apesar de pensar assim, no entanto, a mulher mais velha esforçava-se por disfarçar seus sentimentos. Não só para manter o relacionamento dentro dos limites estritamente profissionais, amigáveis quando muito, mas porque Suzana previa que não deveria transpor a cerca da simples e inofensiva camaradagem se não quisesse afastar esta afável Eleonora de si. A jogadora sentia, intimamente, que o fato delas terem tido uma história passada e…Mal terminada era a grande sombra que cobria a naturalidade de qualquer relacionamento entre ambas.

Suzana ainda não se dera conta da dimensão dessa sombra.

Nesse final de manhã, no entanto, estavam ambas de excelente humor. Terminado o alongamento, Suzana pegou a sua bolsa para se dirigir ao vestiário e tomar o banho costumeiro. Ficou surpresa ao notar que Eleonora a seguia ao invés de se despedir e tomar o caminho do hotel. Suzana parou e fitou a preparadora com o seu típico olhar indagador, erguendo uma das sobrancelhas. Eleonora também estancou e brincou, provocadora:

– Que foi? O vestiário é privativo da grande Suzana Alcott?

Suzana embarcou na brincadeira.

– Para você, “little boss”, qualquer pessoa é grande.

– Ei! – Eleonora reclamou, indignada.

Suzana gargalhou com gosto.

– Você começou – continuou ainda sorrindo. – Eu só fiquei curiosa com a mudança de hábito.

– “Tá” legal – concordou a loirinha. – Eu preciso tomar banho aqui hoje porque não terei tempo de ir até ao hotel. A comissão técnica vai se reunir com o presidente da Confederação Brasileira de Basquetebol para um almoço. Você sabe…Um social básico seguido de uma apresentação informal do andamento dos treinamentos da seleção feminina – Eleonora fez uma careta de tédio.

Suzana respondeu com uma cara de fingida consternação.

– Acredite, Elê. Eu entendo per-fei-ta-men-te.

Se Eleonora percebeu que Suzana a havia chamado pelo apelido carinhoso, não demonstrou. Foram juntas para o vestiário. Uma vez dentro dele, colocaram as bolsas sobre o comprido banco de madeira de frente aos chuveiros e Suzana, apontando para o último boxe, informou:

– Só este último, o terceiro antes dele e este à minha frente, têm água quente. O último é o melhor de todos. Já que você tem um importante compromisso social, vou, extraordinariamente, ceder-lhe o meu chuveiro privativo.

Eleonora ensaiou uma mesura pomposa.

– Obrigada, Majestade. Jamais me esquecerei da sua condescendência.

Após risos mútuos e descontraídos, esqueceram-se momentaneamente uma da outra, entretidas em retirar roupas limpas e peças de toalete das respectivas bolsas esportivas para o merecido banho.

Suzana, com a naturalidade de quem fizera isso a vida inteira, principiou a tirar o uniforme de treino molhado de suor com rapidez e praticidade. Completamente nua, soltou, por fim, a farta cabeleira negra sobre as costas, sacundido os fios sedosos molemente de um lado para o outro e espalhando pelo recinto seu cheiro leve de lavanda que remontava, sutilmente, ao suave olor de lençóis perfumados.

Foi nesse instante que Eleonora, debruçada sobre os seus pertences e ainda vestida porque organizando, cuidadosamente, o agasalho que usaria no encontro a seguir, perceptiva à tênue mudança do ambiente, voltou um rabo de olho para a sua companheira de vestiário no momento em que ela lhe virava o corpo longilíneo em toda a sua esplendorosa nudez. A mulher mais baixa empertigou-se imediatamente como se tivesse levado um choque. Parada, muda e estupidificada, de frente àquele monumento em bronze dourado, a loirinha não pôde evitar correr os olhos surpresos e curiosos pelo corpo que se lhe apresentava sublime e desnudo: ombros largos seguidos por braços fortes e torneados, os seios fartos e firmes de mamilos cor de chocolate, o abdômen rijo e definido descendo para o triângulo de cachos negros cuidadosamente aparados e caprichosamente ladeados pela perfeição simétrica de pernas morenas, musculosas e longas. “Deus, ninguém merece um corpo assim”.

E, no entanto, a pura e simples constatação era a de que Suzana era…Não! Continuava magnífica!

A morena respondeu ao exame com um dos seus raros sorrisos que pareciam iluminar todo o espaço à sua volta.

Tudo não demorou mais do que poucos segundos. Subitamente desperta do seu devaneio contemplativo, Eleonora, enrubescida até o pescoço, pegou apressada a sua toalha e o seu nécessaire balbuciando qualquer coisa como estar atrasada para encontrar o resto da comissão técnica e entrou de roupa e tudo no boxe do chuveiro.

Tomou um banho à jato mesmo com o incômodo de ter de se livrar das roupas no aperto do boxe minúsculo e dependurá-las amontoadas sobre as divisórias. Quando terminou, ainda escutava o som do chuveiro de Suzana. Por algum motivo que não conseguiu divisar, sentira-se imensamente acanhada com o incidente e, mais do isso, irritada com a sua reação. Não era mais uma adolescente para se perturbar tanto à visão de um corpo bonito (Lindíssimo, dizia-lhe uma impertinente voz interior). Repassou mentalmente e com calma o curto incidente. “Que bobagem, Eleonora. Você correu para o boxe do banheiro como para dentro dos portões do Convento das Irmãs Carmelitas. Que merda! Você é uma mulher adulta”.

Para o seu maior embaraço, todo o acontecimento pareceu-lhe vergonhosamente ridículo. “Que merda! Merda!”.

Terminou de calçar o último tênis ao mesmo tempo em que ouvia o chuveiro onde se banhava Suzana ser fechado e ver uma longa mão morena pegar a toalha sobre a porta de acrílico cinza. Levantou-se já pronta para sair e, decidida a manter uma postura madura, resolveu tratar o episódio com indiferente naturalidade. Despediu-se jovialmente da jogadora:

– Suzana, cuidado para não ficar mais enrugada que um maracujá de gaveta. Já vou indo. Até mais tarde.

A jovem treinadora ainda pôde ouvir algo parecido com bom almoço e até mais tarde antes de chegar ao corredor que dava para a quadra e alcançar a passos largos o pátio do estacionamento. Procurou afastar da cabeça qualquer pensamento traiçoeiro sobre o motivo de ter resolvido pentear os cabelos somente dentro do carro.

O treino da tarde foi tranquilo e sem qualquer menção a respeito do “episódio vestiário”. Suzana perguntou educadamente sobre o almoço e Eleonora teceu rápidos comentários sobre a chatice de sempre. Ambas se concentraram no programa a ser executado e apesar de diminuídas as brincadeiras, o ambiente no ginásio continuou ameno e amigável.

Eleonora acabou por se convencer de que estava há muito tempo sem a sua esposa e, portanto, sem sexo além de carente e emocionalmente fragilizada. Creditou a isso a sua inusitada reação à nudez de Suzana, que, afinal de contas, era uma bela e atraente mulher. Racionalizou, equacionou e, mais calma, foi trabalhar sentindo-se realmente tranquilizada.

Apesar de não deixar escapar um sinal que denunciasse os seus pensamentos conflitantes e dedicar-se com a costumeira disciplina ao puxado treinamento físico, tranqüilidade era uma comodidade da qual Suzana não usufruía naquela tarde, principalmente, após observar com um misto de satisfação e estranhamento, o comportamento de Eleonora no banheiro.

Estranhamento, porque…Ora! Aquela Eleonora em nada lembrava a jovem desinibida, beirando à pura audácia, que fora a amante mais sensual e atrevida que jamais tivera. Satisfeita, porque constatara, sem sombra de dúvida, que a sua linda preparadora física ainda sentia algo por ela…Ah! Sentia…E isso, de certa forma lhe aliviava do fardo de saber-se terrivelmente atraída…De novo…Por sua antiga paixão. Mas não lhe furtava a capacidade de ouvir a prudência sussurrando-lhe ao ouvido que o melhor era deixar tudo como estava e torcer para que ambas escapassem incólumes por este período de doce provação.

Suzana pensava nisso enquanto fechava o zíper da bolsa azul e amarela da seleção, terminado o treino vespertino e após tomar a sua obrigatória chuveirada.

Passava das 18:30. Já era noite. Saiu para o frio do final do mês de julho na capital paranaense pensando no calor reconfortante do controle climático automático do seu Lexus SC 430 conversível parado no estacionamento do centro de treinamento da seleção. Entrou no carro com o top de alumínio, obviamente, erguido, ligou o motor e aproveitou, por um momento, o calor agradável que tomou conta do veículo sofisticado. Engatou a marcha ré e só então percebeu a figura pequena na frente do ginásio de gorro cor de cereja a cobrir-lhe os cabelos dourados e as orelhas delicadas, esfregando as mãos freneticamente. Suzana dirigiu o carro até Eleonora.

– O que você está fazendo aqui até agora, chefe? – perguntou Suzana, em tom brincalhão.

– Estou esperando um táxi que chamei há quase trinta minutos e que até agora não se dignou a dar as caras.

– Pelo amor de Deus, Eleonora! Nós estamos hospedadas no mesmo local. Você podia ter me dito que estava sem condução. O que aconteceu com o seu carro?

– Deu prego na saída do almoço. Você acredita? Injeção eletrônica, segundo o mecânico. Vou ficar sem carro até amanhã à tarde. E, quanto a você…Bom, eu não queria incomodá-la.

– Não é incômodo algum – Suzana abriu a porta do carro. – Entre, por favor.

Eleonora pareceu hesitar um instante, mas entrou. Não conteve um suspiro de alívio com a agradável temperatura do interior do veículo. Suzana comentou com um sorriso amável;

– Bem melhor, não?

Eleonora olhou para os olhos azuis carregados de simpatia e sorriu de volta com desenvoltura.

– Sem dúvida.

Suzana colocou uma música suave no cd player e seguiu em frente. Teceu alguns comentários gerais sobre a cidade e Eleonora concordou com a opinião de que Curitiba era realmente bonita e aprazível. Em seguida, passaram a conversar sobre o nível técnico das seleções que enfrentariam em breve. Em pouco tempo, ambas sentiam-se à vontade, discutindo entusiasticamente sobre um tema que era interessante a ambas. Suzana conhecia grande parte das melhores jogadoras do mundo, porque jogara inúmeras vezes com e contra elas. Eleonora passara horas infindáveis estudando o estilo e as táticas de cada time que a seleção brasileira poderia enfrentar em cada etapa do mundial. Foi com um certo pesar que interromperam a conversa ao chegarem ao apart-hotel.

– Obrigada, Suzana. Foi muito gentil de sua parte – Eleonora disse, olhando para Suzana que balançou a cabeça e respondeu:

– Não por isso. Foi um prazer.

Eleonora virou-se para abrir a porta. Contudo, voltou o rosto para comentar, quase divertida:

– Você sempre gostou de carros caros e sofisticados, não é Suzana?

– Não exatamente…- Suzana ia completar, Eleonora falou na frente.

– Já sei, já sei. Só quando você gosta dele. E, se você gosta…

– Eu compro – completou Suzana com uma breve gargalhada.

Eleonora também soltou uma risada descontraída e pensou, num átimo, que afinal, ela poderia, sim, ter uma relação amigável com Suzana Alcott.

– Bem, vou subir e tomar aquele banho relaxante… E, parabéns. Muito bonito o seu novo carro, Suzana… Quase tanto quanto aquele Jaguar que você tinha – Eleonora se arrependeu no instante em que tocou no assunto do carro que lhe trazia tantas lembranças. Doces e amargas. Ficou repentinamente rígida. Abriu a porta, apressada e com força desnecessária.

– Que eu tenho – apressou-se em dizer, Suzana.

– O que? – voltou-se Eleonora para entender o significado do comentário.

– Do Jaguar que eu tenho – explicou, Suzana, com uma calma monástica. – Eu nunca o vendi.

Eleonora ficou um instante olhando para o rosto bonito e anguloso completamente muda. Balbuciou uma despedida quase inaudível e saiu sem mais qualquer outro comentário.



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