Luz para florescer

Capítulo 17

Deitada na cama com os olhos grudados no teto, possivelmente um dos lugares mais estúpidos e misteriosamente um dos mais escolhidos para se olhar quando se quer refletir sobre algo, Eleonora estava imaginando o que diabos estava acontecendo com os últimos fins de semana de sua vida. De repente, em todos os sábados acontecia-lhe alguma coisa crítica e desconcertante e todos os domingos ela passava em considerações e ajuizamentos a respeito dos acontecimentos do dia anterior. Parecia uma sucessão surreal, para não dizer infernal, de fins de semana exasperantes.

Há poucos minutos falara com Luciana. A esposa percebera a sua perturbação. Com a desculpa de estar sentindo a pressão exercida pela proximidade do Campeonato Mundial, Eleonora conseguiu escapar das perguntas de uma Luciana cada vez mais desconfiada. Por sorte, a notícia de que a equipe passaria uns dias em São Paulo antes de embarcar para a Europa deixou a médica tão contente que ela se esqueceu momentaneamente de especular o estado de espírito de Eleonora, claramente alterado, apesar dos esforços da loirinha por aparentar normalidade.

Mais calma e mais ponderada, nesse exato momento, Eleonora só conseguia pensar nas palavras de Carlinha e a confluência delas com os seus atos na sala de massagens. Estava abismada com a facilidade com que havia se rendido aos encantos de Suzana. Seu coração doía apenas em imaginar o sorriso doce de Luciana da mesma forma que seu ventre se contraía ao se lembrar do seu abandono nos braços de Suzana. Precisava avaliar melhor sua fraqueza e armar-se contra aquela sereia de cabelos negros e corpo de deusa. Sentia-se envolvida por uma teia invisível, porém resistente, e cuja força não iria mais subestimar.

– Você não me pega mais despreparada, Suzana. Nunca mais! – Eleonora falou alto para si mesma.

Levantou-se para tomar um banho morno que certamente a ajudaria a recuperar a vitalidade.

Não viu Suzana até o treino do dia posterior.

A semana começou com uma mudança nos hábitos que tinham se tornado diários na equipe. Habilmente, Eleonora conseguiu mudar o local da pequena reunião pós-treino da comissão técnica para o portão de saída do ginásio, com ela devidamente postada de costas para a quadra. Também de forma sutil, a treinadora física passou a tratar Suzana com um distanciamento ainda maior, evitando discretamente o menor contato com a jogadora. Suzana percebeu estas tentativas de evitá-la com apreensão, mas já havia recuperado um pouco da confiança despedaçada pela explosão de fúria da loirinha no dia da massagem. Como sempre, se recusava a desistir sem muita, muita luta. Esperava, pacientemente, a chance de se aproximar novamente do seu amor.

No dia primeiro jogo com a seleção de Cuba, o time já estava todo no ônibus para se dirigir ao Ginásio de Esportes quando Suzana entrou. Vasculhou o veículo em busca de um lugar vago e diversas vozes a convidaram alegremente para se sentar ao lado delas. No entanto, os olhos azuis perceberam uma figura pequena sozinha no fundo do ônibus. Não titubeou e caminhou incontinenti para ela. Sentou-se indiferente ao olhar de descrédito da loirinha.

– Posso me sentar aqui? – perguntou com um sorriso caloroso e já tomando assento antes de ouvir a resposta.

– Eu…Não acredito! – falou Eleonora. – Você realmente não conhece constrangimento, Suzana.

– Em determinados assuntos, nenhum mesmo!

– Será que é tão difícil entender que eu não quero a menor proximidade com você?

– Não, não é difícil. Eu acho que você realmente acredita que não me quer por perto. A minha função aqui é fazê-la ver que você está se enganando…

– Mas, é o fim da picada. Sua arrogância não conhece limites. Vou para outro lugar – Eleonora ensaiou se levantar, mas reparou no tamanho do obstáculo imposto pelas pernas longas espremidas entre os bancos. – Você pode me dar licença?

– Não.

Eleonora enrubesceu e se virou irritada para Suzana.

– Suzana, você está agindo como uma criança. Você acha mesmo que vai conseguir me convencer de alguma coisa se comportando dessa forma? Você só está conseguindo me irritar.

– Pelo menos eu obtive alguma reação. E depois…Ninguém fica tão adorável vermelha desse jeito, como você, Elê. Você tem noção do quanto fica atraente?

Eleonora não respondeu de imediato. Respirou fundo e falou lentamente tentando contornar a irritação:

– Você teve a sua chance há muito tempo, Suzana, e se mostrou indigna de qualquer confiança. Agora, a ocasião pertence à outra pessoa muito melhor do que você.

Se Eleonora pretendeu atingir Suzana em algum lugar doloroso, o intento foi mais do que certeiro. A face outrora sorridente da jogadora transformou-se. Uma máscara de surpresa e dor tomou conta do belo rosto.

Foi como se algo atingisse o estômago de Eleonora, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Suzana se pronunciou:

– Eu sei…Eu sei que eu tive a chance de ser imensamente feliz com a mulher que eu amo, há muito tempo atrás. Eu sei que provavelmente você esteja com uma pessoa muito melhor do que eu. Mas, o que seria de nós se não pudéssemos retificar os nossos erros e procurarmos ser felizes? O que seria de mim, cuja vida toda foi fugir do que amava, se eu não tivesse tido a chance de me reconciliar com minha mãe e ela comigo ou de me desculpar com o meu irmão pela brutalidade com a qual eu o tratava, por inveja e ciúme do amor que lhe dedicavam, e que me impediu por tanto tempo de reconhecer o amor que ele dedicava a mim?

Suzana olhou para Eleonora com os olhos turvos de tristeza.

– Mas a questão aqui não são as minhas historiazinhas de “pobre menina rica”. A questão aqui é quem que, agora, está mentindo para si mesma – Suzana se levantou vagarosamente. – Mas…Talvez…Talvez seja eu, mais uma vez, quem esteja enganada. Afinal, eu tenho uma longa experiência em equívocos, não é mesmo?

Saiu e foi se sentar em outra poltrona.

Eleonora lutou para não deixar que o bolo em sua garganta se transformasse em choro compulsivo. Tratou de colocar os óculos escuros e observar a paisagem do final da tarde.

O time brasileiro venceu a seleção de Cuba por um placar apertado de três pontos de diferença com um jogo irregular, apresentando muitos altos e baixos. Suzana, apesar de jogar bem, não foi nem de longe a jogadora brilhante que era capaz de ser. Regina anotou cuidadosamente os pontos a serem melhorados, conversou brevemente com as atletas após a partida e, então, as liberou para descansar. Com a comissão técnica, marcou uma reunião logo em seguida de modo que Eleonora só foi se recolher perto da meia-noite.

Debruçada na sacada, indiferente ao frio ainda incômodo do fim do inverno, a jovem pensava no episódio com Suzana, no ônibus. Algo nos olhos azuis havia lhe dito que Eleonora tinha atingido a mulher mais alta em um ponto muito frágil. Mais ainda, era provável que ela tivesse conseguido, finalmente, que a jogadora desistisse dela. Então, porque essa angústia, essa…Decepção? “Não, não, claro que não”. Eleonora pensava. Ela fora grosseira, rude. Não era um tipo de atitude que lhe fosse peculiar. Não estava acostumada a ser tão hostil, mas a verdade é que Suzana a exasperava, a desequilibrava a ponto dela não mais se reconhecer! “Era isso!”. Sabia o que devia fazer. Na primeira oportunidade se desculparia.

Em uma outra sacada, naquele mesmo instante, Suzana olhava alheia para as luzes da avenida sem a mínima vontade de dormir. Pela primeira vez, desde que se decidira a reconquistar o seu grande amor, sentia-se desesperançada e quase incrédula da sua capacidade em conseguir o que pretendia, quase destituída da sua disposição em lutar. Afinal, se Eleonora demonstrava tanto desprezo por ela, não havia por que lutar. Estava abatida e lá no fundinho, despontava persistente, uma ponta de mágoa que ela nem sabia se tinha o direito de sentir.

Respirou profunda e desoladamente e foi se deitar.

Eleonora não teve a oportunidade de falar com Suzana senão após o segundo jogo com a seleção cubana. A seleção brasileira venceu novamente. Na prorrogação. Contudo, apesar do placar ainda mais apertado do que o anterior, a partida foi melhor, mais bem disputada e a equipe pôde corrigir alguns erros, principalmente, os de posicionamento. No final, foi um ótimo treino. Suzana não jogou nem melhor nem pior do que no último jogo.

Ao chegarem ao hotel, a maioria da equipe seguiu direto para os quartos. Suzana permaneceu no hall de entrada falando no celular. Caminhava de um lado ao outro do living com um sorriso estampado no rosto. Eleonora percebeu uma excelente oportunidade de conversar com Suzana a sós, então, esperou pacientemente que ela terminasse a ligação em um lado do balcão da entrada sem que a morena a percebesse.

Finalmente, Suzana veio falando e caminhando em direção ao elevador, de frente do qual se colocara a jovem treinadora que pôde escutar o final da conversa.

– Don’t say that, little brother. Forget it, ok?

Suzana soltou uma breve gargalhada.

– I understand you completely. So…I’ll see you in Spain, right?…You will try. Just, try a lot, ok? I miss you…Love you too. Bye.

Suzana disse as últimas palavras olhando indagadora para Eleonora. Desligou.

Eleonora se aproximou.

– Eu gostaria de falar com você.

O coração de Suzana deu um salto. Mas, escaldada, conteve a excitação exposta pela esperança – esta eterna reincidente. Respirou fundo e perguntou, aparentemente impassível:

– Agora?

– Sim.

– Muito bem. Sou toda ouvidos.

Eleonora olhou em volta. Estavam praticamente sozinhas no hall de entrada. Voltou os olhos para Suzana.

– Sobre aquele dia no ônibus…

Suzana se retesou.

– O que é que tem?

– Bom…Eu queria…

Eleonora fitou os olhos azuis atentos aos seus lábios e estancou. Suzana tinha um jeito de prestar atenção, pendendo a cabeça levemente para o lado e olhando intensamente para o seu interlocutor, que era de embaraçar qualquer um. “Diabos de mulher bonita”. Eleonora desviou os olhos para o chão.

– Eu queria me desculpar…

– Não – Suzana cortou, firmemente.

Eleonora ergueu a cabeça, surpresa.

– Não, o quê?

– Não se desculpe.

– Porque não? Eu fui grosseira e…

– Ah! Então, você está se desculpando para se sentir melhor?

– Não! Eu apenas…Eu não queria dizer aquilo, Suzana.

– Queria, sim. Você realmente acha que eu não sou digna de confiança e não sei se posso culpá-la por isso. Mas, também, não sei se eu aguento mais isso!

– Suzana… – Eleonora quase suplicou.

– Não, Eleonora. Eu sei que fiz muita besteira. Eu sei que magoei muita gente, inclusive você. Mas, eu passei muito tempo da minha vida compreendendo e reparando os meus erros, exaurindo ressentimentos e, principalmente, tentando me perdoar. Esse esforço trouxe a minha família de volta para mim – minha tia, por exemplo, e Robert, com quem, aliás, eu estava falando há pouco… – Suzana passou as mãos pelos cabelos negros e, em seguida, estendeu os braços para Eleonora. – E aí, os destinos colocaram você novamente no meu caminho… – Deixou os braços caírem nas pernas. – E, no entanto, apesar de tudo, eu não sei mais o que fazer para alcançar o seu coração.

Eleonora argumentou baixinho:

– Eu nunca quis ferir você…

– Elê, você não está me ouvindo… Aliás, você não me entendeu. Você pode ferir, me bater, me matar…Eu não me importo! Desde que você esteja ao meu lado. Desde que você queira estar ao meu lado. Você quer?

Silêncio.

Suzana continuou, desolada.

– É isso! É disso que eu estou falando! – Suzana virou-se para ir embora. Parou e se voltou para Eleonora. Mais uma vez. – Eu não quero as suas desculpas. Eu não quero mais me desculpar. Chega! Olhe para mim.

Eleonora olhou.

– Eu não quero nem mais que você me perdoe ou que seja compreensiva, indulgente ou simplesmente lastimosa com o que nos aconteceu no passado. Eu quero que você olhe para nós duas, hoje! E seja apenas justa.

– Suzana, não é isso…

– Quer saber, Eleonora? Eu estou cansada.

Suzana foi embora e deixou a pequena loira parada olhando sem enxergar para a porta do elevador enquanto assistia ruírem muitas das convicções sobre as quais se sustentara até agora.

Os dias seguintes tiveram uma tônica completamente diferente. Suzana, embora tenha continuado expansiva e simpática, não ficava mais sentada conversando descontraída no banco de reservas após os treinos (para a tristeza de muita gente fora e dentro da quadra). E, principalmente, não olhava mais para Eleonora nem procurava motivos para se infiltrar na conversa da comissão técnica para falar com ela. Na verdade, só não ignorava a treinadora física completamente porque era obrigada a cumprimentá-la por cortesia ou se dirigir a ela quando em vez, durante o treino. Sua companhia constante, nos últimos dias, vinha sendo a armadora Adriana com quem entrava e saía dos treinos conversando animadamente. Eleonora observava essas mudanças procurando se convencer de que estava aliviada com o fim do assédio de Suzana. Mas, à medida que os dias passavam livres da presença intensa da bela morena, Eleonora se percebia cada vez mais nervosa e frustrada.

Ao final da semana, a loirinha entrou no ônibus absorta em seus pensamentos e tropeçou em uma mochila no chão do corredor.

– Desculpe, Eleonora – a jovem loira ouviu alguém dizer. – Eu devia ter colocado a mochila no bagageiro.

Era Adriana que já se levantava para colocar a mochila no bagageiro sobre as poltronas.

– Tudo bem, Adriana. Foi distração minha – retrucou Eleonora que só então reparou em Suzana sentada na poltrona da janela.

– Distraída treinadora? – perguntou a morena.

– O-ocupada.

– Entendo.

Eleonora procurou naqueles olhos azuis uma centelha do calor que lhe era sempre dirigido e só encontrou frieza e uma leve ironia. O coração doeu-lhe no peito como se tivesse sido trespassado por um punhal. Foi se sentar um pouco atrás, triste e confusa.

Eleonora andava de um lado para o outro na sala do flat. Passava das onze da noite depois do terceiro jogo contra Cuba o qual a seleção perdera. Sentia-se angustiada, mas não pela derrota recente. Pensara muito nas palavras de Suzana na última vez em que se falaram e mais ainda nas suas reações contraditórias em relação à jogadora. Primeiro, a distância astronômica entre a sua pretensão de não se aproximar de Suzana e a realidade incontestável da sua incapacidade em fazê-lo. Segundo, o fato de que estava se sentindo imensamente incomodada, para não dizer magoada, com a indiferença da jogadora. Estava ansiosa, sem fome, impaciente e irritadiça. Ligou para Carlinha.

– Gianne? Eleonora. A Carla está?

Escutou uma voz bocejante do outro lado da linha.

– Oi, Elê. Tá, sim. Só um instante.

– Nossa, Gianne! Eu te acordei? Desculpe.

– Não, Elê. Eu estou assistindo TV e a Carla está trabalhando no computador. Ela nunca dorme antes da meia-noite. Espera um pouco.

– Eleonora? – atendeu, Carlinha.

– Oi, Carlinha.

– Fala, amiga.

– Eu vou estar em São Paulo, amanhã.

– Que bom! Estou morta de saudade de você. Na verdade, estamos.

– Pois é. Vamos fazer dois jogos em Sampa, antes de viajarmos para o Mundial. Eu consigo entradas para você e o Gianne. Como estão as crianças?

– Terríveis…E maravilhosas.

– Que bom…

– Agora que você já fez a introdução, Elê. Pode começar com o motivo principal.

Eleonora deu uma risadinha abafada.

– Eu realmente não tenho segredos para você, Carla.

– Desista, amiga. Para mim, você é um livro escancarado. O que está acontecendo?

– Meus sentimentos estão muito confusos, Carla.

– Suzana…

– É.

– Eu sabia. Eu te avisei.

– Eu sei.

Eleonora contou os últimos acontecimentos. Carla comentou:

– O meu conselho é o mesmo, Elê. Encare.

Suspiro

– Você tem razão.

– Eu sempre tenho.

– Carlinha! Menos.

– Ok, ok. Onde você está, agora?

– No meu quarto.

– E ela?

– Provavelmente no dela.

– E o que você está esperando?

– Mas…Agora?

– Existe hora melhor?

Eleonora pensou um pouco.

– Muito bem. Vou falar com ela, já.

– É isso aí, garota! Boa sorte, amiga.

– Obrigada, Carlinha. Eu te amo.

Eleonora saiu imediatamente do quarto, pegou o elevador e parou na porta do apartamento de Suzana. Por um breve instante, sua coragem deu uma rateada. Respirou fundo e bateu. Levou um susto quando deu de cara com Adriana com um top e um short minúsculos.

Eleonora olhou, embasbacada, para a mulher parada a sua frente. Uma confusão de sentimentos a fez ficar, extraordinariamente, sem palavras.

– Eleonora, aconteceu alguma coisa? – Adriana perguntou.

– Suzana está? – Eleonora conseguiu articular com dificuldade.

– Quem é? – perguntou uma voz grave.

– Eleonora – respondeu Adriana se afastando da frente da porta para que Suzana pudesse vê-la.

– Algum problema, Eleonora? – Suzana perguntou ao se aproximar da porta usando também shorts e uma camiseta regatas ligeiramente torta como se tivesse sido colocada às pressas. Eleonora sentiu a flecha preta do ciúme acertá-la no meio exato da garganta ². Seus olhos verdes brilharam de raiva e por pouco não conseguiu conter a explosão do seu insuspeito temperamento belicoso. Transformou a ira repentina em firme resolução.

¹ Parte do poema “Ausência” de Vinícius de Moraes

² Referência a um trecho com texto de mesmo teor do livro “Tomates verdes Fritos” de Fannie Flag.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2022 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.