Luz para florescer

Capítulo 18

– Preciso falar com você.

– Agora eu estou um tanto…ocupada.

Eleonora ignorou o comentário e se virou para Adriana.

– Você pode nos dar licença?

Adriana olhou para Suzana com cara de poucos amigos e depois para Eleonora com cara de exterminadora do presente e não pensou duas vezes.

– Claro – disse apressada.

Suzana falou rapidamente:

– Fique!

Atônita, Adriana titubeou.

Eleonora firmou a voz e falou em branda advertência:

– Deixe-nos, por…favor.

Desta vez, Adriana decidiu-se.

– Olha, Suzana, a gente se fala amanhã, tá?

Saiu.

Eleonora entrou sem esperar convite e fechou a porta atrás de si. Seu rosto estava vermelho e os olhos pareciam soltar faíscas. Perguntou com brusquidão:

– Você não acha que é um pouco tarde para uma colega de equipe estar no seu quarto?

– Você não acha que isso não é da sua conta?

– É claro que é. Eu sou da comissão técnica e devo zelar para que as jogadoras não percam o foco no campeonato.

– Ora, Eleonora. Por favor!

– O que ela estava fazendo aqui?

– Não parece óbvio?

Eleonora quase bufou e o seu rosto tomou a cor de um pimentão maduro.

– Suzana, você é insuportável!

– Você veio até aqui para me dizer isso? Aliás, treinadora, se não fosse o fato de eu saber que você não tem o menor interesse em mim, como já deixou bem claro, eu poderia pensar que você está com ciúme.

– Não, não poderia… – Eleonora falou tão suavemente em contraponto às palavras explosivas de alguns segundos atrás, que Suzana calou a boca, surpresa. A loirinha continuou falando, caminhando até a mulher mais alta. – Você não poderia…Você pode! Porque eu estou tomada, repleta, morta…

Suzana viu aquela jovem e linda mulher se aproximando com o peito arfante, o rosto corado, os cabelos loiros e sedosos balançando ao ritmo daqueles passos femininos submetidos aos quadris insinuantes, de um jeito que só Eleonora sabia caminhar. O coração da morena disparou ao mesmo tempo em que a boca ficou instantaneamente seca. Eleonora parou de frente para ela, a poucos centímetros de tocá-la com o rosto delicado voltado para cima, fitando os incrédulos olhos azuis e completou:

-…de ciúmes.

Eleonora estendeu os braços, enlaçou o pescoço da morena e a trouxe para si, completamente rendida.

Beijaram-se apaixonadamente.

Algum tempo depois, Suzana parou para respirar e falou com a voz rouca:

– Você é definitivamente, a pessoa mais surpreendente que eu jamais conheci, Eleonora. Onde está o “Não se aproxime de mim, nunca mais” ou “Eu não suporto você”? – Suzana perguntou, imitando os trejeitos da loirinha, com um sorriso nos lábios.

– Suzana?

– Sim?

– Cale a boca.

Eleonora roubou os lábios carnudos da jogadora para si, novamente. As bocas coladas pareciam moldadas uma para a outra. As línguas famintas invadiam espaços íntimos e macios sem qualquer pudor definindo um balé em duo perfeito e sincronizado. Sem parar de beijar a sua pequena amante, Suzana a foi conduzindo para o quarto. Caíram na cama entre beijos ardentes e uma confusão de gemidos, testemunhos claros do desejo incontrolável que tomava conta de ambas.

De repente, Eleonora afastou Suzana de si empurrando-a pelos ombros e olhou séria para o rosto moreno.

– Só mais uma coisa – começou a jovem treinadora.

– Diga – falou Suzana com um suspiro tenso que denunciava a súbita apreensão.

– Aprenda a descrever um círculo imaginário de no mínimo dois metros a sua volta.

– Para que? – perguntou a jogadora, agora, intrigada.

– Essa é a distância máxima que aquela Adriana pode chegar perto de você.

Suzana ficou boquiaberta, depois soltou uma gargalhada sonora.

– Deus me ajude com uma mulher ciumenta.

– Você ainda não viu nada, Srta Alcott. E agora, chega de falar…

Eleonora puxou Suzana para mais um beijo e a noite se transformou numa aposição de sensações e emoções intensas. Finalmente rendida aos seus sentimentos, Eleonora permitiu-se a uma entrega total. Não se tratava mais da sensualidade reprimida que se libertava dividida entre o desejo e a culpa. Era a entrega sem limites ao deleite único que é a comunhão do prazer sensual com a alegria de se estar com quem mais se quer estar entre todas as pessoas do mundo.

Insuperável.

Fizeram amor sem urgência, gozando do prazer, sem par, de sentir a pele do ser amado em cada pedaço de sua própria pele. De sentir o sabor, o cheiro e reconhecer na voz da outra cada entonação de prazer ou necessidade, iminência ou demora que consiste na delícia de se fazer amor com quem se ama. Fizeram amor devagar como o abraço longo e emocionado que se dá em quem se ama muito e que esteve longe por muito tempo.

Quando, por fim, se abraçaram repletas de amar, Eleonora suspirou recostada sobre ombro de Suzana que a enlaçou com os seus braços fortes. Com a mão livre, Eleonora afagava carinhosamente uma mecha de cabelo negro e sem refletir, mas vindo do fundo de sua alma finalmente em paz, falou suavemente:

– Eu te amo.

Suzana desvencilhou-se com delicadeza da cabeça loira e se sentou na cama.

– Repita – pediu.

Eleonora sorriu aquele seu sorriso mais lindo, franco e doce.

– Eu te amo – repetiu. – Eu te amo, Suzana Maia Alcott desde que eu te vi naquele ginásio há dez anos atrás. Não! Não é verdade. Eu te amo desde que eu sou uma garotinha que recortava cada fotografia sua de qualquer revista, que assistia a todos os programas de esporte na esperança de vê-la e que perdeu de vez o coração quando olhou pela primeira vez diretamente para esses seus olhos azuis.

– Eleonora… – Suzana murmurou. Não encontrava palavras para explicar como, depois de tantos anos vivendo em tantas casas que já nem tinha mais conta, finalmente encontrava um lar num quarto de hotel. Porque o lugar simplesmente não importava, porque a sua casa era qualquer lugar em que Eleonora estivesse. Falou com simplicidade:

– Eu te amo, Eleonora, mais do que eu sou capaz de traduzir em palavras – disse e tomou a sua amada num abraço emocionado.

Dormiram uma nos braços da outra.

Eleonora despertou de madrugada com a face recostada no peito de Suzana e suavemente envolvida pelos braços longos. Uma luz tênue passava pela janela e iluminava brandamente a cama em que descansavam abraçadas. Afastou-se devagar e com cuidado para olhar a mulher mais alta. O belo rosto da morena exibia-se adormecido e relaxado. O corpo vigoroso quedava-se indefeso e inerte a não ser pelo brando arfar da respiração lenta e pausada do sono tranqüilo. Eleonora sentiu o coração encher-se de amor. Sabia que não tinha mais como negar a verdade cristalina de que amava Suzana como sempre. Desde sempre. Para sempre. Nunca haveria ninguém que a fizesse se sentir tão completa. Que despertasse nela esse sentimento estranho, mas irresistível, dividido entre a dor e a delícia. Sentiu ganas de afagar-lhe o rosto marcante, mas temeu perturbar-lhe um sono tão sereno. Aninhou-se com cuidado e novamente sobre o peito de Suzana que apenas grunhiu algo incompreensível e a abraçou com mais força. Eleonora voltou a dormir

Suzana acordou, mas não abriu os olhos. Sorriu com uma alegria que não sentia há mais tempo do que era capaz de se lembrar . O peso e o calor de um corpo pequeno sobre o seu peito faziam-na ter a certeza de que tudo fora real. Sentiu a cabeça de Eleonora se mexer e então abriu os olhos. Deparou-se com dois faróis esverdeados sob sobrancelhas claras e delineadas, olhando-a com amor. Sentiu a alma se aquecer.

– Bom dia – murmurou, Eleonora.

– Bom dia – respondeu Suzana tentando não explodir de alegria. – Dormiu bem, meu leãozinho?

– Nossa! Há anos ninguém me chama assim – exclamou a loirinha. – Dormi como um anjo. Também, extenuada como eu estava…- piscou um olho, marota.

– Não me venha falar de cansaço, garota. Se eu não conseguir jogar o próximo amistoso por puro esgotamento de energia, a culpa será sua, treinadooora.

– O que você vai fazer? Me denunciar?

– Talvez, sim…Talvez, não…Por um pequeno favor, quem sabe?

– Chantagem!

– Pura e simples.

– Eu sei quando estou encurralada. Diga o preço.

Suzana tirou o sorriso divertido dos lábios e falou com calma olhando profundamente para aqueles olhos verdes:

– Ser a minha mulher para sempre.

Eleonora sentou-se na cama e respirou com força.

– Provavelmente essa é a coisa que eu mais quis em toda a minha vida. Mas, hoje em dia, existe uma importante variante nisso tudo…

– A sua companheira – Suzana falou baixinho.

– É – Eleonora respondeu simplesmente. – Também é algo sobre o qual nós precisamos conversar.

– Eu sei – Suzana concordou e encarou Eleonora com uma pergunta surda pairando nos olhos, mas não se pronunciou a esse respeito e, sabiamente, deixou a jovem amante começar a conversa.

– Eu não sei bem como começar, Suzana…Eu te amo. Não tenha dúvida disso.

– Eu não tenho.

– Que bom…Mas é fato que eu também amo Luciana. Eu tenho com ela um casamento repleto de carinho, respeito e cumplicidade…

Suzana se moveu, incomodada, na cama, mas continuou calada. Eleonora continuou:

– Mas eu também não quero e nem sei se posso mais viver sem você. Entenda, meu amor, e, por favor, não se ofenda…O seu amor é ventania forte e incontrolável. Lindo em sua força, irresistível em sua magnitude. Envolvente. Intenso. Mas, se isso é algo de maravilhoso, também é assustador…E, por outro lado e do outro lado, está uma pessoa a quem eu adoro e a quem a simples perspectiva de magoar me faz sofrer. Eu estou confusa e…

– Em dúvida – Suzana falou na frente.

– Não é bem assim…- Eleonora tentou completar, mas a morena não deixou e continuou falando.

– Eu entendo. Não é nada fácil viver com um temporal ambulante como eu e…Você tem uma vida organizada…Um casamento, uma carreira…

Eleonora ficou olhando para Suzana despejando as palavras como uma metralhadora verbal, com um sorriso leve nos lábios. A jogadora continuou vertendo suas impressões, descontroladamente.

– Talvez seja melhor assim…Você voltar para a sua vida tranqüila e eu…Bom, eu posso, se isso significar a sua felicidade, viver a vida toda sem metade de mim. Por você…Para você ser feliz eu posso tentar, eu posso conseguir, eu…

Suzana não terminou, baixou a cabeça e se virou para sair da cama. Eleonora a segurou gentilmente pelo braço e disse com suavidade:

– Suzana, olhe para mim.

Suzana olhou.

– Não é nada disso, meu amor. Eu estou, sim, triste por ter que inevitavelmente magoar uma pessoa que eu amo e respeito, mas eu não estou em dúvida sobre nada. Escute: “… E, no entanto, a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida. E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz…” ¹. Eu não tenho qualquer dúvida, meu amor, simplesmente porque eu não tenho escolha. A minha alma já fez esta escolha há muito tempo, e ao contrário de você, eu não tenho forças para viver sem a metade de mim. E metade de mim é você, Suzie.

Eleonora escutou um profundo suspiro de alívio e recebeu aquele sorriso luminoso que tanto a encantava. Suzana estendeu o braço, puxou a pequena loira para si e a abraçou com força.

– Você fez referência a algo assustador? Você não é capaz sequer de imaginar o medo que eu senti de você me deixar sair dessa cama! – Suzana beijou carinhosamente os cabelos loiros. – A propósito, eu adoro quando você me chama de Suzie.

– Você já me disse isso.

– Disse e confirmo. Pouquíssimas pessoas me chamam assim. Justamente aquelas a quem eu mais amo. É íntimo e especial para mim, por isso eu adoro ouvi-lo vindo de sua boca.

Eleonora voltou o rosto para cima e sorriu docemente.

– Obrigada.

Suzana fitou-a embevecida e exclamou:

– Deus, como você é linda!

– Suzana, você já se olhou no espelho?

– Já. Mas, eu não faço o meu tipo.

– É? – Eleonora indagou, jocosa. – E eu posso saber qual é o seu tipo?

– Loira, delicada, olhos verdes – Eleonora abriu um sorriso ainda maior, Suzana continuou, divertida. – Baixinha, teimosa, brigona e ciumenta.

– Ei!

Suzana gargalhou com gosto enquanto suportava uma chuva de tapas brincalhões nos braços. Por fim, lembrou entre risos:

– Acho que nós temos que nos levantar, Leãozinho. Se não me engano, nós precisamos pegar um avião daqui a pouco.

– Meu Deus! Que horas são?

– Nove horas.

– Minha Nossa Senhora! Regina passará no meu quarto daqui a trinta minutos – Eleonora exclamou, saltando da cama. Vestiu a roupa como um raio e foi saindo, apressada.

– Ei, Srta. Cavalcanti. A Srta não está se esquecendo de nada, não?

Eleonora voltou no mesmo passo, deu um beijo terno na boca de Suzana e sussurrou com o rosto encostado no rosto moreno.

– Até daqui a pouco, meu amor.

– Até.

Eleonora saiu com passos rápidos balançando as madeixas loiras enquanto Suzana ficava imaginando o porquê de estar se sentindo tão embriagada se não havia bebido uma única gota de álcool².

A seleção chegou em São Paulo por volta da uma da tarde. Ao saírem pelo portão do desembarque, não demorou muito para que as jogadoras fossem notadas pelos presentes no aeroporto e se virem rodeadas por fãs. Cercada pelos admiradores, Suzana distribuía autógrafos e tirava fotos com invejável bom humor. Eleonora trocava algumas palavras com o auxiliar – técnico empurrando o carrinho com a sua bagagem. Foi então que viu Luciana parada, vestida de branco, com um enorme sorriso estampado no rosto. Seguiu ao encontro dela.

– Lu, que surpresa!

– Gostou? – perguntou a médica.

– Claro que sim – Eleonora respondeu com sinceridade e abraçou a esposa.

– Eu estou no meu horário de almoço – explicou, Luciana.

– Então, você não deveria estar comendo, doutora?

– Ver você me sacia muito mais. Estou com tanta saudade, pequena.

Eleonora a abraçou novamente sentindo as lágrimas querendo escapar-lhe dos olhos verdes. Esforçou-se para não vertê-las. Recompôs-se e falou:

– Muito bem, Dra Luciana, esta passa. Mas, trate de se alimentar antes de voltar ao trabalho, entendeu?

Luciana riu.

– Está bem. A que horas você volta para casa, meu amor?

– Umas oito da noite.

– Estarei esperando com aquele Talharim ao Pesto de que você tanto gosta e uma boa garrafa de vinho. O que você acha?

– Maravilhoso.

– Até mais tarde, pequena.

Luciana ainda acenou alegremente antes de sair pela porta do aeroporto.

Eleonora sentiu a intensidade de um olhar em suas costas como se a tocasse. Virou-se e deu de cara com Suzana olhando-a intensamente. Sorriu debilmente, baixou o rosto e seguiu cabisbaixa para o ônibus. Suzana sentiu vontade de segui-la, mas não o fez. Este era um problema de Eleonora em relação ao qual ela mais atrapalharia que ajudaria.

Fizeram um treino tático leve ao final da tarde. Em seguida, a equipe rumaria para o hotel. Eleonora pediu um táxi para levá-la para casa. Antes disso, Suzana a interpelou à saída do ginásio.

– Eleonora?

O som da voz de Suzana fez, como sempre, o corpo de Eleonora se arrepiar. Ficou de frente para a jogadora.

– Oi – respondeu timidamente.

Suzana intuía o quanto a situação em que se encontravam deveria ser difícil para um pessoa tão sensível e franca quanto Eleonora. Falou o mais suavemente que conseguiu, não obstante uma branda hesitação na voz traísse a inquietação que lhe perturbava a alma naquele momento:

– Só para te lembrar que eu estou aqui. Só para te dizer que eu sei o quanto deve estar sendo duro para você. Só para você saber que, embora o que você precisa confrontar deva fazê-lo sozinha, você não estará. Meu coração, a minha alma, cada um dos meus pensamentos estarão com você. Eu te amo tanto…

Eleonora interrompeu Suzana tocando os lábios da morena com a ponta dos dedos. O rosto da jovem treinadora traduzia uma ternura infinda e pela primeira vez desde que desembarcara, um sorriso largo pairava nos lábios rosados.

– Suzie…Você é capaz de perceber o quanto é afetuosa e doce?

O rosto moreno ficou anormalmente rubro.

– E-eu? Ora, só porque…

– Um coração de manteiga – continuou a loirinha, terna e ao mesmo tempo provocadora.

– Não exagere – Suzana falou encabulada.

– Não exagero. A poderosa Suzana Alcott é tão forte e ágil quanto é sentimental e terna. Essa mistura de força e delicadeza é uma das coisas que eu mais gosto em você – passou os dedos levemente pela face da jogadora. – Obrigada…

Suzana apenas balançou a cabeça em assentimento. Eleonora lançou-lhe mais um olhar amoroso e foi embora em direção à conversa mais difícil que teria em toda a sua vida.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2022 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.