Luz para florescer

Capítulo 20

A partida correu equilibrada a maior parte do tempo, mas Suzana foi o ponto de desequilíbrio. Jogando como não havia jogado as três últimas partidas, ela arrasou com o jogo, marcando 39 pontos e levando a seleção à vitória mais tranqüila até então – por uma diferença de 11 pontos.

A euforia no vestiário era contagiante e o sorriso aberto de Regina representava o sentimento de todos. Suzana, felicitada ininterruptamente por quem passasse por ela, procurava Eleonora com os olhos por todos os cantos. De repente, a sua busca incessante foi presenteada com um olhar terno e cúmplice. Seu coração se incendiou e a noite ficou finalmente perfeita. Por sua vez, Eleonora recebeu aquele sorriso deslumbrante que poderia transformar qualquer ambiente escuro e frio em um lugar de claridade cálida. E ela teve certeza mais uma vez de que era uma dependente sem cura daquele sorriso transbordante de amor somente para ela.

Após o banho, a equipe seguiu alegre e quase incógnita, senão pela presença de uns poucos fãs insistentes no caminho, para o ônibus parado à frente da discreta porta externa que dava saída aos escritórios e vestiários do ginásio. Suzana e outras jogadoras pararam para distribuir autógrafos aos admiradores encantados. Eleonora vinha logo atrás conversando com Regina. De repente, ouviu-se o um som claro de um carro cantando os pneus e em poucos segundos diversos pares de olhos avistaram, assustados, um automóvel em alta velocidade seguindo direto para onde se encontravam as jogadoras e os fãs. Foi tudo muito rápido. Em pouco mais de um instante, haviam cinco corpos atirados sobre o cimento. Eleonora se ouviu gritando. Carla, Gianne, André e Luciana que vinham calmamente contornando a estrutura arredondada do ginásio para encontrarem Eleonora, puderam presenciar a cena. Movida pelo condicionamento profissional, Luciana correu imediatamente para as vítimas.

O automóvel sumiu.

Eleonora, Regina e Aline fluíram ao mesmo tempo para os corpos inertes no chão. Luciana chegou à primeira vítima – uma adolescente de, no máximo, quinze anos. Enquanto verificava os sinais vitais da garota, a médica gritava para que chamassem socorro. Eleonora adiantou-se para junto de outra jovem desacordada, acompanhada de Aline, a fim de prestar os socorros de urgência. Pessoas gritavam horrorizadas e outras tantas chegavam de todos os lados, atraídas pelo barulho inconfundível de uma tragédia. Oscar e Regina tentavam conter os ânimos exaltados e afastar os curiosos das feridas até que chegassem as ambulâncias.

Foi no meio dessa balbúrdia que Eleonora reparou que existiam duas pessoas de agasalho azul e amarelo dentre as atingidas pelo motorista alucinado. E que de uma das vítimas com o agasalho da seleção, sobressaíam-se longos e fartos cabelos negros. A sua respiração parou por completo e o sangue lhe fugiu das faces. Como um autômato, Eleonora se levantou hesitante e foi se aproximando lentamente do corpo imóvel para ver, trêmula de pavor, o belo rosto moreno desacordado e coberto por uma espessa camada de sangue. Um som parecido com um grito fraco, sofrido e gutural escapou-lhe das entranhas. Sentiu-se sem pernas e o colega Oscar a amparou antes que caísse. André, a poucos metros da irmã, correu para ajudá-la. Eleonora o abraçou com força, premida de dor e medo. Olhando para Suzana, tão forte e altiva, desacordada, ferida, largada inerte sobre o solo, só conseguia balbuciar:

– Suzana… Suzana…Não! Não me deixe de novo, meu amor. Eu não conseguirei… Eu não vivo… – um soluço apertado escapou-lhe da garganta e ela afundou o rosto no peito do irmão. Carla e Gianne, abraçados aos gêmeos, olhavam aflitos para a amiga desesperada.

Ao lado, Luciana assistia a tudo. Parte do seu coração cobria-se de surpresa e luto, mas a outra parte quedava-se triste e conformada como que dizendo – “Eu já sabia”.

A sala de espera do hospital, apesar da imprensa e de um bom número de curiosos permanecerem do lado de fora do edifício, estava cheia com os parentes das vítimas, dirigentes da Confederação Brasileira de Basquete e comissão técnica da seleção. Regina havia pedido às jogadoras que voltassem para o hotel e tentassem descansar. Oscar acompanhou a equipe, mas retornou logo em seguida para o hospital. Eleonora se despediu do irmão e dos amigos prometendo dar notícias logo que tivesse alguma novidade e seguiu para o hospital com Luciana que, nesse momento, estava dentro do pronto-socorro acompanhando o atendimento às vítimas. Preocupados, os presentes mal falavam entre si. Todos se levantaram de pronto quando Luciana apareceu no corredor. Afluíram para ela com o coração aos saltos. A médica foi sucinta:

– Eu não posso adiantar muita coisa, isso é encargo do médico responsável pelo Pronto Socorro que emitirá o boletim médico oficial em breve. Contudo, posso dizer que temos quatro das cinco vítimas fora de risco. Infelizmente, uma delas está em coma e o seu estado clínico é, no momento, imprevisível – olhou compassiva para os parentes aflitos e falou com suavidade: – Eu sei o quanto é difícil, mas peço que tenham paciência. Todas estão tendo o melhor atendimento.

As pessoas voltaram aos seus lugares para esperarem mais um pouco sobre notícias a respeito do estado de seus entes queridos. Luciana chamou a técnica:

– Regina.

A técnica se aproximou juntamente com o resto da equipe e dirigentes da confederação.

– A jogadora mais jovem…

– Selma.

– Sim. Ela fraturou a perna esquerda e um dos ossos do antebraço. Temo que ficará sem jogar um bom tempo. Quanto a Suzana… – Eleonora imaginou perceber um leve olhar de soslaio para ela quando a médica tocou no nome da jogadora. – Ela teve uma concussão e deverá ficar em observação por um par de dias. No mais, não sofreu qualquer fratura ou ferimento de maior gravidade.

Suspiros de alívio.

– Podemos ver as nossas meninas? – Regina pediu.

– Acho que sim…Acredito que elas já tenham sido transferidas para apartamentos individuais. Só um instante.

Luciana sumiu alguns minutos e voltou logo em seguida.

– Tudo bem. Mas, apenas três ou quatro de vocês podem entrar para não ocasionar muita agitação. Elas precisam descansar.

Ficaram uns olhando para os outros. Eleonora falou na frente:

– Podemos nos dividir. Assim, ficamos sabendo como está uma e outra sem cansá-las em excesso.

– Muito bem – concordou Regina. – Eu vou para o quarto de Suzana. Oscar, você veja como está Selma. Eleonora…

– Vou com você – a loirinha se apressou em dizer, mais temerosa de não conseguir do que de se revelar ansiosa demais em ver Suzana.

Aline foi com Oscar. O responsável pela comunicação social e o Diretor-Ténico da Confederação seguiram um em cada grupo.

O pequeno grupo entrou no apartamento onde estava deitada a famosa jogadora e cercou a cama com sorrisos aliviados. Sem se importar com os demais presentes, Suzana estendeu a mão para Eleonora que deu um passo até ela e capturou a mão estendida entre as suas. Perguntou suavemente:

– Como você está se sentindo?

– Como se tivesse sido atropelada – a morena brincou com uma voz fraca saindo do rosto abatido e sonolento. Eleonora riu um riso trêmulo e não conseguiu dizer nada. Suzana completou: – Eu estou bem. A doutor falou que eu não quebrei nada. Só me restou um corte na cabeça para me lembrar desse episódio para o resto da minha vida e um sem número de hematomas para me fazer lamentá-lo por algumas semanas.

Eleonora conseguiu comentar:

– Uma cabeça dura como a sua não quebra assim tão fácil.

– Pois é… – Suzana concordou fechando os olhos.

Lucina se aproximou.

– Ela foi sedada – falou para Eleonora. – Precisa descansar. Vamos.

Eleonora concordou com um aceno de cabeça. Olhou mais uma vez para o rosto amado adormecido e resistindo à vontade de tocá-lo com ternura, saiu do apartamento com Luciana. Andaram em silêncio até o carro da médica e assim permaneceram a maior parte do percurso de volta para casa. Luciana quebrou o silêncio:

– Quando aconteceu?

Absorta, Eleonora perguntou antes de pensar:

– O que?

– Quando você percebeu que estava apaixonada por Suzana?

Eleonora sentiu um frio polar no estômago. Respondeu baixinho:

– Eu não sei ao certo…

Luciana bateu as duas mãos no volante com força e gritou:

– Quando você ia a me conta isso?

O automóvel dançou perigosamente no meio da avenida.

– Luciana, você está dirigindo!

– EU SEI! Droga… – Luciana sinalizou e entrou a direita em um posto de combustíveis. Estacionou de frente à loja de conveniência. Permaneceu de cabeça baixa alguns segundos, respirou fundo e perguntou:

– Há quanto tempo vocês estão juntas?

– Lu, nós não…

– Eu não sou idiota, Eleonora! Vocês são um casal. Eu e 99% das pessoas presentes naquele quarto notamos isso.

Eleonora suspirou, resignada.

– Não foi nada planejado. Nós…

– Ah! Meu Deus! Isso não está acontecendo – Luciana bateu a cabeça duas vezes sobre o volante. Virou o rosto para Eleonora. – O que houve? Nós estamos tão bem. Pelo menos, eu imagino. Temos tanto planos. Nós… Eu fiz alguma coisa? Ando muito ausente? Trabalho demais e não te acompanho o suficiente. Elê…

– Não, Luciana – Eleonora exclamou com firmeza. – Não – confirmou com suavidade. – Não foi você ou eu ou qualquer problema em nosso relacionamento. Simplesmente… Céus! Essa expressão é um lugar comum terrível, mas é a pura verdade… Aconteceu. Foi inevitável.

– Como simplesmente aconteceu? – Luciana voltou a se alterar. – O que acontece em nosso coração sem que a gente queira?

– O inelutável.

Luciana abriu a boca para interromper, mas Eleonora a silenciou com um gesto.

– Não, Lu. Escute. Eu não premeditei. Eu nem ao menos percebi chegar e quando percebi ainda tentei lutar, mas perdi.

– Aquela mulher te fez sofrer como uma condenada.

– Fez.

– Ela te ignorou por anos a fio.

– Sim.

– E você ainda a quer.

– Sim…

– Aaaah! Por favor, Eleonora. Essa mulher não merece você. Nunca mereceu. Não merece nem a menos confiança. É uma aventureira. Uma…

– Não fale assim dela – Eleonora avisou.

– Você ainda defende aquela desclassificada, irresponsável, nefasta….

– Luciana, cale a boca! Você não é de depreciar assim uma pessoa sem conhecê-la. Não diminua a nossa história com…

– Você já fez isso – Luciana cuspiu, transtornada.

– Não, não fiz – Eleonora contrapôs suavemente. – Eu te amo.

– Ah!!- Luciana bufou em descrédito.

– Sim. Eu te amo, respeito e não me envolvi com outra pessoa porque o nosso relacionamento não me é extremamente importante – respirou fundo. – Entenda…Isso é, para mim, tão difícil de dizer quanto deve ser para você, ouvir. Contudo, é mais transparente verdade. Deus, Luciana! Você é tão importante para mim. Tão amada…Meu Deus…

– Diga logo – Luciana requereu, agora, com calma.

Eleonora suspirou profundamente e só então falou:

– Eu amo Suzana de uma forma que eu não consigo controlar, racionalizar ou conter. Escapa de mim sem controle, aos borbotões, tão inelutável quanto o ato de respirar. Você acha que é fácil encarar algo assim? Pois, não é. É assustador, temerário, imprudente. Mentiria se dissesse que não estou com medo.

– Mas, você vai assim mesmo.

– Eu preciso.

– Se você tivesse confiado em mim antes…Se tivesse me contado no início…

– Talvez. Talvez, Lu. Mas, seja sincera. Você queria realmente ouvir? Lembre-se de como você também adiou essa conversa o quanto pôde. Você é sensível o suficiente e me conhece demais para não ter percebido que eu estava diferente, perturbada já há um bom tempo.

Luciana baixou a cabeça.

– É. Eu sei. Mas, eu pensei que o nosso amor fosse capaz de resistir a essa tentação.

– E resistiria – Eleonora afirmou, convicta. – Se fosse uma tentação. Algo como um simples desejo ou um forte impulso. Mas, não é.

– O que você pensa em fazer? – Luciana perguntou com lágrimas caindo soltas dos olhos castanhos.

Com o coração em frangalhos, Eleonora respondeu:

– Vou para o hotel. Peço ao pessoal do apoio para buscar as minhas coisas amanhã.

– Você vai abandonar a nossa casa?

– Lu, por favor, não torne as coisas mais difíceis do que já são – Eleonora já chorava copiosamente.

– Essa mulher vai te arrasar mais uma vez.

– Lu…

– Vai te machucar, te humilhar.

Eleonora abriu a porta do carro.

– Não! – Luciana a segurou pelo braço. – Eu te amo.

– Eu também te amo. Esse é um dos motivos pelos quais eu estou indo, agora.

Eleonora se desvencilhou da mão de Luciana e saiu do carro. Caminhou até a avenida e acenou para um táxi. Entrou e deu o endereço do hotel onde estava hospedada a seleção e se afundou no banco traseiro. Tirou uma camiseta da mochila e chorou fartamente com a malha apertada contra os olhos.

Num posto de combustível, a poucos quilômetros dali, sem que ninguém a incomodasse, uma outra mulher soluçava incontrolavelmente com o rosto debruçado sobre o volante do automóvel.

A equipe chegou na Espanha sob especulações da imprensa a respeito da capacidade da famosa Suzana Alcott de superar e se recuperar física e emocionalmente do acidente que por pouco não a vitimara. A seleção não contaria com a sua principal jogadora nos dois primeiros jogos da fase classificatória. Isto, sob veementes protestos de Suzana que já se sentia capaz de atuar. Contudo, Regina fora categórica em afirmar que queria a sua principal jogadora plenamente refeita e isso significava respeitar as ordens médicas quanto ao seu período de recuperação.

Dez dias antes, a equipe honrara os dois últimos compromissos com o time cubano mesmo após a inacreditável fatalidade e, nesse ínterim, Eleonora teve uma conversa esclarecedora com a técnica da seleção. Foi Regina quem a chamou para conversar logo após o último jogo contra Cuba e dois dias antes de embarcarem para a Europa.

– Eleonora, preciso falar com você. Você tem um tempo agora?

– Claro – Eleonora respondeu fechando um livro de contos que lia distraidamente sentada na agradável sacada do hotel e sentindo de antemão a apreensão típica de quem já antecipa o teor da conversa.

Regina sentou-se ao seu lado.

– Ante de tudo, eu quero deixar bem claro que eu não tenho nada com a sua vida pessoal ou de quem quer que seja.

Atenta, Eleonora apenas anuiu com a cabeça. Regina continuou:

– Mas, eu tenho todo o interesse com o que acontece com a equipe que eu dirijo.

Eleonora, mais uma vez, não se pronunciou.

– Você e Suzana.

– Sim.

– Não me interessa o tipo de relacionamento entre vocês duas, mas você há de convir comigo que nos encontramos em um momento delicado.

Silêncio.

– É, simplesmente, o mais importante evento do calendário do basquete feminino mundial.

– Eu sei – Eleonora esperava pacientemente o desfecho.

– E eu não posso deixar de zelar…

– Regina – Eleonora cortou a técnica com suavidade, mas com firmeza. – O que existe entre mim e Suzana não vai atrapalhar o bom andamento da equipe. Eu prometo.

– Mas, no dia do acidente…

– Aquilo foi um acontecimento mais do que dramático. Em todos os aspectos, inimaginável. Uma situação extrema e todos ficamos alterados.

Regina balançou a cabeça em assentimento, olhou firmemente para Eleonora e concluiu:

– Muito bem. Eu confio em você e na sua postura profissional, senão, aliás, você nem faria parte desta equipe. Sei que você cuidará para que, independente do seu tipo de relacionamento com Suzana, ele não interfira no trabalho com o restante do time.

– Você pode confiar nisso, Regina.

– Eu espero que sim.

A técnica se levantou para sair e Eleonora ainda fez mais uma pergunta:

– Mudando de assunto, alguma notícia sobre o causador do acidente?

– Sim. A polícia o identificou. É um garoto. Parece que foi uma espécie de vingança contra a ex-namorada que o abandonou por outra menina. Trata-se da adolescente que ainda está em coma e da outra que estava ao lado de Suzana e só quebrou braço. Lamentável, não?

– Sem dúvida.

Regina se despediu e se retirou deixando Eleonora pensando nas desgraças que o ciúme associado ao orgulho ferido pode causar.



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