Luz para florescer

Capítulo 22

No dia seguinte, toda a seleção brasileira saiu para passear e fazer compras por Madrid. Suzana e Eleonora preferiram caminhar pelo belo Parque do Retiro desfrutando do prazer de estarem apenas as duas juntas. Mais tarde, sentadas para almoçar num pitoresco restaurante no charmoso Bairro Salamanca, Suzana argumentava:

– Eu parto amanhã para Los Angeles. Você poderia vir comigo. Umas duas semanas são o suficiente para eu resolver as coisas por lá e então voltamos juntas para o Brasil.

– Não posso, Suzie. Eu também tenho muitas coisas urgentes para resolver. E você sabe que a minha situação é, digamos, muito mais delicada do que a sua.

– Humf! – Suzana grunhiu. – Não gosto de você retornando para a casa da sua ex-mulher sozinha.

– É a minha casa também, Suzana. Pelo menos até eu me mudar de lá definitivamente. Não seja ciumenta.

– Inevitável – Suzana tentou brincar. – Você é linda, adorável, inesquecível… – piscou os olhos várias vezes como nos velhos filmes mudos. Depois, falou, séria: – Eu não a culparia se ela tentasse te reconquistar.

– Duvido muito, Suzana. De qualquer forma, não iria adiantar. Eu sou sua e essa é a mais simples verdade.

Suzana apertou a mão de sua pequena amada olhando-a intensamente. Por fim, concordou com um suspiro:

– Está bem. Mas eu quero a senhorita em um hotel e eu vou voltar em dez dias.

– Mas, Suzie…

– Oito, talvez.

Eleonora gargalhou alto.

– Ei, miss Alcott, cuidado para não deixar a casa e o salário para o time.

– Eu não me importaria se isso significasse chegar mais rápido para junto de você – Suzana replicou galantemente com aquele sorriso deslumbrante na boca cheia.

Foi a vez de Eleonora tomar para si a feição atoleimada dos enamorados.

Suzana não a deixou divagar muito e falou:

– Posso te convidar para jantar, hoje?

– Meu Deus, Suzana. Nós acabamos de almoçar – Eleonora retrucou brincalhona. – Depois, eu acho que preferiria ficar esta noite em um quarto sozinha com a minha mulher.

– A idéia é muito mais do que tentadora, amor. Mas… É que eu preparei uma noite especial e ela começa com um jantar num lugarzinho lindo e reservado. Depois…Bom, depois é surpresa.

Eleonora riu deliciada e perguntou, provocante.

– Alguma comemoração em especial?

– Surpresa.

– Aaaah, não, Suzana. Você sabe que não existe pior castigo para mim do que ficar curiosa.

– Vou compensar o sofrimento, amor. Prometo. Estamos combinadas?

Eleonora suspirou fingindo resignação.

– Combinado.

– Então nós nos encontramos às nove da noite no saguão do hotel.

– Tudo bem – Eleonora respondeu com um muxoxo e foi presenteada com um afago folgazão sobre os cabelos que terminaram solenemente despenteados sob veementes protestos da loirinha indignada.

No hotel, Suzana foi tirar uma boa sesta. Eleonora aproveitou para ir a uma pequena boutique ao lado do hotel onde, dias atrás, ela havia avistado um lindo vestido preto de corte justo e clássico, mas que se permitia à ousadia de uma provocante fenda posterior. Queria estar bonita. Intuía que esta seria uma noite muito especial. Provou o vestido e comprovou o seu caimento perfeito. Comprou-o. Saiu da loja alguns euros mais pobre e alguns sorrisos mais feliz.

Suzana acordou por volta das 16:30. Foi para o chuveiro e tomou um banho demorado. Quarenta minutos mais tarde saía do banheiro cantarolando um velho sucesso de Djavan. Olhou para a gaveta do criado-mudo e abandonou a melodia para dar espaço a um sorriso largo que lhe dominou o rosto. Puxou a gaveta e pegou uma caixinha de veludo negro. Abriu-a. Dentro dela, duas alianças de ouro rutilaram. Suzana suspirou feliz. Havia comprado as jóias logo depois da semifinal. Queria selar um compromisso com Eleonora. Pedi-la que fosse sua companheira pelo resto de sua vida. Sentia, sem a menor sombra de dúvida, que isso era o que mais queria acima de qualquer outro desejo que pudesse conceber. Imaginara uma noite perfeita. Sorriu ante a constatação de como Eleonora a transformara em uma mulher romântica. Guardou a caixinha e foi se vestir. Mal colocara a lingerie e o celular tocou. Atendeu-o distraída.

– Alô…Hi, Albert. What a surprise. What’s happening?

Calou-se para ouvir a resposta do antigo e mais fiel servidor de sua família. O belo rosto moreno tornou-se mortalmente pálido à medida que escutava o motivo da ligação.

– No, don’t tell me that. Please, Albert – a voz grave era quase um sussurro trêmulo e dolorido. Suzana respirou fundo. – Of course. I’m comming… Yes…Yes.

Suzana desligou incrédula e chocada. Ligou imediatamente para a recepção.

– Eleonora Cavalcanti, quarto 502, por favor.

– Ninguna persona en el apartamento, signora.

– Habla usted português?

– Um pouco.

– Você pode descobrir qual o próximo vôo para Londres, por favor?

– A senhora quer que eu faça a reserva?

– Sim, em nome de Suzana Alcott, por favor.

– Sim, senhora.

Suzana estava atordoada. Onde estava Eleonora? Ela não havia lhe dito que sairia para algum lugar e não havia levado celular para a Europa. Passou a mão nervosamente pelos cabelos ainda úmidos. Caminhou até o armário, colocou jeans, uma camiseta e apanhou uma jaqueta. Penteou os cabelos como um autômato e desceu ao saguão. O rapaz da recepção a atendeu com um sorriso educado.

– Srta. Alcott. Há um vôo para daqui a três horas. Já fiz a reserva. A senhora deseja um táxi?

Suzana apenas concordou com a cabeça. Em poucos minutos estava em um táxi em direção ao aeroporto. Em algum lugar da sua mente perturbada ela conseguia ponderar que Eleonora por certo ligaria para ela logo que soubesse que havia partido. Apalpou o celular dentro do bolso do casaco sobre o banco do táxi. No entanto, por ora, só conseguia pensar que Robert estava entre a vida e a morte e o seu coração doía como se traspassado por mil punhais.

Nesta tarde, contudo, os deuses pareciam estar especialmente cruéis. O rapaz da recepção terminou seu turno e saiu pela porta de serviço ao mesmo tempo em que uma sorridente loirinha entrava carregando uma sacola pela porta da frente. Trinta minutos antes, Suzana descera apressada do táxi com a jaqueta nas mãos sem perceber que o celular caía do bolso onde o colocara e jazia silencioso no chão ao lado do meio fio.

Eleonora tomou um banho relaxante e lavou com cuidado os cabelos finos e delicados. Saiu do banheiro e foi direto ao telefone. Olhou para o relógio: 18:40. Desistiu de pedir uma ligação para o quarto de Suzana, ela também devia estar às voltas com um bom banho. “Melhor eu me preparar e ligar quando estiver praticamente pronta”, pensou lembrando-se com um sorriso de como Suzana ficava mal-humorada com atrasos. Entrou novamente no banheiro para secar os cabelos.

Por volta das 20:00, quase pronta, de moletom e camiseta, faltando apenas colocar o vestido e os sapatos, Eleonora ligou para a recepção e pediu para contatá-la ao quarto de Suzana. Alguém atendeu.

– Alô…Oi, Márcia. Eleonora. Posso falar com Suzana?

– Oi, Elê – a companheira de quarto de Suzana respondeu. – Ela não está.

– Não está? Ela deixou algum recado?

– Não, e isso aqui está muito estranho.

– Como assim estranho?

– Bom…o armário estava escancarado quando eu cheguei, algumas roupas de Suzana espalhadas pelo chão e parece que está faltando uma mochila dela como se…

– Ela tivesse ido embora às pressas – completou Eleonora.

– Isso.

Eleonora sentiu um frio abissal tomando-lhe o ventre. Desligou com um pressentimento terrível. Um medo intenso começou surgir, sorrateiro, em seu coração. Um medo antigo, conhecido, o mesmo medo que sentira há nove anos atrás e que rogara para nunca mais sentir novamente. Desceu correndo descalça até o saguão do hotel. Chegou ao balcão da recepção ruborizada e ofegante. Perguntou num espanhol atropelado pela hóspede Suzana Alcott. O atendente soube dizer apenas que ela havia deixado o hotel por volta das dezessete horas porque assim estava registrado pelo servidor do turno anterior, mas o motivo da saída precoce ou para onde ela havia ido, ele não sabia informar.

Eleonora se lembrou do celular.

Pediu o telefone da recepção e ligou. O celular chamou até cair na caixa de mensagens. Tentou ainda mais três vezes. Nada.

Eleonora olhou em volta como se procurasse algo ou alguém que a ajudasse. “Pode ser tanta coisa. Deve haver uma explicação”. E, no entanto, a sua garganta estava quase fechada por um bolo amargo formado por descrença e um profundo pavor. Caminhou apática até uma poltrona e se sentou com as mãos cobrindo o rosto abaixado.

Desnorteada. Confusa. Impotente. Eleonora não queria nada. Nem ao menos chorar. Aliás, nem se quisesse. Não tinha mais lágrimas. Não tinha mais.

Os destinos enlaçam, os destinos cortam…Os destinos tornam a unir.

Os funcionários do hotel olhavam discretamente para a jovem mulher que há mais de uma hora quedava-se inerte numa poltrona do saguão com os translúcidos olhos verdes extáticos fitando algum ponto indefinido no espaço.

Um rapaz entrou pela porta da frente bem vestido e sorridente. Seguiu até o balcão e pediu qualquer coisa que havia esquecido por ocasião do seu turno de serviço. Olhou discretamente para loirinha inerte quando o colega que o substituira na recepção comentou alguma coisa. O rapaz se aproximou de Eleonora.

– Señora?

Eleonora olhou para ele sem movimentar um único músculo do rosto inexpressivo. O jovem continuou:

– Usted…Você estava perguntando por Suzana Alcott?

O rosto de Eleonora transmutou-se. Dos olhos verdes faiscaram sinais vivos de interesse.

– Sim – respondeu simplesmente.

O rapaz relatou-lhe os acontecimentos de algumas horas atrás. Eleonora escutou com atenção.

– Então, ela foi para Londres – Eleonora falou para si mesma.

– Sí, e también demasiado intranquila.

Eleonora fitou o seu interlocutor com o rosto claro repleto da sua conhecida determinação e pediu:

– Você poderia me fazer um favor?

– Seguramente.

– Pode me descobrir quando parte o próximo vôo para Londres.

– Seguro, señora. Quer que eu faça a reserva?

– Eu…Quero sim, obrigada. Em nome de Eleonora Cavalcanti, por favor – disse e caminhou resoluta para ao elevador. – Definitivamente, eu quero, sim!

Entrou no elevador.

Eleonora estava sentada na sala de espera do aeroporto aguardando a chamada do seu vôo para Londres.

Não estava ansiosa ou impaciente como era de se esperar. Expirara a sua cota de desespero. Agora uma calma determinada tomava-lhe a mente dominada pela resolução firme de encontrar Suzana e fazê-la explicar o motivo desse novo e repentino desaparecimento. Não era mais uma adolescente insegura, alquebrada pela sensação de abandono, derrotada pelo sentimento de impotência. “Não desta vez!”. Desta vez ela iria atrás de Suzana até o inferno se fosse preciso, mas não passaria de novo pela tortura de não saber o que aconteceu. Definitivamente, não! Respirou fundo e abriu um livro de Gabriel Garcia Márquez para ver se o seu autor preferido lhe ocupava a cabeça com sua prosa fantástica.

Foi nesse instante que se deu conta de um pequeno detalhe: não sabia onde a família de Suzana residia. Não tinha sequer um número de telefone em Londres e talvez nem existisse um número em qualquer lista telefônica. O celular de Suzana continuava mudo…”Pense, pense, Eleonora”. De repente, um nome lhe alcançou a memória: “Camilla”. Levantou-se rapidamente.

– Alô – atendeu uma voz conhecida.

– Carlinha?

– Elê? E aí, campeã mundial?

– Carla, eu preciso de um favor – Eleonora disparou sem mais delongas.

– Xiiiii! Aí vem bomba. Diga, velha amiga.

– Preciso que você encontre o telefone de uma pessoa para mim. Chama-se Camilla…não sei o sobrenome. Fisioterapeuta, ex-professora da Universidade Santa Cruz. Mora atualmente em Curitiba e tem uma clínica lá. Eu preciso dessa informação o mais rápido possível – Eleonora falou num só fôlego.

– Minha Nossa Senhora! Calma, menina. Eu me lembro de quem se trata e nem precisa me dizer que Suzana está envolvida nisso…Pelo menos por enquanto. Depois, eu quero saber de tudo, tintim por tintim. Relaxa, você ligou para a pessoa certa. Não há nada na face da terra que eu não consiga bisbilhotar.

– Conto com isso, Carlinha. Vou embarcar agora e te ligo logo que pousar em Londres.

– Londres? O que você…

– Te conto depois. Até.

Eleonora desligou e seguiu em direção ao portão de embarque.

Suzana olhava estupefata para o irmão imóvel, cheio de tubos entrando por suas vias aéreas, cercado por aparelhos que o mantinham vivo. Não conseguia compreender a imobilidade e a palidez daquela face querida sempre tão jovial, alegre e calorosa. O coração doía-lhe desconcertado, incrédulo e miseravelmente surpreso.

Segundo o relato de Albert, conforme o que lhe disseram os policias e os paramédicos que socorreram Robert, o jovem Lorde Alcott vinha em seu carro esporte pela estrada que levava à casa de campo dos Alcott. Despreocupado e imprudente, acima da velocidade permitida para a estreita e antiga estradinha, ao fazer uma curva especialmente fechada, Robert dera de cara com uma carroça cheia de feno, tocada por um camponês da região. Pego de surpresa e em alta velocidade, ele não teve alternativas senão desviar para o lado e despencar pelo barranco costeiro, colidindo com uma árvore poucos metros depois.

Os ferimentos foram consideráveis.

Em coma, após uma série de intervenções cirúrgicas que duraram mais de sete horas seguidas e que ele só conseguira suportar devido à robustez do seu jovem organismo, Robert lutava pela vida. Suzana colocou a mão sobre a mão do único irmão como se quisesse doar-lhe parte da sua vitalidade.

A porta do apartamento se abriu e um ancião numa cadeira de rodas entrou empurrado por um enfermeiro. Suzana olhou inexpressiva para o avô velho e debilitado, mas ainda repleto da antiga arrogância brilhando nos olhos azuis frios. Não o cumprimentou. Tampouco o avô perdeu tempo com formalidades vazias. O velho Lorde Alcott atirou-lhe um comentário sem a menor preparação:

– I am sure than you know your duty, Suzanne…After all. Well, you are the last Alcott whit my blood. Now, you must worry with one heir.

– Cale a boca, velho insensível – Suzana falou entre dentes. – Robert ainda não morreu.

– Speak in english.

– Eu falo no idioma que eu quiser e não vou facilitar as coisas para você. Robert vai conseguir. E mesmo que ele não consiga… – Suzana engasgou. – Eu prefiro morrer a dar continuidade à sua maldita linhagem.

O velho escutou o desabafo sem mudar a expressão pétrea do rosto enrugado. Falou com calma:

– You will change your mind.

Deu ordem para o enfermeiro retirá-lo do quarto. Suzana voltou-se para o irmão.

– Ah, Bobby. Não me deixe, irmãozinho.

Desta vez, lágrimas abundantes e silenciosas correram pela face de Suzana.

Eleonora chegou em Londres de madrugada. Sem pestanejar, ligou para Carla que como se estivesse esperando a ligação ao lado do aparelho telefônico, atendeu prontamente. Eleonora não perdeu tempo:

– E então, Carlinha. Conseguiu?

– Primeiro, comece a desfiar loas aqui à sua velha amiga de guerra. Uma primorosa investigadora, brilhante…

– Carlinha!

– Ok, ok. Anote aí os telefones da Camilla. Ela não mudou o nome. Consegui os números da residência e da clínica.

Carla passou os números. Eleonora os anotou, agradeceu à melhor amiga e se despediu. Olhou para o enorme relógio quase em frente dos telefones públicos: quatro horas da manhã. Cerca de uma hora da manhã no Brasil. Confabulou consigo mesma se seria uma hora conveniente para ligar para Camilla. Decidiu-se.

Para sua surpresa, uma voz feminina atendeu ao telefone quase prontamente.

– Alô. Camilla?

– Sim.

– Desculpe a hora. Eu não sei se você ainda se lembra de mim. Meu nome é Eleonora. Eu…

– Eu me lembro de você, Eleonora. Está acontecendo alguma coisa com Suzana?

Eleonora não demonstrou espanto com a sagacidade de Camilla. Respondeu com calma:

– Na verdade, eu não sei ao certo, Camilla. Ela sumiu sem explicação ontem à noite. Nesse momento, eu estou em Londres porque tenho informações de que ela veio para cá. Mas não tenho como localizá-la…

– O celular?

– Não atende.

– Entendo… – Camilla ficou em silêncio alguns segundos. – Espere um momento.

Instantes depois, Eleonora tornou a ouvir a voz de Camilla.

– Eu tenho um velho telefone da residência da família de Suzana aí em Londres. Acredito que deva continuar o mesmo.

Camilla passou o número para Eleonora.

– Eleonora?

– Sim?

– Eu tenho certeza de que algo de muito grave aconteceu para Suzana sumir assim sem explicação e eu estou preocupada. Ela não te deixaria por nada que não fosse extremamente importante. Ela te ama muito.

– Eu espero que sim, Camilla. De qualquer forma eu não pretendo sair dessa cidade antes de escutar as explicações que ela tem a me dar. Suzana não vai me abandonar de novo como fez há nove anos atrás. Eu não vou deixar.

Camilla sorriu do outro lado do Atlântico. Gostava dessa menina.

– Eleonora, ligue-me quando tiver alguma notícia, por favor.

– Claro. Obrigada, Camilla.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2022 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.