Luz para florescer

Capítulo 5

O treino de sexta-feira já ia pela metade quando Suzana entrou no ginásio. Estava com o cabelo solto, de jeans e camiseta e tênis pretos. Simples e linda como sempre. Eleonora achou que fosse desfalecer. Ao notarem que a treinadora tinha chegado, as meninas pararam imediatamente o que estavam fazendo e correram ao seu encontro. Eleonora não saiu do lugar sentindo-se extremamente acanhada. Suzana, sorrindo da calorosa acolhida, fingiu ralhar com as suas jogadoras:

– Ei, que folga é essa! Voltem já para o treinamento, suas molengas. O primeiro jogo já é segunda-feira.

Suzana fingiu não perceber a pequena figura plantada no fundo da quadra. Tinha pensado muito nesses dias. Decidira que o melhor era manter uma certa distância de Eleonora. Tratá-la nos limites profissionais da relação técnica/jogadora até que o seu trabalho ali terminasse. Doutor Mautner ficara muito animado com a recuperação de Suzana e bem mais otimista com a possibilidade dela voltar a jogar. Mas, somente ao recobrar todos os seus movimentos é que seria possível avaliar se ela seria capaz de utilizar novamente toda a potência e agilidade que fizeram dela uma atleta de nível internacional. Portanto, tempo e trabalho era o que Suzana tinha a sua frente e nada iria perturbá-la na busca dos seus objetivos.

Suzana esperou o treino terminar para falar com suas jogadoras.

– O treino de amanhã será fisicamente leve, mas longo e eminentemente tático. Vamos lapidar jogadas, firmar posicionamentos de ataque e de defesa e corrigir uma ou outra falha de conjunto. É um treino importante e eu vou exigir muita concentração. Entendido? Muito bem, dispensadas.

Durante todo o tempo, Eleonora procurou o olhar de Suzana, que não veio. A morena retirou-se rapidamente. Uma colega perguntou qualquer coisa para Eleonora sobre uma jogada de ataque. Ela respondeu com indisfarçada impaciência e saiu atrás de Suzana para fora do ginásio. No entanto, Suzana já fechava a porta de um carro preto no estacionamento e saía dirigindo sozinha.

-Ela está dirigindo – murmurou Eleonora.

Algumas jogadoras já haviam saído pela porta do ginásio. Uma delas comentou:

– Vocês repararam no carro da Suzana? Putz! É um Jaguar XJ220. Demais!

– E o que é que tem demais? – perguntou outra.

– Ficou louca? É um Jaguar, garota. Olha, é o mais veloz carro de linha do mundo. Motor V6 biturbo, 542 cavalos de potência e pode chegar a 349 km/h.

– Credo, como você sabe tudo isso?

– Simples. É o carro que eu quero ter “quando crescer”, tolinha.

Levou um empurrão de brincadeira.

– Vai sonhando.

As garotas seguiram rindo e brincando uma com as outras. Eleonora caminhou cabisbaixa para o ponto de ônibus sentindo-se mais triste do que jamais havia se sentido.

O treino de sábado era as cinco da tarde. O auxiliar-técnico comandou o aquecimento e logo elas já estavam fazendo um coletivo supervisionado pela treinadora que parava quando em vez para correções, pedir determinada jogada ou trocar uma ou outra jogadora.

Eleonora estava alheia e desatenta. Chorara a noite inteira. Praticamente não comera nada durante o dia todo e pela primeira vez desde que conseguia se lembrar, não se sentia feliz jogando basquete. Estava cometendo vários e repetidos erros. Suzana já a corrigira uma dezena de vezes. Nem de longe lembrava a armadora guerreira e criativa que sempre fora. Por fim, Suzana a substituiu, colocando-a no time reserva. Mesmo assim, Eleonora continuou apática e desconcentrada. O treino transcorria como um uníssono:

– Eleonora, a jogada é a quatro. Preste atenção, Eleonora, a bola passou na sua frente. Eleonora, a pivô estava livre Eleonora…Eleonora…Ele…

Por fim, Suzana não agüentou mais e gritou irritada:

– Pelo amor de Deus, Eleonora! O que você pensa que está fazendo? Deste jeito, eu vou ter que te mandar de volta para a iniciação esportiva. Eu nunca vi uma armadora jogar tão mal.

Todo mundo parou de jogar no mesmo instante. Eleonora, que até o momento mantinha o seu equilíbrio emocional por um fio, não agüentou mais e saiu correndo para o vestiário. Após alguns segundos em que todos ficaram meio paralisados, Suzana falou:

– Professor Jorge, continue o treino. Eu vou falar com ela.

Suzana caminhou para o vestiário pensando no quanto tentara evitar esse confronto. Mas, agora percebia que havia sido ingênua. Entrou no vestiário imaginando estar preparada para enfrentar o encontro com Eleonora e deixar tudo às claras, definitivamente.

Eleonora estava de costas para ela tentando inutilmente abrir o cadeado do seu armário já que não estava conseguindo acertar a fechadura.

– Eleonora – chamou Suzana.

Nada do que Suzana tenha imaginado a preparou o suficiente para aquilo. Quando a garota se virou para ela, Suzana se deparou com os olhos verdes marejados de lágrimas que escorriam sem controle pela face jovem e tão desamparada que Suzana experimentou a sensação de ter uma seta lhe trespassando o coração. Sentiu-se sem ar como se tivesse levado um soco na boca do estômago. Saber que tinha machucado a doce Eleonora a fazia sofrer além do suportável. Suzana cobriu a distância que as separava em um instante e abraçou Eleonora fortemente sem necessidade de qualquer palavra.

Foi como se o tempo deixasse de existir… como se tudo deixasse de existir e restasse apenas a consciência daquele abraço.

Eleonora ergueu o rosto para Suzana que se deixou perder na doçura verdejante daquele olhar. Lenta e decididamente, a morena alta abaixou a cabeça e beijou cada um dos olhos molhados… E depois, levemente, os lábios da menina em seus braços…E, novamente…E, novamente. Quando percebeu, a suavidade dos beijos delicados transformou-se na incandescência de um beijo apaixonado, profundo e sensual. As bocas se uniram como se fossem moldadas uma para a outra. As línguas se acariciavam, sorviam, invadiam, descobriam-se entre respirações arfantes e braços se apertando sôfregos, ávidos por colar os corpos à beira da impossível fusão. Um desejo inconcebível tomou conta de Suzana. Nunca havia sentido nada tão intenso. Seu coração pulsava nas têmporas, ameaçava saltar do peito, latejava no sexo. Um resto de razão lembrou-lhe de onde elas estavam. Desprendeu a boca da boca de Eleonora como se abdicasse do paraíso. Abraçou a pequena loira, cingindo-a ao peito, esperando que a sua freqüência respiratória voltasse ao normal.

Eleonora volitava nas nuvens. Nada do que já sonhara poderia se comparar a estar nos braços de Suzana. Sabia, com a certeza dos vaticínios do coração, de que nada jamais se compararia. Quando pararam de se beijar, Eleonora, ainda enlaçando o pescoço de Suzana, encostou a cabeça sobre o peito da mulher mais alta que, por sua vez, pousou o queixo sobre a cabeça loura com tal naturalidade, como se elas tivessem feito isso a vida toda.

Permaneceram algum tempo abraçadas, de olhos fechados. Eleonora abriu os olhos somente para mergulhar nos de Suzana e compreender que seria para sempre uma náufraga naquela imensidão azul. Então, falou com toda a intensidade dos sentimentos que assomavam o seu coração jovem e franco:

– Suzana, eu te amo.

Suzana apenas sorriu com ternura e colocou os dedos sobre a boca delicada.

– Psiu…  nós vamos conversar sobre isso. Agora… precisamos voltar. Senão, daqui a pouco, nós teremos um batalhão de salvamento invadindo o vestiário…Só não sei para salvar quem de quem – disse Suzana com aquele sorriso que deixava Eleonora completamente tonta.

– Nós precisamos mesmo? – resmungou Eleonora, fazendo um beicinho brincalhão.

– Aham – respondeu Suzana dando um beijinho rápido no lábio inferior ressaltado pela brincadeira e puxando rapidamente Eleonora pelo braço, antes que ela a agarrasse pelo pescoço novamente.

Entraram na quadra sorrindo e a equipe entendeu que tudo tinha dado certo. Eleonora voltou a treinar e, desta vez, feliz e concentrada, jogou bem. Ao final do treino, como de costume, Suzana reuniu as jogadoras.

– Meninas, na segunda-feira faremos o primeiro dos três jogos que teremos que vencer para de chegarmos à Liga Nacional. Nós temos, hoje, um time capaz de vencer este desafio e, mais do que isso, nós temos um time capaz de fazer uma bela figura na Liga e de firmar a Universidade Santa Cruz como uma força do basquete no Brasil. Acreditem, eu não falaria isso se não pensasse desta forma. Portanto… descansem bem e não façam extravagâncias. Até segunda, dezenove horas, no Ginásio Municipal.

As atletas foram saindo comentando excitadas sobre o primeiro jogo que se aproximava. Suzana chamou:

– Eleonora, espere um minuto. Quero falar com você.

A jovem armadora apenas acenou com a cabeça, concordando. O auxiliar-técnico ainda perguntou se Suzana queria mais alguma coisa ao que ela respondeu que eles fariam uma pequena reunião segunda à tarde. Ela ligaria para confirmar o horário. Enfim, ficaram sozinhas.

– Elê, eu acho que deveríamos conversar sobre o que aconteceu… sobre o que está acontecendo entre nós.

– Eu sei – concordou Eleonora.

– Bom…Nós podemos ir um lugar tranqüilo e…- Suzana não chegou a terminar a frase, um chamado vindo da porta do ginásio interrompeu-lhe, bruscamente.

– Filha!

Era a mãe de Eleonora.

– Eu estava passando por aqui e resolvi te pegar. Que tal uma carona para casa, héin? Oi, Suzana – cumprimentou D. Clarisse.

– Oi, D. Clarisse – devolveu Suzana antes de se dirigir para Eleonora. – Vá com sua mãe. A gente se fala amanhã.

– Você me liga? – perguntou ansiosa, Eleonora.

– Ligo.

– Promete?

– Prometo. Agora, vá.

Satisfeita, Eleonora saiu correndo. Mochila nas costas, cabelo loiro pulando irrequieto. A perfeita imagem da juventude saudável e despreocupada. Suzana foi andando devagar para o carro, pensando, agora sem a presença perturbadora da adorável loirinha, mais razoavelmente. Ela estava apaixonada. E, a julgar pelas sensações intensas e descontroladas que sentira simplesmente ao beijá-la, de uma forma como jamais estivera em toda a sua vida. Ela… uma mulher adulta, com uma carreira consolidada, para qual estava certa de que voltaria em breve. Uma carreira fora do país…E, agora? Pela primeira vez em sua vida ela não sabia exatamente o que fazer. Pior! Pela primeira vez em sua vida, ela sentia que o basquete poderia perder a parada para alguma coisa, alguma coisa que parecia ter sido feita para inaugurar um sem número de primeiras vezes em sua existência. Alguma coisa de extasiantes olhos verdes e com um sorriso tão encantador que se poderia cometer loucuras somente para recebê-lo como recompensa.

– Estou perdida.



Notas:



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