Luz para florescer

Capítulo 7

Suzana acordou com o som da porta da sala se abrindo. Ela demorou um pouco para processar a situação em que se encontrava até a consciência simultânea do calor do corpo aninhado em seus braços e do barulho dos passos de Camilla aproximando-se do seu quarto, transformar-lhe o despertar, repentinamente, em sobressalto. Felizmente, Camilla teve a rara sensata idéia de bater na porta do quarto antes de entrar.

– Suzie, você está aí? Posso entrar?

– Não! – a resposta saiu mais alarmada do que Suzana pretendia.

Eleonora mexeu-se um pouco, mas como uma criança que está tendo um sonho delicioso, sorriu levemente e acomodou-se um pouco mais sobre o peito de Suzana. Camilla não perguntou mais nada e, discretamente, afastou-se do quarto. Com todo cuidado, Suzana desvencilhou-se do abraço da sua pequena amante e se levantou em silêncio. Vestiu um peignoir e saiu do quarto. A amiga estava na cozinha.

– Eu sabia! Eu sabia! – Camilla riu-se deliciada. – É ele. Está lá no seu quarto. Quem é? Como se chama? Eu conheço?

– Milla, quer calar essa matraca?! – disse Suzana, já meio exasperada.

A morena alta passou a mão pela cabeleira negra, seu gesto característico de inquietação, foi até a geladeira e serviu-se de um copo de água. Camilla tamborilava os dedos na mesa de tanta ansiedade, mas aguardou calada.

– Milla, eu…Eu devia ter dividido isso com você antes. Mas…Foi tudo tão rápido e inesperado, e…Novo para mim – Suzana tomou mais um longo gole. – Eu não sei como lhe dizer.

– Pelo amor de Deus, Suzie! O que pode ser tão difícil? Por acaso, o seu namorado é um bandido procurado? Um extraterrestre? – levou as mãos à cabeça. – Ai, meu Deus! É um professor da universidade, casado, pai de família…

– Não é nada disso – interrompeu, Suzana. – Olha…O melhor é você ver por si mesma. Venha.

Camilla seguiu Suzana até o quarto, intrigada e mortalmente curiosa. Mas, o que ela encontrou, deixou-a boquiaberta: dormindo o sonho dos anjos, uma garota loira, com a nudez parcialmente coberta por um lençol sobre o torso, repousava candidamente na cama de Suzana.

– Minha Nossa Senhora!

Sentada no sofá da sala, Camilla ainda não havia conseguido retirar o ar de surpresa da face.

– Suzana…Suzana, ela é menor?

– Tem dezoito anos.

– Graças a Deus.

– Eu não estou completamente louca, Camilla.

– Ah, está sim! Doida de pedra, Suzie!

Camilla respirou com força e falou com mais calma:

– Como isso aconteceu, Suzana?

– Eu não sei dizer. Só sei que, há semanas, eu mal consigo pensar em outra coisa. Eu tentei ignorar, me distanciar, fugir…Nada adiantou. As circunstâncias, ou talvez a minha vontade…Minha mais reservada e desconhecida vontade… Enfim, tudo pareceu convergir para este final. E, eu…Não tive forças para impedi-lo.

Suzana desabou sobre o sofá, abaixou a cabeça e passou as mãos pelos cabelos quase com raiva. Camilla olhou para a mulher angustiada ao seu lado e, desta vez, afirmou docemente:

– Foi por isso que você foi embora naquela pressa inexplicável a semana passada.

Suzana anuiu com a cabeça.

– Eu precisava de algum tempo e de distância para pensar com mais clareza. Imaginei que poderia retomar o domínio das minhas emoções novamente… Com a facilidade de sempre. Como você pôde perceber, eu estava enganada.

Camilla pousou a mão sobre o ombro da amiga num gesto de solidária compreensão, no entanto, de repente, pulou do sofá como que impulsionada por uma mola e exclamou:

– Espere aí! Agora, eu estou me lembrando. Esta daí é uma jogadora da sua equipe, não é? Você me apresentou, não tem muito tempo, lá na universidade. Meu Deus, Suzana! Ela é pouco mais que uma adolescente!

– Você acha que eu não sei, Camilla? Você acha que eu não me faço este questionamento a cada minuto do dia? Acontece que eu perco totalmente o controle quando ela chega perto de mim. É inexplicável

Camilla voltou a sentar-se ao lado da amiga.

– Suzie, você é capaz de imaginar as conseqüências de um relacionamento desse vir a público? Sem mencionar as complicações óbvias relativas à sua notoriedade, como a família dessa garota reagiria? A universidade, o time, seus fãs, seus patrocinadores e contratos…Suzana, para todos os lados que eu olho, eu só vejo encrenca, minha amiga. Você precisa acabar com isso, já!

Suzana não contestou, apenas tornou a baixar a cabeça, repentinamente, frágil como uma criança. Desta vez, Camilla se assustou de verdade.

– Suzana, eu não estou te reconhecendo.

– Eu não me reconheço mais.

– A coisa mais importante do mundo para você sempre foi a sua carreira.

– Em certos momentos, como quando eu estou com ela – apontou para o corredor – eu não tenho mais certeza.

– Pois precisa ter. Ninguém vive só de momentos. Em algum instante será necessário fazer escolhas. E você não vai poder culpar esta menina se, um dia, você desabar do alto patamar que ergueu com tanto sacrifício e que, até a pouco, prezava tanto.

– Talvez eu não tenha que escolher – retrucou Suzana com um sorriso triste e pouco convincente.

– Talvez, amiga talvez – disse Camilla chegando perto da amiga e a abraçando ternamente.

Já mais calma, Suzana entrou no quarto e sentou-se ao lado de Eleonora. Suavemente, passou a mão pelos cabelos loiros e deslizou os dedos pela face jovem e delicada. Eleonora ronronou preguiçosamente e abriu os olhos.

– Oi.

– Oi – respondeu Suzana.

Eleonora curvou-se um pouco e deitou a cabeça sobre uma das pernas fortes e longas.

– Posso saber ao que a senhora estava fazendo, que não está aqui deitada comigo? – brincou a loirinha, fingindo indignação.

– A minha amiga chegou – respondeu simplesmente, Suzana.

Eleonora sentou-se rapidamente, agora com uma real cara de preocupação.

– Algum problema?

Ao sentar-se, o lençol descobriu seu tronco revelando a pele alva e aveludada, os seios pequenos e firmes, a cintura fina e o fio de pelos claros dividindo-a ao meio e descendo mais espessos a partir do umbigo para o púbis ainda coberto pelo lençol. Suzana sentiu a boca seca e desesperadamente desviou o olhar para os olhos verdes translúcidos. Perdeu-se de vez. Agarrou Eleonora num abraço ávido e se deitou rolando a pequena jogadora sobre ela e a beijando sensual e profundamente.

– Não, não há nenhum problema – respondeu Suzana, após alguns segundos, com a voz rouca de desejo.

– Bom, nesse caso, vamos ver…Huuum – Eleonora fez uma carinha marota. – Eu estou acordada. Deitada numa cama com a mulher mais linda do mundo. Sem “neeeenhum” problema. Céus, o que fazer?

Suzana embarcou na brincadeira e falou maliciosamente:

– Se você não sabe o que fazer, eu posso sair e te deixar sozinha e sossegada para pensar.

– Quietinha aí, Dona. Milagrosamente, eu acabo de ter algumas idéias – emendou Eleonora lançando um beijo faminto nos lábios cheios e bem feitos da bela morena enquanto abria o peignoir para sentir, com o coração aos pulos, o calor da pele de Suzana sob a sua.

O quarto mergulhou numa torrente de sussurros e gemidos entrecortados.

O primeiro jogo foi vencido pela Universidade Santa Cruz com relativa facilidade. Mas isso já era previsto. O grande adversário ainda estava por vir. Suzana avaliava que o último jogo seria o decisivo, pois a equipe em questão parecia ser a única capaz de tirar o seu time da Liga Nacional. Pouco falara com Eleonora desde o dia anterior com a desculpa de precisar se concentrar para a partida. A jovem pareceu compreender porque não a contradisse. A verdade é que Suzana sentia necessidade de um tempo para os próprios pensamentos e a presença de Eleonora tornava qualquer chance de ser razoável total e completamente remota. Suzana nunca havia sentido uma atração tão perturbadora em toda a sua vida. Muito menos jamais tinha permitido qualquer tipo de intromissão em seus planos sempre cuidadosamente traçados. Contudo, via-se, de repente, pensando formas de adequar a sua vida a de uma garota de 18 anos. Suzana estava mais insegura e assustada do que admitiria para si mesma.

Eleonora, ao contrário, parecia presa a uma onda de felicidade. Embalada pela confiança e o destemor próprio dos muito jovens, só enxergava que estava apaixonada e era correspondida. Não conversara com Suzana desde que ela a deixara em casa ao final da tarde do dia anterior. Não importava. Suzana tinha as suas responsabilidades. Era uma mulher adulta e uma profissional competente. Não queria que Suzana pensasse que ela era uma garota imatura que exigia atenção a todo o momento. Jogara muito bem porque jogara para ela. Agora, trocando-se após o jogo, não participava da enorme algazarra no vestiário. Só queria sair dali e estar a sós com Suzana. Ansiara por isso a cada segundo do dia.

Eleonora trocou-se numa velocidade inusitada e saiu às pressas do vestiário com a mochila cheia de roupas emboladas de qualquer jeito. Chegou ao estacionamento o mais rápido que pôde, mas, para sua decepção, o carro preto não estava mais lá.

O professor Jorge estava encostado no parapeito na entrada do ginásio. Eleonora dirigiu-se até ele.

– Professor, o senhor viu a treinadora?

– Oi, Eleonora. Sim. Ela foi embora assim que terminou a partida. Disse que tinha algo urgente a resolver e que teceria os comentários a respeito do jogo no treino de amanhã.

Não mais tão alegre como antes, Eleonora balbuciou um agradecimento e saiu caminhando. “Bom, se ela disse que tinha uma coisa urgente a fazer, é que porque deve ser algo realmente importante”.Um pouco mais resignada, Eleonora pensou que poderia pelo menos ligar para ela quando chegasse em casa e ouvir aquela voz adorada antes de dormir. Só então, a jovem atleta se lembrou de que nunca havia ligado para Suzana. Não tinha o número. “Droga”.

Suzana dirigiu uns quarenta minutos sem rumo pela cidade. Controlara-se, a duras penas, para não trair os seus sentimentos à vista de todos. Somente ela sabia da vontade enlouquecedora que sentiu de abraçar Eleonora quando a viu entrar no ginásio antes do jogo, de uniforme, brincando com as companheiras, sorrindo cheia de sua doçura inata. Feliz e absolutamente linda. Quando percebeu que estava olhando para uma de suas atletas com uma tola cara apaixonada na frente de meia universidade, fingiu ter algo extremamente interessante escrito em sua prancheta até que conseguisse se controlar e manter uma postura neutra perante a sua equipe. Não estava acostumada a se desequilibrar. Não estava acostumada a disfarçar o que quer que seja, e isso a incomodava muito.

Eleonora saiu para o pátio com a nítida impressão de não ter escutado uma só palavra do professor. Estava com uma saudade insuportável se Suzana, do seu toque, do seu beijo, do cheiro inebriante dos cabelos negros. Andou desanimada até a cantina e pediu um suco de abacaxi. Apoiou-se no balcão e ficou observando sem interesse a balbúrdia de milhares de alunos caminhando e conversando ao mesmo tempo. Foi aí que notou Carla e Gianne acenando para ela. Eles se aproximaram.

– E aí, campeã – falou Gianne, dando um sonoro beijo na bochecha de Eleonora.

Carlinha também cumprimentou a amiga com um beijo e comentou:

– É, mas para quem foi a melhor jogadora de uma vitória importante, você não está com a cara muito animada, Elê.

– Eu? Imagina! Estou animadíssima. É que foi só o primeiro jogo, né? Ainda temos mais dois para podermos chegar às finais e eu estou meio preocupada. Só isso.

– Ei, relaxa, garota – falou Gianne. – Do jeito que vocês estão jogando, aliás, do jeito que você está jogando, Elê, não tem pra ninguém. Nossa, já são 09:40, eu tenho uma reunião no C.A.. Você vem, Carla?

– Não, amor. Vá indo. A gente se encontra ao final da aula. Combinado?

– “Tá” – Gianne beijou Carla e mandou um beijo para Eleonora. – Tchau, Elê.

Carla virou-se quase imediatamente para a amiga com aquela cara de “Me engana que eu gosto”.

– Olha aqui, Eleonora Cavalcanti. Já não está na hora de me contar o que diabos está acontecendo com você?

Eleonora abaixou a cabeça um instante. Levantou-a e perguntou à amiga:

– Você pode faltar a esta próxima aula?

– Mas, nem eu tivesse prova, garota!

– Então vamos para um lugar mais sossegado.

Eleonora e Carla saíram da Universidade e se sentaram em uma sorveteria próxima ao campus, nessa hora, praticamente vazia. Carlinha pediu um sorvete de chocolate com calda de chocolate e cobertura de chocolate. Eleonora não quis nada. Carla esperou o sorvete chegar deu uma generosa colherada seguida de um suspiro de prazer e emendou:

– Estou pronta. Manda ver.

Eleonora pousou os expressivos olhos verdes sobre a melhor amiga e disparou sem maiores rodeios:

– Eu estou apaixonada por uma mulher.

Carlinha parou a colher a meio caminho da boca.

– Tô boba!

Eleonora continuou sem dar tréguas:

– Eu não estou só apaixonada. Eu estou entregue, de quatro, abestalhada. E, tem mais. Nós tivemos um fim de semana maravilhoso juntas. Mas, nós não nos falamos desde então, embora tenhamos nos encontrado ontem. Eu estou com tanta saudade dela que sinto o meu peito se dilacerar. No entanto, à medida que as horas passam, eu tenho cada vez a impressão maior de que ela está sutilmente me evitando e eu não sei o que fazer. Tenho vontade de gritar como uma louca. Por fim…Essa mulher é Suzana Alcott.

Eleonora parou a metralhadora verbal de pé, com as mãos sobre a mesa e olhando para o rosto estático e abobado de Carla que, após alguns segundos, conseguiu falar com um fio de voz:

-Desta vez, eu desmaio.

Eleonora desabou sobre a cadeira e ficou em silêncio. Carlinha não abriu a boca e se esqueceu completamente do sorvete. Com a mão apoiando o queixo ficou olhando para o vazio por um bom tempo, completamente silenciosa. Foi Eleonora quem falou primeiro.

– Você não vai dizer nada ou está ensaiando para falar alguma coisa do tipo: essa relação é antinatural, ou melhor, é contra as leis de Deus, ou ainda, como eu não pude perceber que era amiga de uma aberração pervertida…

– Cala essa boca, Eleonora! – gritou Carlinha, com o rosto bonachão, agora visivelmente irritado. Prosseguiu, falando entredentes. – Você acha que eu vou mudar com você ou fazer um discurso preconceituoso idiota porque você é homossexual? Você é a minha melhor amiga desde que eu me entendo por gente, mulher de pouca fé!… É claro, eu fiquei um pouco surpresa com a revelação…Mas, desde que você esteja feliz…- Deu de ombros. – Elê, o que de fato está me preocupando é a forte impressão, à partir do que você própria relatou, de que essa mulher vai machucá-la muito, minha amiga.

– Não pode ser, Carlinha. Foi intenso demais, bonito demais. Não há como ter sido uma mentira. Eu presenciei. Eu estava lá – Eleonora estava à beira das lágrimas e com a face jovem alterada pela angústia e a dúvida.

– Tomara, Elê. De verdade, tomara. Olha, se você está se sentindo assim, fale com ela. Se tudo foi tão intenso e lindo como você me disse, o mínimo que vocês devem uma a outra é sinceridade – Carla colocou a mão sobre a mão da amiga que tremia ligeiramente. – Você não tem treino hoje? Fale com ela.

Sentindo-se mais animada, Eleonora conseguiu dar um leve sorriso.

– É isso mesmo o que eu vou fazer – abriu um sorriso muito mais largo para a amiga. – Carlinha, você não existe.

– Menos, menos, por favor – Carlinha fez uma cara de falsa modéstia e olhou para o seu sorvete.- Ei, o meu sorvete virou suco! Sabe de uma coisa, me deu uma vontade louca de comer uma pizza.

– Sabe o que mais, amiga? De repente me deu uma fome danada. Vamos nessa – concordou Eleonora.

– Vou avisar o Gianne.



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