CONTOS DE FADA NADA INFANTIS

Manto Vermelho e a Caçadora

Manto Vermelho e a Caçadora

Era uma vez…

− Não, vó. Chega! Não vou ficar parada, sem nada fazer! O lobo está matando nossa criação de galinhas e porcos. Todos da aldeia são atacados e, ontem, Denis foi morto.

− É perigoso, minha filha. Deixe que os caçadores cuidem dele. Na vila, farão uma reunião, hoje, para pegá-lo.

− Por isso mesmo, não ficarei parada. Sei rastrear em uma caçada e manejo uma balestra como ninguém, nessa vila. Um animal desse não pode ser morto com espadas.

− Muitos são bons nas lanças, armadilhas e arco e flecha.  Você subestima todos.

− Não. A senhora é que nunca me deixou caçar esse lobo. Os homens da vila é que subestimam a mim e a Francine.

− A Francine nem é de nossa aldeia. O que ela sabe sobre o que vivemos?

− Os pais dela morreram pelas presas do lobo, vó. Eles estavam voltando para a vila deles, porém a carroça quebrou a roda e tiveram que pernoitar na floresta. Era lua cheia e o lobo os atacou. Francine se lembra de ter acordado sobre os pais, coberta de sangue. Suas vestes estavam cortadas e o corpo ferido, como se a fera a tivesse atacado, entretanto quando viu que ela estava inconsciente, a abandonou.

− Você se preocupa demais com essa garota…

− Ela me entende. Mora sozinha, desde que os pais morreram, se sustenta, caça como ninguém e não me julga.

− Essa moça vira sua cabeça. Você é jovem. Precisa sair mais na vila e conhecer um bom moço que lhe ame e lhe proteja.

− Por quê? Os rapazes que conheço da vila querem esposas apenas para cozinhar e cuidar deles. Aqui não tem homens para o que desejo fazer na vida.

− E onde tem rapazes para o que deseja?

− Em algum lugar deve existir, entretanto esse lugar não é aqui.

Emanuelle saiu, sem esperar outra réplica da avó. Trataria dos animais e partiria para a vila, para ouvir o que decidiriam na reunião.

Chegada a hora, ela saiu para se encontrar com a amiga, que lhe esperava no trajeto para a vila. As duas estavam decididas a encontrar aquele lobo que matara os pais de Francine e atacava, constantemente, a criação de animais de Emanuelle. Haviam perdido amigos também e, cada vez mais, a fúria das duas garotas aumentava.

− Minha avó não confia em mim.

− É lógico que ela confia, Elle! Eu entendo sua avó. Ela sabe que esse lobo é diferente. É esperto. O estranho é que não tem uma matilha. Lobos não são solitários, como a maioria pensa. Eles não vivem sós e esse, sim.

Emanuelle achou graça de Francine. A amiga procurava, sempre que podia, obter informações de como os lobos viviam. A morte prematura dos pais a afetou, terrivelmente.

− O que foi?

Francine perguntou, encabulada. Enquanto caminhavam, Emanuelle lhe encarava risonha. Mal sabia a garota que Francine nutria um amor platônico por ela, que jamais revelaria. Não poderia arriscar-se a perder a amizade que tanto considerava.

− Você tem olhos lindos e curiosos. – Sorriu mais aberto. − Está sempre ponderando as coisas e, quando brigo com a minha avó, você tenta fazer com que nos reconciliemos.

Um tanto acanhada, pela amiga ter dito que seus olhos eram lindos, Francine baixou a cabeça, incapaz de encará-la.

Emanuelle era mais extrovertida e muito observadora, também. Já reparara que, quando elogiava Fran, como ela costumava chamar a caçadora, esta se perdia em timidez. Aquela reação chamava a atenção de Elle e a divertia.

− Por que temos que ir à essa reunião, Elle? Não nos deixarão participar da caçada com eles, mesmo…

− Porque quero saber o que os tontos planejam e quero que você ouça. Conheço todos os aldeões e ninguém se compara a você na questão de caçadas. Você escuta e me fala se eles estão no caminho certo ou não.

− Eles me olham torto na sua aldeia. Não gosto de ir lá.

− Eles te vêem como uma adversária. Por isso te olham torto.

− Uma adversária em que?

− Você consegue caçar cervo, javali, perdiz, até no inverno. E vende a carne, tanto para o açougueiro da sua aldeia quanto da minha. Eles têm inveja. Além de conseguir mais a minha atenção do que qualquer um deles. – Emanuelle sorriu, debochadamente.

− Você é muito convencida!

Francine declarou, gargalhando. Elas costumavam brincar, fofocando sobre os homens que as cortejavam e que nenhum deles lhes interessava.

− Não sou convencida. Além do que, quem me fala que eles são todos feios e idiotas?

− E são mesmo.

− Então, me diga: como acha que nos casaremos com algum homem destas bandas de cá?

A vontade de Francine era dizer-lhe que seria muito feliz se Elle vivesse o resto da vida consigo. Faltaram-lhe palavras e engoliu em seco para não deixar escapar coisas das quais pudesse se arrepender.

Chegaram à aldeia e foram direto para a taberna do senhor Thierry onde, normalmente, ocorriam as reuniões. Estava muito cheio e o senhor Bélgio estava sobre uma cadeira, pedindo atenção e calma a todos os aldeões.

Emanuelle não gostava do senhor Bélgio. Ele sempre desdenhou seu pai por não ser um homem de armas e nem caçador. A sua família não tinha muitas posses, visto que o pai não ganhava tanto dinheiro, sendo sapateiro. Num inverno rigoroso de sua infância, os pais adoeceram e sucumbiram pela tísica. Ela foi criada pela avó e, diferente de Francine que perdeu os pais já adulta, era mais conformada com o fato.

Todavia, Emanuelle teria que aguentar o falastrão, que se apossou da palavra naquela reunião, em razão dele ser o prefeito. O fato era que o senhor Bélgio sempre desaparecia, quando os homens saíam para caçar o lobo. Na opinião da jovem, ele era um covarde que se escondia quando todos tentavam solucionar o problema que assolava aquelas bandas, há tempos.

− Temos que montar vários grupos para cobrir uma área maior!

O senhor Bélgio falou com propriedade, já que as outras incursões que fizeram, resultaram em nada. Os caçadores preferiam caçar juntos, para não dar chances ao lobo de pegar algum indivíduo desgarrado.

− E, desta vez, o senhor liderará algum desses grupos? Quanto mais gente, mais grupos poderão ser feitos.

Todos olharam para trás, para ver quem havia confrontado o prefeito. A garota vestida em manto vermelho sorria, ligeiramente, de lado, enquanto a caçadora da vila vizinha, baixava a cabeça, tentando prender o riso.

Embora a maioria dos homens concordasse com a filha do sapateiro, temiam desrespeitar o prefeito. Ele era um homem que não esquecia uma afronta. Outro motivo para não apoiarem a moça era que não aprovavam os modos de vida, tanto dela quanto da amiga. Para a maioria, elas deveriam ter aceito um dos muitos pedidos de casamento que receberam de vários rapazes das cercanias.

O prefeito corou de raiva, porém não entrou em atrito para que ela não retrucasse. Hoje em dia, sentia até saudades do finado pai da garota, pois o homem nunca tivera coragem de desacatá-lo, principalmente em público. Ignorou-a e continuou a falar.

− Quem sairá hoje? Levantem-se e fiquem à minha direita para formarmos os grupos.

Não foram muitos homens que se predispuseram a sair naquela noite. Estava frio demais, além de terem perdido um amigo na última incursão. Todos estavam com medo de morrer.

− Apenas seis homens de coragem, nesta vila? – Bélgio reclamou. – Tenho que lembrá-los que, se não matarmos este lobo, em breve não haverá comida e muito menos pessoas aqui! Esse monstro acabará conosco. Há quatro anos ele vem matando animais e a nossa gente! Lafaiete… Louis… Ninguém mais?

Louis levantou-se, envergonhado.

− Senhor prefeito, sabe que não tenho medo. Sempre fui nas caçadas, porém minha esposa está acamada há três dias e tenho que cuidar dela e de meus três filhos.

Lafaiete nem se dignou a levantar, contudo falou:

− Também sempre participei, no entanto, não quero morrer hoje. Não pelo lobo, mas de frio. Está formando uma tempestade de neve que deve cair em breve.

Francine virou-se para Emanuelle e sussurrou-lhe no ouvido:

− Esse é o mais esperto. Hoje realmente está prometendo cair uma tempestade. Não creio que um lobo sairia numa tempestade de neve para caçar.

Emanuelle assentiu, voltando-se novamente para a confusão que se formou, após a fala do rapaz.

− Silêncio! – Pediu o prefeito. – Muito bem. Então serão apenas estes seis corajosos homens que aqui estão. – Virou-se para o grupo. – Dividam-se em dois grupos e tragam a cabeça desse maldito lobo! Estarei em minha oficina, esperando notícias. Caso precisem de auxílio com alguma dificuldade, mandem alguém correndo até aqui, para que eu possa recrutar homens para acudí-los.

Desceu da cadeira, sem demora, para que suas ordens não fossem mais questionadas. Caminhou entre a multidão que murmurava amedrontada. Quando passou por Emanuelle e Francine, rosnou uma advertência para as duas.

− Tomem cuidado ao voltar pela estrada. Hoje é noite de lua cheia e já está escurecendo.

Ao escutar a advertência do prefeito, as duas amigas se entreolharam. Não tinham medo de andar à noite, entretanto, Emanuelle arrepiou-se com o aviso, interpretando o tom do homem como uma ameaça. Saíram da taberna, tomando o rumo da estrada.

− Durma na minha casa hoje, Francine.  Não gostei do tom com que aquele imbecil falou, além do mais a tempestade está se aproximando. Sinto os ventos mais fortes e, se a neve começar a cair, você não chegará em sua casa.

− Sua avó não gosta de mim. Não quero aborrecê-la.

− Ela gosta, apenas acha que nós duas somos desmioladas. – Emanuelle riu. – Não adianta querer combater a natureza; você mesma insinuou na taberna que essa tempestade era perigosa.

− E é. Veja.

Francine apontou o céu no horizonte e, apesar da noite ainda não ter caído completamente, a escuridão já cobria a paisagem pelas nuvens que se aproximavam da cidade.

− Lá, onde essas nuvens estão, está nevando e o vento forte as conduzirá até aqui. Trará muito frio e uma neve espessa. Esses rapazes tolos, estão se colocando em perigo, ao sair hoje.

− Então, não discuta comigo. Vamos direto para a minha casa. Não quero te perder hoje, embora tenha dias que gostaria que você sumisse.

Emanuelle implicou com ela e gargalhou.

− Olha quem fala! Você que, na maioria das vezes, me procura para ajudá-la com algo e eu sempre me encrenco, como está acontecendo hoje. − Francine empurrou a amiga com o ombro e continuou a falar. – Parece até que está apaixonada por mim.

A caçadora devolveu a provocação, fazendo a amiga puxar o capuz do manto vermelho para cobrir a cabeça, disfarçando o sorriso, que tentou conter mordendo o lábio.

A neve começava a cair e Francine também cobriu a cabeça com o capuz do manto de couro que lhe cobria os ombros, contudo escutou um barulho vindo dentre o meio dos pinheiros, na margem da estrada. Parou, segurando o braço de Emanuelle.

− Tem algo nos espreitando.

A caçadora sussurrou para a amiga, empunhando a balestra que trazia consigo.

− Sabia que aquele canalha não faria uma ameaça em vão.

Emanuelle reclamou, igualmente aos sussurros, referindo-se ao senhor Bélgio.

− Não é um homem que nos espreita, é um animal. Escuto as passadas e são leves e cadenciadas.

Emanuelle nunca conseguiu aguçar a audição, como Francine fazia, porém confiava, plenamente, nas habilidades da amiga.

− Me acompanhe devagar. Vamos para a segurança das árvores. Estamos expostas demais aqui na estrada.

Francine foi recuando, de costas, para a outra margem da estrada e Emanuelle a acompanhou, se colocando de prontidão com a sua própria balestra em punho. Não era tão habilidosa para escutar os sinais em uma caçada, contudo tinha uma pontaria tão boa quanto a caçadora.

Quando chegaram próximas às primeiras árvores, Francine empurrou a amiga para trás do abrigo do tronco frondoso de um grande pinheiro. O animal saiu da proteção das árvores e atravessou a estrada em um átimo de segundo, rosnando furiosamente. Francine disparou a balestra e gritou:

− Vai!

Empurrou a amiga para uma corrida desenfreada. Era muito diferente caçar um animal daquele tamanho e ser caçado por ele. Em um confronto direto, àquela distância irrisória, deixavam-nas em uma desvantagem cruel.

A caçadora olhou para trás e não conseguiu divisar o lobo, todavia não parou de correr.

− Temos que achar um abrigo ou não teremos chances!

Francine gritou. A nevasca começava a cair e as rajadas de vento, que antes não eram mais que uma brisa, agora açoitavam, com força, os corpos das duas garotas.

− Eu conheço uma gruta próxima daqui, mas ficaremos encurraladas.

− Não ficaremos. É nossa melhor chance. Estamos num campo aberto e ele tem liberdade para atuar.

As botas estavam pesadas pela umidade e pela neve. O lobo não as acompanhava, causando estranhamento à caçadora. Sabia que tinha machucado o animal, porém não mortalmente. Viu, quando atirou, que a flecha atingiu de raspão a coxa do lobo. A reação normal seria ele se enfurecer e atacá-las mais veementemente.

Chegaram à gruta e entraram, sem nem ao menos averiguar se era segura. Não era grande e havia uma única abertura, facilitando a vigia.  Havia madeira em um canto. Outros caçadores deviam tê-la utilizado para se abrigarem em outra ocasião e elas agradeceram aos céus por essa dádiva. A neve já caía pesada e gelava o ar, mesmo no interior da gruta.

− Espero que ele tenha desistido de nós.

Emanuelle expressou sua vontade, ainda recuperando o fôlego pela corrida insana.

− Não conte com isso. Ele está ferido e procurará abrigo também. – Francine sacudiu a cabeça, sem compreender as ações do lobo. – Lobos não caçam sozinhos e, muito menos, atacam sem ter fome ou sem se sentirem ameaçados. Eu não entendo…

− Esse lobo é uma besta feroz, Francine. O que há para compreender?

− As ações dele não são normais.

− Ele matou seus pais, mas parece que você o admira.

− Não é isso. Somente não o entendo, pois, desde que fomos atacados em nosso acampamento e meus pais morreram, tentei saber tudo que podia sobre lobos, para compreender por que ele nos atacou. Simplesmente nada nesse lobo faz sentido. E lhe respondendo, quando soube mais da vida dos lobos, passei a admirá-los. São criaturas fantásticas.

− Podem ser, contudo, este está nos caçando e não gosto da possibilidade de morrer.

Emanuelle falou, se encaminhando até as toras de madeira secas para pegá-las e fazer uma fogueira para aquecê-las. Quando se aproximou, escutou um rosnado feroz e viu olhos grandes a lhe espreitar, em meio à escuridão do fundo da gruta.

Gelou dos pés à cabeça, paralisando os movimentos. O lobo chegara a gruta antes delas, talvez fugindo da tempestade, ou mesmo por ter se ferido. O eco do grunhido do animal reverberou, causando arrepios na moça de manto rubro. Emanuelle engoliu em seco e Francine se aproximou dela, lentamente, até ficar lado a lado com a amiga.

− Fique calma. Se ele quisesse nos atacar, já o teria feito.

− Você mesma disse que ele não age conforme a maioria dos lobos.

Emanuelle contestou.

− Pegue a madeira devagar e faça a fogueira.

Francine comandou, agachando. Ela tentava ver o lobo, mas a escuridão não permitia. Emanuelle ajeitou o manto, numa tentativa de se acalmar. Se a caçadora achava que não tinha perigo, ela tentaria aceitar a posição. Confiava, plenamente, em Francine.

O lobo continuava rosnando, contudo não se levantava.

− Ele está ferido.

− E…?

− Deveria reagir nos atacando e não o faz. Por quê?

− Ótimo para nós.

Emanuelle respondeu, temerosa. Admirava a coragem de Francine ao encarar a fera, sem ao menos ter a balestra nas mãos. A caçadora tinha somente a faca de caça na bainha de seu cinto. Pegou a madeira, forçando a calma e fez um monte. Depois colocou palha seca no meio, para tentar atiçar o fogo com as pederneiras que sempre levava em uma boceta.

− O que há com você? Quem lhe maltratou?

Francine perguntava ao lobo, pensativa, como se a fera pudesse lhe responder. A única resposta que obtinha, eram rosnados raivosos, no entanto, o lobo não saía do lugar.

− Ele tem medo de nós.

Por fim, Francine falou, levantando-se calmamente. O fogo começava a arder, iluminado parcialmente a gruta. Ela começou a vasculhar reentrâncias entre as rochas, fazendo tocaias. Capturou três roedores, os despelou e começou a assá-los no braseiro.

− Não acho que vou comer isso. Não tenho tanta fome assim e, se até amanhã, quando a nevasca passar, esse lobo não tiver nos comido, voltarei para casa e comerei um bom ensopado de galinha.

Francine riu, sabendo que a amiga estava apavorada, por estar na mesma caverna da fera, que assustava o lugarejo.

− Não é para nós. É para ele.

Francine se levantou, levando consigo o assado num espeto. Foi segurada pela amiga.

− Tem certeza do que está fazendo? Não quero lhe perder, Francine. – Falou e, pela primeira vez, se encabulou, diante da amiga. – Bem… não quero morrer hoje, também.

Francine a fitou, e se felicitou com o que viu nos olhos da garota de manto vermelho. Havia muito amor e esperanças, afinal. Voltou de súbito e selou os lábios rubros da amiga, com um beijo tímido e amoroso. Emanuelle inspirou fundo, no beijo tão ansiado e agarrou a cintura da caçadora, arrebatando um beijo mais profundo. Separaram-se e se miraram com olhos felizes.

Todas as dúvidas de ambas estavam respondidas.

− Não morra, principalmente agora.

A garota de manto vermelho ordenou à caçadora, que sorriu, sentindo um calor acalentador em seu coração.

− Não morrerei.

Francine retirou o assado do espeto, confiante de que poderia se entender com o lobo. Caminhou até a fera, que agora podia ver completamente, diante da luz que emanava da fogueira. Agachou frente à ela e estendeu-lhe a comida.

− Não quero lhe fazer mal.

Naquele momento, pôde observar o ferimento do lobo. A flecha havia atravessado a coxa. A dor devia ser grande e ele estava impossibilitado de se levantar.

A noite foi longa. Francine levou várias horas, até conseguir se aproximar o suficiente do lobo, para ele aceitar a comida e para que a deixasse retirar a flecha e limpar a ferida. De manhã, a nevasca havia passado e o solo, apesar de fofo pela neve recente, dava condições para que saíssem da gruta.

Elas caminhavam mais calmas. Emanuelle ainda temia a presença do lobo, entretanto ele as acompanhava, mancando, como se fosse um animal de estimação.

 − Alguém o treinou. – Francine falou de súbito, reparando o animal. – E o maltratou muito para isso. É a única explicação.

− Está querendo dizer que todos esses ataques foram conduzidos por alguém e que esse lobo age por conta do dono?

− Exatamente. Ele está confortável com a gente, porque cuidamos dele. Provavelmente, foi tirado da matilha quando ainda era um filhote e foi adestrado a fazer o que faz.

Emanuelle parou, olhando para o lobo que as acompanhava. Ele também parou. Mirava ao longe, voltando seus ouvidos e olhos grandes para todos os lados, como se vigiasse o perímetro. Era um animal magnífico! Grande e corpulento.

A garota ajeitou o capuz rubro sobre a cabeça. O clima ainda era hostil, pois o vento frio as açoitava no retorno para casa. Emanuelle imaginou dividindo a vida em uma cabana com Francine e cuidando daquele belo animal.

Agachou-se e estendeu a mão em direção a ele.

− Vem aqui…

O lobo se aproximou desconfiado, mantendo a cabeça baixa. Ela deixou que ele cheirasse a sua mão enluvada e logo a seguir, retirou a luva para que ele a sentisse. O animal grunhiu feliz, abaixando-se e rastejando até ela, virando a cabeça para que fosse acarinhado. Ela sorriu e, finalmente, deixou seus temores de lado, acariciando as orelhas e o focinho do lobo, que recebeu a carícia com alegria.

− O que faremos agora? Ele não é mau e estão caçando-o.

− Pois eu digo que ele é comandado por alguém. – Francine declarou. – Vamos mandá-lo embora e ele nos levará até seu dono.

− Coitado! Ele voltará para a casa de quem o maltrata!

− Por um dia apenas. Veremos quem o comanda e levaremos os aldeões até o verdadeiro monstro.

E assim fizeram. Manto Vermelho e a Caçadora exortaram o lobo a voltar para casa. Seguiram-no e qual foi a surpresa! Ele as levou direto para o cativeiro que o abrigou durante três anos. Era a cabana que o prefeito tinha na beira do rio.

Ficaram escondidas entre as árvores observando, durante um tempo, até que Bélgio apareceu. Ele açoitou o animal, que se encolheu, diante da surra que levava.

− Ele o controla, a partir do medo. Por isso não nos atacou, quando demonstramos carinho e cuidados com ele.

− Ei, peraí! Você levou a noite toda para que ele aceitasse que chegasse perto. − Emanuelle retrucou.

− Porque ele tinha medo. Lobos não têm medo. Se ele tivesse crescido com a matilha, para início de conversa, nem teria vindo atrás de nós, ontem à noite, com a tempestade chegando. E  depois, por seus instintos naturais, quando ferido, tinha nos atacado em defesa própria. Esse animal não tem defesas e, muito menos, age por instinto ou vontade própria. Faz o que é ordenado fazer.

− Acha que…

− … Esse homem o capturou e o adestrou na base de confinamento, maus tratos e medo. O lobo mata a quem é ordenado matar.

− Mas e seus pais? Por que o senhor Bélgio quereria matá-los?

− Meu pai era o prefeito de nossa aldeia. Viemos para cá, naquele dia, convidado pelo senhor Bélgio. Ele queria conversar sobre algo relacionado ao arrendamento da madeireira de nossa vila. Meu pai não concordou, porque se nossa aldeia permitisse que ele arrendasse a nossa madeireira, teríamos que pagar mais pela madeira manufaturada para a construção de casas dos aldeões, já que o senhor Bélgio é dono da madeireira daqui da sua vila.

− E ele conseguiu arrendar depois da morte de seu pai?

− Não. O novo prefeito era amigo de meu pai e concordava com ele.

Emanuelle ajeitou o capuz do manto vermelho sobre a cabeça, tentando conter a raiva que cresceu dentro dela. Aquele homem usou um animal para matar e controlar pessoas inocentes e subjugar os aldeões na base do medo. Por fim, falou:

− Vamos. Tenho uma ideia. Ele pagará pelo que fez.  

As duas garotas foram até a aldeia e pediram para o taberneiro convocar os aldeões. Contaram o que passaram durante a noite e o que descobriram sobre o lobo e o senhor Bélgio. Muitos não queriam crer na história, enquanto outros, como Lafaiete, acreditavam ser possível, pois discordavam e desconfiavam das atitudes do prefeito, há algum tempo.

Convencidos, principalmente, pelo lenhador Lafaiete, que era um homem sensato, resolveram averiguar. Chegaram à cabana do rio com foices, arcos, malhas de sova de trigo e tudo com que pudessem defendê-los de uma besta feroz.

Qual não foi o espanto de terem sido enganados, por tantos anos, pelo prefeito! Não houve clemência. Homens bons e amigos haviam morrido naquela noite, por culpa da tempestade. Senhor Bélgio não escapou da fúria de seus feudatários. Os aldeões, de posse das armas que, comumente, utilizavam na labuta diária de sua subsistência, cercaram o prefeito e, como uma turba revoltada, não o deixaram escapar das pauladas, açoites, decapitação e esquartejamento com as foices.

O espetáculo de horrores quase se estendeu ao lobo que foi, prontamente, defendido pelas duas garotas. Elas se interpuseram na frente, para que os aldeões não o matasse.

− Não! Ele não tem culpa!

Gritou Francine.

− Ele é bom. Só obedecia àquele monstro.

Emanuelle arrematou, abrindo seu manto vermelho na frente, para esconder o animal da vista da multidão. Foi quando o contraste da neve e a cor do manto da garota, junto ao sangue derramado do ex-prefeito, fez os aldeões pararem e se atinarem para o que haviam feito.   

− O que sugerem que façamos com ele? − O senhor Lafaiete perguntou. − Sei que ele não tem culpa, diretamente, todavia foi ensinado a matar.

− Nós tomaremos conta dele. Não o deixaremos fazer nada de mau, novamente. Ele não pode voltar para a floresta, porque não tem mais uma matilha, contudo ele é obediente e, se estiver conosco, não voltará a matar.

− Tudo bem, mas se ele sair da linha, nós o caçaremos.

O lenhador decretou, recebendo aprovação de todos. Naquele momento, se estabelecia o novo dirigente da vila.  

O lobo maltratado, há três anos, pelo ex-prefeito cruel, foi acolhido por Emanuelle Manto Vermelho e Francine a Caçadora.

A vida da aldeia se transformou. Francine vendeu a casa dela e  mudou-se para a casa de Emanuelle. A avó não gostou muito do arranjo, a princípio, mas, com o tempo e a convivência, passou a respeitar a garota, pois via a felicidade da neta. Emanuelle sempre sorria quando estava perto da Caçadora.

A avó de Emanuelle faleceu anos depois, logo após o lobo morrer de velhice. A velha senhora havia se apegado ao lobo, como a um filho e não suportou a perda.

E assim, Manto Vermelho e a Caçadora viveram felizes juntas, amando-se e compreendendo que um lobo não é um monstro. O verdadeiro monstro está dentro de pessoas que temem o que não conhecem e de tantas outras que fazem da habilidade de pensar uma arma para subjugar a vida de outros.

Fim… Dessa história.



Notas:



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