O que o soldado de Zaidar disse era verdade. Eles tinham direito sobre o garoto, visto que ele era um escravo do seu reino. Se estivesse em terras zaidarnianas, Rall entregaria o rapaz para eles sem pensar duas vezes, embora fizesse isso com um grande pesar.

Contudo, aquela floresta pertencia a Cardasin, um reino que estava muito longe de se tornar um lugar que respeitava a liberdade plenamente, entretanto, nunca se apoiou nas costas de escravos.

— Já chega dessa história. Nosso trabalho é levar esse moleque fujão de volta para as minas. Se quer tanto protegê-lo, velho, então se prepare para a morte.

Rall suspirou, ciente da desvantagem em que se encontrava e do problema que arranjou. Contudo, não entregaria o menino sem lutar. Não quando ele próprio já tinha vivenciado a dor dos grilhões nos pulsos, quando as Ilhas Lester ainda estavam sob o domínio do Reino de Everes. Felizmente, Everes passara por fortes mudanças políticas e já não era um reino escravocrata, assim como as Ilhas Lester tinham conquistado a liberdade.

Ele passou os olhos pelo lugar, rapidamente, enquanto o soldado avançava mais um passo. O ar se tornou mais pesado com a perspectiva do derramamento de sangue. Porém, Rall tinha outros planos. Os soldados mostraram-se surpresos, quando ele ergueu o arco, mudando o alvo. Rall atirou a flecha para o alto. A seta atravessou a folhagem resvalando em um galho fino e, assim que ela atingiu seu objetivo, um vespeiro despencou entre os soldados.

Aproveitando a confusão que se instaurou, o velho segurou o pulso do rapaz que tentava defender e correu.

Os gritos dos homens acompanharam os dois, por algum tempo. Depois disso, tudo o que eles conseguiam ouvir era o bater forte dos seus corações e as folhas e gravetos sendo esmagados sob seus pés. Rall olhava sobre o ombro sempre que possível, mas não havia sinal de que estivessem sendo seguidos. Contudo, ele não diminuiu o passo e incentivou o rapaz a fazer o mesmo.

— Não pare, garoto! — Disse o velho, quando notou o cansaço do rapaz.

Entretanto, foi inevitável não reduzirem as passadas. Embora fosse bastante vigoroso, Rall não era tão veloz quanto na juventude. Já o seu jovem companheiro estava tão abatido, que conseguir chegar tão longe poderia ser considerado um milagre.

Algum tempo depois, atingiram uma pequena elevação. Enquanto tentavam recuperar o fôlego, Rall reconheceu o local onde estavam. Havia passado por ali uma dezena de vezes em sua busca pela nascente. Poucos metros os separavam de um barranco, cuja altura poderia proporcionar uma morte bastante dolorosa a um desavisado. Ele mesmo quase caíra ali, em seu primeiro dia naquela parte da floresta.

Ele deslizou a mão para o cabo da espada na cintura, quando percebeu os primeiros sons dos soldados. Os homens não tinham desistido da sua presa, apesar de feridos. Para decepção de Rall, poucos tinham sido picados, mas a ausência de dois dos soldados indicava que a sua artimanha com as vespas não foi infrutífera.

Ledo engano.

Rall começou a planejar sua nova rota de fuga um segundo antes de perceber que os dois soldados ausentes estavam a poucos passos dele. Os homens tinham dado a volta no terreno, enquanto seus companheiros serviam de distração. Rall jogou-se no chão, arrastando o garoto consigo, quando a machadinha de um deles atravessou o ar e fincou-se na madeira da árvore em que estivera se apoiando.

Dessa vez, o embate foi inevitável.

O velho trocou golpes com os dois homens, mostrando-se um adversário difícil. Com efeito, Rall os teria deixado gravemente feridos, se os amigos deles não estivessem tão próximos. Ele se viu no meio de um círculo de homens raivosos, que não estavam dispostos a lhe dar uma chance de duelar honradamente. Em vez disso, alguém o golpeou na cabeça e ele tombou para a frente.

A dor se espalhou e o sangue morno escorreu pelo seu pescoço, enquanto era arrastado e colocado de joelhos. Ele piscou algumas vezes, tentando se situar num mar de rostos borrados. Sentiu um forte enjôo, porém não chegou a vomitar.

— Você pediu por isso, Velho! — Disse o líder do grupo, parando diante de Rall com a espada em mãos.

O velho fez um esforço para abandonar o mal-estar e se concentrou na face dele. Viu-se encarando um rosto deformado, bem diferente daquele que confrontou antes de liberar a fúria de centenas de vespas sobre ele. Um dos olhos do homem estava tão inchado, que mal podia ser visualizado.

— Zaidar não tem piedade daqueles que se intrometem em seu caminho. — Declarou o soldado, pressionando a ponta da espada na garganta de Rall.

— Você vai descobrir que Cardasin também não tem. — Rall declarou, pensando em Lenór.

A imagem da comandante e de Gael passaram pela mente dele naqueles últimos momentos. E, quando acreditou que a sua jornada naquele mundo tinha chegado ao fim, o rugido de um animal selvagem se espalhou pelo lugar, plantando o medo nos corações de todos.

Os homens olharam em volta, mas não havia nada a vista. Um rosnado baixo os fez se voltarem para a mesma direção. Uma moita mexeu-se suavemente e um soldado corajoso se aproximou dela, enquanto os outros voltavam a se armar.

O soldado ergueu a espada, levando a outra mão para afastar a folhagem. Antes que completasse o movimento, uma fera saltou sobre ele, deixando o rastro sanguinolento das garras em seu peito, antes de saltar sobre outro soldado e abocanhar o braço dele. O grito do homem se elevou entre as árvores e nova confusão tomou conta dos zaidarnianos.

Novamente, Rall viu uma chance de fugir. Enquanto alguns soldados se dispersaram pela floresta, outros, entre eles seu comandante, partiram para cima da fera.

— Corre, garoto! — Rall ordenou, porém, quando buscou o rapaz com o olhar, descobriu que ele já tinha se adiantado em direção aos arbustos que encobriam o barranco.

Rall correu para ele, tentando impedí-lo de cair para a morte. Agarrou o seu braço com força, mas já era tarde demais. O rapaz já tinha pisado em falso e caiu, levando Rall consigo.

 

***

 

Lenór pousou a mão na mesa, curvando-se em direção ao Tenente Darilo.

— Você não vai gostar do que vai lhe acontecer se ele estiver morto, Zaidarniano.

O homem ergueu o olhar para ela, que deixou escapar uma careta de repulsa diante do seu aspecto. O inchaço do olho picado por uma vespa, havia aumentado na última hora e se espalhado pelo rosto e pescoço. Agora, ele apresentava certa dificuldade para respirar. Não bastasse isso, tinha vários cortes e arranhões pelo corpo e as vestes não passavam de farrapos.

— Não sabíamos que o velho era seu servo, Comandante. — Ele respondeu, claramente irritado por ter de se explicar para uma mulher, como se fosse uma criança. — Além disso, se ele não tivesse se intrometido, não estaríamos aqui e nessas condições. O garoto é um escravo fugitivo. É o nosso trabalho capturá-lo e levá-lo de volta para Zaidar.

Vanieli, que assistia o diálogo em um canto de parede, percebeu a fúria assassina que tomava a esposa, ainda que ela estivesse se segurando bastante. Temeu que fizesse uma besteira.

Depois que ela e Adel a alertaram sobre a possibilidade de algo estar acontecendo na floresta, a Comandante contou que Rall estava “caçando” naquele dia e partiu imediatamente à procura do amigo em companhia da daijin, deixando ordens para que o capitão Elius fosse ao seu encontro com alguns homens. Em pouco tempo de caminhada pela floresta, se depararam com o grupo de soldados zaidarnianos às voltas com uma fera que, assim que percebeu sua chegada, tratou de escapar mata adentro.

Ainda desnorteados com o que se passou, os zaidarnianos não ofereceram resistência ao serem “convidados” a irem para o Castelo do Abismo, visto que se encontravam muito necessitados dos cuidados de um curandeiro.

Após receberem o devido auxílio, Lenór ordenou suas prisões e o Tenente Darilo foi levado para interrogatório.

Darilo não se importou em responder as perguntas dela com sinceridade, embora estivesse muito ofendido com a prisão.

— Se me permite, uma mulher como você não deveria fazer tanto caso pela vida de um servo.

A declaração fez com que Vanieli passasse uma mão na face, ainda mais temerosa de que Lenór abandonasse seu sangue frio. Naqueles meses de convivência, ela percebeu logo que, quando o assunto era o bem-estar de Gael e Rall, a comandante tornava-se uma mulher de emoções à flor da pele. Exatamente por isso, ela pediu que Rall se passasse por seu servo e, assim, se mantivesse seguro e longe de seus inimigos junto com o filho.

— O Castelo do Abismo está cheio de servos, Tenente Darilo. — Lenór respondeu, surpreendentemente calma. — As vidas deles e de todos que habitam este lugar, estão sob minha responsabilidade. Meu dever, meu povo! Se ferir qualquer um deles, estará ferindo a mim. Compreende?

A declaração promoveu ares de satisfação nos dois soldados parados junto à porta. Por mais que Lenór não fosse popular entre os homens que comandava, conquistava seu respeito aos poucos, embora a resistência pelo seu gênero e métodos de treinamento ainda estivesse bastante presente.

— A verdadeira questão aqui, é que vocês não deveriam atuar deste lado da fronteira. Estas terras pertencem a Cardasin. – O capitão Elius colocou, tão indignado quanto Lenór.

— Não estávamos fazendo nada de errado. – Defendeu-se Darilo. – Nós temos autorização para procurar fugitivos nestas terras. Lorde Taniel nos deu permissão.

Lenór endireitou o corpo, pousando a mão no cabo de uma das suas espadas. O gesto pareceu ameaçador aos olhos de Vanieli, embora a esposa não tivesse se mostrado agressiva. Na verdade, fora um movimento bastante lento, como se a comandante estivesse tomando um momento para ponderar sobre como responder a declaração do estrangeiro.

— Lorde Taniel não manda neste lugar, eu mando. – Ela pontuou, cada vez mais irritada.

Sua vontade era de bater nele até que contasse o que aconteceu com Rall. Contudo, mesmo que o tivesse feito prisioneiro junto com seus homens, a situação ainda exigia um pouco de diplomacia. Afinal, Zaidar e Cardasin sempre mantiveram boas relações, além de seu atual rei ser um primo distante de Mardus.

— Lorde Taniel deveria se limitar a governar sua própria província, já que nunca se interessou em expandir seus domínios até o Castelo do Abismo, assim como outras províncias vizinhas.

Ela puxou uma cadeira e sentou-se.

— E, já que estamos falando nisso, Tenente, ele também não tem o direito de permitir sua caçada por lá.

O seu tom, embora tranquilo, incomodou o soldado estrangeiro.

— Com todo o respeito, Comandante, só porque está usando um uniforme da Guarda Real, não quer dizer que pode passar por cima das vontades de um lorde.

Um sorriso debochado, transformou as feições sérias de Lenór. Contudo, foi Vanieli quem respondeu o homem. Ela chegou perto da esposa e descansou uma mão sobre o seu ombro.

— Me pergunto se a sua ignorância sobre os acontecimentos recentes em Cardasin é mesmo sincera, Tenente, ou se está apenas tentando jogar conosco. Ainda que você venha de outro reino, está alocado na fronteira com as terras do Castelo do Abismo. Sabe bem que a minha esposa é um dos três Comandantes Gerais do Reino, o que, na prática, a faz mais poderosa e influente do que os líderes dos Clãs. Então, sim, a vontade dela pode ser maior que a de um lorde, principalmente, se envolver a segurança do reino.

Darilo a encarou pela primeira vez, desde que entrou naquela sala. Mesmo seu rosto estando deformado pelo veneno das vespas, foi possível perceber seu desagrado pelo contato das duas.

— Você não gosta disso, não é? Duas mulheres casadas e postas em uma posição bastante confortável neste lugar. – Ela fez um carinho no ombro de Lenór, apenas para provocá-lo. – Você não está sozinho nisso, mas é melhor se acostumar. Cardasin está mudando e nós viemos para ficar. E já que essas mudanças lhe desagradam tanto, você poderia nos poupar tempo e contar o que aconteceu com Rall, para que possamos lhe permitir o retorno para Zaidar rapidamente e aliviar esse peso no seu coração.

O homem se recostou na cadeira, deslizando um dedo sujo de sangue pelo inchaço no pescoço. Soprou uma pequena quantidade de ar, antes de voltar a falar.

— Eu não sei o que aconteceu com o seu servo. É a verdade. Quando o alcançamos e ao escravo, fomos atacados por aquele bicho. No meio da confusão, eles fugiram. É tudo que posso lhes dizer a respeito.

A satisfação de Lenór ao ouví-lo só foi notada por Vanieli, que por estar tocando-a, percebeu a tensão abandonar seus músculos.

— Agradeço a colaboração. — Disse a comandante, olhando para além da única janela no cômodo. — A noite se aproxima. Você e seus homens são bem-vindos a pernoitarem na segurança dos nossos muros. Contudo, estarão sob vigilância e assim que o dia raiar deverão partir.

Ela ficou de pé.

—  Vá e não volte sem ser convidado, Tenente.

O estrangeiro a fitou por um instante longo, antes de se decidir a ficar de pé, também.

— Como desejar, senhora. Agradeço por sua compreensão e pelos cuidados que nos prestaram.

— O capitão Elius irá escoltá-lo até Zaidar.

Afastou-se em direção a porta, junto com a esposa. Antes de cruzá-la, voltou-se para olhar o tenente uma última vez.

— Cardasin não tem escravos, Tenente. Embora nossos reinos mantenham uma relação amigável, não concordamos com a escravidão e sofrimento que vocês impõe ao seu próprio povo. Isso posto, saiba que todo homem e mulher que esteja dentro dos limites deste reino é livre. Capture seus escravos antes que cruzem a fronteira, se quiser mantê-los com grilhões.

 

***

 

Rall encarou o rosto aliviado de Lenór por um minuto inteiro, antes que ela se manifestasse perante a sua narrativa. O velho parecia ter saído de um embate contra uma manada de touros selvagens e o rapazinho que o acompanhava não se mostrava com aparência melhor.

Eles tinham chegado ao castelo em companhia de Adel, pouco depois da conversa de Lenór com o Tenente Darilo. A daijin tinha ficado na floresta, a fim de investigar o paradeiro de Rall. A noite começava tomar conta da mata, quando eles se encontraram.

— E foi isso que aconteceu. — Rall concluiu, entregando mais um copo d’água para o rapaz.

Como havia se tornado um costume entre eles, a conversa se desenrolava nos aposentos da comandante, único lugar no castelo onde podiam garantir total privacidade. Além dela e Vanieli, Adel e Elius também estavam presentes.

— Qual o seu nome? — Vanieli indagou para o jovem amigo de Rall.

Enquanto ele se balançava, claramente temeroso de dar a resposta, viu-se alvo do olhar perscrutador de Lenór. A comandante o avaliava com tamanho interesse, que sequer se deu ao trabalho de disfarçar.

— D-Devron. — Respondeu ele, finalmente.

— Quero ouvir sua história, Devron. — Lenór informou. — Todavia, está ficando tarde e vocês dois tiveram um dia bastante agitado. Você poderia fazer a gentileza de cuidar dele, Adel?

A serva fez um gesto afirmativo e saiu do quarto levando o garoto consigo. Vanieli observou a porta fechada por um momento, tentando interpretar o significado da troca de olhares que havia acabado de ocorrer entre a sua esposa e a daijin. Embora não tivesse alcançado a resposta completa, estava certa de que a comandante não se satisfez com a aparência sofrida do jovem.

Depois da noite da fogueira, Lenór havia se tornado ainda mais atenta às pessoas que as rodeavam, principalmente, aos recém-chegados ao seu convívio.

— Foi uma aventura e tanto, meu velho. — Disse Elius com um sorriso breve.

— Ah, nem me fale! Achei que aquele desgraçado zaidarniano ia conseguir me matar. — Rall passou a mão no pescoço de forma afetada, então riu baixinho.

— Você teve muita sorte. — Vanieli afirmou.

— Dizem que ela acompanha os tolos. — Lenór alfinetou, ainda às voltas com o medo que sentiu pelo bem estar do amigo.

 Rall passou a mão na cabeça, sem graça.

— Eu mereço. — Admitiu. — Mas estou certo de que você não teria feito diferente.

A comandante não retrucou, em vez disso, passou um momento a contemplar o fogo na lareira e Elius acabou por dar voz aos seus pensamentos.

— Toda essa confusão não foi em vão. Na verdade, nos serviu de alerta.

— Soldados de Zaidar vagando pelos nossos domínios sem nada a temer, ainda mais em uma parte da floresta que, supostamente, é habitada por maus espíritos. Sim, isso é um grande sinal de alerta. — Concordou Lenór. — Tenha cuidado amanhã, Elius. Observe tudo que estiver ao alcance dos seus olhos com cautela.

— Assim será. — Garantiu o capitão, já se preparando para partir.

— Faça com que o tenente Vick e seus homens sigam vocês de uma distância segura e imperceptível.

Elius se mostrou incomodado com a ordem.

— Acredita que possam atentar contra nós, Comandante?

Lenór tamborilou os dedos no braço da cadeira que ocupava, deixando a vista uma expressão que beirava incredulidade com a pergunta.

— Diante dessa atmosfera carregada de segredos, acontecimentos estranhos e histórias duvidosas, acredito que estar prevenido para eventuais circunstâncias é o mais indicado, Elius. Lembre-se do que nos aconteceu no caminho para cá.

O capitão inspirou fundo concordando com o seu raciocínio. Garantiu que cumpriria sua missão de acordo com o que lhe foi ordenado, despediu-se com uma reverência breve e saiu do quarto.

O crepitar do fogo prendeu a atenção do casal por alguns instantes, antes de Rall limpar a garganta e chamar sua atenção.

— Devo concordar com Elius. — Disse ele, fungando um pouco antes passar a mão na cabeça e descobrir que havia um pequeno graveto preso aos fios ralos e brancos. — Essa confusão não foi de todo ruim.

A sobrancelha de Lenór formou um arco perfeito na testa e ele riu, dando um tapinha na própria perna.

— Sabe, quando aquele garoto e eu caímos naquele barranco, pensei que estava morto. Mas eis que uma coisa muito estranha aconteceu. Na metade da queda o barranco desapareceu. Bem, não literalmente. O fato é que rolamos por ele até alcançar uma parte onde havia uma grande quantidade de plantas. Ao passar por ali, elas cederam e nós caímos dentro de uma caverna.

Ajeitou-se na cadeira, rindo da própria sorte.

— Lugarzinho um pouco assustador, — ele admitiu com uma careta — mas deveras interessante. O motivo de não ter encontrado a nascente durante todo esse tempo, é porque a danada é subterrânea.

 

***

 

A madrugada chegou fria e chuvosa. Lenór atirou um pedaço de madeira para reavivar o fogo da lareira e retornou para a cadeira diante desta. O sono a tinha abandonado naquela noite, ante todos os acontecimentos do dia que se passou.

A profusão de pensamentos não lhe permitiu relaxar. Deixou o leito para desfrutar um cálice de vinho na esperança de que este a ajudasse a dormir. Doce desejo, que não se concretizou. Já estava no terceiro cálice da bebida e o sono não se aproximara.

Ouviu Vanieli murmurar algo em meio ao sono agitado e ergueu-se. Foi até a cama, ciente do que estava por vir. Enquanto se aproximava, a esposa começou a gritar e se debater. Lenór a segurou com força, a fim de evitar que se machucasse e não tardou para Vanieli despertar.

— Respire. — Disse Lenór, puxando-a para si.

A moça tremeu entre seus braços e lágrimas lhe escaparam. Era mais uma noite de pesadelos para Vanieli.

— Me desculpa… — Vanieli balbuciou com o rosto enfiado no ombro da esposa.

— Shhh… Está tudo bem. Já passou. — Lenór a consolou.

Os braços de Vanieli aumentaram a pressão em volta dela.

— Eu não consigo mais, Lenór. Sinto que estou enlouquecendo. — Confessou, em meio a um soluço. — Eu não consigo mais…

Lenór a afastou o suficiente para focalizar o medo nos olhos cheios de lágrimas, que refletiram as chamas da lareira. A comandante enxugou-as com as pontas dos dedos, então deslizou para fora da cama, encheu um copo com água e o levou para Vanieli, que o tomou de um fôlego só. Lenór recuperou o copo e o depositou na mesa ao lado de uma caneca de chá vazia.

Todas as noites, Vanieli tomava aquela infusão, a qual tinha sido preparada pelo mestre curandeiro do castelo. O homem afirmou que era a receita mais forte de que dispunha. De fato, a Kamarie adormecia quase imediatamente após ingerir o chá, mas os pesadelos vinham de qualquer forma.

Então, um boato começou a se espalhar pela cidade. As pessoas diziam que a maldição que rondava o lugar tinha recaído sobre as senhoras do castelo. Tornou-se incômodo para Vanieli os olhares desconfiados e, às vezes, amedrontados, das pessoas. Isso também minou suas forças.

— O que eu fiz para ser amaldiçoada? — Ela perguntou baixinho, rendendo-se momentaneamente e dando como certo as crendices do povo.

A esposa suspirou longamente, fitando o rosto abatido dela.

— Você tinha pesadelos antes de vir para cá. — Relembrou. — Não há maldição alguma.

Sentou as mãos na cintura, fitando-a de esguelha. As lágrimas que tornaram a banhar a face dela lhe trouxeram a lembrança do combate à beira do abismo. Havia algum tempo, Lenór tinha formulado uma teoria sobre aqueles pesadelos.

— Acho… — ela começou a dizer, mas interrompeu-se, deixando as palavras ganharem sentido na mente, antes de lhes dar som. — Acho que esses sonhos nada têm a ver com maldições. Na verdade, tenho quase certeza disso. Como não sou usuária de magia, a ideia demorou a me ocorrer. Discuti o assunto com Rall e ele concorda comigo.

Encheu um copo com água para si e também o tomou de um único gole. Enquanto isso, Vanieli a fitava com atenção, aguardando o resto da explicação. Lenór olhou o fundo do copo por algum tempo, antes de depositá-lo na mesa e continuar a falar.

— Tive um companheiro palatin, que era um mago. Ele me contou que, quando a sua magia despertou, estava em desequilíbrio com o seu corpo e que por isso viveu momentos conturbados. Me falou que até aprender a canalizar essa energia, ele teve dificuldades físicas. Por algum tempo, perdeu o movimento de um dos braços, tinha fortes dores de cabeça também.

Fez uma pausa, cada vez mais certa de que era disso que se tratava os pesadelos de Vanieli.

— Acho que no seu caso, esse desequilíbrio se manifesta através dos pesadelos e do esgotamento que a falta de sono lhe traz.

Vanieli fungou forte, enxugando o rosto com as costas das mãos. A calma começava a lhe tomar.

— Pensa mesmo que é isso? — Ela pareceu relaxar um pouco com a explanação.

— É a explicação que mais faz sentido para mim, no momento. Isso também explicaria os motivos de todos esses chás calmantes, que derrubariam um cavalo, não fazerem efeito em você por muito tempo.

— Se é este o caso, só vai piorar enquanto estivermos aqui… Deuses! Vou enlouquecer!

Lenór passou a mão no rosto, pensativa. Havia resistido bastante àquela ideia, entretanto, estava cansada de ver o tormento da esposa sem fazer mais nada do que apenas lhe oferecer o ombro para chorar.

— Talvez, eu possa ajudar. — Contou, por fim. — Vai ser um paliativo, contudo, mal não irá fazer. E se o problema for mesmo a sua magia, poderá aliviar um pouco. Contudo, precisamos encontrar um mestre pra você e com urgência.

— Você fala como se isso fosse fácil! Não existem magos em Cardasin, Lenór!

— Mas existem na Ordem. — Retrucou a comandante. — É para lá que você quer ir quando este casamento acabar, não é?

Mais calma, Vanieli fez um esforço para sorrir.

— Sabe, não sei porquê ainda me surpreendo com a sua sagacidade… Sim, é para a Ilha Vitta que quero ir. Em parte, pela magia. Entretanto, sempre encarei o que a Ordem faz como algo pelo qual vale a pena dedicar a vida.

Inspirou fundo, enfiando as mãos nos cabelos, antes de pedir:

— Se você pode me ajudar, por favor, faça!

Lenór suspirou, passando a mão no pecoço.

— Eu nunca fiz isso em um mago. Na verdade, só fiz em mim mesma, contudo, o princípio é o mesmo… — Limpou a garganta e se aproximou da cama, alertando: — Pode ser doloroso no início.

— Eu não me importo. — Vanieli declarou, ficando de pé.

A esposa inclinou a cabeça algumas vezes, avaliando-a. Por fim, pediu para que ela retirasse as roupas, ficando apenas com as peças íntimas.

— Deuses! Espero que você não esteja usando uma desculpa esfarrapada para admirar o meu corpo! — Vanieli brincou para afastar o nervosismo.

— Como se eu precisasse inventar algo para ver uma mulher despida. Além disso, qual é o problema? Você é minha esposa, não? Em teoria, seu corpo me pertence e o meu a você. — Sorriu, sentando as mãos nos ombros dela, depois falou com suavidade: — Se não se sentir confortável, esquecemos isso.

Vanieli pousou as mãos nos pulsos dela.

— Eu preciso de um pouco de paz. Se você pode me dar isso, então faça!

— Tudo bem. — Lenór murmurou, afastando-se para olhá-la com apuro.

Os olhos treinados avaliaram rapidamente a postura da esposa, percebendo onde estariam os pontos mais críticos do corpo dela. Após alguns minutos, voltou a se aproximar e a abraçou.

Por um momento, Vanieli achou mesmo que ela tinha segundas intenções com aquilo, mas então Lenór começou a falar no seu ouvido de forma cadenciada, enquanto as mãos deslizaram pelas suas costas.

— Como você sabe, quebrei a perna quando criança e o ferimento não cicatrizou bem. Às vezes, dói muito. E isso poderia ter sido um empecilho para que me tornasse uma palatin. Na verdade, poderia ter sido um obstáculo para que eu pudesse me tornar qualquer coisa que exigisse esforço físico.

Seus dedos percorreram as costas de Vanieli até pararem em um ponto específico, ela trouxe a mão esquerda para a frente do corpo da esposa sem se afastar dela. Tateou o quadril e interrompeu-se um pouco acima dele.

— Foi por causa desta técnica que isso não aconteceu. Você me perguntou o que fiz com Dalid e lhe respondi que o corpo humano possui pontos que podem proporcionar prazer e dor. É verdade, mas essa explicação é muito mais profunda do que fiz parecer. Os magos possuem pontos a mais. Eles são chamados de canais mágicos e permitem a circulação da magia pelo corpo.

Vanieli estremeceu com a informação.

— Então, o que pretende fazer? — Indagou.

— Vou liberar esses canais. Sinto eles bagunçados, já que a sua magia está fluindo de uma maneira desordenada. Agora que estou tocando você, tenho a confirmação de que minhas suposições estavam corretas. — Fez silêncio por um momento, então avisou: — Isso vai doer. Está preparada?

— Se eu disser que não, vai doer menos? — Vanieli sussurrou e depois gritou quando ela pressionou os dois pontos escolhidos.

A dor foi tal que ela mordeu o ombro de Lenór. Contudo, em vez de diminuir a pressão nos pontos, a comandante a aumentou. Arrastou os dedos pelas costas e lateral do corpo de Vanieli, que agarrou-se a ela com tanta força que, por um momento, imaginou que iriam se fundir.

Cada centímetro que Lenór avançava era uma tortura, mas ela manteve-se firme. Depois de algum tempo, a esposa se afastou e a guiou até a cama. Os dedos dela tornaram a encontrar pontos dolorosos no seu corpo, mas estes se convertiam rapidamente em pontos de alívio.

Quando Lenór acabou, Vanieli sentia-se tão cansada e ao mesmo tempo relaxada, que mal tinha forças para abrir os olhos. Ela percebia a magia vibrar pelo corpo, assim como naquele dia junto ao abismo, mas era uma sensação diferente. Aquele poder não pedia passagem para fora do seu corpo, simplesmente queria circular por ele.

— Obrigada — ela encontrou forças para dizer, quando Lenór deitou ao seu lado.

Começava a resvalar para o sono, quando a esposa contou:

— Na verdade, existem magos em Cardasin. É claro que eles não se mostram. Assim como você, buscam se preservar. Nós duas conhecemos um deles.

— Com exceção daquela florinae, nunca conheci outro mago. — Vanieli murmurou. — De quem fala?

— Do rei. — Lenór sussurrou a resposta, mas a moça já tinha caído no sono.

 

***

 

Rall remexeu-se na cama, sentindo as dores dos machucados na queda do barranco. A pancada na nuca também lhe incomodava, mas não era nada que pudesse atrapalhar seu sono.

O vento frio e algumas gotas de chuva entraram pela janela aberta e ele se sentou ao perceber que havia alguém sentado sobre o parapeito. Tomou um pequeno susto, depois relaxou ao reconhecer sua visitante.

— Quando você chegou ao Castelo? — Indagou para a mulher..

Ela balançou as pernas, deixando um sorriso à mostra, antes de saltar para o interior do quarto. Rall não estava surpreso por ela ter conseguido escalar até ali, visto que seus aposentos ficavam no mesmo andar que os de Vanieli e Lenór.

Voltruf deu de ombros, fitando o ressonar profundo de Gael.

— Há alguns dias. — Voltou-se para o velho. — Sinto muito por não me apresentar logo, mas queria observar algumas coisas antes.

Rall saiu da cama, esticando-se devagar.

— Hmm… Você tem um jeito engraçado de visitar as pessoas. — Gracejou ele. — Geralmente, usa-se a porta da frente, sabe?

— É assim apenas com as pessoas de quem gosto. — Voltruf retrucou, divertida com a repreensão. — Garanto que é uma lista pequena.

Um sorriso dividiu os lábios de Rall, enquanto ele se agachava diante do baú aos pés da cama de Gael.

— Apreciaria muito se pudesse manter a minha presença aqui em segredo, por enquanto. — Voltruf pediu, fazendo-o encará-la com evidente dúvida. Contudo, ele atirou um gesto no vazio e concordou:

— Não será problema, se você me contar do que se trata.

— É justo. — Ela concordou, satisfeita.

Do baú, Rall retirou um cobertor e lhe ofereceu.

— Tome. Você está ensopada.

— Obrigada. Você é sempre muito gentil.

O velho riu, passando a mão na cabeça.

— O que é um cobertor em comparação com a minha vida? — Indagou.

Notou que a pergunta não a surpreendeu, então deu prosseguimento aos pensamentos, recordando o que a viu fazer na floresta quando lutaram contra o bando que assaltou Avardia. Na ocasião, tinha retornado para ajudá-la após deixar Gael em segurança e, ainda sem se revelar, a viu se transformar em uma fera, que rapidamente sobrepujou os bandidos.

 — Era você na floresta, certo? O tigre que atacou aqueles soldados de Zaidar e me permitiu fugir com o garoto.

Voltruf interrompeu a tarefa de secar os cabelos por um momento. Sorriu com um dar de ombros e disse:

— Às vezes, eu posso ser muito feroz.

 


Oi, amores!

Desculpem o atraso na postagem. Tive alguns probleminhas técnicos e de saúde no fim de semana, então não pude finalizar o capítulo, consequentemente, não enviei para a revisão. Então, espero que relevem possíveis erros ortográficos ou esquecimento de preposições. [Acontece bastante, rs].

Obrigada pela paciência e, não esqueçam: Leu, gostou, curtiu ou comentou!

Façam uma autora feliz! Hehe… 🙄

 

Beijos!



Notas:



O que achou deste história?

7 Respostas para 13.

  1. Aaaaa saiu! Passei a semana esperando pelo novo capitulo e como já era de se esperar, maravilhoso! Eu ate tento demorar mais pra ler, pra aproveitar mais, mas é tao bom que quando começa é difícil parar kjkk

    A estória ta incrível!

    Alem disso, melhoras pra vc!

    Mal posso esperar pelo proximo

  2. Estou sendo repetitiva, mas é maravilhoso cada capítulo e por um lado diminui a ansiedade anterior por outra aumenta a expectativa para uma nova postagem. Eu imaginava que a tal fera era a Voltruf e acertei no final, ela poderei muito bem ajudar a Vanieli a controlar a magia ou estou errada?
    Bjs

    • Obrigada, Blackrose!
      Sim, Voltruf poderia ajudar a Vanieli, só não sei se ela está disposta a isso. Quem leu A Ordem sabe que ela é um pouco difícil de lidar. rs…

      Beijos!

  3. Tattah,

    a espera valeu super a pena, no momento são exatamente 01:57 e estou me indo…

    Q cap. lindo, simplesmente amei…

    Já estou com ideias fervilhando na cachola, mas vou aguardar mais alguns caps. pra
    ter certeza de não serem loucura.

    Bjs, boa noite.

    • Soube das alterações e corri pra ler.
      Sou suspeita pq estou amando esse romance,
      tá sensacional….

      Bjs,

    • Haha, Obrigada pelo comentário, Nádia! Será que as suas ideias são parecidas com as minhas? Veremos!

      Beijos!

Deixe uma resposta

© 2015- 2020 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.