I

 

Vanieli observava a diversão de alguns soldados, após o treino. Cansados, porém relaxados, participavam de um jogo. Embora entretidos na brincadeira, não lhe escapava os olhares que, vez ou outra, lhe dirigiam. A maioria era apenas de curiosidade, mas também havia aqueles que se insinuavam na esperança de conquistar seu interesse.

Com efeito, ela gostava de assistir aos treinos da Guarda, mas somente quando Lenór os conduzia. Era uma forma de também aprender com ela fora do seu próprio horário de treinamento. Mesmo estando ciente disso e aprovando sua iniciativa, Lenór costumava brincar com ela, acusando-a de estar jogando charme para os soldados.

Era verdade que havia homens atraentes entre os guardas do Castelo e bastaria um sorriso um pouco mais ousado para que ela tivesse qualquer um deles ao seu dispor. Contudo, Vanieli não estava interessada em ninguém.

Ela até achava o fato engraçado, visto que tinha liberdade para tal.

Um dos soldados, deixou o grupo e se aproximou da coluna em que ela se recostava, com a desculpa de lavar o rosto no tonel de água ali perto. Ele percorreu o caminho com o olhar fixo nela e um sorriso galante, que morreu de repente, assim como suas passadas perderam a firmeza. Sem demora, ele lavou o rosto e afastou-se. Vanieli só compreendeu a atitude, quando ouviu a voz de Lenór.

— Hmmm… Então, o seu escolhido é Raziel? Sinceramente, estou surpresa.

Vanieli se voltou para olhá-la, apenas para descobrir que estava a poucos centímetros do seu corpo e mantinha um sorriso debochado na face.

— Na verdade, acho que estou decepcionada. Acreditava que tivesse um gosto melhor, já que o seu guardinha, Darlan, era um homem interessante. Raziel, por sua vez, tem uma boa aparência, mas nenhum cérebro.

A Kamarie sorriu de lado e pousou a mão no braço dela, em um gesto carinhosamente ensaiado. Com o canto do olho notou o desconcerto do soldado em questão, ainda mais quando Lenór fez questão de beijar a testa dela. Um carinho que a comandante fazia com frequência e que Vanieli realmente apreciava, pois sabia que era a forma dela expressar seu cuidado e querer.

Lenór sempre o fazia quando tentava consolá-la após seus pesadelos e repetia o gesto com frequência, independente de estarem na presença de outras pessoas ou não. Não era um carinho exclusivamente seu, pois ela também costumava beijar Gael e Rall da mesma forma, entretanto, ser introduzida nesse seleto grupo era reconfortante.

— Você fala tanto nisso que, às vezes, acho que está torcendo para ser “traída”. — Retrucou, finalmente.

Um risinho suave escapou da comandante, que lhe ofereceu o braço e Vanieli enroscou-se nele delicadamente, para iniciarem o retorno para o castelo. Iam devagar e com passos despreocupados, entretidas na conversa.

Longe de qualquer fingimento, ali estava outra coisa que Vanieli realmente apreciava. E, às vezes, tinha a impressão de que Lenór compartilhava daquele sentimento. Era uma simples caminhada pela cidadela e, apesar de alguns olhares tortos e desconfiados, eram passos prazerosos.

— Sabe, Lenór, acho que é você quem precisa de um amante. Está sempre tão tensa! — Ela falou baixinho para que as pessoas na rua não capturassem o teor da conversa.

— Dispenso!

— Por que não? Estou certa de que metade desses homens daria um braço pela oportunidade de estar entre os seus lençóis. O tenente Vick seria o primeiro da fila. — Concluiu, maliciosa.

— Ah, você notou!

— Ele bem que tenta disfarçar, mas seus olhos brilham quando te vêem. — Vanieli observou. — Acho que lamberia suas botas se você pedisse.

— Agora, você está sendo cruel. — Lenór reclamou, em meio ao riso.

— Talvez. Contudo, é a impressão que tenho. — Vanieli deu de ombros. — Mas retornando ao que interessa, ele é um homem bem apessoado e…

— Também é casado. — A esposa recordou, tranquila. Divertia-se com a conversa e observações de Vanieli. — Seja lá o que Vick sinta por mim, ele é honrado demais para ultrapassar essa barreira e, tampouco, tenho interesse que ele faça isso. Seria obrigada a rejeitá-lo e nos veríamos em uma situação deveras constrangedora, que culminaria na transferência dele para outro posto. Quanto aos soldados, o interesse deles seria apenas para que pudessem se vangloriar para os companheiros depois. Você bem sabe que a minha relação com eles ainda não é das melhores. Se por um lado eles me ouvem e começam a respeitar, por outro ainda enxergam uma mulher que está invadindo o espaço deles.

Vanieli suspirou com o pragmatismo dela. Fitou-a por um momento, observando o cansaço cada vez mais evidente em seus traços. Desde a confusão com os Zaidarnianos, dias antes, Lenór parecia estar sempre tensa e preocupada. Ainda mais, depois de acompanhar Rall até a nascente que abastecia a cidade. Lenór não quis lhe contar sobre o que viu por lá. Rall tampouco se aprofundou no assunto, mas ambos concordaram que a teoria do envenenamento da água era real.

Depois disso, a comandante teve uma longa conversa com o jovem escravo que Rall resgatou. O rapaz saiu da biblioteca particular dela aos prantos e, no dia seguinte, Lenór o enviou para Verate, onde ficaria sob os cuidados do comandante local.

A comandante afastou alguns fios de cabelo, que lhe caíram sobre os olhos e Vanieli observou o céu por um momento. A noite se aproximava rapidamente e, mesmo ainda não tendo dominado o firmamento completamente, a última lua cheia do mês já podia ser avistada.

— Você não está interessada porque não gosta de homens ou há outro motivo? — Vanieli arriscou-se a perguntar. A ideia de que Lenór preferia as mulheres era bastante persistente, porém nunca a colocou em debate.

A reação da comandante foi um sorriso irônico, acompanhado de uma rápida avaliação do seu semblante.

— Às vezes, me questiono de onde você tira essas teorias a meu respeito. — Zombou, deixando a esposa sem graça por alguns instantes. — Eu já estive com homens, Vanieli. Não tenho problema com isso. Na verdade, aprecio a companhia masculina tanto quanto a feminina.

Deixou novo sorriso marcar sua face, desta vez, com ar cafajeste.

— Apenas não estou interessada. — Concluiu.

Enquanto cruzavam os portões do castelo, Vanieli recordou sua conversa com Draifus, dias antes. Os guardas dispensaram cumprimentos ligeiros à sua passagem, os quais Lenór respondeu com um aceno de cabeça.

Ainda no saguão, Vanieli indagou:

— Por quê?

Entretanto, a esposa só lhe respondeu quando se viram completamente sozinhas em sua biblioteca particular. Em vez de sentar-se na cadeira, Lenór sentou na mesa no centro do cômodo. Enquanto isso, Vanieli fechou a porta atrás de si e escorou-se na madeira maciça.

— Por quê está tão curiosa? — Lenór quis saber. — Acaso está esperando que eu seja a primeira a macular o nosso voto de união para se sentir segura para fazê-lo? Ou este é apenas mais um dos seus joguinhos? — Inclinou-se para trás, apoiando-se na mesa, enquanto suas pernas balançavam suavemente. — Ou será que, finalmente, está disposta a consumar nosso casamento?

A Kamarie arqueou a sobrancelha, fazendo uma careta para o sorriso malicioso dela.

— Só estou curiosa. — Respondeu, por fim. — Você vai me responder ou não?

Deixando o ar de troça de lado, Lenór saltou da mesa quando ouviram uma batida suave na porta e a conversa ficou esquecida.

Um momento depois, Gael abriu a porta e correu para a mãe. Lenór o abraçou e beijou murmurando algo na língua das Ilhas Lester. Vanieli ainda não sabia o que as palavras significavam, porém imaginava que se tratava de uma bênção, visto que a esposa as repetia sempre que o menino a cumprimentava.

Com um sorrisinho no canto da boca, Vanieli observou a troca de carinho entre os dois. Se não soubesse a verdade, acreditaria sem sombra de dúvidas que Gael era fruto do ventre de Lenór. O menino possuía o mesmo tom de pele e cor de cabelos que ela, além de alguns trejeitos semelhantes. Apenas os olhos, que eram de um suave tom verde e amendoado, como os de Rall, descartavam o parentesco de sangue.

Quando a mãe se afastou, o menino se voltou para Vanieli e a abraçou, também. Embora ainda fosse tímida, a relação dos dois desenvolvia-se carinhosa.

Do ponto de vista da Kamarie, era estranho pensar nele como filho de Lenór, o que — mesmo que o casamento delas fosse uma farsa — também fazia dele seu filho. Obviamente, a comandante nunca insinuou nada sobre isso e Vanieli estava certa de que ela jamais o faria, exatamente pela natureza ímpar da sua relação.

Vanieli fez um carinho na cabeça dele, bagunçando os cachos negros. Embora gostasse de crianças e um dia planejasse ter as suas, nunca foi boa em se relacionar com elas. Porém, era diferente com Gael, visto que compartilhavam alguns gostos.

 Ela passava a maior parte das suas tardes na biblioteca; por sua vez, Gael também estava sempre por lá. A princípio, ele ficava sentado junto à porta, brincando com qualquer coisa que tivesse em mãos. Depois, começou a caminhar entre as prateleiras, sem nunca tocar ou retirar um livro ou pergaminho do lugar. Por fim, ele começou a se aproximar da mesa e, percebendo sua curiosidade, Vanieli começou a lhe contar sobre as histórias que estava lendo. Desde então, o menino se tornou seu companheiro de todas as tardes.

Matik sandu. — Ele disse para Lenór, antes de sair da sala sorrindo e correndo.

— O jantar está servido. — A comandante traduziu para a esposa.

— Confesso que, por algum tempo, acreditei mesmo que ele só soubesse falar a palavra “matik”. — Vanieli deixou escapar, arrancando um risinho da esposa.

— Rall pode ser um pouco exagerado, às vezes. — A comandante fez um gesto suave, indicando o caminho para ela que, em vez de começar a andar, falou:

— Você precisa me ensinar essa língua, qualquer dia. Apreciaria conversar um pouco com ele. Sabe, nossos diálogos se resumem a monólogos meus.

— Você sabe que ele é bastante econômico com as palavras, além de tímido. Será um prazer ensiná-la, todavia, não espere muito de Gael. Ele só conversará com você quando se sentir confortável.

Ela se manteve recostada à mesa por mais um instante, antes de se endireitar e dizer:

— Obrigada, Vanieli.

— Por que isso?

— Por ser gentil e atenciosa com Gael.

Vanieli pousou a mão sobre a sua, ainda na mesa, e fez um carinho rápido.

— É uma criança adorável e linda. Não é nem um pouco custoso gostar dele. Na verdade, acho que ele se parece muito com a mãe. — Sorriu.

Lenór baixou a vista para as suas mãos sobre a mesa, antes de voltar a fitá-la nos olhos por um longo momento. Vanieli sentiu-se desconfortável com isso e quis fugir da profundidade daquele olhar, ainda mais quando ela se inclinou na sua direção. Prendeu a respiração, porém, o que imaginou que aconteceria, não passou de um beijo estalado na face.

— Obrigada. — Lenór repetiu, antes de se afastar completamente.

Ainda um pouco desconcertada, Vanieli a seguiu até a porta, contudo, não saíram da sala. Em vez disso, Lenór a fechou rapidamente e voltou-se para ela, a fim de lhe responder a pergunta que fez antes da chegada de Gael.

— Eu não sou uma mulher de desejos fugazes, Vanieli. Sou uma mulher de paixões e amores. Não busco o prazer por prazer.

A moça fitou a mão dela, que estava apoiada na porta cerrada.

— Se é assim, por que me fez aquela proposta? — Questionou.

Um suspiro precedeu a resposta.

— Apenas me pareceu adequada, diante do que estávamos fazendo. Éramos duas estranhas assumindo um compromisso que já começava complicado diante da sua natureza insultante para as tradições deste reino. Se estava sendo difícil para mim, para você devia ser muito mais. Prova disso, foi a sua reação quando entrou naquele quarto. — Ela sorriu de lado, admitindo: — A ideia de termos relações por obrigação também me incomodava. Entretanto, a depender do seu comportamento diante do que se esperava que acontecesse, eu teria ido em frente. Obviamente, seria bastante embaraçoso no início, mas creio que ambas desfrutaríamos a noite.

Ela mostrou um sorriso presunçoso, que fez a esposa cruzar os braços e arquear as sobrancelhas ao mesmo tempo.

— Não seja tão convencida! — Vanieli a repreendeu e lhe arrancou uma gargalhada suave.

— Acredite em mim, esposa, não estou. — Piscou marota, apoiando a mão no trinco da porta. Começava a abrí-la, quando Vanieli argumentou com um sorriso brincalhão, ligeiramente esquecida do constrangimento que a tomou instantes antes:

— São dois anos, Lenór, você vai ficar subindo pelas paredes!

— Ah, ainda tenho esperanças de que você resolva abrir seus horizontes para ter uma experiência diferente e me alivie um pouco dessa tensão. — Sorriu sacana e, finalmente, abriu a porta e saiu.

Vanieli fitou as costas dela, enquanto se afastava pelo corredor. Brincadeiras e insinuações sobre o seu relacionamento eram recorrentes entre elas, contudo, naquele momento, estava em dúvida se o que acabou de ouvir poderia ser entendido dessa forma. E terminou se arrependendo de ter puxado o assunto.

— Você não vem?

Fitou a sobrancelha arqueada de Lenór, que havia parado no meio do corredor à sua espera. Sorriu, sem graça. Então, jogou suas dúvidas para um canto escuro da mente, fechou a porta atrás de si e juntou-se a ela.

 

 

II

 

A luz da lua cheia se espalhava pelo Castelo do Abismo, iluminando seus recantos mais escuros.  Enquanto isso, o vento oriundo do deserto percorria as ruas estreitas invadindo as residências, levando o frio consigo. Mesmo o dia mais quente, tornava-se a noite mais gélida naquele lugar, graças à proximidade com o deserto.

Da janela da biblioteca, Lenór observava a noite, imersa em pensamentos sombrios e lembranças.

— O que você acha? — Rall perguntou, entrando no recinto sem bater na porta.

Vanieli ergueu os olhos do livro com o qual se entretinha e Lenór, para quem a pergunta tinha sido feita, voltou-se para encarar o velho.

— O que acho do que?

— O que você acha dessas histórias de monstros, que invadem a cidade no meio de noites enluaradas e sequestram as almas das pessoas? — Rall complementou.

— Essas histórias de novo… — Lenór pareceu decepcionada. — Sabe bem que eu não acredito em monstros, Rall. Estamos aqui há meses, já passamos por várias luas cheias e nada aconteceu. Estou certa de que houve algum exagero por parte das pessoas deste lugar ou, que essa história fantasiosa foi inventada para nos afastar da verdade sobre o que está acontecendo.

Rall assentiu com um sorriso. Porém, Vanieli resolveu contrariá-la, apesar de concordar que tudo que se contava sobre as desventuras locais parecia exagerado demais para ser verdade.

— Dizem que a batalha no reino florinae, há cinco anos, foi contra um exército de monstros. Milhares de guerreiros testemunharam isso, muitos morreram, também. Então, você não acredita em monstros porque nunca os viu de verdade ou porque escolheu não acreditar?

Lenór recostou-se à parede e seus olhos percorreram a figura da esposa com algum sarcasmo a adornar o sorriso escancarado.

— Para mim, Vanieli, os únicos monstros neste mundo somos nós. Não duvido que existem criaturas fantásticas vagando por aí. Mas elas não seriam como animais vivendo e agindo pelo instinto de se preservarem? O que aconteceu em Flyn, afinal, não foi obra da ganância de um único homem?

Os olhos de Vanieli se apertaram levemente, enquanto ponderava sobre o que disse. Por fim, a moça balançou a cabeça para cima e para baixo.

— Afinal, você tem um ponto bastante interessante. — Vanieli admitiu. — Mesmo assim, não acho sábio desprezar as crenças dessa gente tão rapidamente só porque nada aconteceu nos últimos meses.

— Não é desprezo. — Defendeu-se Lenór, voltando a sorrir e a mirar a cidade através da janela. — Só acho que o que eles acreditam e a realidade são coisas bem distintas. Como aquele infeliz incidente na estrada até aqui, quando acreditamos estar diante de criaturas demoníacas e, no fim, elas eram tão humanas quanto nós.

Enquanto falava, algumas nuvens esconderam a lua e a comandante notou que, naquela noite, o astro estava muito maior do que nos últimos meses.

— Mesmo assim, você não se furtou de aumentar a guarda. — Retrucou Vanieli.

— Se o povo tem medo, é nosso dever como Senhoras do Castelo garantir que se sinta seguro. — A comandante respondeu, enquanto a esposa se juntava a ela na janela.

Vanieli vagou o olhar pelos telhados e ruas até alcançar as muralhas e erguê-lo para o astro no céu. Em Daquir, as noites nunca lhe pareceram tão belas e silenciosas. Mas, apesar da beleza, as noites no castelo também eram um pouco assustadoras.

Sabia que Lenór estava lhe escondendo algo e o aumento da guarda nada tinha a ver com as lendas locais. Suspeitava que o motivo era os zaidarnianos.

— Admiro isso. — Falou baixinho, para que somente Lenór captasse as palavras.

— O que?

— O fato de você estar sempre pensando nos outros e tentar nos tranquilizar quando até mesmo você se sente desconfortável ante uma situação que não está sob o seu controle. — Vanieli sentou a mão no ombro dela e apertou devagar, antes de beijar a sua bochecha. — Vou me retirar. Me avise se os monstros vierem! Será uma história interessante para contar quando voltarmos à capital do reino.

Ela se afastou, desejando boa noite para Rall, e algum tempo se passou antes que o velho desse som aos pensamentos. Ele pitava seu cachimbo com olhar fixo em Lenór, cuja atenção ainda estava voltada para a cidade.

— Sabe, não é nenhum crime se apaixonar pela sua esposa. — Disse ele, após liberar uma lufada de fumaça no ar. — Ela é uma moça gentil, esperta e muito bonita.

A postura de Lenór enrijeceu por um momento. Ela inspirou fundo antes de se virar para olhá-lo.

— Essa história de novo? — Indagou, abandonando a janela e sentando na mesma cadeira que Vanieli ocupou momentos antes.

— Já estou velho, não é incomum esquecer algumas coisas e repetir outras. — Ele brincou, exibindo um sorriso amarelado por baixo da barba branca.

— Meu coração já tem alguém, você sabe. — Lenór o recordou. — Esse casamento é apenas conveniente…

— Balela! — Rall disse, fazendo um gesto vigoroso. — Invente a desculpa que quiser, mas você gosta dessa moça. Não fosse assim, não teria tomado para si o dever de instruí-la, tampouco se mostraria preocupada e condescendente com a magia dela. Você cuida dela, tem apreço, faz questão de que saiba que são iguais.

— Eu levo promessas muito à sério, Rall. Você sabe bem disso. Nós assumimos um compromisso diante de um sacerdote e pretendo cumprir os meus votos ao pé da letra pelo próximo ano e meio que nos resta. — Recostou-se no espaldar da cadeira, passando uma mão impaciente pelos cabelos.

Sentia-se desconfortável desde a conversa que teve com a esposa em sua biblioteca particular. Quando viu a forma como ela olhou para Gael e o carinho que o seu sorriso denunciou, algo se revolveu em seu interior e, por um momento, esteve a ponto de cruzar o limite que traçou para elas.

— Como você disse, ela é minha esposa. É natural querer protegê-la. E, sim, gosto dela, mas não do jeito que está sugerindo. É difícil não gostar de Vanieli, não acha? Ela é inteligente, observadora e dedicada. Tem vontade de aprender o que eu posso e estou disposta a lhe ensinar. E é uma boa companhia também.

Rall deixou de lado o cachimbo e admirou o semblante carregado dela. Nos últimos dias, Lenór andava muito sombria e tristonha. Obviamente, ela não deixava que as pessoas percebessem isso, nem mesmo a mulher que dormia ao seu lado todas as noites.

Fosse outro, talvez interpretasse isso como resultado do que viram em sua visita à nascente. Entretanto, estavam juntos havia quase seis anos e ele gostava de achar que a conhecia melhor que qualquer outro.

— Me entristece que você pense assim. — Disse ele. — Poderia se dar a oportunidade de viver um relacionamento mais profundo com essa moça. Desde que Najili morreu, você tem se mantido afastada das pessoas. Nem mesmo quis voltar para Barafor, apesar do Príncipe Agnir praticamente implorar para ter os seus serviços de novo.

Ele fez uma pausa, enquanto Lenór escorregava a mão pelo rosto, demonstrando o cansaço.

— Você se orgulhava de ser uma palatin, de ser uma boa protetora e servir um homem justo como Agnir, mas quando meu filho e logo depois Najili, partiram para as Terras Imortais, foi como se você tivesse ido com eles. Largou a espada, enfiou-se dentro daquela estalagem, como se o seu mundo tivesse se tornado servir a quem estava de passagem…

Lenór o interrompeu com um gesto.

— É um trabalho honesto. Tenho meu próprio negócio e Gael tem um lar estável. Isso não parecia incomodar você antes. Além disso, se realmente for necessária para Barafor, voltarei a assumir meu lugar entre os palatins. Agnir sabe disso. Mais que o príncipe a quem servi, ele é um bom amigo.

Ele deslizou a mão pela madeira escura da mesa e o silêncio dominou o ambiente. Rall coçou o queixo, afundando as unhas na barba, enquanto admirava o baile das luzes das velas nas pupilas negras dela.

— O que você quer com essa conversa, Rall?

— Eu não sei bem. —  Ele riu.

Fez novo silêncio, decidido a deixar de lado as muitas coisas que planejou falar. De repente, elas pareceram sem sentido para o momento. Principalmente, quando falou em Najili e Belgar. A transformação no rosto de Lenór foi perceptível, trazendo um grande desconforto para ele.

— Acho que ando pensando demais no passado, esses dias. E, pelo visto, você também. — Rall comentou, fazendo referência a tristeza que havia notado nela.

Lenór baixou os olhos para o anel em sua mão, o maxilar travou ao recordar a dona dele. Rall tinha razão, ele sempre tinha quando o assunto era Najili. Seus olhos marejaram, mas as lágrimas não caíram, então ela piscou e voltou a fitar o amigo, que dizia:

— Um dia você vai ter que derramá-las, sabia? Não é bom guardar o choro.

— Eu não sei mais chorar. — Ela afirmou, limpando a garganta. — E estou velha e cansada demais para tentar recomeçar.

Se voltou para a janela, admirando a lua no céu negro e estrelado. Não havia mais nenhum sinal das nuvens que a encobriram.

— Eu sinto falta dela, Rall. — Falou baixinho, trazendo a vista para o velho novamente. — Às vezes, acho que a estou traindo… Me enfiar em meio à uma situação perigosa como esta, correndo o risco de deixar Gael órfão de novo, e… e me casar…

Rall balançou a cabeça, afirmando com o gesto que a compreendia. Ele recordava bem de quando ela retornou para Andalus e anunciou que se casaria. Por um momento, acreditou que os deuses tinham atendido suas preces e que, após três anos vivendo o luto, Lenór tinha reencontrado o amor. Foi muito agradável pensar nisso até ela contar a verdade.

— Também sinto falta dela, menina, mas tenho certeza de que Najili entenderia o que você está fazendo. — O velho respondeu. — Apesar de que não precisava ter se casado, precisava? O rei encontraria outro jeito de trazer paz aos seus clãs.

O rosto dela aparentou a mesma dureza que a madeira que ele tocava. Rall sorriu em meio a um suspiro.

— Sabe o que eu acho, Lenór? Acho que você não teria se casado com essa moça se ela não a agradasse de alguma forma. Não sei dos seus critérios, talvez tenha feito isso de forma inconsciente, mas esse casamento não teria acontecido só porque o rei lhe pediu.

Fez uma pausa breve, notando a apatia tomar o semblante dela. Era um sinal claro de que havia lógica nas suas palavras. Continuou, aproveitando a falta de interesse de Lenór em retrucar:

— Acho que você está mesmo fazendo isso para honrar o espírito do seu irmão, que partiu de forma tão traiçoeira. Os deuses sabem, e eu sou testemunha, que você tem seu próprio código de conduta. Você é uma boa mulher, Lenór, mas acredita na vingança como forma de justiça e ai de quem ficar em seu caminho! Sei que deseja mesmo proteger seu amigo Mardus e, diante das circunstâncias, isso é mesmo necessário. Contudo, também acho que agarrou a chance de se casar com Vanieli porque, apesar de declarar que não se importa com Cardasin, você sentia falta daqui e, assim como o rei, você quer que este reino mude e que outras mulheres possam ter as mesmas oportunidades e escolhas que você encontrou em Barafor. Além disso, voltando ao termo “vingança”, acho que você quer ir contra o seu pai, quer provar a ele o seu valor e mostrar a mulher que se tornou longe dos seus abusos.

Novo silêncio se fez presente. Rall recuperou o cachimbo do bolso da túnica e voltou a acendê-lo, enquanto isso, Lenór mantinha o olhar fixo no céu noturno além da janela. Ela ficou imóvel por tanto tempo, que Rall tomou um susto quando se colocou de pé e se dirigiu à porta. Antes de cruzá-la, Lenór olhou para ele e falou:

— Talvez você esteja certo sobre tudo o que disse, exceto, em relação a Lorde Kanor. Não preciso e nem quero provar nada para ele. Tudo o que eu quero daquele homem é vê-lo tremendo e chorando de medo em uma poça do seu próprio sangue e urina, enquanto implora pela sua vida miserável ao mesmo tempo que a minha espada perfura o coração dele. E, se os deuses realmente existirem, rezo para que eles não permitam que isso aconteça. Porque, se acontecer, eu terei me tornado um monstro como ele e monstros não devem ter filhos. — Respirou fundo, dizendo enquanto fechava a porta: — Gael nunca terá medo da mãe dele, Rall.

 

III

 

— Algum problema? — Vanieli indagou para Lenór.

Havia algum tempo, a comandante estava sentada na beirada da cama, fitando o vazio.

— Achei que estivesse dormindo. — Lenór respondeu, voltando-se para olhá-la.

— Eu tentei. — Vanieli se espreguiçou no leito. — Mas o sono não veio. Nem mesmo tomando um pouco da infusão que o mestre curandeiro do castelo preparou. Acho que esse negócio não faz mais efeito em mim. — Bocejou. — Então, qual o problema?

— Por que tem sempre de haver um problema? — A comandante questionou, também bocejando.

Ela admirou os olhos curiosos e os cabelos desgrenhados da esposa, contendo a vontade de sorrir. Às vezes, Vanieli conseguia o feito de ter uma aparência infantil, enquanto dormia.

— Só estou cansada. Nada mais. — Garantiu.

— Tem certeza? Está passando a mão na perna como se sentisse dor. Precisa de ajuda?

— Está tudo bem, Vanieli. Tenho mesmo um pouco de dor, todavia está em um nível aceitável.

A voz dela soou baixa, enquanto voltava a fitar o vazio. Sentiu a movimentação de Vanieli sobre o colchão e surpreendeu-se quando ela a abraçou por trás, pousando o queixo no seu ombro.

— O que está fazendo, Kamarie?

— Você parecia precisar de um abraço.

Lenór balançou a cabeça em meio a um sorriso e escorregou a mão até a dela na sua cintura, fazendo um carinho breve.

— Por que acha que preciso ser consolada? — Quis saber.

— Não sei, Lenór. Você nunca me fala sobre você mesma. Na maior parte do tempo tenho que tentar interpretá-la e aceitar sua zombaria quando minhas suposições lhe parecem ridículas. — Riu baixinho. — Só tive a impressão de que você precisava disso.

Aumentou a pressão dos braços em volta dela, aspirando o perfume das suas roupas e cabelos. Lenór não se mostrava vaidosa. Como todo bom soldado, ela só dava atenção a manter seu uniforme e armas limpos e preparados para o combate. Todavia, não se privava de banhar-se com essências cítricas e suaves, cujo olfato de Vanieli nunca tinha sentido antes de conhecê-la. Era um aroma agradável, que permanecia nos lençóis e no ambiente por muito tempo após sua saída e que Vanieli começou a associar a sensações de calma, confiança e segurança.

— Sei que você é bastante reservada, mas quero que saiba que pode conversar comigo assim como me permite conversar com você. Está bem?

Lenór inclinou a cabeça, liberando um suspiro baixo. As percepções de Vanieli já não deviam surpreendê-la, porém isso acontecia com bastante frequência.

— Obrigada.

Satisfeita, Vanieli começou a se afastar, contudo, a esposa a impediu.

— Seria incômodo para você, se ficarmos assim mais um pouco?

Com um sorriso, Vanieli voltou a abraçá-la e a pousar o queixo em seu ombro.

— De modo algum. — Após um momento, deslizou a mão até alcançar a dela, onde o polegar girava o anel no dedo anelar inconscientemente. Ela tocou o anel e Lenór parou de girá-lo. — Quer falar sobre isso?

— Se eu dissesse que não, a impediria de tentar descobrir de outra forma?

A Kamarie riu baixinho e se afastou um pouco, contudo Lenór segurou sua mão outra vez, impedindo que fosse mais longe.

— Mestre Draifus é um pouco linguarudo, pelo visto. — Reclamou Vanieli, voltando a recostar o corpo ao dela.

— Não se zangue. Ele ficou preocupado de que você pudesse fazer uma interpretação errada e, assim, acabássemos brigando. Quis me prevenir e se desculpar pela indiscrição. Contudo, estou surpresa por você ter demorado tanto para perguntar.

— Não sou tão bisbilhoteira, Lenór! Estava disposta a esperar você se sentir confortável para falar, mas nos últimos dias a tenho visto triste e sombria, olhando para esse anel como se tivesse perdido algo dentro do metal do qual é feito….

Lenór balançou a cabeça, grata por ela não poder enxergar seu olhar ligeiramente marejado. 

— Então, ele ou ela tinha um nome? — Vanieli insistiu.

O corpo da comandante enrijeceu por um momento, depois relaxou quando contou:

— O nome dele era Belgar e o dela era Najili.

O abraço de Vanieli afrouxou e, desta vez, Lenór não a impediu de se afastar.

— Estou bem confusa, agora. — Afirmou a moça.

A comandante deslizou para longe do seu contato e ficou de pé.

— Contarei essa história em outra ocasião. Está bem? Eu não me sinto muito confortável sobre isso, no momento. Contudo, agradeço por estar disposta a me ouvir e, também, por esse abraço. Precisava mesmo dele. — Começou a se dirigir para a porta.

— Para onde vai? — Vanieli perguntou.

— Vou dar uma volta, preciso de um pouco de ar.

— E com isso você quer dizer que vai fazer uma visita para Adel. — Vanieli soltou, revirando os olhos.

Lenór interrompeu os passos e voltou-se para ela.

— O que está insinuando? — Perguntou, com ar de galhofa.

— Não faço insinuações, apenas afirmações. — A esposa pontuou. — Acaso pensou que eu não tenho notado suas escapadas noturnas com ela? Depois que você me ajuda com aquela coisa que faz com os dedos, costuma sair quando acredita que caí no sono.

A comandante pousou uma mão na cintura, risonha, enquanto comentava:

— Você não se importa em me sugerir um soldado como amante, contudo se mostra bastante desconfortável com a possibilidade de que isso possa acontecer com Adel. O que isso quer dizer?

Uma careta modificou a face de Vanieli por um momento. Ela fez um gesto displicente e retrucou:

— Você já deixou claro que não está interessada em um relacionamento fora deste casamento. Então, pode ir fechando esse sorrisinho sacana. Estou apenas comentando, para que você saiba que eu percebi seus passeios noturnos e outros podem ter feito isso, também. 

— Tem certeza de que é só isso?

— Ah, não comece! Só estou falando a mesma coisa que você já me disse!

A esposa ainda sorria quando chegou perto dela e inclinou-se um pouco até que seus rostos ficaram bem próximos.

— Você fica uma graça com ciúmes, sabia? — Pousou os lábios na testa dela. — Não precisa se preocupar. Adel está apenas cumprindo o dever dela e me ajudando com os meus.

 

 

IV

 

Adel caminhou pelo teto do castelo com passos suaves. Pousou as mãos sobre um dos blocos largos de pedra, que compunham a amurada, e olhou para a lua. Perdeu-se na contemplação dela por alguns minutos, enquanto pensava no que deixou no Templo de Aman.

Baixou a vista, observando os vigias em outros locais da cidadela. Se encontrava em um dos pontos mais altos do castelo, um dos poucos onde não havia uma torre de vigia, portanto, teria um pouco de privacidade.

Afastou-se da amurada, retirando um saquinho do bolso. Derramou o pó que ele continha, formando um círculo perfeito, então ajoelhou-se e tirou a túnica com mãos trêmulas, expondo a pele pálida. Abriu os braços, como se pudesse abraçar a lua, então se curvou até o chão e permaneceu assim. Banhou-se na luz do luar, com olhos cerrados e uma prece murmurada.

E teria ficado ali por mais algum tempo, se o seu pequeno ritual não tivesse sido perturbado por uma visita inesperada.

— Seria mais eficiente se fizesse um círculo de magia.

A daijin ficou de pé e girou sobre os calcanhares, em busca da mulher que lhe falou. Não havia ninguém à vista, mas quando concluiu sua volta, deparou-se com os olhos violetas de Voltruf a poucos centímetros dos seus.

A primeira ação de Adel, foi pegar a minúscula faca que trazia atada ao braço e oculta pelas mangas longas da túnica. Voltruf sequer piscou quando ela encostou a lâmina na sua garganta. Em vez disso, mostrou um sorriso presunçoso.

— Sabe que não precisa disso. — Ela falou. — Se eu quisesse machucá-la, já teria feito. E ambas sabemos que, se você realmente quisesse me ferir, usaria uma das lâminas nas pontas da corrente que esconde cuidadosamente por baixo da faixa na cintura.

Mais um instante se passou até que Adel resolveu guardar a faca. Ela se afastou um pouco, indagando:

— O que você quer aqui, florinae?

— Respostas.

— Para quais perguntas?

Voltruf sentou na amurada, com uma expressão jocosa.

— Esperava que você pudesse me ajudar a descobrir quais são as questões. Afinal, Amani não enviaria uma de suas servas para cá sem motivo. Ainda mais para sofrer assim.

Ela apontou para as feridas enegrecidas na pele de Adel, que expulsou o ar dos pulmões, dando-se conta de que ainda se encontrava sem túnica. Ela agachou-se para pegar a peça de roupa que havia largado no chão.

Enquanto isso, Voltruf andou até ela.

— Uma prece e um banho de luar dentro de um círculo de pó não irão ajudá-la com isso. — A florinae tocou uma de suas feridas e Adel recuou com uma careta de dor. — Sem querer ofendê-la nem desrespeitar seus ritos, mas o que você precisa é de um pouco de magia curativa. Porque, seja lá o que você deixou que selassem dentro do seu corpo, está te matando.

 

 


 

Oi, amores!

Recadinho só para deixar aquele xêro para vocês e avisar que amanhã respondo os comentários atrasados, tá?

Não deixem de curtir ou comentar. 😀

Beijão e até quarta-feira!

 



Notas:



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6 Respostas para 14.

  1. Ameiiiii! Amei mais ainda é que a Lenór já está vendo Vanieli com outros olhos, só falta a Vanieli entender o que cresce dentro daquele coraçãozinho e entender que ela não é tão hetero como diz.
    Abraços

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