*

 

— Eu não preciso da sua ajuda, florinae. E o que alguém como você poderia saber dos desígnios da deusa? — Adel indagou, começando a se enfiar dentro da túnica. — Seja mais respeitosa quando falar dela.

Um sorriso irônico entortou os lábios carnudos de Voltruf.

— Deusa? Não me trate como idiota. Nós duas sabemos que Amani não tem nada de divino. É compreensível que os humanos a vejam dessa forma, contudo, ela está muito longe de alcançar a divindade.

— Como você ousa? Você não sabe nada sobre Amani!

Voltruf segurou o tecido da túnica, impedindo que ela terminasse de se vestir, de modo que a Adel foi privada dos movimentos dos braços.

— Uma rainha imortal de outro mundo e raça; admirada e temida pelo seu dom; desprezada e odiada pelo seu próprio povo, graças às escolhas que fez para salvá-lo de si mesmo. Uma mulher extraordinária, que foi abandonada neste mundo, impedida de conhecer a morte e ir para a próxima vida como um castigo cruel por ter atendido aos anseios do seu coração…

À medida que ela falava, o rosto de Adel tornava-se mais e mais sombrio.

— Talvez eu saiba mais sobre a mulher à quem serve do que você. — Voltruf concluiu, pousando a mão livre no ombro dela. — Deixemos isso de lado, por enquanto.

Deslizou a mão pelo braço de Adel, como se estivesse tentando conhecê-la através dos dígitos. Com efeito, era isso mesmo. A magia escapava dos seus dedos suavemente e quase invisível aos olhos, infiltrando-se na daijin e revelando os caminhos do mal que a acometia.

— Eu não sou uma mulher gentil. Assim como você, nasci para a espada. Sou melhor ferindo do que curando. Então, fique quietinha enquanto te ajudo, ou pode acabar se machucando e aumentando seu sofrimento.

Adel planejou recuar e, outra vez, rejeitar a ajuda. Contudo, já era tarde. Baixou a vista para os pés e notou o gelo que se acumulava à volta deles e começava a subir pelas suas pernas até alcançar as coxas. A florinae a soltou, deu um passo atrás, e o gelo envolveu o corpo de Adel até o pescoço. Um círculo de magia surgiu na palma da mão de Voltruf e deslizou pelo ar até tocar o chão e se expandir até os limites do círculo de pó, que Adel tinha feito.

— Maldita! — Rosnou a daijin.

— Não é a primeira pessoa a me chamar assim. — Voltruf ironizou. — Como eu estava dizendo, não sou uma mulher gentil, nem o tipo que se doa em favor de outros. Invejo pessoas assim, é um fato. E o que estou fazendo é pelo interesse de ter uma aliada digna de confiança esta noite.

O frio dificultava a respiração de Adel e os lábios dela tremeram quando falou:

— Espera que eu a ajude com qualquer coisa, depois disso?! Vai desejar a morte quando eu sair daqui!

— Acredito que esta noite você terá mais com o que se preocupar do que perder seu tempo em me odiar por estar curando o seu corpo enfraquecido. Apenas não resista ou será muito mais doloroso do que o esperado.

Voltruf saiu do círculo e  linhas luminosas percorreram as bordas dele indo em direção a Adel e penetrando o gelo. No início, a dor dela se manifestou através de um gemido baixo e uma careta, que logo deram lugar a uma expressão de alívio.

— Por que está fazendo isso? — Adel ofegou.

— Porque a magia é mais forte em noites como esta. Você sabe disso, ou não estaria aqui em cima tentando fazer um ritual para reforçar o selo no seu corpo.

Enquanto Voltruf falava, a transparência do gelo revelou linhas escuras no corpo de Adel. Tatuagens invisíveis que, ao serem tocadas pela sua magia curativa, adquiriam tons negros e desapareciam rápido demais para que Voltruf conseguisse interpretar todas as palavras nelas escritas.

Por algum tempo, ela circundou o círculo, atenta à escuridão além do abismo, enquanto gavinhas luminosas escapavam dos seus dedos e alimentavam a conjuração.

— Também estou certa de que você sente que há algo ruim se aproximando do Castelo esta noite. — Parou diante de Adel, passando a mão sobre o nariz. — Sinto o cheiro de coisas ruins e, quando digo isso, estou sendo bem literal.

Ela fechou a mão, encerrando o círculo. Encarou o rosto suado de Adel, tentando compreender o que significava a sensação estranha que a magia no círculo lhe retornou enquanto a curava.

— Por que eu? — Adel indagou, débil.

O gelo que a envolvia derreteu. A poça de água que formou, escorreu até os pés de Voltruf, envolveu as pernas dela e desapareceu, como se tivesse sido absorvida pelo corpo da florinae. Adel deixou-se cair de joelhos, sentindo o bem-estar do corpo como havia muito não percebia. Baixou a vista para si mesma, apenas para constatar que as feridas tinham desaparecido. Contudo, os locais onde elas estiveram, apresentavam-se com hematomas enegrecidos.

— Eu disse, não sou muito boa em curar. — Voltruf deu de ombros. — Este é o meu limite. Quanto ao motivo, você é uma serva de Amani, mas não uma serva qualquer. Correto?

Ela se agachou para que pudessem se olhar mais de perto. Apontou para a corrente fina, que mais parecia um barbante, enrolada na cintura de Adel, cuja ponta esférica escapava da faixa que deveria ocultá-la.

— Apenas as daijins mais próximas da Rainha da Morte, usam armas forjadas pelas mãos dela. — Voltruf afirmou, notando a surpresa de Adel, visto que esse fato sempre foi bem escondido. A florinae retirou a sua própria espada da cintura, deixando que Adel a tocasse e admirasse. — Eu já tinha feito um voto sagrado com a Ordem Castir, quando conheci Amani. Não fosse assim, teria sido uma grande honra servi-la.

Adel deslizou as pontas dos dedos pela lâmina da espada, balançando a cabeça em aquiescência, ao passo que reconhecia o metal e os detalhes que a identificavam como uma arma feita pela sua rainha.

— O que você quer de mim? — Indagou.

— Como eu disse ao iniciarmos esta conversa, quero respostas, mas ainda não sei as questões.

— Então?

Voltruf fez um  gesto rápido, apontando para o astro que as iluminava.

— É uma lua vermelha. Na última vez em que vi uma dessas, participei de uma guerra contra coisas que não deveriam existir, coisas que carregam o aroma da morte. E esta noite, o cheiro da morte está impregnando o Castelo do Abismo. Por isso, ter a ajuda de uma guerreira que possui uma arma forjada com magia espiritual, seria bastante útil.

Adel ainda analisava o significado daquelas palavras quando sentiram a terra estremecer. Na cidadela, algumas construções ruíram, assim como parte da muralha que a envolvia. Ouviram gritos, depois o badalar e o som dos apitos de alerta dos guardas.

— Cheguei a torcer para estar errada. — Voltruf ficou de pé e estendeu a mão para a daijin. — Levante-se e esqueça Adel por um momento. É de Aisen que precisamos.

 

**

 

— É um soldado do Castelo. — Disse um dos homens, analisando o corpo à sua frente.

— Assim como os outros que encontramos no túnel. — Respondeu seu companheiro. — Que inferno aconteceu aqui?

Os dois se voltaram para um terceiro homem, que estava de pé no meio da câmara. Ele agitou-se, erguendo uma mão até o queixo.

— Não olhem para mim como se eu soubesse de todas as respostas. — Disse ele, hostil. — Apenas posso deduzir que os nossos homens encontraram os soldados de Cardasin no túnel, uma luta ocorreu e os dois grupos acabaram se deparando com algo bastante malígno. Seja lá o que os matou, não era humano. Disso estou certo. Além do mais, consigo sentir magia no ar. É antiga, contudo, há magia jovem também.

Ele parou de falar e semicerrou os olhos, vasculhando todas as entradas dos túneis com eles. Por fim, empertigou-se e mirou os companheiros.

— De qualquer forma, a presença desses soldados aqui, deixa claro que já não podemos usar essas passagens com a liberdade de antes. A comandante Azuti é bastante sagaz, pelo visto. — Comentou, balançando os ombros. — Uma mulher…

Seu desdém era quase palpável na frase.

— Pensar nela como apenas uma mulher é um erro que não pretendo cometer. — Disse um quarto homem, ainda dentro do túnel, diante do qual estava o corpo. — As mulheres que vêm do outro lado do mar são tão desafiadoras quanto os homens. Não esperem que Lenór Azuti fique em casa, fazendo coisas de mulher, enquanto ameaçamos seu reino.

Houve uma breve pausa, enquanto ele saía do túnel e se aproximava do corpo do soldado. Se agachou para avaliar os ferimentos dele. Levou a mão até o queixo, oculto por uma máscara negra, que ostentava feições demoníacas, e era igual às máscaras que seus companheiros também usavam.

— Afinal, aquele reizinho depravado está mostrando a que veio. — Riu ele, chutando as pernas do defunto, antes de afirmar: — Fomos descobertos, Senhores.

— Acha que sabem dos nossos planos? — Indagou aquele que estava no meio da câmara. Ele abriu a mão, uma pequena bola luminosa surgiu na palma, espalhando luz pelo lugar e revelando que se tratava de um mago.

— Se fosse o caso, não estaríamos aqui esta noite. Estou certo de que a comandante não sabe de nada, exceto que alguém vem usando esses túneis para acessar a cidadela. Tenho certeza de que é uma descoberta recente. Já que, nos últimos meses, ela só reforçou a segurança em torno da ponte, nos impedindo de chegar perto o suficiente para usarmos a magia para demoli-la.

— Você está certo. — Concordou o mago.

— Recolham os corpos dos nossos homens. Não devemos deixar rastros.

Enquanto ele falava, o mago encarou a entrada de um determinado túnel. Ficou assim por um momento, antes de erguer uma mão, deixando a magia tomar forma e fluir por ela. Apontou para o túnel e gritou:

— Saia daí! — Sem esperar resposta, ele atirou seu poder naquela direção.

A magia atingiu uma das paredes e alguns tijolos desabaram. Enquanto isso, os outros homens assumiram posições de combate. O mago se aproximou da entrada do túnel. Estava tão escuro dentro dele, que nada enxergou além de um par de olhos luminosos indo em sua direção. Ele armou-se de magia outra vez, então foi surpreendido pelo surgimento de um gato negro de olhos tão amarelos que lembravam o brilho do ouro. O animal o encarou por um instante longo, miou e voltou a desaparecer na escuridão do túnel.

— Hm… Olha só quem está com medo de um gatinho! — Riu um dos homens, fazendo o mago se empertigar, armando-se para uma resposta afiada.

— Não é o momento para essas provocações ridículas. — Disse aquele que parecia ser o líder do grupo. — Peguem os corpos dos nossos homens e, você, — ele falou com o mago — dê um jeito neste lugar.

— Isso vai chamar a atenção — retrucou o mago.

— É exatamente o que desejo. Um desmoronamento deixará a comandante e seus homens ocupados por algum tempo, além de causar algum dano à cidade. Acho que deveríamos ter feito isso desde o início.

— Meu senhor, se me permite opinar. — Disse outro. — Danificar esses túneis pode ser prejudicial ao nosso trabalho.

O sujeito apontou para baixo, deixando implícito ao que se referia. O líder exalou forte, evidentemente irritado, porém concordou.

— Está bem. — Ele se voltou para o mago. — Faça nesta câmara e no túnel em que os homens morreram. Felizmente, isso não irá prejudicar nossa locomoção. Há muito tempo que temos outros meios de ir até o Vale Dourado.

Ele fez um gesto vago, pedindo pressa.

— Vamos logo com isso, antes que alguém apareça.

Obediente, o mago caminhou até ele, então se voltou para o interior da câmara. A magia lhe escapou pelas mãos, atingiu as paredes e teto, causando tremores e desabamentos. Então, eles entraram no túnel e a mesma destruição os seguiu.

 

***

 

— Pelos deuses! O que foi isso? — Vanieli exclamou.

A comandante encarou a escuridão do túnel pelo qual haviam acabado de passar. Mesmo distante da câmara, a poeira do desabamento chegava até ali. Ela tossiu um pouco, aliviada pelo vento frio que as circundou, oriundo do abismo.

Depois de escaparem da criatura, elas tinham feito o caminho inverso, retornando para a câmara. Entretanto, antes de alcançarem o fim do corredor, ouviram vozes estranhas. Com cuidado, se esgueiraram até a entrada do túnel e observaram os quatro homens que ali conversavam, vestidos de negro e usando máscaras com aparência demoníaca. As máscaras eram muito parecidas com as dos assaltantes que encontraram na floresta, meses antes.

Por pouco, o mago que os acompanhava não as descobriu. Felizmente, a gata de Gael ajudou-as, outra vez. E, assim que a câmara começou a desabar, elas retornaram para a abertura junto ao abismo.

— Eu não sei. — Lenór passou a mão na cabeça, sentindo o galo latejar.

Ela sentou no chão, deixando que Vanieli percebesse seu desconforto físico.

— Você está bem? — Vanieli indagou. — Bateu muito forte com a cabeça, ainda está sangrando.

Se agachou à frente da esposa, passando a mão sobre o corte na cabeça dela.

— Estou bem, só um pouco tonta. — Garantiu Lenór. — O sangramento já parou, apenas a dor ficou. Mais um momento e iremos embora.

Ela mostrou um sorriso para Vanieli, cuja preocupação não reduziu. Em vez de deixar o assunto de lado, a moça rasgou a manga da blusa e usou para limpar o sangue e ter certeza de que o fluxo havia mesmo se encerrado.

— Ficaremos o tempo que for necessário para você se sentir melhor. — Decretou. — Você não precisa ser a “comandante Azuti” comigo o tempo todo, sabia?

Lenór não se atreveu a respondê-la e recostou-se à parede. Algum tempo se passou até Vanieli voltar a se manifestar:

— Você estava certa sobre os túneis, a magia e os disfarces.

— Estar sempre certa é um dom. — Lenór brincou.

— Acho que você não bateu tão forte com a cabeça, assim. — Vanieli lhe fez um carinho no braço.

— Não mesmo… O fato é que ainda permanecemos no escuro. Continuamos sem saber quem são e o que querem.

— Contudo, também descobrimos que parte das histórias que ouvimos são reais e nem mesmo esses inimigos misteriosos sabiam disso. — Vanieli argumentou.

Ela suspirou devagar, olhou para as paredes e depois para o vazio do abismo, então perguntou:

— Como vamos sair daqui?

Lenór projetou o corpo para fora da abertura, mirando as plantas trepadeiras que encobriam a entrada do túnel em que haviam estado mais cedo. Soprou o ar com força e disse:

— De um jeito que você não vai gostar.

 

***

 

A madrugada se aproximava do fim, quando elas conseguiram alcançar o topo do abismo. Lenór içou o corpo para a terra firme e estendeu a mão para auxiliar Vanieli. As duas se largaram no chão, completamente exaustas pela escalada noturna.

Estavam a uma centena de metros do lado sul da muralha. Sob a luz prateada da lua, Vanieli encarou o rosto sujo de terra e sangue da esposa, antes de voltar o olhar para o céu. De repente, começou a rir.

— Qual a graça? — Lenór indagou, ofegante.

— Estava apenas pensando no quanto fui inocente em acreditar que teríamos um casamento tedioso.

Ela riu um pouco mais e Lenór a acompanhou por um momento, antes de silenciar completamente. Vanieli prosseguiu, falando baixinho, como se estivesse conversando consigo mesma.

— Se eu soubesse que passaria por tantas situações perigosas e sentiria tanto medo…

— Teria dito “não” à proposta do rei. — Lenór concluiu a frase, olhando para ela, cuja aparência não era muito melhor que a sua.

— Isso certamente me passaria pela cabeça. — Vanieli foi sincera. — Entretanto, a resposta continuaria sendo “sim”.

— Por quê?

A Kamarie sorriu em meio a um suspiro fraco.

— Porque, pela primeira vez na vida, eu me sinto bem comigo mesma.

Fez um gesto displicente.

— Não tente me entender, Lenór. Sei que é estranho falar isso depois da noite infernal que tivemos até agora, todavia é como compreendo o momento que estamos vivendo. Apesar de todo o medo e risco, me apraz ser útil para alguém que confia em mim da forma que você faz.

— Tem certeza de que não foi você quem bateu a cabeça? — Lenór brincou, ficando de lado para se erguer.

Uma orelha negra e pontuda se projetou da blusa de Vanieli, ouviram um miado baixo e então os olhos amarelos da gata apareceram. Ela deslizou para fora das roupas da Kamarie, saltou para o chão e esticou-se devagar.

— Aí está algo que me recuso a tentar entender, neste momento. Todavia, sou muito grata por essa pequena ajudante. — Disse Lenór, fazendo um carinho na orelha da gata, antes de ficar de pé e o animal correr em direção ao castelo.

Ela o observou se afastar por um momento, antes de auxiliar a esposa a se erguer também. Fez uma carícia rápida no rosto dela e disse:

— Espero que esta noite sirva de lição para você. Quando eu disser que pode ser perigoso me acompanhar, é melhor acreditar.

— Se não fosse por mim, você estaria morta! — Vanieli observou em tom de queixa.

Lenór sorriu, juntando as mãos dela entre as suas.

— Eu sei! E sou muito grata por você ter insistido em vir. — Ela sentou um beijo na testa de Vanieli que, por sua vez, a abraçou.

— Nós cuidamos uma da outra. Certo?

— Sim. — Lenór respondeu, incentivando-a a andar em direção à cidade.

Estranharam a ausência de soldados nos portões. Era natural que as ruas estivessem desertas àquela hora, todavia a comandante tinha dobrado o número de guardas nas muralhas e patrulhas das ruas.

Não havia ninguém ali, o que deixou Lenór bastante irritada e inclinada a uma briga com o capitão Elius e o tenente Vick. À medida que se aproximavam dos portões, começaram a ouvir os sinos e apitos dos guardas, enquanto o cheiro de fumaça lhes chegava. Elas correram em direção ao som e da luminosidade do incêndio que consumia algumas casas no centro da cidade.

Se depararam com um grande número de pessoas nas ruas, auxiliando no combate ao fogo e, também, tentando retirar as vítimas dos escombros de outras tantas casas que desabaram no meio da noite. Não foi preciso muito mais para as duas compreenderem que o túnel que o mago misterioso destruiu, passava por aquele ponto.

— Não imaginava que estávamos tão perto da superfície. — Vanieli comentou.

— Não estávamos. — Lenór garantiu. — Todavia, os túneis têm vários níveis. É certo que aquele que foi destruído estava abaixo de outro, mais perto do nível da cidade. É possível que o castelo também tenha sofrido danos, já que a câmara ficava bem abaixo dele.

Mais apitos foram ouvidos, ao longe, junto com o rugido de um animal selvagem. Soldados passaram apressados na rua lateral e as duas se dirigiram para lá. Não demorou muito para alcançá-los.

— Elius! — Lenór o chamou, ao perceber a presença do capitão entre o grupo.

Ele interrompeu os passos por um momento, gesticulando para que os homens continuassem seu caminho.

— Comandante?! Damna Vanieli? Graças aos deuses estão bem! — Falou.

Elius recomeçou a andar e fez um gesto para que elas o acompanhassem. Explicava, em meio as passadas largas e apressadas:

— Há pouco, uma parte da muralha desmoronou. — Apontou para a direção que seguiam.

Viraram em uma esquina e puderam visualizar o vão que se abriu na muralha. Ainda estavam distantes, mas o paredão se estendia por quase vinte metros de altura além das construções.

— Mas antes disso, nos encontramos sob ataque. De alguma forma, criaturas estranhas invadiram a cidade. Não sei exatamente quantas, mas são poucas, contudo, são muito fortes.

Ele vislumbrou o rosto de Lenór por um momento, antes de lamentar:

— Perdemos bons homens esta noite.

Ficou mudo, enquanto saltava o pedaço de uma coluna de pedras, que caiu no meio da rua. Vanieli aproveitou a deixa para contar:

— Esbarramos numa dessas coisas, há pouco. Quase não saímos vivas!

— Esse lugar está mesmo amaldiçoado! — Disse o soldado que andava ao lado de Elius.

Ouviram um novo rugido e o som de algo se partindo mais adiante.

— Eu não acredito em maldições! — Lenór rosnou para o rapaz. — E de onde está vindo esse rugido?

— Com ou sem maldição, não sei como explicar o que está acontecendo aqui esta noite! — Elius atalhou. — Se não são demônios, então não sei como nomear. Mas isso não foi a coisa mais estranha que vimos hoje. Há um tigre na cidade. É dele todos esses rugidos.

— Como é que é?

— Um tigre de verdade! — Confirmou o soldado.

— Ele era… Era apenas um gato! Então, virou um tigre! — Elius contou, claramente confuso com o que dizia. — Apareceu no castelo, quando uma daquelas coisas invadiu os portões.

Poucos metros os separavam do local do desmoronamento da muralha. Um pedaço enorme da construção passou voando um pouco acima da cabeça deles, então se espatifou no meio da rua.

— O fato é que aquele bicho nos salvou. Não importava o que fizéssemos, não conseguimos ferir aquela coisa com gravidade. Nossas armas só o arranharam. Então, Rall apareceu com aquele bicho e fizeram o que não conseguimos. Mataram alguns monstros e o restante correu nesta direção, o tigre veio atrás e Rall e Adel seguiram no seu encalço.

— Deuses! Que noite! — Lenór reclamou, olhando para os soldados caídos pelo caminho. Felizmente, a maioria estava apenas ferida.

Um rugido assustador se fez ouvir, quando eles finalmente alcançaram o buraco na muralha e esbarraram nos corpos de uma dezena de soldados. O tal tigre, auxiliado por Rall e Adel, enfrentava monstros semelhantes àquele que Lenór e Vanieli encontraram nos túneis. Eles haviam ultrapassado o buraco e agora lutavam a poucos metros do abismo.

O raiar do dia se aproximava, junto com nuvens chuvosas, que encobriram a lua. Mesmo com a pouca luz, era possível notar a nuvem de poeira causada pelo galope de um cavalo no deserto.

Enquanto isso, o tigre saltitava e atacava seus adversários, usando dentes, garras e a cauda longa que dividia-se em três pontas rígidas. E, em alguns momentos, ele usava magia. Rall e Adel lutavam ao seu lado, em uma estranha sincronia de movimentos.

Assim que avistou a comandante, Rall gritou:

— Não podemos deixar essas coisas irem para o abismo!

Ele voltou a investir contra a criatura que combatia e esta o arremessou a metros de distância, com um golpe seco. Rall rolou pelo terreno pedregoso, até parar próximo dos materiais usados na construção da ponte. Ele ficou ali por um momento, fitando o céu, enquanto uma chuva fina começava a precipitar sobre a cidade.

Lenór olhou para os soldados que assistiam o combate, imóveis e abismados com a presença daquelas criaturas.

— O que estão esperando?! — Ela berrou com eles. — Ao combate!

Ela apontou para um soldado e depois para Vanieli.

— Você cuida dela e os dois cuidam do Rall. Peguem ele e saiam daqui!

Depois disso, ela cruzou o terreno para entrar no conflito e Vanieli foi auxiliar Rall, mal escondendo sua alegria ao descobrir que o velho estava vivo e se mexendo. Ele sentou com a mão na cabeça, observando as gotas de chuva, marcando a poeira do chão.

— Ei, garota, está chovendo! — Rall gritou e Vanieli acreditou que a pancada mexeu com suas ideias.

Entretanto, momento depois, o tigre rugiu e Adel gritou para os soldados:

— Escudos!

Lutando ao lado dela, ainda sem entender do que se tratava, porém confiante de que a daijin buscava proteger os soldados, Lenór repetiu a ordem e Elius seguiu seu exemplo:

— Escudos, agora!

Os homens obedeceram, aguardando algum tipo de ataque com flechas, porém, não estavam preparados para o que viram.

Adel empunhava uma corrente fina como um barbante, cujas pontas ostentavam uma esfera maciça e três lâminas, respectivamente. Ela girou a corrente sobre a cabeça e se aproximou de Lenór, tornando o movimento mais rápido.

De repente, o tigre rugiu e um círculo luminoso e mágico escapou do corpo dele, espalhando-se pelo local. A chuva, literalmente, parou de cair. Então, o ar esfriou, as gotas congelaram e o tigre bateu com uma pata no chão.

Lenór observou as gotas congeladas serem empurradas por uma força invisível em direção ao chão, como se fossem uma chuva de setas. Elas penetraram os corpos das criaturas que combatiam, ceifando suas vidas e convertendo seus corpos em pilhas de pedras negras que logo se tornaram pó.

A surpresa montou morada nos rostos de todos os presentes, porém o combate ainda não tinha chegado ao fim. Nem todos as criaturas foram atingidas pela onda de gotas congeladas.

— Que noite infernal! — Lenór se queixou, voltando a empunhar a espada. Trazia apenas uma consigo, visto que a outra permanecia em poder de Vanieli.

As correntes de Adel envolveram as pernas de uma criatura e Lenór usou de toda a sua força para separar a cabeça dela do corpo e não se surpreendeu quando a viu se decompor até virar pó.

Alguns metros adiante, Elius e seus homens também se mostraram guerreiros ferozes, ao acuarem um dos inimigos restantes, como se este fosse um animal a ser caçado. O capitão estocou a criatura ao mesmo tempo em que os soldados, contudo, as lâminas apenas resvalaram na pele dela, deixando arranhões insignificantes. Na sequência, eles foram repelidos por uma onda de magia, oriunda da criatura e o capitão viu-se de cara no chão com a certeza de ter quebrado uma das pernas.

A criatura se aproximou dele, exibindo um sorriso pontudo em meio a uma face acinzentada com olhos sem pupilas. Elius anteviu sua morte, entretanto, uma flecha em chamas penetrou o peito do monstro; o fogo se espalhou por ele e, literalmente, o consumiu sem deixar nem mesmo o pó negro.

Elius piscou algumas vezes, na tentativa de entender o que se passou. Olhou em volta, procurando o arqueiro que o salvou, mas não havia ninguém por perto, nem mesmo no topo da muralha. Porém, do outro lado do abismo, um cavaleiro se aproximava rapidamente empunhando um arco. Outra seta em chamas partiu dele e alcançou outra criatura, consumindo-a da mesma forma que a anterior.

Ao perceber o que se passou, o tigre tornou a rugir. Ele investiu contra outro monstro, saltou nele com fúria assassina, mas foi repelido por um ataque mágico. O tigre fincou as garras no chão para evitar ser atirado no abismo e estacas de gelo se projetaram às suas costas, formando uma barreira de proteção. A fera fez novas estacas crescerem à volta do monstro e, enquanto este buscava escapar delas, cravou uma das pontas afiadas da sua cauda no peito dele. Um grito animalesco e doloroso cortou o ar, anunciando o seu fim.

Outra vez, o tigre bateu uma das patas no chão e montes de terra e pedra se elevaram, limitando o espaço de locomoção dos monstros remanescentes. Isso fez a terra tremer um pouco no local e Adel perdeu o equilíbrio. Ela caiu, e rolou para longe do alcance do adversário. Colocou-se de pé, esticando a corrente à frente do corpo como se fosse um bastão e bloqueando as garras dele. Com rapidez, a daijin enlaçou o braço do monstro, então girou o corpo, dando a volta nele, até estar às suas costas.

Adel usou o pé para desequilibrar a criatura. No chão, ela passou a corrente no pescoço do monstro e a puxou com força, até que ele se partisse e a cabeça rolasse por alguns centímetros.

Não muito distante dela, Lenór se encontrava em desvantagem ao lutar com dois adversários. Ela conseguiu se aproximar de um deles o suficiente para usar as mãos, acertando os pontos mais dolorosos no corpo do adversário. Embora não fosse humano, sua fisiologia aparentava ser semelhante.  Contudo, por mais que acertasse os pontos certos, nada acontecia.

Em determinado momento, ela conseguiu se aproximar o suficiente de um deles, escapando de suas garras preenchidas de magia e fincou a espada nas suas costelas. Como esperado, ela encontrou resistência, como se ele estivesse usando uma couraça sob a pele. A criatura urrou de dor e Lenór sentiu as garras dela perfurarem seu abdômen, rompendo a couraça no processo.

Lenór caiu de joelhos, encarando o sangue que escorria para fora do próprio corpo e manchava o solo. Ergueu a face para o inimigo e o viu arrancar a espada das costelas e a soltar com uma expressão furiosa. Ele deu um passo na direção dela, erguendo as garras em direção ao seu peito.

Ele não chegou a tocá-la, mas a dor que a comandante sentiu foi excruciante.

Algo escapava do corpo dela, deixando um vazio dolorido e sombrio. Lenór não queria deixá-lo partir, sentia que se o fizesse estaria perdendo a si mesma. Segurou o braço dele, encarando a face demoníaca e o monstro a fitou de volta, quase como se pudesse compreender a dor e os desejos dela. Ele ergueu a outra mão, preparando-se para lhe tirar a vida. Entretanto, uma espada o trespassou. Um urro lhe escapou, quando ele baixou o olhar para a lâmina que se projetava do seu peito. Ela brilhava, primeiro suavemente, depois, tão forte quanto uma tocha.

Lenór assistiu aquilo, imersa na dor. Não lhe etou ver Vanieli por trás daquele monstro. A moça a ajudou a ficar de pé, ainda imersa na euforia da magia que percorria seu corpo. Outra vez, Vanieli correra em direção a ela, quando percebeu que Lenór estava em perigo. E, como das vezes anteriores, a magia dela se manifestou para salvar a comandante.

— Me salvou três vezes em uma noite! Isso está começando a ficar vergonhoso para mim! — Lenór brincou.

— Não diga besteiras! — Vanieli reclamou. — Já é dia, então foram apenas duas na noite passada!

Lenór a empurrou para o lado, quando outro adversário se apresentou. O monstro saltou sobre ela e os dois caíram. Lenór arqueou o corpo e o atirou para o lado, assumindo a posição superior. Eles rolaram pelo chão até alcançarem a ponte, onde a comandante conseguiu se livrar do inimigo e ficou de pé. Novamente, Vanieli foi em socorro da esposa e o monstro usou magia para atacá-la, mas então foi a vez de Lenór protegê-la.

A comandante a empurrou, outra vez, e o ataque mágico da criatura a atingiu em cheio. Do chão, Vanieli viu Lenór ser lançada para o abismo e despencar no vazio.

Ao mesmo tempo em que Vanieli compreendeu o que se passou, um raio caiu no abismo.

A Kamarie olhou para a criatura e gritou, expulsando toda a raiva, medo e dor que sentia. Ela sequer percebeu quando o corpo do monstro pareceu implodir em milhares de pedaços. Também não notou quando o sangue que a banhou se tornou uma camada de poeira negra, que foi lavada pela chuva. Nem viu quando o tigre se tornou uma mulher e decapitou uma das criaturas com as quais lutava, enquanto outra flecha em chamas atravessou o abismo e fez algo impossível ao mudar sua trajetória, desviando das pessoas e atravessando todos os demônios que encontrou pelo caminho até não sobrar nenhum.

 

 

 



Status da autora neste momento:

 

Nos encontramos no próximo capítulo, se eu conseguir esconder o meu fígado de vocês. Hehe…

Ah, o plugin de “curtir” da página está temporariamente desabilitado, então vocês vão ter que comentar mesmo! 😆 

Beijos e xêros!



Notas:



O que achou deste história?

14 Respostas para 16.

  1. Aaaaaaa carai são tantas emoçoes, tanta energiaa!
    To lendo Castelo do Abismo e A ordem ao mesmo tempo, a cabeça chega fervilha com as teorias kjkk
    To amando muito!

  2. Capítulo eletrizante!
    Mulher, você é muito boa!!!!
    Será que comnessa queda Lenór descobrirá o Vale Dourado? ?
    E Vanieli, se dará conta de quanto seu sentimento pela esposa se transformou? Acredito que, na verdade, somente se intensificou a partir daquilo que parecia curiosidadw antes do casamento. Afinal, desde o início ela eemonstrou ciúmes com a proximidade de Adel.
    Um grandw abraço.
    Bom final de semana!

    • Oi, Viviane!

      Perdão pela demora na resposta. Então, acredito que a sua teoria está bem próxima da verdade. rs… É algo com que Vanieli ainda não lidou, então é difícil perceber o que sente. 😉

      Beijão!

  3. Krlho de asas! Como tu faz um negócio desses, nos dá tanta emoção e aos mesmo tempo desespero, está querendo nos matar mesmo, totalmente apreensiva pela Lenór, é muita maldade o que tu faz com a coitadinha tá sempre estropiada.
    A magia da Vanieli já ama a Lenór kkkkk
    Bjs

    • É preciso um pouquinho de maldade no coração! Hehehe… Brincadeirinha.
      Beijos, Lins!

  4. Nããão! Jogou a mulher no abismo!

    Eu leio o capítulo em uns 30 minuto, então posso dizer 30 minuto de pura emoção.

    Cheguei a pensar que a gata do Gael era a Voltruf, mas como não tem jeito de estar em dois lugares ao mesmo tempo né, tô com vontade de saber mais sobre essa gata.

    A espada que a Lenor emprestou pra é uma arma espiritual? E qual é a natureza da magia da Vaniele?

    E essas flexas de fogo, amei. Dei uns berro.

    Vou até ler o capítulo de novo mais tarde.
    Mal posso esperar o próximo capítulo.

    • kkkkkkk… Tantas perguntas. rs… As respostas estão no capítulo seguinte. Bem, a maioria delas. Que bom que foi e está sendo uma história emocionante para você, Flávia.

      Valeu pela companhia.

      Beijos!

  5. he he he

    Eu sempre comento, e acho ótimo assim.

    Arrasou no cap. de hj, como assim Lenór caiu no abismo??
    Tem certeza q não rola um cap. extra essa semana??? Esperar
    vai ser mto difícil.
    Bjs,

    • kkkk… Sim e eu sou muito grata pelos comentários e companhia, Nádia!
      Valeu pelo carinho!

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