I

 

Mestre Draifus, que havia assistido o fim do embate do alto dos escombros da muralha, se aproximou do grupo sem conseguir acreditar no que tinha acabado de acontecer.

Houve um momento longo e silencioso depois que tudo findou. Os atores daquela luta limitaram-se a encarar uns aos outros, fugindo da visão da Kamarie ajoelhada na ponte, fitando o vazio escuro do abismo.

Draifus passou pelo velho Rall, cujo pesar transparecia na face marcada pela idade. Ele desprezou o capitão com a fratura exposta na perna, que se mantinha de pé, auxiliado por um soldado. E nem mesmo se dignou a lançar um olhar para a mulher de olhos violetas que, momentos antes, era um tigre, ainda que ela lhe inspirasse tanta curiosidade quanto aos demais.

O engenheiro foi para a ponte e parou ao lado de Vanieli, pousando uma mão no ombro dela. Ele sabia que Lenór e Rall eram muito íntimos e que a perda dela, certamente, estava sendo cruel para o idoso. Entretanto, se identificava com a dor que, acreditava, Vanieli sentia naquele momento. Era a ela que desejava consolar.

— Damna… — começou ele, mas interrompeu-se.

De repente, as palavras que se formaram na sua mente, pareciam vazias demais para pronunciar, então limitou-se a apertar o ombro da moça com suavidade.

Os olhos de Vanieli Kamarie estavam cheios de lágrimas, que ela não queria derramar. O pranto misturava-se à água da chuva que começava a cair com mais intensidade. Ela já tinha perdido pessoas próximas, mas nunca alguém cuja simples presença a fazia sentir-se segura e cuidada.

Como disse para Lenór, em tão pouco tempo, a comandante havia se tornado importante para ela de diversas maneiras. O compromisso que assumiram fazia dela sua esposa, entretanto a comandante havia se tornado sua melhor amiga.

Ela apoiou-se na beirada da ponte, fitando o vazio escuro do abismo com mais intensidade. Lenór estava ali em algum lugar, ferida, sozinha… morta.

Uma lágrima lhe escapou e saltou para o vazio seguida por outras. Vanieli se encolheu, chorando baixinho, a testa encostada no chão. Como um simples pensamento poderia doer tanto?

Lenór não estava morta, não podia estar! Porém, foi isso que seus olhos viram acontecer.

Draifus se ajoelhou ao lado dela, tornando a tocá-la com cuidado. Um pouco desajeitado, ele a trouxe para os seus braços e o choro da moça se tornou audível para todos. Ele a abraçou com força, sem se importar se estava infringindo algum costume cardasino ou escandalizando alguém. Passou uma mão pelos cabelos ensopados de Vanieli e ergueu o olhar para o outro lado do abismo, onde o cavaleiro misterioso que os ajudou, observava-os. O vento soprou forte, fazendo a capa dele esvoaçar, revelando as formas de uma mulher.

A chuva tornou-se mais intensa, ao passo que Voltruf se aproximou da beirada do abismo e se agachou. Ela tocou a terra naquele ponto e um instante se passou até o chão tremer. Uma passarela estreita, composta de pedra e gelo, se projetou até alcançar o outro lado da fenda. A recém-chegada incentivou seu cavalo a atravessar a passagem com pressa e, assim que alcançou a terra firme, a passarela desintegrou-se.

— Você está atrasada. — Voltruf falou, porém seu tom não era de acusação.

— Eu sinto muito. — Disse a mulher, deixando o capuz escorregar para os ombros. Quando ela apeou do cavalo, seus trajes negros se revelaram completamente, dizendo muito sobre sua identidade.

Voltruf sentou no chão, exaurida mágica e fisicamente. Olhou para o abismo, deixando à vista uma expressão de lamento, que causou estranheza na outra mulher. Afinal, não era comum que a florinae demonstrasse seu pesar de forma tão evidente.

— Vi o que se passou. Infelizmente, estava longe demais para ajudar a moça. — Contou a mulher, juntando as mãos à frente do corpo em um gesto de respeito, característico dos habitantes de Paludine. — Que sua alma possa encontrar passagem segura até as Terras Imortais.

A frase machucou Vanieli, aumentando a sensação de desespero. Aquelas palavras lhe pareceram terrivelmente erradas, cruéis demais para serem realidade. Ela abafou um soluço e afastou-se de Draifus. Ficou de pé e, ainda olhando para a escuridão no fundo do abismo, falou:

— Ela não pode estar morta!

 

II

 

Lorde Arino balançou a cabeça, ajustando o capuz. Seu cavalo relinchou, afundando as patas em uma poça d’água.  O nobre olhou para o céu nublado, enquanto um trovão era ouvido, ao longe.

Voltou a fitar o caminho, admirado com a paisagem. Havia muitos troncos nas laterais da estrada, além de tijolos. Em certo ponto, ela deixava de ser de terra e tornava-se calçada, facilitando a locomoção das carroças do comboio.

— Estamos perto, meu lorde. — Darlan informou o óbvio, mal conseguindo evitar a vontade de sorrir por isso. Nem mesmo o frio e a chuva eram capazes de diminuírem seu bom humor por, em breve, estar diante de Vanieli, novamente.

Arino soltou um suspiro, fixando as árvores adiante. Então, se voltou para os soldados, que marchavam alguns metros atrás da carruagem que os seguia. Um pouco atrás desses homens e também usando uniformes da Guarda, um grupo de mulheres os acompanhava.

O lorde Kamarie soprou o ar, insatisfeito com a chuva.

— Devo admitir que estou impressionado. — Disse ele para o guarda, notando o arquear de sobrancelhas deste. — Afinal, minha nora…

Ele pronunciou o “nora” como se estivesse engasgado. Fez uma pausa e então modificou a frase:

— A mulher com quem minha filha se casou parece saber o que faz. Em seis meses, ergueu um pequeno posto da Guarda na entrada da floresta e ainda está construindo uma estrada de lá até o castelo.

— Sem falar na forma como organizou as patrulhas, desde Verate até aqui. — Disse o outro homem que cavalgava com eles.

Lorde Taniel, líder do Clã Baruke, era um sujeito de compleição gentil, embora todos soubessem que era um guerreiro brutal. Era ainda muito jovem para ser um líder, porém, a morte repentina do pai, um ano antes, o colocou no poder. Sua juventude o fazia um líder ávido para ganhar o reconhecimento dos outros clãs e alguém disposto a provar que merecia isso a qualquer custo.

— Afinal, os relatórios que o Ministro da Guerra recebeu na capital, não estavam sendo exagerados. — Taniel continuou. — Os assaltos aos vilarejos diminuíram bastante. Principalmente, porque a sua nora não parece ser do tipo que faz prisioneiros. Nossa estada em Verate foi deveras informativa. Ainda não chegamos ao Castelo do Abismo e já começo a pensar que o receio dos clãs é infundado.

Ele sorriu devagar, mostrando uma expressão gentil antes de complementar:

— Afinal, essa Azuti está obtendo sucesso onde homens de vários clãs não conseguiram. Todavia, sua competência não muda o fato de que a posição que ocupa e o casamento com sua filha, Lorde Arino, é uma afronta a todos nós.

Um suspiro quase inaudível escapou de Arino, enquanto ele meneava a cabeça. Desde o casamento, a política do reino havia se tornado mais instável. Principalmente, na relação do rei com os clãs. Passados seis meses, alguns líderes ainda se encontravam engasgados com a resolução do rei de casar as herdeiras dos clãs Kamarie e Azuti, porém ninguém se levantaria contra o soberano diretamente.

Era mais seguro agir na surdina e minar aquele casamento aos poucos, fazendo o regente recuar em suas decisões, mesmo que isso implicasse em desonrar Vanieli e Lenór. Para isso, contavam com uma pequena rede de espiões no Castelo do Abismo. Só que, até aquele momento, nada de útil lhes chegara aos ouvidos, exceto, que o casal parecia muito unido e costumava demonstrar carinho em público.

Entre os líderes mais empenhados a pôr um fim na união das duas herdeiras, estava Lorde Kanor Azuti. O homem não reagiu nada bem depois que sua tentativa de invocar a lei da pureza fora frustrada. Contudo, Arino acreditava que a verdadeira motivação de Lorde Kanor, era o fato de que a filha o humilhou de diversas formas. Primeiro, fugindo de casa e deixando que ele acreditasse que havia se tornado uma daijin. Em seguida, retornando para Cardasin anos depois como herdeira de Mirord e com a confiança absoluta do rei para assumir o lugar do irmão entre a nobreza e o exército, além de casar com a mulher que lhe fora destinada.

Lorde Arino e Vanieli tinham suas desavenças. Entretanto, nunca odiou e, certamente, jamais chegaria a desejar o puro mal para o fruto do seu sangue.

Guardou silêncio, pensando sobre o tipo de mulher que era sua nora. Mal conversou com ela antes e depois do casamento, contudo, estava certo de que Lenór Azuti não permitiria que seu casamento fosse prejudicado tão facilmente, como Lorde Taniel imaginava.

Continuaram a cavalgada por mais uma centena de metros, quando saíram da floresta para encontrar o Castelo do Abismo em polvorosa e descobrirem que seus planos não seriam necessários, pois a Comandante Lenór Azuti havia falecido naquela manhã.

 

III

 

Vanieli estava caminhando em meio à névoa.

Ela nada podia ver em qualquer direção que tomasse e começava a se desesperar quando ouviu uma voz de timbre suave e cadenciado. Não entendia as palavras, mas elas lhe pareceram agradáveis, além de trazerem uma estranha sensação de reconhecimento. Decidiu seguir o som e, aos poucos, a névoa foi se dissipando.

Ela se viu caminhando por um jardim ensolarado, com árvores frutíferas, flores e fontes por todos os lados. Havia um magnífico palácio ali, guardado por guerreiros imponentes, que pareciam não notar sua presença.

Vanieli admirou a arquitetura e a forma como as plantas pareciam se misturar às colunas e escadarias. Ela quis entrar no palácio e conhecê-lo melhor, porém, tornou a ouvir a voz e recomeçou a caminhada pelos jardins até parar diante de uma fonte, onde uma mulher estava entretida em um ritual.

Era dela a voz que ouviu.

A mulher estava dentro da fonte, cuja água lhe tocava os joelhos. Ela murmurava palavras em uma língua estranha de forma ritmada e com olhos fechados, enquanto fios luminosos deixavam suas mãos em direção a água. No fundo da fonte, símbolos também desconhecidos para Vanieli brilhavam suavemente.

A Kamarie chegou mais perto, atraída pela curiosidade e pela crescente sensação em seu íntimo. A mulher abriu os olhos e a focalizou.

— Posso ajudá-la a achar o seu caminho? — Ela perguntou para Vanieli, que se demorou a perceber que era consigo que falava.

— E para onde acha que devo ir? — A moça questionou, estranhando a rouquidão da sua voz.

— Para onde você quer ir? — A mulher retrucou com um sorriso. Parecia bastante curiosa a seu respeito.

Olhava-a como se estivesse tentando entender o que Vanieli era e, de fato, era isso mesmo. Pois, às vezes, se deparava com espíritos perdidos, cujas almas mágicas eram fortes o suficiente para resistir à atração das Terras Imortais.

No entanto, aquela moça era diferente. Quando a viu, achou que se tratava de uma dessas pobres almas, entretanto, logo percebeu que ela estava ali e não estava, ao mesmo tempo. Uma situação confusa, porém instigante.

Vanieli olhou em volta, avistando os muros em volta do jardim e edifícios que se elevavam além deles, misturados a grandes árvores. Deu de ombros.

— Eu não sei. Meus sonhos não costumam ser tão tranquilos. — Respondeu, voltando a fitar a mulher. — Suponho que deva apenas desfrutar o fato de que este parece bastante agradável.

Fez uma pausa, admirando seu rosto com atenção. Era bem mais velha que ela, porém tinha feições agradáveis e gentis, além de demonstrar uma postura que irradiava segurança.

— Entretanto, sinto que não deveria estar aqui. Há outro lugar que necessito ir, mas não consigo me lembrar onde é.

Ela passou a mão na face, tornando a observar o entorno. Sentiu a brisa que percorria os jardins e o sol banhando sua pele, como se fosse um abraço caloroso.

— Para ser sincera, há pouco estava perdida. Então, ouvi sua voz e vim parar aqui. Mas é curioso, nunca tive um sonho tão lúcido e tranquilo. Geralmente, são bastante agitados e normalmente me esqueço deles ao despertar. Provavelmente, não será diferente com este. — Mostrou um sorriso breve.

A mulher o retribuiu, cada vez mais interessada na sua figura. Contudo, sua observação intensa não incomodou a Kamarie.

— Sinto ter interrompido o seu ritual, muito belo por sinal. — Vanieli falou, apontando levemente para a fonte.

Um sorriso antecedeu a explicação da mulher. O gesto foi suave, quase musicado, e a fez parecer mais jovem.

— É um ritual de purificação. Geralmente, é feito na água, embora também possa ser realizado com fogo. — Ela gesticulou, pedindo que Vanieli se aproximasse. — Venha, entre. A água poderá lhe mostrar seu verdadeiro caminho.

— Mesmo? — A moça perguntou, desconfiada.

— Nunca se está perdido quando se tem água por perto. — Garantiu a outra.

Vanieli desfrutou a vista e a luz solar por um momento, antes de decidir se juntar a ela dentro da fonte.

— Não tenha receio. — Disse a mulher. — Você está segura aqui.

Assim que seus pés tocaram o líquido, Vanieli recordou o que se passou no abismo. Lágrimas deslizaram por sua face e um caminho obscuro surgiu à sua frente. A dor da perda tornou-se quase sufocante, mas algo dentro dela gritava e implorava para não desistir e esquecer Lenór. Ela precisava encontrá-la.

— Espere! — Disse a mulher, antes que ela se afastasse. — Poderia me dizer o seu nome?

— Vanieli Kamarie.

A mulher sorriu, dizendo:

— É um prazer conhecê-la, Vanieli. Estou certa de que iremos nos reencontrar algum dia. Lembre-se, quando acreditar que está perdida, busque esclarecimento na água. E nunca saia do caminho.

Vanieli assentiu devagar, então começou a seguir o caminho que se apresentou. Lhe ocorreu que não perguntou o nome da mulher e voltou-se, notando que ela já estava desaparecendo. Mesmo assim, fez a pergunta e a resposta quase se perdeu no vento.

 

***

 

Vanieli abriu os olhos e fitou o teto do seu quarto, o qual reconheceu antes de olhar em volta, graças a uma rachadura que recordava as formas de um cavalo. Ela piscou algumas vezes, sentindo o cheiro da fumaça que o vento introduziu no aposento, através da janela aberta.

As lágrimas lhe chegaram depois disso, silenciosas e doloridas, enquanto as imagens da queda de Lenór repetiam-se em sua mente uma vez após a outra. Soluçou e exalou forte, sentando-se na cama e uma mão surgiu à sua frente, lhe entregando um copo com água, o qual ela pegou com os dedos trêmulos.

Um nó se formou na garganta e foi preciso segurar o copo com ambas as mãos para conseguir tomar a água. Só então, ela foi capaz de erguer a face para fitar a pessoa que lhe entregou o recipiente. Seus olhos se encheram de lágrimas e, ainda na cama, agarrou a cintura da mulher, que pousou as mãos nos ombros dela com suavidade.

Vanieli chorou agarrada a Adel, como se ela fosse um porto seguro em meio a uma imensidão desértica. Nem mesmo seu costumeiro desconforto perante a daijin, a impediu de buscar consolo nela. Passou tanto tempo agarrada a Adel, que suas lágrimas já tinham secado quando se afastou.

Livre, Adel lhe entregou uma xícara de chá morno. Da qual bebeu sem ânimo, sentindo a cabeça doer tanto quanto o corpo.

— O que… — Ela ergueu os olhos para o semblante sério de Adel, notando o pesar que transparecia. Voltou a encarar a xícara.

— Tome tudo. — Disse a daijin, cuja aparência não era das melhores.

Suas roupas estavam rasgadas, havia sangue coagulado em alguns cortes, enquanto pequenos arranhões ainda pareciam sangrar. Entretanto, o costumeiro cansaço que aprendeu a notar em sua postura não era visível. Algo havia mudado nela.

— Vai ajudá-la a se recuperar do desgaste mágico mais rápido. — Concluiu Adel.

A Kamarie obedeceu. Tomou a bebida em pequenos goles, quase não percebendo o seu amargor. O espelho no canto do quarto lhe mostrou o reflexo de uma estranha molhada e enlameada na sua cama. Custou perceber que era ela mesma e as lágrimas voltaram a se acumular nos seus olhos.

— O que aconteceu? — Vanieli concluiu a pergunta, após limpar a garganta.

— Você desmaiou, depois que… — A tristeza em seu semblante fez Adel se calar, então a incentivou a terminar de tomar o chá e depois a deixou sob os cuidados de uma serva, para dar atenção aos seus próprios ferimentos.

Quando regressou algum tempo depois, encontrou Vanieli sentada na cadeira que Lenór costumava ocupar diante da lareira. A moça acariciava o braço da cadeira, como se estivesse tocando uma pessoa invisível.

Adel nunca foi do tipo emocional, porém a cena lhe pareceu tão triste que tomou um instante para se recuperar do impacto dela e entrar no quarto, fechando a porta atrás de si. Ela fez um gesto suave com a cabeça, dispensando a serva, que aguardava silenciosa junto à parede.

Antes que pudesse falar algo, Gael entrou no quarto. Ele olhou em todas as direções, antes de parar diante de Vanieli.

— Aneirin vashir?

Embora não compreendesse as palavras, Vanieli entendeu que ele estava perguntando pela sua gata, a qual havia batizado de Aneirin. Ela continuou olhando para ele em silêncio, segurando as lágrimas, ao passo que Adel se aproximou, fazendo um carinho rápido na cabeça do menino e chamando sua atenção.

Aneirin du pohr. — Sorriu para ele. — Já procurou na cozinha?

Ele balançou a cabeça, sorriu e saiu correndo do quarto.

— Por que não estou surpresa que saiba falar a língua das Ilhas Lester? — Vanieli perguntou, como se esse fato fosse a única coisa importante naquele momento.

— Poucas palavras. — Adel revelou. — Acabei aprendendo de tanto que ouvi ele e o avô conversando.

Ela enfiou uma mão entre os cabelos úmidos. Assim como Vanieli, tinha tomado um banho, se trocado e envolto alguns dos seus ferimentos em bandagens.

— Ele ainda não sabe. — Contou para Vanieli, lançando um olhar para a porta que o menino deixou aberta. — Rall pediu aos outros servos que evitassem comentar algo na frente dele.

Vanieli balançou a cabeça, fitando o chão. Novamente, Adel sentiu-se incomodada com a apatia em suas feições. Limpou a garganta e disse:

— Sei que não é o momento para falar dessas coisas, mas temos visitas. Os lordes Taniel Baruki e Arino Kamarie chegaram há alguns minutos e já estão se inteirando do que aconteceu. A presença daquela florinae e da sua amiga, está inflamando uma discussão na biblioteca.

O olhar de Vanieli abandonou o chão e pousou sobre a mesa, no canto do cômodo, onde uma das espadas de Lenór repousava, ainda suja de sangue. A outra lâmina havia caído com ela no abismo.

— Tenho uma pergunta para você. — Ela falou, trazendo a vista para Adel.

Definitivamente, algo tinha mudado nela naquelas poucas horas. Seu tom costumava ter uma nota de provocação e alegria, mesmo quando falava seriamente. Naquele momento, porém, Adel só percebeu um misto de amargura e raiva.

—  Seu compromisso com a minha esposa é importante o suficiente para você também me servir?

As feições benevolentes e simpáticas da serva, deram lugar à expressão rígida de quem estava acostumado à vida através do fio da espada.

— Está pedindo a minha lealdade como daijin?

— Não foi isso que perguntei. Você me entendeu.

Adel bem sabia que sua presença desagradava Vanieli e, sendo sincera consigo mesma, a Kamarie também não lhe inspirava os melhores sentimentos. Inspirou fundo, analisando a pergunta. De fato, o que Vanieli queria saber era se ela continuaria sendo leal a Lenór, mesmo após a morte, o que implicava continuar protegendo seus interesses e família.

— Sim. — Respondeu, por fim. — Enquanto for a vontade de Amani, permanecerei no Castelo do Abismo.

Satisfeita com a resposta, Vanieli ficou de pé.

— Neste caso, acho que já está mais do que na hora de voltar a ser você mesma, Aisen.

 

***

 

Os Lordes Arino e Taniel estavam sentados à mesa do salão de refeições do Castelo. Ambos olhavam para o capitão Elius como se o relato dele fosse pura loucura. Entretanto, à medida que a narrativa avançava, os outros presentes no salão confirmavam suas palavras e tomavam a liberdade de adicionar informações.

Elius conclui sua história mirando Lorde Arino, que ouviu tudo cofiando a barba, como se estivesse a alisar um animal de estimação. O homem balançou a cabeça e saltou o olhar do soldado para as duas mulheres sentadas no lado oposto da mesa.

Duas magas.

Ele conteve a vontade de fazer uma careta de desagrado, porém não foi capaz de ocultá-lo na voz:

— E vocês? Como vieram parar aqui e justo no meio dessa confusão?

— Creio que o mais certo a perguntar, Lorde Arino, seria o motivo delas terem criado essa situação. — Lorde Taniel preferiu ser sincero quanto ao que pensava.

Quando eles adentraram na cidade, o fogo que consumia algumas casas já havia sido controlado ou extinto com o auxílio da chuva. Os feridos dos desabamentos e ataques das criaturas foram resgatados e os que se encontravam em estado mais grave receberam ajuda curativa daquelas duas. Mesmo que algumas pessoas tivessem se mostrado reticentes em aceitar a cura pela magia, a dor e o medo da morte falaram mais alto, abrindo caminho para a aceitação.

O próprio capitão Elius fora curado por elas e ainda usava as roupas rasgadas e ensanguentadas pelo osso da perna quebrada. Ele inclinou a cabeça, falando para Taniel:

— Meu lorde, longe de mim querer ofendê-lo, mas peço humildemente que modere seu tom e evite acusações infundadas contra as bravas mulheres, que vieram em nosso socorro em um momento tão cruel. Não fosse por elas, essa tragédia poderia ter sido maior.

O jovem lorde o olhou com desprezo equivalente ao que dirigia para as magas.

— Um peão insolente, como você, acredita ter poder para repreender um lorde? O seu papel nesta conversa já acabou, soldado! — Ele aumentou o tom. — Atenha-se ao seu lugar!

A conversa foi interrompida com a chegada de Vanieli e Adel. Esta última, após o pedido de Vanieli, tinha trocado suas vestes outra vez e agora usava uma túnica de mangas curtas e sem gola, que revelava a tatuagem do sol, símbolo que a caracterizava como uma serva da Deusa Amani, um pouco abaixo da clavícula. E, embora não estivesse usando a máscara, que trazia atrelada em um dos ombros, a visão desta trouxe mal-estar aos rostos dos dois lordes e surpresa aos outros homens na sala.

O capitão Elius a analisou com um sentimento mesclado de confusão, respeito e tristeza.

Desde os primeiros dias da viagem até o Castelo, ele tinha notado que Adel não era uma serva qualquer. Embora tivesse as expressões certas de humildade, a moça possuía o olhar sagaz, além de uma postura rígida que ele associou rapidamente a de alguém acostumado a carregar a espada na cintura. Não demorou muito para que suas impressões se confirmassem, quando foram traídos na floresta.

Depois disso, ele estava certo de que Adel era algum tipo de protetora, escolhida pelo rei ou a própria Lenór, oriunda de algum reino amariliano, e ocultada pelo título de serviçal. Contudo, nunca imaginou que ela fosse a verdadeira Aisen, a quem assistiu cruzar os corredores do palácio real inúmeras vezes, acompanhando o comandante Mirord.

Ele sentia-se um parvo, porém aceitava o fato de que havia coisas que não eram da sua alçada. Nos planos do rei, ele era apenas mais uma peça.

Os nobres e as duas magas ficaram de pé, em respeito a chegada da senhora da casa, como demandavam os costumes de Cardasin. Enquanto aqueles que já estavam de pé, ofereceram um leve inclinar de corpo e cabeça para ela.

Lorde Arino deu a volta na mesa, para receber o cumprimento da filha e oferecer seus pêsames. Naturalmente, o abatimento de Vanieli era perceptível, entretanto, ele também notou algo diferente nela. A postura da moça havia mudado. Se antes ela se obrigava a manter os olhos baixos com ares de obediência, agora, o encarava diretamente com uma expressão que beirava o desafio.

Essa percepção se confirmou, quando os cumprimentos se encerraram e ela se voltou para o líder do Clã Baruki.

— O capitão Elius, certamente, foi um pouco atrevido, Lorde Taniel. Contudo, ele o fez segundo a liberdade e autoridade que ganhou da minha esposa e de mim, também. Entretanto, ele foi gentil demais ao repreendê-lo. De minha parte, espero não ter que fazê-lo, se o senhor se desculpar adequadamente com as minhas convidadas.

O rapaz pareceu muito desconcertado com a audácia dela, ainda mais por estarem na presença de outras pessoas. A voz de Lorde Arino se elevou:

— Como se atreve a falar com Lorde Taniel dessa forma?

Ela suspirou levemente, não estava com ânimos para a “boa educação” que se esperava de uma damna, tampouco abriria mão do seu poder naquele lugar. Lenór havia lhe ensinado que alguns limites devem ser definidos nos primeiros momentos de um encontro. Vanieli a criticou por isso em relação aos soldados que ela quase expulsou da Guarda Real, quando se apresentou a eles, agora, compreendia muito bem o que a esposa fizera e por qual razão.

— Me atrevo, meu pai, porque esta é minha casa e, no momento em que adentraram nela, ficaram sujeitos às leis de hospitalidade. Lordes ou não, devem respeitar este teto e todos aqueles que se abrigam debaixo dele. Se acaso alguém não concordar com isso, é livre para partir.

Os ombros de Lorde Arino se endireitaram, como se ele estivesse se preparando para enfrentá-la, contudo, o gesto não passou de empáfia. Seu desagrado era evidente, porém, não poderia discordar da filha.

Não interessava a parte do mundo em que se encontravam, a “hospitalidade” era uma tradição encarada com seriedade e cada reino ou tribo tinha suas normas. Todavia, uma delas era igual em todos eles: hóspedes que ofendiam seus anfitriões de alguma forma, eram desonrados e rejeitados onde quer que fossem.

— Você não se atreveria. — Insistiu Lorde Taniel, descrente.

Ele mal conseguiu esconder sua revolta por ter sido repreendido daquela forma por uma mulher e diante de pessoas do povo.

— Minha casa, minhas regras. — Vanieli esclareceu, inflexível.

Um sorriso cético ainda bailou nos lábios dele, antes de olhar para Lorde Arino e receber deste um gesto que, claramente, dizia para não se opor. Indignado, Taniel se empertigou, fazendo um gesto suave para ela.

— Peço desculpas pela minha grosseria, Damna Vanieli. — Disse ele, quase engasgado com as palavras. — Aproveito para expressar meu pesar pela sua perda.

Em resposta, Vanieli fez uma reverência delicada, quase musicada.

— Aceito suas desculpas, Lorde Taniel. Lhe dou as boas-vindas ao Castelo do Abismo e a você também, meu pai. Me alegra o espírito poder revê-lo, após tantos meses longe.

Ela se voltou para as duas mulheres e se aproximou delas. Estendeu as mãos e cada mulher tomou uma. Ao mesmo tempo, curvaram-se ligeiramente, murmurando um cumprimento. Quando elas se endireitaram, foi a vez de Vanieli se curvar. Respeitosamente, ela levou a mão de Voltruf em direção à testa, contudo não chegou a tocá-la.

— Agradeço seu auxílio e coragem, Voltruf. É a segunda vez que nossos caminhos se cruzam e, em ambas as vezes, você não hesitou em usar sua espada para proteger as pessoas deste reino.

Endireitou-se rapidamente e soltou a mão da florinae, pousando-a sobre a da outra mulher. Mirou os olhos dela com atenção, impressionada com o azul cristalino que imperava nas íris. Aisen lhe contou o que aconteceu depois que desmaiou e, também, a identidade da maga que veio do deserto.

— É uma honra conhecê-la, Grã-mestra Melina. Em nome das pessoas deste lugar e da minha esposa, que infelizmente está ausente, — a voz lhe falhou por um instante, carregada de emoção —  agradeço sua ajuda.

— A honra é minha, Damna Vanieli. Lamento não ter chegado a tempo de impedir uma tragédia. Que os deuses consolem seu coração.

Ela pousou a mão livre sobre a de Vanieli, apertando-a levemente. O gesto deu à moça, a impressão de que ela compreendia muito bem aquele tipo de perda e suas palavras não ditas apenas por educação ou costumes.

A grã-mestra da Ordem tinha um sorriso gentil, assim como o olhar. E foi difícil para Vanieli conceber aquele rosto jovem com a imagem que sempre teve dela, graças às histórias que ouviu sobre uma idosa. A própria Lenór descreveu Melina d’Santúria como uma velha, na única vez em que se animou a falar sobre sua fuga de Cardasin.

A Kamarie inspirou fundo, engolindo o choro que se aproximou, ao pensar na esposa. Soltou a mão da ordenada e voltou-se para Enzio. O homem estava encolhido ao lado de um dos pilares que sustentavam o teto, no qual seu ex-amante, Darlan, se recostava.

O guarda conteve a vontade de sorrir ao ser notado, porém Vanieli limitou-se a passar o olhar pelo rosto dele sem deixar escapar nenhum gesto de reconhecimento ou intimidade. Ela gesticulou para Enzio, que se endireitou ao ouvir seu nome.

— Necessito um momento a sós com o meu pai. — Vanieli anunciou. — Enzio, acomode os nossos hóspedes, enquanto isso. Ou, talvez, isso possa ficar para depois. — Ela fitou a mesa, reparando na luz que invadia o salão através das janelas. — A manhã já está quase no fim e estou certa de que ninguém se alimentou hoje.

O feitor do castelo esperou um momento e como ninguém se manifestou em contrário à sugestão, informou:

— Irei providenciar a refeição. — Antes que ele se retirasse, Vanieli tornou a chamá-lo.

— Providencie, também, sacos de viagem para três ou quatro dias… — Ela fitou a daijin, em busca de orientação.

— Creio que seis sacos serão suficientes e é importante que sejam leves. — Disse Aisen, ao passo que Vanieli se dirigia para Elius:

— Vou precisar de quatro dos seus melhores soldados.

— Mas do que se trata isso? — Quis saber Lorde Arino.

A filha retornou a atenção para ele, explicando:

— É simples, meu pai. Estou indo buscar a minha esposa.

— Mas que disparate é esse? Acaso enlouqueceu? — Gritou o lorde.

Uma expressão de desdém visitou o semblante abatido de Vanieli.

— Acredite em mim, pai, estou muito longe da loucura.

Ela se voltou para a porta, indicando para ele a direção que deviam tomar para irem até a biblioteca particular de Lenór. Só então, notou a presença de Rall.

— Vanieli. — O velho a chamou, abandonando o costumeiro tratamento de respeito. De fato, era a primeira vez que ele a chamava pelo nome. — Ela se foi.

O rosto dele denunciava tanta tristeza, que Vanieli quase perdeu as suas certezas. Ela mordiscou os lábios para não chorar diante daquelas pessoas, sobretudo do pai. Os olhos marejaram, porém a voz soou firme quando disse:

— Eu sei o que eu vi, mas o que vi e o que sinto são coisas bem distintas. E, mesmo que seja o caso dela realmente estar morta, não vou permitir que o seu túmulo seja o fundo daquele maldito buraco! Eu vou buscá-la, Rall, nem que seja a última coisa que eu faça na vida!

 



Uou!

A “Vani” está bem decidida, hein? 🙂

Aposto que estão ansiosas para o que vem a seguir. Sinto dizer que essa ansiedade vai aumentar um pouquinho, pois não haverá postagem na semana que vem. Volto com outras emoções de “O Castelo do Abismo” no dia 06/01/2020.

Espero que vocês tenham um Natal abençoado ao lado dos seus familiares. Que seja um momento de reflexão e muito amor. E que o novo ano seja de muita luz para todos nós.

Beijos e xêros!

 

PS: Vocês já podem voltar a “curtir” os capítulos.  É só clicar no botão de “like” aqui embaixo e selecionar a carinha desejada. Masssss… Comentem, também. É sempre bom ler o que vocês estão achando. 🙂



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para 17.

  1. Fortes emoções. Maravilhoso capítulo, e muito confiante que Lenór está somente ferida.
    Bjs
    Feliz Natal e um Novo ano de muita esperança e renovação

  2. Tattah,

    Um cap. sensacional, pura emoção e força, Vanieli renasceu,
    é outra mulher, uma q foi forjada na amizade e carinho por Lenor.
    Desejo um final de ano abençoado pra ti e esposa.

    Q 2021 nos seja leve e traga a liberdade de nos reunir
    novamente.

    Bjs,

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