Lorde Arino entrou na biblioteca particular de Lenór, como uma pequena tempestade. Ele voltou-se para a filha, que fechou a porta atrás de si com calma calculada, antes de sentar na cadeira atrás da mesa.

Novamente, ela foi tomada pela emoção ao pensar na esposa. Suspirou longamente, enquanto o pai falava:

— Não sei que loucura está se passando na sua cabeça, mas você não vai a lugar algum! Aceite logo o fato de que é uma viúva e dê seguimento a sua vida.

Ainda forçando a calma, ela respondeu:

— Aceite você o fato de que eu vou descer naquele abismo em busca de Lenór. E enquanto não colocar meus olhos no corpo sem vida dela, continuarei tendo esperanças. — Fez uma pausa e corrigiu-se: — Na verdade, estou certa de que ela está viva.

Arino deslizou uma mão pelo rosto, tentando conter sua irritação. A única razão para se segurar, era que ele compreendia o desejo da filha de se agarrar a uma esperança inútil, porque ainda não era capaz de aceitar a morte trágica da esposa. Afinal, ele viveu um momento parecido quando seu filho caçula faleceu três anos antes, durante o conflito que o anúncio do casamento de Vanieli com Mirord pôs fim.

— Eu tive um sonho, pai. Um sonho de verdade, do qual me lembro com clareza. Nada como os pesadelos que me perturbam há anos. Eu sonhei com Lenór. Foi assustador, mas também reconfortante. E quando eu acordei, fiquei rememorando cada momento desse sonho. E quanto mais pensava nele, mais certa ficava de que aquilo realmente aconteceu.

— Isso me parece, de fato, loucura.

— Eu prefiro chamar de aprendizado. Durante muito tempo, reprimi minha magia por medo. Medo do seu medo de que alguém descobrisse que você gerou uma filha maga. Medo de ser rejeitada pela nossa família e clã. Medo do que Cardasin poderia fazer com alguém como eu.

Cerrou os olhos por um instante, recebendo o vento quente do deserto, que entrava pela janela aberta. A mente a transportou de volta ao sonho que comentou. Viu o palácio, os jardins, a fonte, a mulher misteriosa de sorriso benevolente e o caminho sombrio que surgiu quando entrou na fonte e não hesitou em percorrer.

 

Outra vez, ela caminhou em meio à névoa, contudo, havia algo diferente ali.

Alguma coisa a puxava para direção correta, como se fosse um fio mágico e invisível que a conectava ao seu objetivo: Lenór.

De repente, estava em meio a uma floresta escura e densa. O cheiro de fumaça lhe invadiu as narinas e vislumbrou chamas por trás da folhagem úmida, graças à chuva fina que caía.

Tomou a direção das chamas e não demorou para se encontrar em uma pequena clareira. Parecia que algo grande havia caído dos céus, formando uma cratera e queimando tudo em volta. Ela se aproximou da borda da cratera, mas não havia nada lá, além de sangue e marcas que indicavam que algo ou alguém se arrastou para fora dela.

O senso lhe dizia que devia se afastar, mas o instinto a compelia a ir adiante.

Ela seguiu as marcas por meros dez metros, adentrando na floresta, outra vez. Sentiu o descompasso do coração quando encontrou Lenór recostada a uma árvore, respirando ruidosamente. Suas roupas estavam chamuscadas, contudo ela não tinha queimaduras visíveis, tampouco ferimentos além dos que sofreu antes de cair no abismo.

Vanieli ajoelhou-se ao seu lado. Tentou tocá-la, todavia seus dedos passaram através dela.

Lenór abriu os olhos e a fitou como se não a visse, porém ergueu uma mão para ela e disse algo que a Kamarie não conseguiu entender. Vanieli quis tocá-la novamente e falou com ela, mas todas suas tentativas foram inúteis. Então, Lenór fechou os olhos e Vanieli foi sugada para a consciência.

 

Voltou a fitar o pai.

— Não sei usar esses dons, mas quero aprender. E me recuso a voltar a ter medo deles. De alguma forma, ainda incompreensível para mim, eu fui até o fundo do abismo. Lenór está lá, ferida, mas viva.

Arino balançou a cabeça. Fosse outro, poderia acreditar que ela realmente havia enlouquecido, mas, afinal, como Vanieli afirmou, era uma maga. E ainda que ele não gostasse desse fato, isso nunca iria mudar.

Ela o mirou como se estivesse diante de um estranho. Até mesmo a palavra “pai” lhe parecia diferente.

— Lenór nunca me fez promessas, pai. Em vez disso, me tratou com respeito e carinho e me fez perceber que não devo temer quem sou. Nós concordamos em cuidar uma da outra. E foi porque estava me protegendo que ela caiu. Então, viva ou não, irei buscá-la. Sei que você me compreende. Sei que entende minha necessidade de dar um fim digno — se for realmente o caso — para a mulher com quem me casei e que arriscou a vida pela minha.

— Jamais imaginei que poderia ouvir algo do tipo vindo de você. — Ele puxou a cadeira à sua frente e sentou.

Ela enfiou uma mão nos cabelos, fitando a madeira do móvel com um sorriso irônico.

— Com certeza, a Vanieli de meio ano atrás não diria mesmo. — Admitiu. — Mas aí, ela teve de se casar com uma mulher incrível. E por mais assustadora e errada que essa situação lhe parecesse, ela descobriu outro jeito de viver e aprendeu tantas coisas, desde então… Uma delas é dizer o que pensa e agir de acordo com isso.

— Você já fazia isso antes. — Relembrou Arino.

— Não mesmo, meu pai. Apenas arranhava a superfície dos meus verdadeiros desejos e pensamentos.

Ela recostou-se na cadeira, unindo as mãos sobre o colo para esconder a ansiedade, que se manifestava através de um ligeiro tremor. Seu desejo era partir para o abismo naquele instante, mas havia muito a fazer antes disso e, de todo modo, Aisen precisava de uma ou duas horas para preparar tudo para a descida.

— Contudo, isso não interessa agora. — Concluiu.

O pai deu uma batidinha na mesa, concordando. Encarou-a com uma expressão quase serena.

— Seu desejo é nobre, respeito isso e admito que me deixa orgulhoso de que, ao menos um dos meus filhos, compreenda o verdadeiro significado de “honra”.

— Certamente, não quem você desejava. — Alfinetou ela, conhecedora da predileção do pai pelos filhos homens.

Ele desprezou a provocação e continuou o que dizia, antes dela o interromper.

— A questão é que, como seu pai, você me deve obediência. Mesmo compreendendo seu desejo e reconhecendo a possibilidade de que esteja certa e, por um milagre Lenór ainda esteja viva, não irei permitir que se mate em uma busca insana por alguém que já “deixou” este mundo. Pois, até que você a alcance, “se” conseguir alcançar, poderá ser tarde demais. E se essas criaturas vieram do abismo, também é certo concluir que ela não tem a menor chance, se a encontrarem.

Mostrou um sorriso raro, ciente de que estava sendo cruel. Todavia, era necessário para chama-la à razão.

— Você já cumpriu o seu papel. Casou-se com um Azuti, como era desejo do rei. Temos a tão sonhada e frágil paz que ele queria, embora isso também tenha feito o reino mergulhar na desordem. Você está isolada neste lugar há meses, não tem ideia do que acontece em Cardasin, desde o seu casamento. Se olhar pela janela, verá um grupo de mulheres usando o uniforme da Guarda. Consegue imaginar a confusão que isso causou e tem causado?

 Cofiou a barba, inclinando-se um pouco para a frente e Vanieli passou a mão na testa, rindo suavemente.

— Me alegra poder discordar de tudo o que disse. Você não conhece a minha esposa, pai. Lenór não vai se deixar abater tão fácil. E, com certeza, chegarei até ela antes que isso aconteça.

Encararam-se em desafio por um instante, antes dela continuar:

— Quanto ao resto, não apenas imagino, como sei. Ao contrário do que muitos pensam, nós não fomos enviadas para o Castelo do Abismo para sermos esquecidas após cumprirmos nosso papel. Essas mulheres estão aqui para serem treinadas pela minha esposa, como ficou acertado entre ela e os outros comandantes gerais da Guarda, muito antes de deixarmos a capital.

Ela tamborilou os dedos na mesa, apreciando o efeito que a informação causou no semblante do dele.

— Achou mesmo que o rei e seus comandantes deixariam essas mulheres à mercê de homens que não as querem por perto?

Por mais que o objetivo do soberano fosse o de levar seu povo a uma nova perspectiva sobre respeito e igualdade, era necessário manter os pés no chão para não se perder da realidade. Os comandantes Saules e Dairós eram fiéis ao rei e, embora discordassem de algumas de suas posições e resoluções, empenhavam-se para que ele alcançasse o sucesso desejado.

Embora houvesse boa vontade por parte deles, existia uma coisa para a qual não estavam preparados para lidar: a presença de mulheres no exército.

Decerto, foi com alívio que ambos receberam a sugestão do rei de que essas mulheres fossem enviadas para o Castelo do Abismo.

A princípio, Lenór desgostou da ideia, depois lhe ocorreu que não seria tão ruim, tendo em vista seu desejo de tornar a Guarda do Castelo a elite do exército cardasino. Se conseguisse tal feito, redistribuiria esses soldados em postos de comando pelo reino e, como já teriam a experiência de servir ao lado de mulheres, seriam capazes de conduzir o treinamento de tropas mistas sem conflitos de quaisquer espécie.

— Deixemos isso de lado por um momento. O fato é que, desde que me casei, sua vontade como pai é meramente um desejo e continuará sendo. Confesso que a sua preocupação me deixa muito tocada. Afinal, o senhor não é muito de demonstrar seu apego. — Cutucou ela. — Contudo, no que se refere à obediência, não tenho mais obrigação de atendê-lo, exceto como líder do clã no qual nasci.

Lorde Arino pousou as mãos na mesa com os punhos cerrados, indignado com a afronta.

— Ora, meu pai, acha mesmo que teria aceitado me casar com uma mulher se não houvesse uma vantagem nisso? O rei obrigou vocês, lordes, a aceitarem essa união. Contudo, ele foi muito justo conosco ao nos dar o poder de escolha, além de muitas vantagens. Tanto o senhor, quanto Lorde Kanor, deveriam ter lido o contrato de casamento com um pouco mais de cuidado.

Ele respirou pesadamente, admirado pela confiança que nunca antes vislumbrou nela. Não admitiria em voz alta, mas estava gostando de ver aquele novo posicionamento na filha. Contudo, isso não significava que ele não podia se irritar com a sua atitude, além do fato do rei ter lhe passado para trás.

— Entretanto, não foi para afrontá-lo que o trouxe até aqui. Tenho coisas a contar e um pedido a fazer. — Vanieli baixou a vista para as mãos dele, admirando os dedos longos por um momento.

— Para quem parecia estar com pressa, há poucos instantes, você está bastante disposta a desperdiçar um tempo “precioso”. — Arino ironizou.

Vanieli se endireitou na cadeira.

— É apenas necessário, pai. Por mais que esteja preocupada com Lenór e deseje ir a sua procura o mais breve possível, estaria sendo irresponsável e indigna da confiança que ela e o rei depositaram em mim, se fizesse isso sem providenciar algumas coisas.

— E o que eu tenho a ver com isso?

 

 

***

 

 

No salão de refeições, apenas Lorde Taniel parecia disposto a se alimentar. Embora estivesse irritado com a companhia, o rapaz dedicava-se ao prato à sua frente com prazer. Vez ou outra, ele lançava olhares desconfiados para as duas magas sentadas no fim da longa mesa e quase engasgou quando Aisen juntou-se a elas, algum tempo depois, fingindo não notar seu completo desagrado.

— É divertido, não é? — Voltruf perguntou para ela.

A distância e o tom de voz baixo lhe davam a certeza de que o lorde não podia ouví-la; não que isso lhe importasse. Contudo, importava para a grã-mestra ordenada ao seu lado. Promover altercações não fazia parte da natureza de Melina, principalmente, porque uma parte importante do trabalho da Ordem era oferecer mediação para conflitos.

— Do que fala? — Aisen indagou, fitando-a rapidamente, antes de passar a observar o protetor recostado a uma parede no canto.

Embora se mostrasse rígido e atento, a daijin capturou uma microexpressão de ansiedade em suas feições. Não tinha escapado aos seus olhos, o modo como Darlan olhava para Vanieli, ainda que ele soubesse bem como esconder seu querer.

— Não perca seu tempo tentando entendê-la. Os florinae têm um humor peculiar. Adoram um pouco de discórdia. — Disse Melina, amigável.

Ela passou os olhos sobre as feridas de Voltruf, preocupada com o fato de que ainda não tinham começado a cicatrizar, o que era bastante curioso diante da natureza mágica dela. Então, se perguntou se poderia tentar curá-las ou acelerar esse processo e, principalmente, se Voltruf permitiria isso.

— Ah, Melina, não finja que não gostou quando aquela moça colocou esse parvo em seu lugar. — Voltruf descansou o queixo na mão. — Não pode ser sempre neutra. Não foi você mesma quem disse que almejar a paz nem sempre significa ser pacífico?

A grã-mestra balançou a cabeça, deixando um risinho deformar a boca.

— Oh, nós já tivemos essa discussão antes e você não vai me arrastar para ela novamente. — A grã-mestra respondeu, jocosa.

— Da minha parte, foi deveras agradável. — Aisen se manifestou. — Não é todo dia que Vanieli resolve se mostrar tão firme. Normalmente, ela se esconde atrás de Lenór. Mas devo admitir que essa mudança repentina de atitude me preocupa…

— Não é para menos. Todas vimos o que aconteceu após a queda de Lenór. — Voltruf observou. — Vanieli é um perigo para si mesma e para quem estiver à sua volta. Ela sequer imagina o quão poderosa é.

O comentário incitou a curiosidade de Aisen, todavia Voltruf não se aprofundou no assunto.

— Descontrolada como um rio caudaloso após uma forte tempestade. — Melina comentou, mais para si do que para as outras. — Suas cartas foram muito sucintas sobre o que acontecia aqui.

A florinae esticou o braço sobre a mesa e pegou uma jarra de vinho. Encheu um copo para si e outro para a grã-mestra, indagando com um gesto se Aisen também queria um pouco, ao que a daijin respondeu com um balançar negativo de cabeça.

— Não pode me culpar por isso. — Falou, após tomar um gole da sua bebida. — Espíritos da terra são muito difíceis de se encontrar por aqui. Por mais incrível que isso possa parecer, já que estamos ao lado de um deserto.

Sua pequena movimentação chamou a atenção de Lorde Taniel, que havia finalizado sua refeição e agora matava o tempo girando uma faca sobre a mesa, como se não passasse de uma criança.

— Na verdade, Melina, todos os tipos de espíritos são raros neste lugar. E isso me incomoda profundamente. — Observou o ligeiro arquear de sobrancelhas da grã-mestra, que permaneceu em silêncio. — Os poucos com os quais topei, mal conseguiam se manter atentos ao que eu lhes dizia. Além disso, foi bastante desgastante, magicamente, enviar aquelas mensagens através deles.

Ela entornou a bebida, tomando-a de um único gole, enquanto Melina sorvia a sua tranquilamente.

— Você sabe que um grão de magia é suficiente para satisfazê-los e “comprar” os seus serviços, no entanto, eles queriam muito mais.

Quanto mais ouvia, mais curiosa Aisen ficava sobre as duas mulheres. Principalmente, sobre Voltruf. Aquela era a conversa mais longa que estava tendo com a florinae, após seu “encontro” no teto do castelo. Queria entendê-la, compreender sua verdadeira natureza e descobrir sobre sua relação com a Deusa Amani. Porém, não era o lugar para tal e, certamente, não era o momento ideal.

O retorno do capitão Elius ao salão pôs fim a conversa delas, Draifus e seu marido o acompanhavam. O capitão fez um gesto suave para Aisen e se aproximou da mesa com os homens, mas antes que pudesse se expressar, Vanieli e o pai voltaram ao recinto.

Diferente de quando acompanhou a filha para fora daquele salão, Lorde Arino não tinha mais uma expressão colérica e sim, uma abatida e preocupada. Após ouvir a história da filha, ele sentia uma forte dor de cabeça, enquanto Vanieli se mostrava aliviada por despejar toda aquela responsabilidade sobre seus ombros. Não que estivesse tentando fugir delas, porém acreditava que era o certo a se fazer.

Talvez, Lenór a condenasse por suas decisões, contudo, Arino era seu pai. Deixando de lado os modos grosseiros e a visão estrita e rígida da criação cardasina, o lorde era muito fiel ao reino e a quem estivesse sentado no trono. Com efeito, ele não gostava de ter casado a filha com uma mulher e ainda por cima Azuti. Porém, sua revolta contra o rei parava por aí e nos costumes que o soberano tentava mudar.

Seus dons ainda eram confusos, mas nos últimos meses Vanieli aprendera a confiar neles. Se Lorde Arino fosse uma ameaça para ela, Lenór ou o rei, saberia no instante em que começou a lhe contar sobre os reais motivos delas estarem ali e tudo que lhes aconteceu e descobriram desde então.

Por isso, ao fim do seu relato, Vanieli não hesitou em pedir sua ajuda enquanto estivesse no abismo ou, se acaso o pior acontecesse com ela e companhia, que o lorde assumisse o controle da situação.

— Damna, é o meu dever cuidar de você e da comandante e peço perdão por ter falhado nele. Mas, também, é o meu trabalho aconselhá-las. Descer até o abismo é muito arriscado. — Elius falou cruzando o caminho dela.  — Por favor, ouça meu apelo. Desista dos seus planos e eu, pessoalmente, irei resgatar o corpo da comandante.

As mãos de Vanieli pousaram sobre os ombros dele, delicadas, porém firmes. Elius endireitou-se o máximo que pôde, fixando os olhos dela.

— Você é um bom homem, Elius. Agradeço sua oferta, mas essa missão me pertence e é seu dever ficar aqui, assim como é o meu ir buscar a minha esposa. Na ausência de Lenór, você é o comandante da Guarda Real no Castelo. O deixo em suas mãos competentes, sem medo de estar cometendo um erro. — Mostrou um sorriso sem dentes. — Você sabe bem o que deve fazer e o que está por vir. Meu pai irá ajudá-lo, se necessário.

Ela se afastou, notando a tensão de Lorde Arino aumentar, ante a afirmação.

— Não se preocupe, Aisen cuidará de mim.

A daijin se empertigou, ainda em seu assento e confirmou o que ela dizia com um aceno.

— Reúna os soldados que lhe pedi para nos acompanhar. Apenas desejo que estes sejam voluntários. Não quero ninguém ao meu lado que não deseje estar lá.

— Neste caso, senhora, Jeor e eu nos voluntariamos com prazer. — O engenheiro Draifus tomou a palavra.

Vanieli balançou a cabeça, em meio a um leve arquear de lábios. A declaração do engenheiro não a surpreendeu, visto que ele e Lenór acabaram por formar um laço de amizade a partir da admiração mútua. Não era incomum que os dois passassem horas jogando conversa fora quando suas responsabilidades lhe permitiam aquela liberdade. Na verdade, a comandante costumava se mostrar menos rígida quando estava com o engenheiro e seus homens. Afinal, eles tinham Barafor em comum.

— Sou muito grata por isso, Mestre Draifus, entretanto, devo rejeitar sua companhia. — Ela se aproximou dele e tomou suas mãos. — Com certeza, tê-los por perto me traria tranquilidade, mas assim como Elius, vocês também são mais necessários aqui.

Ela afrouxou o contato, porém não o soltou.

— Sei que não é o trabalho para o qual foi contratado, todavia apreciaria muito a sua ajuda na reconstrução da muralha. Depois do que houve, ela é a prioridade para manter o Castelo em segurança.

Não era exatamente a verdade absoluta, Draifus sabia.

— O capitão Elius e Rall irão ajudá-lo com isso. — Ela enviou um olhar significativo para o soldado, que não precisava de maiores explicações para compreender que devia apresentar os túneis sob o castelo para o engenheiro. Se outro desmoronamento ocorresse, bem mais que meia dúzia de casas poderia vir a ruir.

O engenheiro soltou o ar dos pulmões devagar, junto com as mãos delicadas de Vanieli. Olhou para Jeor, que meneou a cabeça de forma resoluta.

— Considere feito. — Falou. — Todavia, espero que aceite a companhia de Jeor. Sua experiência nesse tipo de terreno —  ou melhor, na ausência dele, —  será de grande utilidade.

Voltruf interrompeu a tentativa de Vanieli de responder ao engenheiro. Ela ficou de pé, enquanto dizia:

— Nós também iremos com você.

— Sou grata pelo o que fizeram, mas acho que não seria uma boa ideia. — Vanieli retrucou.

Na cabeceira da mesa, Lorde Taniel recolheu sua faca e cruzou as mãos sobre a madeira escura do móvel.

— É a primeira vez que concordamos em algo, Damna. — Afirmou ele. — Deixando de lado os últimos acontecimentos, que interesses uma florinae e uma ordenada teriam em entrar naquele abismo em busca de alguém que mal conhecem ou, no caso — apontou para Melina — nem conhecem?

Voltruf mostrou um sorriso escarninho para ele e foi até Vanieli, que reprimiu a vontade de recuar, relembrando o tigre furioso no qual ela se transformou e a gata que salvou ela e Lenór nos túneis. Tinha muita vontade de perguntar o motivo dela estar espionando-as naquela forma, entretanto não faria isso diante do pai e Lorde Taniel. Este último, acusou as duas magas de causarem aquela confusão e se viesse a se inteirar da espionagem, teriam uma guerra declarada contra a Ordem. E nem mesmo o rei conseguiria se impor contra isso.

A florinae pousou a mão na cintura dela, sem fugir do seu olhar. Os dedos delgados deslizaram até o cinto e envolveram o cabo da espada que ela trazia consigo — a espada de Lenór. Voltruf se afastou com a arma em mãos, desprezando o fato dos lordes terem segurado os cabos das suas próprias espadas, assim como Darlan, no canto do salão.

Ela entregou a arma para a grã-mestra, que deslizou os dedos pela lâmina, imersa em memórias que não eram totalmente suas. Algumas vinham de um ritual do qual participou anos antes, absorvendo lembranças e conhecimento além de compartilhar as suas próprias memórias e experiências com as companheiras de círculo.

Um sorriso trêmulo deformou seus lábios. Era mais uma expressão de lamento do que um gesto aprazível.

— Lenór Azuti. Aquela pobre criança… Não a vejo desde que viajou conosco para Amarilian.

Melina balançou a cabeça, analisando os símbolos gravados no metal da lâmina.

— Ela era tão pequena para a idade, triste e amedrontada. Silenciosa, como se tivesse a morte como perspectiva… — Interrompeu-se, lançando um olhar condoído para Vanieli. — Creio que você conhece a história.

A moça engoliu um soluço, fazendo um gesto afirmativo e Melina transferiu seu olhar azulado para Voltruf.

— É a espada “dela”, não é? — Indagou a florinae, farejando o ar como um animal. — A vi empunhando-a e a sua gêmea tantas vezes, que seria impossível não reconhecê-la. Até tem o cheiro dela.

— Não poderia ser diferente, já que foi forjada com o seu sangue. — Melina retrucou, respondendo indiretamente.

— Fiquei surpresa ao vê-las com Lenór, mas isso fez bastante sentido após ter assistido a surra que ela deu no tal Tenente Adamus. Pobre coitado!

Melina abandonou a mesa para devolver a lâmina para Vanieli, que voltou a colocá-la na cintura. A Kamarie sentia-se estranha com ela, entretanto, era como se Lenór estivesse ao seu lado e isso a mantinha calma e focada.

— Mas do que estão falando? — Questionou Lorde Arino.

A grã-mestra fez um gesto displicente, desprezando a pergunta e anunciando para Vanieli:

— Nós iremos com você.

— Por quê? — Lorde Arino insistiu, ainda mais desconfiado.

Entretanto, Vanieli tinha um questionamento que considerava mais importante para fazer.

— Vocês sabem o que está havendo aqui, não é? Aquelas coisas… — Apontou para uma direção qualquer. — Lenór e eu quase morremos lutando contra uma, apenas “uma”. Mas vocês mataram várias com facilidade.

Voltruf sorriu, debochada. Apontou para si mesma e as inúmeras feridas em seu corpo.

— Chama isso de “facilidade”? — Suspirou. — Definitivamente, não foi fácil e continuará não sendo quando elas voltarem. A verdade é que não temos a menor ideia do que está se passando aqui, mas é o nosso dever descobrir e impedir.

Ao lado dela, Melina cruzou os braços, soltando um suspiro forte.

— As criaturas que atacaram a cidade na noite passada, são semelhantes àquelas que o Cavaleiro Vermelho criou e contra as quais lutamos em Flyn. — Explicou. — São demônios.

Lorde Taniel espalmou a mão na mesa, chamando a atenção para si.

— As histórias dizem que esses monstros foram dizimados em Flyn. Todos os reinos de Amarilian afirmaram isso!

— Não precisa me falar o que já sabemos, Lorde. Nós estávamos lá. — Melina retrucou calmamente. — E é por isso que o aparecimento delas aqui é tão intrigante.

O rapaz pareceu estar prestes a cair na gritaria, contudo falou de forma calma.

— Não quero correr o risco de ofendê-las e a nossa anfitriã, mas há de convir que é bastante suspeito que essas coisas tenham aparecido aqui, justo quando vocês chegaram.

A grã-mestra preparou-se para destruir seu argumento, mas o velho Rall, que havia entrado no salão momentos antes, se manifestou:

— Não vieram com elas, Lorde. Há histórias de que ataques como esse vêm acontecendo há anos, contudo, poucas pessoas viram essas criaturas e escaparam para contar a história. O feitor do castelo pode confirmar isso para vocês e Mestre Draifus também.

— Exatamente! — O engenheiro balançou a cabeça com vigor. — Meus primeiros dias aqui foram bastante conturbados.

— O que é realmente curioso é o motivo deles aparecerem agora, de forma mais explícita e em uma quantidade expressiva. — Concluiu Rall.

Parte do abatimento que o tomou, mais cedo, tinha dado lugar a uma estranha calmaria em suas feições. Ele tinha perdido tantas pessoas queridas em tão pouco tempo, que às vezes achava difícil sorrir, mas ele continuava fazendo por Lenór e Gael. Eles eram a sua família. E mesmo tendo visto o que se passou, queria se agarrar nas certezas de Vanieli e acreditar que ainda existia esperança.

O silêncio reinou pela sala até que Voltruf decidiu aproveitar a pausa para encher outro cálice de vinho para si. Recostou-se à mesa, esclarecendo:

— Nossa presença aqui tem muito a ver com a vontade do seu rei.

— De fato. — Melina concordou. — É de conhecimento geral que o rei Mardus nos deu permissão para implantarmos casas de apoio ordenadas em Cardasin. O Castelo do Abismo se encontra em uma posição privilegiada no centro do continente. Com o restabelecimento da sua conexão com o deserto, voltará a ser frequentado por pessoas de todos os lugares. Quando o rei me falou de seus planos para ele, combinamos que a Ordem enviaria alguém para analisar a possibilidade de termos uma casa aqui.

— É uma explicação bastante conveniente, Maga. Contudo, coincidências não existem! Vocês têm algo a ver com isso!

— Devo tornar a lembrá-lo, Lorde Taniel, de onde está e quais são os seus deveres como hóspede? — Vanieli se interpôs na conversa.

O homem travou o maxilar em fúria, ameaçou retrucar, mas acabou por se calar. Voltruf retirou um pergaminho amassado de um bolsa atrelada ao seu cinto e entregou para o lorde que estava mais perto de si.

Lorde Arino reconheceu o selo do rei, antes mesmo de segurar o papel. Ele leu seu conteúdo em voz alta, que basicamente se tratava de um passe livre para que o portador daquele documento pudesse averiguar possíveis locais para a implantação das casas de apoio ordenadas, devendo ser bem recebido em qualquer parte do reino.

— Creio que, após isso, não há mais lugar para acusações infundadas nesta conversa. — Vanieli entregou o papel a Voltruf, após recebê-lo do pai e também lê-lo. — Todavia, não entendo como a presença desses monstros no Castelo do Abismo possa ser da conta de vocês. Compreendo a relação dessas criaturas com o que houve em Flyn, porém Cardasin não é da alçada de vocês, além do que está explícito nessa carta. E o que a espada da minha esposa tem a ver com essa história?

— O mundo inteiro é da nossa conta, Damna. Mas essa é uma conversa bastante longa, que requer tempo e mentes abertas; coisas um pouco raras por aqui, no momento. — Voltruf deu de ombros para o olhar reprovador de Melina que, por sua vez, assumiu seu costumeiro ar diplomático.

— Deixemos as explicações complicadas para um momento mais ameno, Voltruf. — Jogou um gesto suave no ar e falou para Vanieli. — Você pode nos encarar como duas especialistas em relação a essas criaturas. Como percebeu, não são fáceis de exterminar. E se estão se abrigando no abismo, nossa companhia será muito útil para você.

Ela fez um gesto delicado, que impediu Lorde Taniel de, mais uma vez, fazer acusações infundadas.

— Entendo como o resto do mundo, principalmente, os reinos deste lado do oceano, se sentem em relação ao fato de que a Ordem, — uma irmandade milenar, que sempre marchou sob uma bandeira de paz — decidiu participar de uma guerra. Não como mediador ou como uma entidade benevolente que ofereceria cura e consolo, mas sim, como poder bélico. É uma ideia assustadora, eu sei. As lembranças do que se passou, há cinco anos, e das decisões que eu, como líder da ordem tomei, ainda me aterrorizam.

Ela mirou Taniel, serena, mas claramente emocionada.

— Ir à guerra e lutar em vez de buscar a paz e oferecer cura, tornou-se uma opção quando a ameaça que o Cavaleiro Vermelho representava provou-se ser para todo o mundo e não apenas para um reino. Se essas coisas são mesmo “sombras” como as que combatemos em Flyn, é preciso detê-las antes que se tornem um exército. E mesmo que você rejeite nossa companhia, Damna Vanieli, nós iremos para o abismo de qualquer jeito.

— Seria mais sensato se fizéssemos isso juntos, não? — Voltruf atalhou.

— Quanto a sua outra questão, não se trata exatamente da espada, mas sim, da inscrição na lâmina dela.

— A tradução literal seria confusa, mas, basicamente, está escrito: “Herdeira dos meus segredos”. — Voltruf revelou.

Lorde Arino passou uma mão na barba, ponderando sobre as palavras da líder ordenada. Se o que ela afirmava era verdade, Cardasin estava metido em problemas maiores dos que o que Vanieli lhe contou. Ele não resistiu à curiosidade e perguntou para a florinae:

— E o que isso quer dizer?

Vanieli acariciou o cabo da espada, ciente do significado daquilo antes que a florinae pudesse explanar:

— Nada para vocês, mas para a mulher que forjou essa arma auriva, quer dizer muita coisa.

O lorde inspirou fundo e soltou o ar pesadamente.

— Auriva… Não é assim que se chama uma das quatro castas do seu reino?

— De fato. — Voltruf confirmou.

— Então? — Ele insistiu.

— É da rainha de Flyn que estão falando, meu pai. — Vanieli esclareceu para surpresa e confusão dos presentes.

Ela fez novo carinho na espada, organizando os pensamentos antes de mostrar um sorriso vago e revelar:

— Lenór me contou sobre a sua primeira mestra, uma das guardiãs da Ordem que pertencia à comitiva que a levou para Amarilian. Disse que ela se chamava Virnan e, embora não tenha falado sobre isso, especificamente, não foi difícil deduzir que a tal guardiã é a atual rainha de Flyn. Ela pertencia a Ordem e se chama Virnantya, então suponho que este é o seu nome completo.

Um sorriso benevolente visitou os lábios de Melina. Aquela jovem recordava uma de suas discípulas e, como esta, também era observadora e sagaz.

— Está correta, filha. — Disse ela. — Virnantya Dashtru ou L’Castir, se preferir, só teve uma aluna em toda sua longa vida. Ela conheceu essa criança quando estava na Ordem e contrariando suas próprias resoluções, na época, lhe ensinou a lutar como os membros da sua casta. Mesmo que não tenha terminado seu treinamento, Lenór Azuti é uma manir, uma dominadora da “mão assassina”. E deixando de lado os outros motivos citados para que participemos da sua missão, eu tenho um voto de irmandade com a mestra dela. E em respeito a ele, é meu dever recuperar seu corpo — se realmente estiver morta —  e lhe dar um funeral adequado.

 



Olá, meus amores!

Espero que estejam todas bem e tenham passado as festas em paz e com saúde. Feliz e saudável 2021 para vocês!

Responderei a todos os comentários até o fim de semana. No mais, nos encontramos na quarta-feira que vem.

Beijos!

 

PS: Aposto que tem muita gente pirando com esse final. Né, não? Hehe…

PS²: Nunca é demais lembrar… rs… Se leu e gostou, curtiu aqui embaixo no botão de “like” ou comentou. 😎 



Notas:



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6 Respostas para 18.

  1. Tattah!!!

    Guriaaaa, eu não vi q tu tinha postado.

    Sensacional… q mala esse Lorde Taniel. Desencarna q esse corpo não te pertence.

    Um cap. muito lindo, tô me apaixonando por Vanieli, ela tá se transformando… adorei.

    E agora é esperar semana q vem pelo novo cap.

    Arrasandooo…

  2. Putz… Fico sem palavras, esse final me matou, e sendo Lenór aluna de quem é, com certeza está viva, capengando, mas viva kkk

    Bjs
    Feliz 2021

  3. Nem a queda, nem o raio feriu a Lenor, interessante.
    Então Lenor é a única aluna da Virnam, quando teve a menção sobre ela, no último capítulo, a Vinan não pareceu muito feliz, dando a impressão que algo que ela não gostou aconteceu, agora eu fiquei mais curiosa sobre isso, já que a Virnam deu até suas espadas pra Lenor. Por que a Virnam não gosta de falar muito sobre a única aluna dela?

    Eu ainda acho que tem duas gatas, a tigresa linda da Marie e a gatinha do Gael.

    Para alegria de Vanieli e Tamar, uma biblioteca rsrs

    Eu pensava que se a Lenor se encontrasse com alguém da ordem poderia curar de vez aquela ferida da perna, mal curada que ainda traz dor. Pelo visto não é possível, porque se fosse já teria sido feito.

    Autora, feliz ano Novo. Obrigada por postar essa história maravilhosa.

  4. Certeza que pirei com o final! Mulher, não faz isso comigo não kkkkk
    Já ansiosa pra que chegue logo a próxima semana.

    Abrs, o/

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