I
 

Lorde Arino fitou as nuvens negras que se aproximavam do castelo com pesar. Como Vanieli o acusou, ele não era muito de demonstrar seu apreço pelos filhos, contudo, isso não significava que não se importava com eles. Pelo contrário. Naquele exato momento, estava muito preocupado com o bem-estar dela. Sentimento que chegava a se sobrepor à apreensão pelos problemas que ela lhe atirou no colo.

Ao seu lado, Lorde Taniel cofiava a barba rala, com um risinho no canto da boca.

— O Conselho dos Clãs precisa ser informado de tudo isso. — Disse ele. — Enviarei uma mensagem amanhã.

— Não. — Arino se opôs, abandonando suas divagações internas.

— Como assim? — Taniel questionou, surpreso. — Os outros clãs têm direito de saber que o rei colocou uma cria da rainha florinae como comandante da Guarda Real e não apenas está abrindo as portas do nosso reino para a Ordem, mas também, para pessoas íntimas da raça dela!

— Está agindo como um tolo. — Arino o acusou com um esgar.

Taniel parou à frente dele com ares assassinos pelo insulto. Porém, Arino não se impressionou e continuou falando de forma tranquila:

— Você sequer prestou atenção na conversa que tivemos com a grã-mestra e sua amiga florinae. Tampouco, se deu ao trabalho de ouvir o que a minha filha e as pessoas deste lugar disseram. Você só pensa em conquistar um lugar de respeito entre os clãs ao solucionar um problema que afeta a todos, as mudanças em nossas tradições.

Ele uniu as mãos às costas, aproximando-se do rapaz.

— Ser um bom líder não implica em ser o mais forte entre seu povo ou o primeiro a correr em direção a batalha, Taniel. Também é necessário observar o que se passa à sua volta. Antes de fazer alarde por coisas que ainda não alcançamos a compreensão, é melhor investigarmos. Não acha? Nossa paz é frágil demais para atitudes levianas.

— Não me tome por um bobo, Arino! Sei bem o que faço! Não me venha com sermões vazios, quando a sua hesitação não passa de peninha da sua filha. Ela está naquele buraco porque é estúpida! Se você tivesse sido um pouco mais corajoso e se imposto contra a vontade do rei, não estaríamos passando por isso. Eu a teria desposado e, hoje, ela saberia o seu lugar. Mas, em vez disso, você permitiu que a sua filha se tornasse uma…

Ele calou-se quando a mão grande de Lorde Arino enroscou seu pescoço e o pressionou contra a parede.

 — É uma pena seu pai ter morrido tão cedo, Taniel. Ele poderia ter lhe ensinado um pouco mais de discernimento. Tanis era um bom líder e um bom amigo e eu teria feito gosto do seu casamento com Vanieli, “se ele ainda estivesse vivo”. Contudo, quanto mais tempo passo em sua companhia, mais acredito que foi melhor isso não ter acontecido. Você é um jovem ambicioso. Eu respeito isso. Porém, só presta atenção ao próprio umbigo. Se tivesse se casado com Vanieli, essa arrogância seria sua ruína, pois minha filha faria de você um capacho!

Uma veia saltitou na testa vermelha, pela falta de ar, de Taniel. Arino o soltou e discorreu de forma branda, enquanto o jovem lorde tossia e tentava respirar, ao mesmo tempo.

— Uma coisa é informar os clãs sobre as estranhas situações que vêm ocorrendo no Castelo do Abismo, outra, muito diferente, é lhes contar que o rei está entregando nosso reino nas mãos de um povo que foi nosso inimigo em séculos passados; e acusar a minha nora de ser uma “cria” da rainha de Flyn não é vantagem alguma. Você está fazendo suposições com fiapos de informação. Tudo o que isso poderá nos trazer é outra guerra.

Taniel tossiu forte e Arino se afastou, o que fez o rapaz relaxar um pouco. 

— Ela ainda é uma Azuti, Taniel! Tais acusações recairiam sobre o seu clã, também. Os outros clãs se veriam obrigados a escolherem um lado e voltaríamos a ter um reino dividido. É isso o que você quer, a discórdia e a morte para Cadarsin?

Ele perscrutou a face jovem do lorde Baruki, pensando em si mesmo naquela idade. Era natural querer conquistar respeito naquela posição, mas ser um lorde exigia mais que a empolgação da juventude.

— Nos opor às visões do rei e tentar modificá-las na surdina é muito diferente de ir diretamente contra ele, rapaz. Tudo o que você irá conseguir com isso é uma corda no pescoço, pois o nosso soberano, certamente, irá pensar que você está se levantando contra ele e tentando depô-lo. Pior, talvez ele acabe dando o seu rosto aos inimigos que tentaram matá-lo em diferentes ocasiões. Já imaginou essa possibilidade?

Ele arqueou uma sobrancelha e Taniel se empertigou, esfregando o pescoço em silêncio.

— Foi o que pensei. — Arino revelou. — Nem por um instante, acredite que os outros líderes irão se arriscar por você. O rei Mardus não é como o rei anterior, que cedia facilmente à pressão dos clãs. E a maior prova disso é que ele não confia em nós, por essa razão busca aliados estrangeiros.

Taniel baixou os olhos, frustrado pela lógica nas suas palavras.

— O que sugere, então? — Quis saber, com voz rouca pela agressão sofrida. — Ficamos calados e esperamos para ver no que vai dar?

Arino sorriu ante o seu tom irônico. Então, fitou a porta do aposento em que se encontravam — a biblioteca do castelo — e notou uma figura silenciosa a observá-los. Gael estava sentado no chão, brincando com um cavalinho de madeira.

A visão dele acabou por levar os dois lordes a se perguntarem como não o tinham notado antes. Sem dar muita importância à criança, Arino disse:

— Sugiro que você seja mais comedido e respeitoso, quando falar de qualquer um dos meus filhos. Aconselho-o a fazer o mesmo em relação ao rei. Quanto ao resto, já lhe disse. É melhor investigarmos o que se passa com calma e reunirmos informações concretas antes de apresentarmos uma teoria ao Conselho dos Clãs.

Ainda engasgado com o que houve, Taniel acabou por concordar. Não era sábio se indispor com Lorde Arino em qualquer que fosse o momento, então decidiu obedecê-lo. Pelo menos, enquanto achasse conveniente.

Quando ele saiu da biblioteca, Arino não o acompanhou. Em vez disso, o lorde Kamarie recostou-se à janela, dividindo sua atenção entre a noite e o menino junto à porta. 

  

 

II

 

A noite tinha chegado completamente no interior do abismo, quando o grupo alcançou uma parte dele que lhes permitia andar em fila. Era íngreme, escorregadia, e tão mortal quanto qualquer outra parte do despenhadeiro, porém, foi uma descoberta bem-vinda, visto que a descida pelo paredão exigiu muito esforço físico de cada um.

Entretanto, a cruel verdade era que ainda estavam muito longe do fundo do abismo.

Assim que deixaram de ver a luz do sol, a temperatura começou a cair rapidamente. O frio veio acompanhado por fortes rajadas de vento, que tornavam o equilíbrio sobre a trilha estreita, uma tarefa quase dolorosa.

— Creio que é um bom momento para descansarmos um pouco. — Aisen sugeriu.

— Concordo. — Disse Melina, ofegante.

— Um pouco de calor não seria ruim. — Vanieli recostou-se ao paredão e deslizou por ele até sentar no chão, assim como os outros fizeram. — A noite aqui embaixo parece ser muito mais fria do que lá em cima.

Ela estremeceu, puxando o capuz sobre a cabeça, a fim de proteger a face do vento cortante. O som de um trovão reverberou na parede rochosa do abismo, ainda mais intenso do que seria na superfície. Sentiu um ligeiro tremor na corda que lhe envolvia a cintura e conectava aos outros integrantes do grupo — ideia de Jeor. Desta forma, se alguém escorregasse, os outros poderiam ajudá-lo a retornar para a trilha.

— Me pergunto o quão fundo é este abismo. — O comentário de Darlan fez Vanieli estremecer, novamente. Por um momento, a moça tinha esquecido da presença dele, ao fim da fila que o grupo formava.

Após as revelações no salão de refeições do Castelo e a insistência de Vanieli em seguir adiante com seus planos de entrar no abismo à procura de Lenór, o protetor se voluntariou para ir na missão e obteve a aprovação de Lorde Arino. Ao menos, alguém de sua confiança estaria de olho na filha.

— O suficiente para que nenhum aventureiro que se arriscou a explorá-lo, tenha retornado à superfície. — Aisen respondeu, sombria.

Ela estava diretamente conectada à Vanieli, assim como Voltruf. Melina vinha em seguida, logo atrás do tenente Vick que, por sua vez, seguia Jeor, que liderava o grupo ante a experiência naquele tipo de situação.

Na pouca luminosidade que a tocha que Aisen segurava produzia, resistindo a força do vento, Vanieli assistiu Voltruf se desvencilhar da corda na cintura, ficar de pé e se aproximar da borda da trilha.

— Enlouqueceu, mulher?! — Darlan indagou, ficando de pé para ir até ela.

— Sempre achei engraçado como vocês, homens de Paludine, pronunciam a palavra “mulher” como se ela estivesse conectada a uma corda invisível que, a uma simples menção, fosse capaz de conter nossos pensamentos e atitudes. — Voltruf caçoou. — Alguma vez, essa forma de falar funcionou para você, Protetor?

A tocha de Aisen, finalmente, apagou, restando apenas a que Jeor segurava. Voltruf ignorou a careta que deformou as feições do guarda e voltou a atenção para a Grã-mestra.

— Calor e luz, Melina. — Disse ela. — Que tal nos dar um pouco disso?

A grã-mestra ergueu uma mão e traçou um círculo no ar. À medida que a mão dela se movia, uma linha de chamas se expandia até fechar o círculo, o qual se dividiu em três. Eles flutuaram sobre o grupo, emanando luz e calor. O vento ainda passava por eles, enfiando-se entre as dobras das roupas e sibilando entre as reentrâncias do paredão em que se abrigavam, porém, era como se o frio não os atingisse.

— Poderia ter feito isso antes, Grã-mestra. — Jeor comentou.

— Sou uma mulher velha, Jeor. Algumas coisas me escapam e, às vezes, necessito de orientação. — Ela respondeu em tom jocoso, embora suas feições fossem sérias.

— Deuses, queria estar velho assim! — Ele riu alto, passando a mão pelos cabelos grisalhos. — Que tal me contar o segredo?

Contudo, ele não esperou por uma resposta e se voltou para o caminho. A trilha tornava a estreitar mais adiante, desanimando-o por um momento.

— Seria bom se pudéssemos encontrar um local largo o suficiente para descansarmos sem o risco de uma queda mortal e, quem sabe, sentar em volta do seu fogo.

O tenente Vick olhou para Voltruf, indagando:

— E quanto a você, Florinae? Vi quando criou uma passagem para a grã-mestra atravessar o abismo. Não poderia criar algo parecido para descansarmos?

— Eu poderia, mas não iria durar muito tempo.

— Por quê? — Vanieli perguntou, ligeiramente mareada com a visão dela tão perto da borda e sem a corda para lhe oferecer proteção.

Por sua vez, Voltruf parecia muito à vontade ali, como se a possibilidade de uma morte violenta não a preocupasse. Ela se agachou, apoiando uma das mãos no chão, enquanto falava.

— Porque a terra não faz parte da minha natureza, mesmo que eu seja capaz de manipulá-la. Além disso, usei muita magia na luta contra aquelas coisas e ainda estou me recuperando.

Não era a verdade total e ela percebeu o arquear interrogativo das sobrancelhas de Melina. De fato, estava cansada e ferida, entretanto, grande parte da sua magia vinha de uma “fonte” poderosa e ela ainda poderia lutar por muito tempo, antes de se exaurir.

— Não lhe faria mal ser um pouco mais didática, às vezes. — Melina a repreendeu, notando o desconforto de Vanieli com a informação. — Você a deixou tão confusa quanto antes.

A florinae deu de ombros.

— Não tenho vocação para o ensino. Depois de tanto tempo em minha companhia, você já deveria estar acostumada ao meu jeito. Enfim, se quer uma explicação profunda, você é a mais indicada para fazê-lo, afinal, tem muitos discípulos.

— E agora você está exagerando. — Melina censurou, risonha.

Ela só tinha três discípulas e, naquela altura da vida, elas já não a encaravam como mestra e, sim, como uma companheira de círculo.

— Entre nós duas, você é a mais experiente no quesito magia. — Recordou Melina. — Todavia, está certa em um ponto, sua paciência para certas coisas não existe. Embora, sempre tenha ouvido dizer que os gatos são tenazes, você é uma exceção à regra.

A grã-mestra riu baixinho e Vanieli teve a impressão de que, embora as duas atuassem como boas parceiras, havia algo incômodo entre elas. Melina desfez o riso rapidamente e focalizou o rosto de tez marrom da jovem Kamarie.

— A resposta para a sua pergunta leva a inúmeras outras questões. — Disse para ela.

Enquanto falava, a mão que Voltruf apoiava no chão emitia um brilho azulado, que se expandiu e formou um pequeno círculo. O brilho dele pulsava, como se fossem pequenas ondulações na superfície de um lago. Ela fechou os olhos e permaneceu assim por algum tempo.

— A magia existe em todas as pessoas, mesmo aquelas que não a desenvolvem. — Melina prosseguiu, observando o que Voltruf estava fazendo. — Ela está em suas almas e cada alma tem afinidade com o que podemos chamar de “natureza”. Graças a isso, existem vários tipos de magos e vários níveis de poder. Citarei apenas três desses níveis, para ilustrar o que digo.

Fez uma pausa para tomar um gole de água do odre que trazia na cintura.

— Existem os magos terrenos, que são a grande maioria entre nós. Eles são capazes de moldar a magia que possuem, usando como base o ambiente em que estão. Mais raros, são os magos elementais. Estes possuem uma forte afinidade com algum dos quatro elementos da natureza: água, terra, ar e fogo.

Ao pronunciar a última palavra, ela fez as chamas dos círculos arderem mais forte.

— E ainda mais raros que estes, são aqueles que possuem magia espiritual.

Voltruf encerrou seu pequeno ritual e voltou a ficar de pé. Devagar, ela percorreu a distância que a separava de Jeor, atraindo os olhares dos outros.

— Há cavidades, uns trinta metros abaixo. Creio que uma delas é suficiente para nos abrigar. — Ela contou e sem demora ou questionamentos, Jeor iniciou os preparativos para descer até o local indicado.

Enquanto Voltruf e o tenente Vick o ajudavam a descer, sustentando a corda, Darlan retornou ao assunto sobre a natureza mágica:

— Se entendi bem, a raridade pode ser encarada como um medidor de poder. É isso, senhora?

— Sim. — Melina confirmou, fazendo com que um dos seus círculos em chamas acompanhasse a descida de Jeor e iluminasse seu caminho.

— Estaria errada em supor que vocês duas são magas elementais? — Vanieli perguntou.

— Sim! — Melina coçou o queixo com um sorriso benevolente.

Ela se aproximou da beirada da trilha, a fim de observar Jeor e continuar manipulando o círculo de fogo que o acompanhava sem problemas. Na luminosidade flamejante, seus olhos claros emitiam um brilho quase fantasmagórico, embora belo.

— Pela maior parte da minha vida, acreditei que era uma maga terrena, mas há alguns anos descobri que a minha magia é espiritual e esta também se baseia na afinidade com os elementos da natureza, contudo em um nível muito mais avançado. Como podem ver, o fogo é o meu elemento. Evidentemente, qualquer mago pode manipular outros elementos, contudo, isso é bastante desgastante. Principalmente, se o seu condicionamento físico e mental não forem dos melhores. O que, na pior das hipóteses, pode levar à morte; e, na mais branda, a perda dos sentidos por algumas horas.

Ela observou o incômodo de Vanieli crescer ao compreender que o comentário fora especialmente feito para ela. Prosseguiu, com a tranquilidade que lhe era costumeira e que o avançar do tempo lhe ensinou a ter:

— É preciso entender nossos limites e, para isso, se faz necessário compreender a natureza do que somos e como somos. Magia é poder, e como tal, exige discernimento para que esse poder não sobreponha nosso senso de respeito àqueles que nos cercam e a nós mesmos. — Fez um gesto displicente em meio a outro sorriso benevolente.

 Observou Jeor se balançar e desaparecer de vista junto ao paredão, então suspirou de alívio quando ele voltou a surgir em seu campo de visão, revelando que estava em solo firme. Havia encontrado a tal cavidade que Voltruf falou.

Aisen limpou a garganta, chamando a atenção para si. Estivera bastante atenta ao diálogo, embora seus olhos não parassem de investigar o entorno. Afinal, estavam dentro do abismo, o covil das criaturas com as quais lutaram na noite anterior.

— Tudo o que disse, senhora, é bastante interessante. — Falou ela. — Porém, mesmo que um mago seja capaz de manipular todos os elementos de forma branda, sua principal afinidade é o que impera. Sua magia sempre irá recorrer ao elemento que a satisfaz. Correto?

— Sim.

Aisen indicou Voltruf com um movimento de cabeça.

— Ela é uma mestra das águas. — Afirmou.

Melina estreitou o olhar, achando o termo que ela usou interessante. Era muito específico para alguém daquele continente, já que as pessoas dali viam os magos apenas como manipuladores de magia e não como mestres elementais.

De fato, Aisen era a primeira daijin que conhecia. E até descobrir que Flyn, o reino florinae, ainda existia, tomava as histórias que contavam sobre as mulheres que habitavam as Terras de Aman como verdade. Algumas delas eram reais, de fato, porém, havia muito mais.

No fim, ainda que habitassem outro continente, a história dessas mulheres estava intimamente ligada aos ancestrais do povo florinae. E prova disso eram as correntes que Aisen trazia na cintura. Armas incomuns para um guerreiro, entretanto, poderosas por terem sido forjadas com magia espiritual.

— Sim, está correta. — A grã-mestra respondeu.

— Mas ela manipula a terra com afinidade equivalente à água. — Aisen observou.

— De fato. — Melina confirmou, outra vez. — Mas a explicação para isso é longa, e exigiria algum esforço de vocês para que houvesse uma total compreensão.

— Fala como se fôssemos idiotas! — Queixou-se Darlan, ainda engasgado com a pequena provocação de Voltruf.

— Longe disso, Darlan. — Vanieli discordou. — A grã-mestra está apenas evidenciando um fato. As pessoas neste continente temem a magia e odeiam os magos. Se não nos prepararmos para abrir nossas mentes às muitas possibilidades que o mundo nos oferece, qualquer coisa que ela nos conte parecerá um absurdo.

Ela queria saber mais sobre magia para tentar entender a sua própria, porém, um gesto do tenente Vick indicou que era hora de encerrar a conversa e descer mais alguns metros em direção ao fundo do abismo.

 

***

 

O abrigo que encontraram era pequeno, porém suficiente para que estendessem seus mantos e sentassem em volta das chamas provocadas pela magia de Melina.

Compartilharam uma refeição singela e silenciosa; às vezes, interrompida pelo som do vento a percorrer o abismo arrancando sons lamuriantes de outras reentrâncias nas rochas.

— Não está com fome, Damna Voltruf? — Perguntou Jeor para a mulher.

A florinae respondeu com um balançar de cabeça e fechou os olhos, recostando-se à parede da caverna. Ficou assim durante toda a refeição. Os companheiros, exceto Melina, imaginaram que tinha adormecido.

Deixava-os etados o fato dela ter chegado até ali sem dificuldades, diante da grande quantidade de ferimentos que sofreu. Outra questão que lhes rondava a mente, foi sonorizada por Darlan:

— Vocês curaram todos os feridos na cidade, mas por que ela não se curou?

Ele fez a pergunta para Melina, todavia a própria Voltruf respondeu, revelando que estava desperta.

— Isso não é da sua conta, humano.

A grã-mestra fez um gesto de desculpas para o rapaz, dizendo:

— Ela não é má pessoa, apenas um pouco mau-humorada.

Melina inspirou fundo, desprezando o esgar de sarcasmo de Voltruf.

— Todavia, acho que eu deveria tentar. Seu poder de cura está bastante demorado… — Ela comentou, arregaçando as mangas da túnica.

— Poupe-se do esforço. Irá gastar uma grande quantidade de magia inutilmente, e isso não é sábio, visto onde estamos. Você já usou muita magia ao curar todas aquelas pessoas no castelo. — Voltruf afastou-se do contato dela.

— Suas feridas ficaram mais profundas depois que entramos no abismo. — Vanieli abandonou a contemplação do fogo para comentar.

Seu semblante era tristonho e atormentado, porém mantinha-se atenta ao entorno.

— Não sei para você, mas isso não me parece boa coisa. — Ela complementou.

A florinae fez uma pequena careta.

— A natureza da minha magia permite que eu me cure sem a necessidade de que outro mago interfira. A cura está ocorrendo mais devagar que o costume, porém está acontecendo. — Garantiu, dando o assunto por encerrado, entretanto, Vanieli ainda estava curiosa.

— Todos os florinae são como você? Podem se transformar em animais?

— Não. Eu sou diferente. — Ela cruzou os braços.

— Como assim? — Insistiu a moça.

A estrangeira voltou a fechar os olhos, dando indicativos de que não iria responder e tampouco Melina pareceu disposta a isso, quando os olhares de todos se voltaram para ela.

A conversa mudou de tema rapidamente. Jeor falou sobre a descida e as dificuldades que, provavelmente, encontrariam no dia seguinte. Ele havia notado que, quanto mais desciam, mais difícil e perigoso o caminho se tornava.

Enquanto era baixado até a caverna, mais cedo, aproveitou a luz do círculo de fogo de Melina, para observar bem o entorno. Do pouco que viu, não gostou.

Embora reconhecesse a necessidade daquela discussão, Vanieli decidiu sair da caverna, desejosa de um momento de reflexão. Seus pensamentos não abandonavam Lenór e quanto mais perto chegavam do fundo, maior era a sensação de que ela estava mesmo viva e que o seu encontro naquela floresta sombria, não fora um sonho. Da mesma forma, a certeza de que caminhavam em direção a coisas ruins crescia em seu íntimo.

— Ainda está em tempo de desistir dessa loucura. — Darlan falou para ela. Havia algum tempo, ele a observava na entrada da caverna.

Vanieli se voltou para ele e vislumbrou o interior da cavidade, notando que os outros pareciam entretidos em arrumar o local de descanso. Darlan se aproximou e a puxou para a lateral da plataforma rochosa que ocupavam, onde olhos curiosos não poderiam alcançá-los.

Ele pousou as mãos nos ombros dela, fazendo um carinho breve, antes de a abraçar com força. Não saberia precisar o quanto sentiu falta de tocá-la, mas não imaginou que seria daquela forma, pois a ex-amante se mostrou rígida entre seus braços e logo fez questão de afastá-lo.

Longe da suavidade e alegria com a qual ele tinha se acostumado, Vanieli soou áspera quando lhe falou:

— Não sei o que você está imaginando, Darlan, mas eu não vou desistir dela.

— Você não está pensando com clareza, Vanieli. — Acusou ele. — Pretende perder a vida e nos levar junto, apenas para recuperar o cadáver de uma mulher que mal conhece?! Isso é insano!

Ele olhou para o vazio escuro por um momento, antes de voltar a encará-la, recordando uma breve conversa que tivera com Lorde Arino, quando indagou a ele o motivo de não a proibir de partir.

— Não imagino o que o rei lhe prometeu, mas se o que disse ao seu pai é verdade, agora você está livre para fazer o que quiser da sua vida. Pode ser o que quiser, casar-se com quem quiser…

Voltou a pousar uma mão no ombro dela.

— Sei que você não me ama, mas tivemos bons momentos. Poderíamos repeti-los e ficar juntos por algum tempo. Sem medo de retaliações. Você não precisa ir até o fundo desse abismo pra ter certeza de que está livre…

Ela o afastou de vez, porém, com delicadeza, visto que estavam muito próximos à possibilidade de uma queda para a morte certa.

— Sou grata pelo seu apreço e consideração, mas o nosso tempo acabou, Darlan. Estou indo buscar Lenór e não voltarei para casa sem ela.

— Isso é insano! — Ele aumentou o tom. — Ninguém sobreviveria a uma queda dessas. Teremos sorte se conseguirmos encontrar algum osso inteiro para fazermos um funeral!

Vanieli juntou as mãos na túnica dele; os olhos brilhando de raiva. Então, o empurrou para a entrada da caverna.

— Você não entende, Darlan! Como poderia?

Falava baixo, mas estava bastante ciente que, mesmo a conversa que tiveram do lado de fora, tinha sido ouvida pelos companheiros no interior do abrigo.

— Isso não tem nada a ver com as promessas do rei. Lenór é minha amiga, companheira e esposa. Não importa que nosso casamento tenha sido um arranjo e que o tempo que ficamos juntas tenha sido curto. Aquela mulher cuidou de mim, acalmou meu pranto, ofereceu conforto. Ela fez de mim, em tão pouco tempo, uma pessoa diferente e melhor. Não importa o que você, meu pai, e o resto do mundo acham, eu não vou desistir dela! E se quer tanto ir para casa, você pode regressar ao castelo sozinho! Não fará diferença para mim!

Ela o empurrou para dentro da cavidade e retornou para seu lugar na beirada do abismo. Darlan a fitou, emudecido com seu rompante e sem saber o que fazer.

— O nome disso, Protetor, é lealdade. — Voltruf, que até então permanecera de olhos fechados, os abriu para mostrar um sorriso irônico. — Lenór Azuti deu para ela algo que ninguém deu antes e, independentemente de quaisquer compromisso que elas tenham assumido ou possíveis sentimentos, a lealdade a fará buscá-la onde for.

Ela cruzou os braços, aumentando o sorriso antes de concluir:

— E esteja certo de que Lenór faria o mesmo por ela. 

 

III

 

Lenór Azuti ainda não conseguia entender como sobreviveu à queda, todavia isso não fazia muita diferença, pois a sua condição física não era das melhores. Ela tinha vários ossos quebrados, além da intensa sensação de queimaduras que não existiam.

Enquanto caía, sentiu algo quente percorrendo seu corpo, então viu o fundo escuro do abismo se iluminar. Depois disso, suas lembranças não passavam de breu.

Não imaginava quanto tempo havia transcorrido até acordar em meio a uma clareira em chamas, ainda segurando a espada com tanta força, que teve dificuldades para relaxar os dedos e soltá-la.

Passou um longo tempo, olhando para o vazio e sentindo a chuva fina que caía aliviar suas dores. Então, reuniu as poucas forças que ainda possuía e arrastou-se para fora da clareira. Lhe pareceu ter levado horas para percorrer os poucos metros além dela.

Recostou-se no tronco velho de uma árvore e, enquanto forçava o ar a lhe preencher os pulmões, passou os olhos pelo entorno e ficou verdadeiramente surpresa ao perceber que estava em uma floresta. Era muito antiga, porém, ela teve a sensação de que era mais que isso. Tocou uma folha no chão e ela se esfacelou, como se não passasse de poeira. Então, notou que as árvores estavam mortas, assim como ela estaria, em breve.

Desde que voltou à consciência, sentia uma estranha mistura de angústia, raiva e tristeza crescerem em seu íntimo. Não era nada que já não tivesse sentido, porém lhe chegava em proporções assombrosas e, por um momento, se tornou difícil pensar com clareza. Fechou os olhos, afundando-se naquela mistura de sentimentos e na dor dos ferimentos, que aumentava gradativamente.

Mesmo que tivesse condições físicas de aplicar seu manibut nos pontos certos, era provável que a dor não passasse e, talvez, piorasse, já que não tinha ideia da sua real condição, tampouco capacidade para se analisar.

De repente, a dor cresceu e ela voltou a abrir os olhos para se dar conta de que algo se enroscava em suas pernas e cintura. Eram raízes e cipós, que se movimentavam como se tivessem vida própria.

Ela tentou se afastar do tronco, mas, de súbito, braços se projetaram dele e a aprisionaram. Lenór se esforçou, em vão, para se libertar. Em meio a um gemido de dor, ela ergueu a face e encarou um rosto de nariz adunco e olhar vazio, como os rostos das criaturas que enfrentou à beira do abismo.

Notou que o corpo daquele ser se projetava da árvore, todavia os membros inferiores ainda estavam conectados ao tronco. Lenór agitou-se e o abraço dele afrouxou o suficiente para que ela conseguisse tatear o chão até encontrar a espada.

Reunindo o que sobrava das suas forças, ela empunhou a espada e fincou na testa da criatura, sem estranhar o fato de que a passagem da lâmina pareceu fácil, quase como se estivesse atravessando algo macio.

Os braços que a prendiam afrouxaram de vez. O mesmo aconteceu com as raízes, as quais Lenór tentou cortar para se libertar, mas, assim que a espada as tocou, elas se desfizeram em pó. 

Livre, Lenór se arrastou por alguns metros e escorou-se em uma rocha, quase sem forças para manter os olhos abertos. Resvalava para a inconsciência, quando percebeu a presença de alguém.

Tornou a enroscar o cabo da espada com os dedos trêmulos e esfolados. Abriu os olhos, a vista estava embaçada. Todavia, aquela presença tornava-se cada vez mais real, ganhando formas e rosto conhecidos.

Ela inspirou fundo e engasgou-se com o próprio sangue. Um instante se passou e Vanieli parou à sua frente. Ela não passava de fumaça, mas a sua presença tinha o mesmo calor. Ela agachou-se ao seu lado, dizendo coisas que Lenór não conseguiu ouvir. Afinal, ela não passava de uma ilusão causada pelo seu estado.

Ainda assim, era reconfortante vê-la, mas, também, era penoso porque a recordava do que estava deixando para trás e que havia falhado com Gael e Rall outra vez.

Naquele lugar sombrio e assustador, essa percepção se tornou ainda mais cruel. Era um sentimento tão sufocante que quase lhe tomou o ar de vez. Então, Vanieli a abraçou e, ao contrário de uma ilusão, Lenór sentiu seu contato, o calor e o cheiro dela.

E o vento lhe trouxe uma promessa através de um sussurro:

— Eu vou te buscar!

Lenór quis sorrir e, pela primeira vez em anos, também quis chorar. Contudo, em vez disso, ela fechou os olhos e desmaiou.

Acordou em meio a completa escuridão, ardendo de febre. Apesar da mente nublada, pensou em encontrar um abrigo, mas já não tinha ânimo para sair dali. Voltava a cair na inconsciência, quando percebeu que outra criatura se aproximava.

Aquela coisa chegou perto com a face erguida, farejando o ar como um animal. Após um momento assim, ele a encarou, mostrando os dentes pontiagudos.

Pela primeira vez em mais de uma década, Lenór se sentiu uma criança, outra vez. O medo percorreu suas veias, assim como acontecia, quando ela encarava o olhar insano de Lorde Kanor, se perguntando se seria daquela vez que ele a mataria.



Notas:



O que achou deste história?

7 Respostas para 19.

  1. Meu pudinzinho apareceu, toda estropiada, mas viva??, agora a espera pelo próximo capítulo que me mata.

  2. Criatura de Deus !!! Assim vc nos mata. Esperar 8 dias para o próximo capitulo é tortura mesmo.

  3. Aff, PQP

    Isso é mta sacanagem, parar assim.

    Sei q tu fica a dar risadas qdo lê eu
    reclamando, mas na boa, sacanagem pura.

    Tô chorando pitangas… Vê se isso é hr
    de parar.

    Tá arrasando guria…

    Bjs,

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