— Por que sempre que nos encontramos tenho a impressão de que você quer jogar com a minha vida?</>

A pergunta causou um sobressalto no Rei Mardus e enquanto ele se voltava para a direção da qual ela viera, seu guarda pessoal já estava a meio caminho de lá, com a espada em mãos. Andava como um touro zangado em direção ao alvo.</>

— Está tudo bem, Eidan. — Disse o rei.</>

O guarda estacou no meio do cômodo, ainda encarando Lenór como uma ameaça. O fato de o rei ter tratado com ela há pouco tempo e até demonstrado que existia alguma intimidade entre eles no salão do trono, não significava que ela não era uma ameaça para o soberano, principalmente, invadindo os aposentos dele daquela forma.</>

— Está tudo bem. — Garantiu o rei, todavia perguntou para Lenór: — Não está?</>

Ela deu de ombros, dizendo:</>

— Se está se referindo a sua segurança, creio que não.</>

O guarda-costas voltou a se colocar em posição de combate e Lenór fez um gesto de descaso.</>

— Eu poderia tê-lo matado de três formas diferentes, antes que cruzassem o umbral da porta. — Concluiu ela para o soberano. — Contudo, se a minha intenção fosse a de vê-lo morto, isso teria acontecido há anos, não acha?</>

O rei sorriu largo, dando uma batidinha no ombro de Eidan. Fez um gesto suave para que o guarda deixasse o recinto e exigiu que não fossem interrompidos. Mardus esperou a porta se fechar completamente para caminhar até a mesa no canto do cômodo.</>

— Brinquedinho novo? — Perguntou Lenór, um pouco venenosa.</>

— Ele é uma graça, não acha? — Mardus respondeu, ciente de que ela falava do guarda. — Sua beleza preenche os olhos, assim como a de muitos outros servos e servas do palácio. Mas não, ele é apenas meu protetor pessoal.</>

— Neste caso, sugiro que procure outro. A beleza dele aparenta ser equivalente à sua incompetência. Não estava brincando quando disse que poderia tê-lo matado antes de cruzar a porta, Mardus.</>

O rei inclinou a cabeça um par de vezes, enquanto enchia um cálice com o vinho da jarra sobre a mesa. Antes de tomá-lo, retirou uma pedrinha do bolso da túnica e jogou na bebida. Como o líquido não efervesceu, concluiu que não estava envenenado e era seguro consumí-lo.</>

— Levarei seu conselho em consideração. — Disse ele, revelando o cansaço através de um suspiro longo. — Você sumiu depois da audiência, achei que tivesse ido embora e me deixado à mercê daquele cão raivoso que é seu pai. Acabei de comprar uma briga com ele e Lorde Arino, maior do que aquela que resultou da minha proposta de casamento anterior. — Levou a mão ao rosto para afastar uma expressão desgostosa.</>

Assim que dispensou Vanieli e Lenór, os dois lordes retornaram ao salão, seguidos pelos outros líderes dos clãs menores. A ideia do casamento entre as duas mulheres foi fortemente rejeitada por todos. Acusaram o rei de depreciar suas leis e tradições em uma tentativa grosseira de transformar Cardasin em um reino depravado.</>

A acusação foi suficiente para que Mardus perdesse a calma e lembrasse a todos, em meio a gritos, de que falavam com o soberano do reino e, portanto, lhe deviam respeito.  Ele apreciava o embate através de um diálogo embasado em argumentos concisos. Não fazia questão de entrar nesse tipo de discussão com seus oponentes, tampouco de reconsiderar suas decisões mediante sugestões eficientes. Entretanto, acusações infundadas, baseadas no simples desejo de fazer oposição ao seu governo, seriam rebatidas com a força da coroa que ostentava.</>

A fim de não dar margem para a discussão se estender, ele dispensou os nobres dizendo que tomassem a noite para pensar no que estava em jogo para o reino e que esperava reunir-se com eles na manhã seguinte.</>

Mardus soltou um novo suspiro e, Lenór, que estava sentada sobre o parapeito da janela, saltou para o interior do aposento e dirigiu-se até ele. Tomou o cálice das suas mãos, antes que o levasse a boca, e afastou-se, buscando assento em uma das cadeiras próximas à janela em que estivera.</>

— Eu precisava de um momento de reflexão para tentar entender como me casar com uma Kamarie irá ajudar a descobrir o que aconteceu com meu irmão. — Disse ela. — Aliás, você ainda me deve explicações sobre toda essa história, Mardus. E espero que sejam boas, porque casamento não faz parte dos meus planos para o futuro.</>

O rei fez um ligeira careta, como se estivesse pronto para entrar em uma briga com ela para reaver o cálice “roubado”, contudo, voltou-se para a mesa e pegou outro cálice para si. O encheu até a borda e tomou um gole farto. Não lhe incomodava os modos grosseiros de Lenór, a quem dedicava um carinho fraterno, embora nunca tivesse expressado isso em voz alta. Tampouco se ofendia com o fato dela lhe tratar pelo nome, desprezando a coroa em sua cabeça e o título que esta lhe conferia.</>

— Não me olhe desse jeito, Lenór. Você disse “sim” quando lhe perguntei.</>

Ela cruzou as pernas, impaciente. Sorveu um longo gole do vinho e perguntou:</>

— Alguma coisa naquele testamento é verdade?</>

— Estou quase certo de que o sinete com o brasão do seu irmão é verdadeiro. — Mardus respondeu com um sorriso brejeiro, antes de sentar na cadeira diante dela.</>

Aos poucos, seu semblante tornou-se sério e explicou:</>

— Mirord me disse, em várias ocasiões, que se algo lhe acontecesse, você seria sua única herdeira. Todavia, ele acreditava que tinha mais tempo neste mundo e nunca colocou suas vontades no papel. Tomei a liberdade de fazer isso por ele.</>

— Os títulos da Guarda Real não são hereditários. — Lenór observou.</>

— Não exatamente! Eles podem ser herdados, sim, desde que o rei considere o herdeiro qualificado para a função. E você é mais que competente para assumí-la.</>

Depositou o cálice na mesinha ao lado e curvou-se um pouco em sua direção, unindo as mãos.</>

— Sei que a peguei de surpresa… — Começou a dizer.</>

— Surpresa?! — Lenór o cortou, irônica. — Seus homens me arrancaram da cama no meio da noite. Eu passei três dias sacolejando no fundo de uma carruagem caindo aos pedaços e sequer cheguei a tempo de ver o meu irmão com vida, tampouco fui capaz de participar do seu funeral! E quando enfim nos encontramos, Majestade, você me disse que Mirord foi “assassinado”. Mal tive tempo de absorver a notícia, e você me enfiou uma máscara no rosto, dizendo para fingir ser Aisen, a </>daijin</> que o acompanhava. Então, me introduziu naquela audiência ridícula pedindo um voto de confiança. Pois bem! Aquele “aceito me casar” foi o meu voto de confiança, mas ele tem um prazo de validade e isso depende muito do que você tem a dizer!</></>

O rei inspirou fundo, fitando o rosto zangado dela com um pouco de prazer. A mulher sentada à sua frente, nem de longe recordava a menina tímida e silenciosa que conheceu na infância. Naquela época, Mardus ainda acreditava que toda aquela introspecção fazia parte da sua personalidade.</>

Com efeito, Lenór ainda era uma mulher taciturna e observadora, entretanto não era tímida. A convivência lhe mostrou que ela podia ser tão implacável quanto seu irmão, Mirord, e ainda mais grata e fiel que ele, se encontrasse razões para isso.</>

Lenór retirou a máscara de um dos bolsos da túnica e a jogou para que ele a pegasse de forma desajeitada, antes de recuperar o cálice e tornar a se recostar no assento. Mardus também saboreou a bebida, entregue às reflexões sobre o dia. Tinha feito uma jogada arriscada naquela audiência e as coisas correram surpreendentemente bem, mas o que vinha a seguir, dependia muito de Lenór.</>

— Eu sinto muito. — Falou o rei, deixando transparecer um pesar sincero. — Infelizmente, só fiquei sabendo do seu paradeiro em um raro momento de lucidez de Mirord. Ele passou a maior parte do tempo delirando de febre. Os ferimentos foram graves, mas os curandeiros garantiram que ele teria uma chance de sobreviver, se quem o atacou não tivesse sido ainda mais traiçoeiro e envenenado as armas.</>

Parou de falar, lançando um olhar para o céu alaranjado além da janela; a noite se aproximava rapidamente. Voltou a mirar Lenór, cuja expressão denunciava a raiva que a tomava. Ele já tinha passado pela fase da raiva, agora só desejava justiça pelo amigo morto.</>

Olhou para o interior da taça sem ânimo para sorver mais um gole da bebida, então voltou a depositá-la na mesa.</>

— Eu teria mandado buscá-la antes, entretanto acreditava que você ainda estava no continente de Amarilian, desfrutando das belezas do Reino de Barafor ou, sei lá, finalmente tivesse dado vazão aos seus desejos da juventude e ido para a Ordem. Recordo que você falou nisso por um ano inteiro, antes de cismar com outra coisa.</>

Fez uma pausa longa, antes de voltar a fitá-la.</>

— Lamento que o tempo tenha nos distanciado tanto quanto o mar que separa os dois continentes… — Sorriu, desta vez com desgosto.</>

Os dedos dela alcançaram uma das cicatrizes na face e ali ficaram por algum tempo. Mardus acompanhou o movimento, recordando que, na última vez em que se viram, ela não tinha aquelas marcas.</>

De fato, Lenór mudara bastante fisicamente. Estava vários centímetros mais alta, e a magreza e palidez doentia, que sempre a acompanharam na infância, deram lugar a músculos firmes e uma pele bronzeada com tonalidade azeitonada.</>

O monarca baixou a vista para a máscara largada na mesa. Lenór havia mesmo chegado perto de ir para o Templo de Aman. Entretanto, se tivesse mesmo feito isso, era provável que estivesse morta. Poucos meses depois da sua partida de Cardasin, as terras do templo foram atacadas por um dos senhores da guerra do reino de Guilas e muitas vidas inocentes se perderam.</>

— Estive em muitos lugares, desde que você me deixou em Barafor e retornou para Cardasin. — Lenór contou.</>

Por um momento breve, ela recordou sua fuga para o continente de Amarilian em um navio da Ordem, que tinha levado alguns membros da irmandade, entre eles a grã-mestra, para uma reunião importante nas fronteiras dos reinos de Guilas e Everes.</>

Lenór se viu no convés daquele navio, cansada, machucada e assustada, mas esperançosa com o futuro que se apresentava longe das garras do pai.</>

Piscou, afastando as lembranças, e fitou os olhos calmos do rei.</>

Onze anos tinham se passado, desde que ele a recebeu de braços abertos no porto da capital de Barafor, a acolheu em sua casa e a tratou como se fossem parentes de sangue. De fato, Mardus fora o melhor amigo de Mirord, disposto a ajudá-lo nos momentos mais difíceis e caçoar dele nos mais alegres; e não se furtou de se tornar o mesmo para Lenór.</>

Embora ela se expressasse com certa grosseria e desdém, tudo não passava da dinâmica que estabeleceram para o seu relacionamento. A convivência fez com que Mardus adquirisse o hábito de provocá-la, a fim de que pudesse se libertar da introspecção que os anos de maus tratos pelo pai causaram e isso fez de Lenór uma mulher mais reativa, entretanto ela se manteve um pouco reservada.</>

— Há três anos me estabeleci em Andalus. — Ela continuou. — Seus homens só me encontraram naquela vila, na fronteira entre Cardasin e Padrus, porque Mirord exigiu minha presença em seu casamento.</>

Ela passou a mão no rosto, fazendo uma ligeira careta para afastar as lágrimas que se avizinhavam.</>

— Ele deveria me encontrar daqui a cinco dias…</>

A voz falhou e afastou o nó que se formou na garganta, emborcando o líquido na taça de uma só vez. Compreensivo, Mardus foi até a mesa, onde a jarra com o vinho estava, pegou o recipiente e encheu o cálice dela.</>

— Você sabe, não são muitas pessoas que podem dizer que foram servidas pelo seu rei. — Ele brincou, a fim de afastar a tristeza nos olhos dela.</>

Bem sabia que as lágrimas que neles se formaram, não iriam encontrar caminho para fora deles. Lenór nunca chorava. Pelo menos, ele nunca vira acontecer.</>

— Você não é meu rei. — Lenór retrucou.</>

— Coroa — ele apontou para a própria cabeça, presunçoso.</>

— É apenas um pedaço de metal. — Suspirou ela, tomando um pouco mais da bebida. — Sinceramente, não sei como alguém pôde querer colocá-lo no trono. Me pergunto como este reino ainda não se tornou um grande bordel ou foi consumido até as cinzas!</>

— Deuses! Você sempre viu o “melhor” em mim. — Ele riu, retornando ao seu lugar.</>

Com efeito, Lenór presenciou o ápice da sua juventude leviana. Embora tivesse se dedicado aos estudos na Academia Real de Barafor, que reunia sábios do mundo todo, Mardus não se furtou de mergulhar na esbórnia.</>

— Bons tempos! — Disse o rei, liberando um suspiro longo. — Mas sou um homem diferente, agora. Cardasin não é Barafor e sempre estive muito consciente disso, motivo pelo qual aproveitei ao máximo a minha estada no continente Amariliano.</>

Tomou um pouco de ar, com um sorriso preguiçoso a se formar nos lábios.</>

— De todo modo, minhas experiências por lá moldaram minha vontade de levar Cardasin a um novo horizonte. Algumas de nossas tradições são insultantes. Como por exemplo, as leis que regem o casamento. Cito esta, porque é aquela que lhe interessa, no momento. Todavia, há muitas outras que venho tentando mudar e, consequentemente, enfrentando muita resistência.</>

Ajeitou-se melhor na cadeira, brevemente pensativo.</>

— Aparentemente, esta forma de pensar não me faz um rei muito popular. Minhas ideias renderam algumas tentativas de assassinato, desde que assumi o trono. Agora, necessito de companhia todas as horas do dia.</>

Lançou uma olhadela para a porta, onde ambos sabiam que o guarda, Eidan, estava de prontidão do outro lado.</>

— Mirord estava me ajudando com isso.</>

Uniu as mãos no colo, observando o olhar triste dela tornar-se afiado como o de uma ave de rapina ao perceber que estavam chegando no verdadeiro ponto de interesse.</>

— Com certeza, você sabe que, desde que fui coroado, Mirord se tornou um dos meus homens de confiança. Ele tomou para si a missão de descobrir os autores desses atentados.</>

— Teve sucesso? — Lenór quis saber.</>

— Em parte.</>

Mardus fez um gesto vago, enquanto organizava os pensamentos.</>

— As duas primeiras tentativas foram sutis, se é que posso descrever assim. Um acidente, que acabou se revelando proposital, e uma boa quantidade de veneno em meus lençóis. Tive sorte em ambos. Então, a terceira tentativa era aguardada e, dessa vez, enviaram um assassino para dar conta do serviço de uma forma mais brutal. Montamos uma armadilha e conseguimos capturá-lo, entretanto ele morreu misteriosamente antes que pudéssemos interrogá-lo. Entende onde quero chegar?</>

A cabeça de Lenór balançou de forma afirmativa. Livrarem-se tão rápido de uma testemunha incriminatória deixava claro que os inimigos do rei estavam muito próximos e que tinham espiões no palácio.</>

— De todo modo, antes de morrer, o assassino deixou escapar algo sobre o Abismo de Tenzin. Ele estava bastante atordoado na ocasião, então o que disse não fez muito sentido.</>

Ela fitou as próprias botas. Viagens a levaram bem perto do abismo, entretanto nunca pôs os olhos na fenda profunda que se estendia por centenas de quilômetros e separava o Reino de Cardasin do Deserto de Chadre que, por sua vez, dividia o continente de Paludine ao meio e isolava os reinos do oeste.</>

— O castelo. — Supôs, erguendo o olhar para Mardus.</>

— Sua perspicácia sempre me agradou.</>

O rei levou a mão a cabeça e retirou a coroa, descansando-a ao lado do cálice de vinho. Enfiou os dedos entre os cabelos negros e encaracolados, bagunçando-os. Lenór o conhecia o suficiente para saber que aquele gesto indicava seu estado de espírito. Mardus estava cansado e muito preocupado.</>

— Por que esse assassino chamaria a atenção para um lugar esquecido pelos deuses? — Ela questionou.</>

Estava levemente agastada com os rodeios do amigo para responder seu questionamento sobre o casamento, mas bem sabia que ele não gostava de deixar dúvidas sobre as razões para as decisões que tomava.</>

— Infelizmente, ainda não tenho a resposta para essa pergunta. Verdade seja dita, Lenór, o lugar é tão sombrio e sem graça, que nenhum Clã de Cardasin quer tomar posse dele. Embora existam pessoas de todos os clãs vivendo por lá.</>

Lenór fez um gesto de descaso.</>

— Eu conheço as histórias. Dizem que a floresta que o rodeia é assombrada e que há criaturas sanguinárias no fundo do abismo. Lorde Kanor costumava contá-las para Mirord, quando éramos crianças. — Deixou escapar uma expressão melancólica ao recordar o passado.</>

Como de hábito, não se referiu ao lorde como “pai”. De fato, Lenór nunca o chamou assim, já que essa foi uma imposição do próprio Kanor.</>

— Sim, sim! Um monte de besteiras! — O rei disse, ficando de pé e indo até a janela.</>

— Porém, não sou idiota, sei bem que o abandono daquelas terras se dá pelo fato de que não são mais lucrativas. — Lenór esclareceu.</>

A vista dos jardins do palácio preencheu os olhos de Mardus, fazendo com que soltasse um suspiro. Reinar era mais difícil do que imaginava e ali estava uma função para a qual não tinha se candidatado, porém quis o destino que o seu antecessor morresse jovem e sem herdeiros e que ele, Mardus, um primo distante, fosse o próximo na linha de sucessão.</>

— Ao assumir o comando do reino, me deparei com uma montanha de problemas. Entre eles, o fato de que nosso exército é quase inexistente e que Cardasin está praticamente falido. Aqui, em Nazir, estamos rodeados pela Guarda Real, mas além dos seus limites, o exército quase não existe e o povo sofre por isso. Os poucos homens que patrulham as fronteiras são pagos pelos chefes das províncias e líderes dos Clãs. Meu primo, Rei Tales, era um bom homem, contudo, um péssimo regente.</>

Voltou a fitar Lenór e escorou-se na proteção da janela.</>

— Bem, não posso culpá-lo por tudo. A situação é ruim desde os tempos do pai dele. Por isso, nossos vizinhos invadem nossas terras sem medo de represálias. Sei bem que as vilas das fronteiras com outros reinos são constantemente assaltadas, entre outras coisas mais desprezíveis. Também estou ciente de que os Senhores das províncias não repassam à coroa todos os impostos arrecadados, razão pela qual existem províncias mais prósperas que outras.</>

Fez um biquinho, desconsolado, e retornou à questão inicial.</>

— Independente disso, aqui na capital, a situação é diferente. Há prosperidade. Todavia, não quero ser um rei que vive na suntuosidade, enquanto seu povo perece na mão de marginais e líderes desonestos. Não desejo ser mais um entre tantos outros que relegou essas pessoas à própria sorte. Almejo levar Cardasin de volta aos tempos de prosperidade. Para alcançar esse objetivo, decidi começar por reforçar o exército, mas você pode imaginar que isso também não foi benquisto entre os Clãs.</>

— Com um exército ativo, a capital teria maior controle sobre as províncias. — Lenór observou.</>

— Exato. — Mardus concordou.</>

— Ainda não estou vendo o motivo para o “meu casamento”. — Ela pontuou.</>

— Já estou chegando lá. — Ele garantiu.</>

— Não demore. — Retrucou. — Estou ansiosa para dizer que rejeito a ideia e mandar você para o inferno, junto com este reino miserável.</>

<p “text-align: center;”>II</>

As mãos de Vanieli ainda estavam trêmulas. A emoção percorria seu corpo, assim como o sangue que fluía livre e alegremente nas veias.</>

Ela encarou a tapeçaria na parede à sua frente, onde figuras heróicas travavam uma batalha celestial. Tinha no rosto um sorriso que – estava certa – devia parecer um pouco insano. Porém, loucura mesmo era a situação que acabara de vivenciar no salão do trono.</>

Outra vez, estava prestes a se casar, porém, diferentemente da vez anterior, estava ansiosa por isso.</>

Liberdade.</>

A palavra não parava de ressoar em sua mente. Parecia música, indo e vindo, de forma ritmada. Ela gargalhou um pouco. Primeiro baixo e depois alto o suficiente para preencher todo o ambiente com sua alegria. Nem mesmo o medo que as incertezas atreladas ao novo compromisso lhe plantaram no peito, era capaz de afastar aquela euforia.</>

Ouviu batidas discretas na porta do aposento, que ficava em uma das alas para visitantes do palácio. Como demorou a responder, tentando se recompor, o som se repetiu; desta vez, acompanhado de um anúncio verbal.</>

Ela obrigou-se a abandonar o riso e adquirir uma expressão séria antes de permitir a entrada de uma serva. A mulher trazia consigo uma bandeja com água, vinho e alguns </>petiscos.</> Enquanto ela dispunha o que trouxera em uma mesa junto a janela, Vanieli observou, através da porta entreaberta, a aproximação de Lorde Arino.</></>

Quando o rei a dispensou, junto com Lenór, os lordes retornaram ao salão do trono preparados para uma batalha de gritos contra o soberano. Pelo modo como Lorde Arino pisava duro e a expressão colérica em seu rosto, eles saíram derrotados. Contudo, isso já era esperado.</>

Acostumada com a personalidade rude do pai, manteve o silêncio quando ele entrou no cômodo. A serva finalizou seu trabalho de arrumação da mesa e ofereceu uma reverência profunda para o nobre antes de se retirar. Vanieli assistiu o pai cruzar o quarto, resmungando coisas desconexas em uma acalorada conversa consigo mesmo.</>

Ele sequer tinha notado a serva e jogou o peso sobre a cadeira mais próxima daquela que a filha ocupava, ao mesmo tempo em que um silencioso Darlan fechava a porta e se posicionava ao lado desta.</>

Alguns momentos de silêncio se passaram e a moça logo perdeu o interesse no semblante carrancudo do lorde, ciente de que não tardaria para que ele se manifestasse.  Vislumbrou a expressão inquieta de Darlan, mas não ousou fazê-lo mais de uma vez. Na presença do pai, costumava ser ainda mais cuidadosa em relação ao amante.</>

Arino fez um gesto quase imperceptível e Darlan abandonou seu posto para lhe servir um pouco de vinho, antes de ser dispensado e deixar o recinto. O nobre tomou a bebida de um único gole e ficou insatisfeito por ela não ter removido o nó que se formou em sua garganta, oriundo da revolta que o tomava.</>

Brincou com o cálice vazio por um momento, focalizando os resquícios do líquido rubro no fundo dele. Mais um momento se passou até que erguesse a vista para a filha, deixando um vinco se formar na testa, o que tornou seu semblante sisudo, ainda mais severo.</>

— O nosso soberano é um homem que sabe causar grandes confusões, ainda que tenha boas intenções. — Resmungou ele em um tom, surpreendentemente, moderado.</>

Ela pigarreou antes de comentar:</>

— Imagino que a reunião dos líderes não tenha sido agradável.</>

— Não me faça rir, menina! Sabe bem que nunca houve uma só reunião em que concordássemos em algo. Entretanto, foi diferente hoje. — Depositou a taça no braço da cadeira.</>

— Ninguém quer que esse casamento aconteça. — Vanieli deu voz à verdade implícita nas palavras dele, que recostou-se na cadeira deslizando a mão na cabeça livre de cabelos.</>

— De fato. E isso me faz pensar que você parece muito tranquila com a proposta do rei. Imaginei que a encontraria aos prantos ou coisa pior.</>

A jovem, que havia se distraído com um fio solto de sua túnica, se empertigou, fingindo-se constrangida. Todavia, sua resposta foi mordaz, ainda que dita em tom comedido:</>

— Ele é o rei, afinal. O que eu poderia ter lhe dito para que mudasse de ideia quando o meu pai, o respeitado líder do nosso clã, e tantos outros nobres, não conseguiram?</>

O lorde estreitou os olhos, decidindo se devia ou não responder aquela provocação. Acabou deixando de lado, cansado demais para se dedicar a outra discussão àquele dia. Já estava engasgado com os planos do rei, de nada adiantaria perder a paciência com a filha, também.</>

— Mesmo assim, você está muito serena. — Ele tornou a observar. — Lhe agrada casar com uma mulher?</>

A pergunta foi proferida com evidente curiosidade e, estranhamente, Vanieli não detectou repreensão ou asco nas suas palavras. Ela teve vontade de rir, porém manteve-se séria.</>

— Esteja certo, meu pai, de que essa ideia jamais me passou pela cabeça. Até esta tarde, nem imaginava que casais do mesmo sexo existiam em Cardasin, muito menos esperava que uma união assim também pudesse fazer valer o acordo entre os clãs.</>

Ele balançou a cabeça para cima e para baixo algumas vezes, concentrado na expressão calma que ela exibia. Havia algo por trás dela, algo que escapou dos seus ouvidos e dos outros líderes.</>

— Ao contrário do que houve quando soube que se casaria com Mirord Azuti, você não está fazendo um escândalo. O que há de diferente nessa proposta? O que o rei lhe disse quando saímos do salão?</>

Ela ajeitou-se na cadeira que ocupava e juntou as mãos no colo. Lorde Arino a conhecia bem demais, afinal, de todos os seus filhos, Vanieli era a que tinha a personalidade mais parecida com a sua. E em virtude de episódios problemáticos entre eles, o lorde sempre desconfiava das atitudes dela.</>

— Tirando a mudança de sexo do meu prometido, nada. Afinal, ela também é uma Azuti. — Vanieli torceu o nariz brevemente. — Não espere me ver aos prantos por isso. Passei muito tempo digerindo meu inevitável compromisso com o Comandante Mirord e, agora, me recuso a fazer o mesmo em relação à irmã dele. De que me adianta espernear, se o meu destino não me pertence? Se não me casar com ela, será com outro. Qualquer que seja a situação, meu futuro estará nas mãos do rei ou nas suas.</>

Uma </>damna</> da nobreza deveria ser gentil, educada, silenciosa e obediente. Vanieli era todas essas coisas, todavia, em algumas ocasiões não conseguia calar seu espírito e acabava expondo seu desagrado e desgosto pelas tradições que a obrigavam a se casar com alguém que não escolhera para si, assim como ocorreu com suas irmãs mais velhas.</></>

Esse comportamento irritava Lorde Arino, entretanto, havia momentos em que ele admirava-o, visto que nem mesmo seus filhos homens tinham a ousadia de desafiá-lo. Contudo, desafiar não significava desobedecer. Vanieli era esperta demais para se opor ao pai em um nível que pudesse prejudicar a relação deles drasticamente.</>

— Sendo sincera, meu pai, estou tão assustada quanto no dia em que me disse que deveria casar com Mirord Azuti. — Ela mostrou as mãos trêmulas, para comprovar o que dizia e o lorde pareceu satisfeito. — Todavia, esse é o desejo do rei e eu sou apenas uma de suas ferramentas. Como o senhor mesmo costuma dizer, é preciso pensar no bem do nosso povo, e a única coisa que me consola é saber que esse matrimônio será bom para o nosso clã. Certo? Haverá paz.</>

O lorde ficou de pé, dispensando um gesto brusco para o vazio. Ele andou pelo cômodo, devagar e sem rumo. Era de seu costume fazê-lo enquanto remoía seus problemas. Juntou as mãos nas costas, observando as paredes.</>

— Você não tem ideia do que está falando. — Devolveu.</>

O tom calmo acendeu um sinal de alerta em Vanieli.</>

— Eu perdi primos e um irmão, há dois anos. Compreendo o sentido de paz que o nosso soberano deseja. — Ela insistiu.</>

Lorde Arino fez uma careta.</>

— Todo o reino perdeu algo ou alguém naquele conflito. — Recordou. — Não é este o ponto e não tenho tempo ou interesse de lhe ensinar política.</>

— Talvez devesse encontrar o interesse e o tempo, meu pai. — Vanieli replicou e, quando ele a fitou com uma expressão colérica, apressou-se a explicar: — Posso não entender dessas coisas, porém minha prometida se tornará uma comandante da Guarda. É uma posição de prestígio e grande confiança. Ela estará mais próxima do rei que qualquer lorde e, eu, estarei mais próxima dela que qualquer outro.</>

O olhar dele estreitou, enquanto ela concluía com uma expressão inocente:</>

— Não conheço o jogo da política, mas sou uma mulher. Apenas uma mulher consegue conhecer outra completamente e, também, encontrar as palavras corretas para, talvez, ajudar sua esposa a tomar importantes decisões. Resoluções que, não sei, podem influenciar o rei em alguns momentos.</>

Um sorriso escarninho surgiu entre a barba farta do lorde.</>

— Nem consigo ficar surpreso por você ter pensado nessas coisas em tão pouco tempo. — Confessou ele.</>

A verdade era que aquelas ideias tinham acabado de ocorrer a Vanieli, que nem imaginava se poderia fazer o que sugeriu. Algo em seu íntimo lhe dizia que Lenór Azuti não era do tipo influenciável, contudo, se Lorde Arino acreditasse que essa possibilidade existia, poderia diminuir seus esforços para minar os planos do rei.</>

— Você é uma pequena serpente ardilosa. — Ele acusou.</>

— Achei que era apenas uma boa moeda de troca. — Vanieli redarguiu sem conseguir conter a ironia. — Mas algumas moedas têm mais valor que outras, não?</>

O pai endireitou a postura, ponderando sobre o que dissera por alguns instantes. Então, disse:</>

— Poderia obter sucesso, se estivesse para casar com Mirord. No entanto, estamos em um terreno completamente diferente. — Fez uma pausa para tomar um pouco de ar. — Não…</>

Ele balançou a cabeça, como se estivesse envolto em pensamentos daninhos.</>

— Você não está vendo a situação por inteiro, Vanieli. Esse casamento irá acalmar os ânimos, sim, porém a “paz” que o rei tanto almeja continuará muito distante. Não importa os títulos que receberá, aquela mulher não é nada. Como você mesma disse, não passa de uma ferramenta para o rei.</>

Encarou os singulares olhos dourados da filha. Era comum que as crianças Kamaries nascessem com olhos daquela cor, entretanto o tom migrava para um castanho claro durante o crescimento. Porém, os de Vanieli nunca mudaram e ofereciam uma visão bastante impressionante em contraste com a pele negra.</>

Dois passos o deixaram a poucos centímetros dela, que teve de inclinar a cabeça para fitar seu rosto marcado pela idade e perdas recentes.</>

— Casar-se com o Comandante Mirord seria difícil, mas ele era um homem honrado e respeitado, não apenas entre o seu clã. Você teria uma boa vida ao lado dele. Aquela mulher, por outro lado, fugiu deste reino, tornou-se uma </>daijin</> e renegou seu povo, clã, família e nome…</></>

Afastou-se um pouco, indo até a janela, que lhe ofereceu uma vista agradável do sol desaparecendo por trás das montanhas ao longe.</>

— O sangue que corre nas veias dela não será suficiente para conquistar o respeito do povo que renegou. — Afirmou, cofiando a barba negra e entremeada por fios brancos.</>

Tornou a focalizar Vanieli com uma expressão sombria.</>

— Temo pelo seu destino, se o rei não mudar de ideia. Temo pelo destino de todos nós.</>

Vanieli também temia. As preocupações de Lorde Arino não eram infundadas. Ao se casar com Lenór Azuti, estaria desenhando um alvo em suas costas. Todavia, o prêmio ao final daquele compromisso era atraente demais para que se deixasse apegar ao medo.</>

<p “text-align: center;”>

— § —</>


Oiê!</>

Estou muito feliz pela boa recepção de vocês ao primeiro capítulo e muito agradecida pelas curtidas e comentários. Responderei a todos, sem falta, amanhã.</>

E falando em comentários… Não esqueçam que os comentários deste mês – em qualquer história do site – estão concorrendo ao sorteio de livros.</>

E não deixem de dar uma passadinha no post de comemoração do níver do site – fixado na home – para dar uma sugestão para um conto. Temos ótimas sugestões até agora, mas queremos mais! Já rolou até viagem temporal, star trek e apocalípse zumbi! Hehe…</>

E vocês? Tenho certeza de que têm ótimas ideias também. Então, sem timidez! Não há sugestões ruins ou bobas. Uma pequena ideia pode se tornar uma grande história. [No caso, um ótimo conto, rs.]</>

Nos desafiem!</>

Um xêro grande e até quarta-feira! 😉</>



Notas:



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8 Respostas para 2.

  1. Tattah,

    Q cap maravilhoso, amei, mal posso esperar a continuação.
    Elas estão se mostrando ótimas.

    Bjs, até semana q vem.

    • Nadia,

      Obrigada! Ainda estamos no início, mas creio que já dá pra ter uma noção das personalidades de ambas.

      Beijos e até!

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