— Sinceramente, eu nunca imaginei que me veria em uma situação semelhante. — Disse Vanieli, interrompendo o falatório de Lorde Timerio.

O nobre discorria sobre o testamento do Rei Mardus e no quanto seu teor era insultante para os clãs. Com efeito, era uma situação deveras delicada. Se Elius não a tivesse prevenido, Vanieli não teria encontrado problemas em identificar a tensão que tomava os sete homens mais poderosos de Cardasin.

A maior prova disso era a divisão da mesa que ocupavam.  Enquanto ela sentava ao lado do pai, Lorde Arino, e do sogro, Lorde Kanor, os outros lordes ocupavam o lado oposto. Por sua vez, o ministro Jarfel preferiu sentar-se à cabeceira da mesa tentando, vez ou outra, diminuir os ânimos inflamados com comentários e observações pertinentes.

— Senhores, compreendo o receio e as queixas de vocês, mas…

— Queixas?! — Lorde Aulos interveio. — Damna, não estamos nos queixando. Estamos apontando fatos. Acaso esperava que nós não achássemos suspeitos os termos desse testamento?

— A única conclusão que podemos tirar disso é que, através do seu casamento, os Clãs Kamarie e Azuti tramaram para usurpar o trono de Cardasin. — Timerio retomou a palavra.

Lorde Kanor e Arino protestaram com veemência e nova gritaria se formou, até o ministro Jarfel colocar ordem no salão, exigindo um grande esforço dos seus pulmões e garganta. Com o silêncio restaurado, Vanieli voltou a se manifestar.

— Todos concordamos que estamos vivenciando uma situação delicada e incomum. Contudo, este não é o momento para discutí-la.

— E quando gostaria de discutir o assunto, Damna? Quando estiver sentada no trono?! Isso não irá acontecer! — Lorde Aidar garantiu. — Esse golpe não será bem sucedido. Nós não ficaremos calados e iremos à guerra se for preciso.

Vanieli suspirou, agastada. Ela desejava estar em seus aposentos, amparando Lenór enquanto Melina se esforçava para curá-la. Mesmo que nada pudesse fazer, de fato, queria que a esposa sentisse sua presença e soubesse que não estava sozinha. Entretanto, assim que colocou os pés no saguão do castelo, foi arrastada para aquela reunião e sequer teve oportunidade de receber os cumprimentos do pai.

A gritaria e as acusações recomeçaram e ela se colocou de pé em um rompante.

— Onde vai? — Questionou Lorde Taniel.

— Pelos deuses, tenho mais o que fazer do que assistir um monte de homens barbados agirem como crianças! — Ela se apoiou na mesa.

— Quanto atrevimento. — Queixou-se Lorde Everin, o mais velho entre os líderes presentes.

Vanieli o fitou, indignada.

— Digo o mesmo, Lorde! Me surpreende o atrevimento de vocês e a falta de respeito, também.

Ela se endireitou, exalando forte.

— Acabo de retornar de uma viagem verdadeiramente infernal, mas vocês sequer me deram um tempo para tirar a sujeira e cansaço do corpo. Nem mesmo se deram o trabalho de questionar o estado de saúde da minha esposa. Querem tanto expressar sua indignação por algo que acabo de descobrir e nem tive tempo de ponderar a respeito, que nem perceberam o quão desrespeitosos estão sendo com as suas anfitriãs.

Ela observou o desconcerto que a última frase trouxe aos rostos austeros com prazer. Continuou, mais branda:

— Há pouco tempo, relembrei a Lorde Taniel os valores das leis de hospitalidade. No momento em que adentraram na minha casa, vocês também ficaram sujeitos a ela. Suas acusações uns aos outros são um insulto a mim e a minha esposa. E se não forem mais contidos, Cardasin terá um conselho inteiro de lordes desonrados por desprezarem o acolhimento deste teto e serem expulsos dele. Sugiro que sejam mais comedidos em seus diálogos e suposições.

Ela fez um gesto caloroso, esclarecendo a seguir:

— Essa recomendação também serve para o meu pai e sogro. — Alisou as roupas inconscientemente, fitando o ministro na cabeceira da mesa. — Assim que estiver em condições, me reunirei com o ministro Jarfel para me inteirar dos termos no testamento do rei. Só então, voltarei a conversar com os senhores. Até lá, espero que desfrutem a hospitalidade do Castelo do Abismo sem rusgas. Agora, se me permitem, não tenho um descanso decente há dias, preciso de um banho e roupas limpas. Principalmente, necessito saber como a minha esposa está.

Fez uma mesura suave e começou a se dirigir para a porta.

— Se me permite, irei com você — Disse Lorde Kanor, já se pondo de pé.

— Não. — Vanieli foi curta e grossa. — Eu não permito. Não quero nenhum de vocês perto da minha esposa.

— Vanieli… — Lorde Arino a chamou, mais como um pedido de calma do que para repreendê-la.

Depois do breve diálogo que teve com Lenór no dia do casamento delas, compreendia perfeitamente o receio da filha. Após aquele dia, suportar a presença de Lorde Kanor tornou-se ainda mais custoso para ele.

— Enquanto Lenór estiver se recuperando, somente nossos servos pessoais e a grã-mestra Melina terão acesso aos nossos aposentos. — Vanieli decretou.

— Você ousa trazer essa escória mágica para cá e menosprezar um lorde?! — Gritou Kanor. — Eu sou…

Ela o interrompeu com um gesto brusco.

— Essa escória mágica já salvou sua vida uma vez, Lorde. Eu conheço a história. Assim como conheço bem o tipo de homem que você é. Meus olhos viram o resultado dos seus atos abomináveis e, nem por um instante, acredite que eu deixaria você se aproximar de Lenór. Se ousar fazê-lo, estará desrespeitando as normas desta casa e será convidado a se retirar dela com desonra. Isso vale para todos vocês, Lordes.

 

***

 

Darlan a aguardava do lado de fora do salão e a acompanhou pelas escadas.

— Você tem noção do que acabou de fazer? Ameaçou o líder do clã Azuti diante de todo o conselho dos Lordes. Tratou o seu sogro como se ele fosse lixo.

Ela interrompeu a subida.

— Lorde Kanor é um lixo! E eu não fiz uma ameaça, Darlan, fiz uma promessa. Se ele chegar perto de Lenór, vai desejar nunca ter nascido.

— Fala como se fosse uma guerreira implacável, mas você não passa de uma criança mal educada, Senhora. Não entende o que está em jogo aqui. — O ministro Jarfel a tinha seguido sem ser notado e observava a conversa dos dois ao pé da escada.

Era de conhecimento geral, que ele fora um forte opositor aos planos do rei de casar as duas herdeiras dos clãs mais poderosos de Cardasin, entretanto, Jarfel não era o sujeito mais conservador do reino. Fosse o caso, jamais teria se tornado um ministro de confiança de Mardus.

Ele também desejava a paz no reino, mas acreditava que o rei se arriscava demais ao tentar fazer isso desconstruindo as tradições de um povo que as respeitava rigidamente. O ministro também vivenciou a “liberdade” de outros reinos e almejava isso para Cardasin, porém era mais comedido em suas opiniões. Ele sabia como fazer o jogo político e, por isso, era do agrado de todos os lordes.

— Não me tome por tola, Ministro. O que está se passando ali dentro é uma batalha de egos. Eles acham que quem gritar mais alto terá a sua vontade realizada. — Vanieli desceu um degrau, fitando-o com altivez. — Pois bem, esta é a minha casa. E aqui, eu grito mais alto.

— Esta casa, como você diz, pertence a Cardasin. — Recordou ele. — Você e sua esposa só estão aqui, temporariamente.

Ela teve a impressão de que o ministro sorriria, contudo em vez dos dentes, ele mostrou uma pequena careta, que poderia ter várias interpretações. Vanieli desceu mais um degrau e ficou a poucos centímetros dele.

— Se o documento que você traz debaixo do braço é verdadeiro, Cardasin inteira é minha casa. — Retrucou.

Desta vez, o ministro não conseguiu impedir o sorriso. Entretanto, o gesto mais pareceu outra careta.

— São palavras mordazes para alguém que, até pouco tempo, não passava de moeda de troca. — Jarfel alfinetou. — Um casamento em troca de paz, e que paz frágil nosso soberano conseguiu. Paz que está ruindo com o conteúdo do seu testamento.

Ele fungou alto, admirando os olhos dourados dela.

— Sim, este documento é verdadeiro, Damna. Mas para os homens naquele salão, não passa de uma piada. Meu dever é fazer cumprir a vontade do homem a quem jurei lealdade, mesmo discordando dela. Isso feito, retornarei para a minha província natal e me prepararei para a guerra que está por vir. Isso, claro, se você não a fizer acontecer antes que eu cumpra meu papel.

Jarfel fez um gesto suave e começou a se afastar, mas interrompeu os passos quando Vanieli indagou:

— Qual guerra você quer lutar, Ministro? A que aqueles tolos, lá dentro, querem travar entre si? — Fez um gesto indicando a sala de onde vieram. — Ou você prefere combater o verdadeiro inimigo?

— E quem seria esse inimigo misterioso, Damna? — Jarfel girou sobre os calcanhares.

Vanieli mostrou um riso escarninho.

— O rei Mardus não o mantinha por perto à toa, senhor. Sei que você sabe que, enquanto eles brigam como cães pela carniça, uma fera maior se aproxima para fazer deles a sua refeição. Então, seja um bom ministro e nos consiga algum tempo.

Ele arqueou uma sobrancelha, semicerrando os olhos.

— O poder começa a lhe tomar a cabeça, senhora. — Ele escondeu as mãos às costas, com ar de troça. — Não sou seu servo.

— Seria o caso, se estar no poder realmente me importasse. — Vanieli redarguiu. — Eu tenho anseios mais humildes que o trono e esteja certo de que é o mesmo para Lenór. Quanto à servidão a qual se referiu, enquanto não ler e oficializar os termos desse testamento, diante de todos a quem diz respeito, o senhor estará preso a ele. Que tal não complicar as coisas ainda mais?

Ela pousou a mão na parede fria. Estava realmente cansada física e mentalmente e ansiava por um momento de calmaria. Entretanto, sabia que seus dias de tranquilidade no Castelo do Abismo haviam terminado.

— Minha esposa necessita de um tempo para se recuperar, Ministro. — Relembrou.

— “Se” ela conseguir se recuperar. — Atalhou ele.

Embora o comentário não tivesse um tom maldoso, a frase inflamou os ânimos de Vanieli. Ela enrijeceu a postura, fuzilando-o com o olhar. Havia expulsado da mente qualquer pensamento que a direcionasse para a possibilidade de Lenór jamais voltar a abrir os olhos. Essa imagem era inconcebível. Já tinha sido doloroso demais pensar, mesmo que por uma hora, que ela havia morrido ao cair no abismo. Não permitiria que ideias semelhantes esmagassem suas esperanças, afinal, já havia alcançado o impossível ao tirá-la do abismo.

— “Quando” Lenór acordar, — disse com frieza — resolveremos esse impasse com o testamento do Rei Mardus. Além disso, a Comandante Azuti possui informações relevantes, que poderão nos ajudar a pôr um fim em vários problemas com os clãs, principalmente, no que diz respeito ao ataque que vitimou nosso soberano. Talvez, possamos unir os clãs em prol da mesma causa.

Jarfel cofiou a barba devagar, analisando-a como se fosse um objeto estranho. Ele riu com deboche.

— Você é uma jovem audaz, Damna. É uma pena que não haja espaço para mulheres como você e a sua esposa em Cardasin. Não importa o poder que o rei quis lhes conferir, sempre serão párias aqui. — Enfatizou.

O ministro fitou o chão, balançando os ombros. Os fios grisalhos nas têmporas e barba contrastavam com o tom escuro da sua pele, entretanto, ele ainda não tinha alcançado a meia-idade.

— Os clãs realmente irão se unir com o mesmo objetivo. Na verdade, já estão fazendo isso. Embora estejam se acusando pela invasão a Nazir, estão perfeitamente alinhados no intuito de impedirem que você e a comandante assumam o comando do reino. Depois, irão à guerra para ver qual deles ficará em seu lugar. E o ciclo de guerras continuará, pois não importa quem estará no poder, essa pessoa será alvo dos outros clãs. Nosso reino continuará desunido. — Fez uma pausa, balançando o corpo com uma expressão de lamento. — Não importa qual seja a guerra, eu não posso escolher a que quero travar. Assim que deixar o cargo de ministro, seguirei o meu clã, para o bem ou para o mal.

Voltou a olhar para Vanieli, achando engraçado e desconfortável a situação em que o rei lhe colocou. 

— Contudo, você tem razão. É necessário que a sua esposa esteja sã para que eu possa cumprir o meu trabalho. Espero que isso não demore. Se for assim, o Castelo do Abismo será o centro de um derramamento de sangue. 

Com outra mesura, ele se despediu e tornou a entrar no salão de refeições. Vanieli encarou a porta fechada, antes de se decidir a subir as escadas novamente. Quando passou por Darlan, ele confessou:

— Você me assusta. Mal parece a mulher que conheci. Você tem o rosto dela, mas a cada minuto que passo ao seu lado, percebo que é outra pessoa.

— Achei que isso tivesse ficado claro no momento em que nos reencontramos. — Ela devolveu por sobre o ombro.

Darlan baixou o olhar, balançando a cabeça antes de acompanhá-la.

— Não pode me culpar por ter esperanças. — Disse.

Vanieli parou de andar e lançou um olhar para o alto das escadas e depois para o fim delas, apenas para ter certeza de que não havia alguém por perto.

— Foi bom entre nós, Darlan. Dividimos momentos maravilhosos, mas você merece alguém melhor. Alguém que o ame. E essa pessoa nunca fui eu. Sou egoísta demais para amar alguém além de mim mesma.

Ele voltou a balançar a cabeça, mostrando um sorriso magoado. Contudo, sua voz soou suave quando disse:

— Talvez, isso tenha sido verdade em outro tempo. Mas acho que não é mais. Você mesma acabou de confirmar que mudou e a maior prova disso é que foi capaz de descer até o fundo do Abismo de Tensin e ameaçar um conselho inteiro dos homens mais poderosos de Cardasin, incluindo seu pai e sogro, por causa “dela”.

— Não se trata disso em relação a Lenór. — Vanieli apressou-se a esclarecer.

O protetor fez um muxoxo rápido, balançando uma mão à frente do rosto.

— Você parece ter muita certeza disso, mas não é o que demonstra. — Suspirou forte. — Acho que o problema, Vanieli, nunca foi seu egoísmo. Tampouco sou ignorante ao ponto de acreditar e justificar suas atitudes com a ideia de que você sempre teve uma preferência oculta pelo mesmo sexo.

Olhou nos olhos dela, sentindo a tristeza se espalhar em seu interior. Ele sempre soube que Vanieli nunca lhe pertenceria, mas não se privou dessa ilusão. Era doloroso vê-la quebrada dessa forma, todavia não era ruim finalmente entender que o seu tempo passou e que era o momento de olhar para a frente. Vanieli já havia feito isso, só não tinha se dado conta, ainda.

— Eu ouvi o que você disse lá no abismo, sabe? Sempre a escutei, Vanieli. Com certeza, não da forma que você queria. E isso talvez tenha sido o limite inconscientemente traçado entre nós. — Fez um gesto cansado, antes de enfiar a mão nos cabelos. — Acho que a verdadeira questão aqui é que você a escolheu.

— Não entendo onde quer chegar. — Ela se mostrou verdadeiramente confusa.

Darlan deixou um pequeno sorriso à mostra, então explicou:

— Você nunca pôde escolher seu destino. Em Cardasin, se você nasce mulher, seu único dever é casar e ter filhos.

Deu de ombros, relembrando as muitas vezes em que enveredaram naquele assunto, quando se viam sozinhos na biblioteca de sua antiga residência ou na intimidade. Uma das coisas que Vanieli apreciava nele, era o seu discernimento sobre alguns assuntos delicados. Mesmo assim, Darlan não estava livre de agir como o resto da sociedade masculina de Cardasin. Ele próprio reconheceu isso em vários momentos. Aquele, era um deles.

Por mais que soubesse do seu lugar na vida dela, Darlan a tratou como sua propriedade. E embora Vanieli estivesse casada, continuou pensando assim até ouvi-la falar de Lenór no abismo.

— Lorde Arino, seu pai, escolheu seus pretendentes e você nunca teve direito a dizer não. Sequer teve opção em relação a mim. — Admitiu ele. — Afinal, era o único guarda jovem, que estava por perto e disposto a arriscar o pescoço por um momento entre seus braços. Mas ela, Lenór, você escolheu. O rei lhe deu a oportunidade de decidir sobre a sua vida e você a agarrou sem medo. Eu compreendo isso. Assim como entendo que estar ao lado de alguém que é diferente de tudo o que já conheceu pode ser refrescante e apaixonante. Acho que você deveria tomar um tempo para pensar nessas coisas. Sobre como amizade e amor podem facilmente se confundir.

Vanieli ainda pensava numa resposta quando ouviu os passos de Gael. O menino correu para ela com um sorriso aberto e agarrou-se a sua cintura. A Kamarie o trouxe para os braços em um abraço apertado e as palavras de Darlan foram jogadas no esquecimento.

 

***

 

— Você sabe que pode deitar na cama, também. Eu não mordo. — Melina falou, zombeteira.

A resposta de Voltruf veio em meio a um bufado. A florinae estava na forma animal, deitada aos pés da cama.

— Eu sei, porém não faria muita diferença, já que espíritos não dormem. Você pode desfrutar dela melhor que eu, afinal.

Quando Rall as levou para aquele quarto, pediu desculpas por não poder ofertar um cômodo para cada uma, visto que o Castelo do Abismo não fora construído para receber muitas visitas. Em seus anos dourados, a maioria dos hóspedes do lugar ficavam nas grandes hospedarias em volta dele. Agora, esses locais não passavam de imóveis abandonados ou requisitados para alojar os soldados da Guarda, principalmente, os que chegaram em companhia dos lordes.

Elas não se importaram com o fato de dividirem o cômodo e deixaram isso claro para o velho. A vida de um ordenado não possuía regalias. Muitas vezes, eles dormiam ao relento e, mesmo no Castelo de Lonás, na Ilha Vitta, que era sua sede, os cômodos não passavam de celas estreitas e claustrofóbicas. A Ordem sobrevivia com pouco e esse pouco lhe bastava.

Voltruf não demorou a entender isso, quando se juntou a Melina naquela viagem. Com efeito, era uma experiência diferente para ela, que estava acostumada aos espaçosos e, muitas vezes, luxuosos cômodos das residências florinae. Até mesmo as casas dos aurivas, que eram a casta mais humilde do seu povo, ofereciam mais conforto e espaço que muitos dos lugares pelos quais passaram no ano e meio que já durava aquela missão.

Tornou-se comum compartilhar um cômodo com algum dos ordenados que as acompanhavam, porém seu jeito sisudo causava incômodo em alguns e, assim, ocupar um quarto sozinha ou compartilhá-lo com Melina tornou-se um hábito. Afinal, a grã-mestra conhecia sua verdadeira natureza e interagiu profundamente com ela e seus iguais, portanto, não se importava em tê-la por perto e até se mostrava divertida com isso.

Nas hospedarias, Melina sempre solicitava quartos com duas camas. Voltruf se recolhia ao seu lugar à mesma hora que ela, contudo, no meio da noite assumia a forma animal e, invariavelmente, Melina a encontrava deitada aos pés da cama, como naquele momento.

— Apenas pare de se importar comigo e recupere suas forças. — Queixou-se a florinae. — Sinto seu desgaste.

Uma expressão pensativa se assentou na face da ordenada.

— Simplesmente, não consigo me desprender das preocupações. — Admitiu, enquanto Voltruf arranhava o chão devagar com uma garra mortalmente afiada. — Fiz o meu melhor,  porém Lenór não está nem perto da recuperação total. Se Marie ou Tamar estivessem aqui, seria diferente.

— Você pode fazer isso sem elas. Não precisa das suas filhas para curar alguém, só está se deixando levar pela saudade de compartilhar um círculo com elas. — Observou a florinae.

— Filhas?

— Não é o que são? Você as vê assim, da mesma forma elas a têm como mãe.

Um sorriso preguiçoso surgiu na face alva de Melina. Afinal, era verdade o que ela dizia. Porém, acreditava mesmo que necessitava de ajuda na cura de Lenór e deixou isso claro.

— Aquela moça está destruída por dentro, Voltruf. Tenho certeza de que quando aquele espírito passou por ela causou muito estrago, mas ela já estava machucada antes.

Pousou o braço sobre os olhos, ajeitando-se melhor na cama.

— Vanieli a atingiu com uma boa quantidade de magia, quando vinham para cá. — Voltruf contou e explicou o que aconteceu na perseguição que a comandante e a esposa sofreram na floresta.

— Sim, faz sentido. — Melina concordou. — Todavia, como Vanieli descreveu, as coisas contra as quais lutaram possuem um grito e tanto. É uma possibilidade. E isso nos leva a muitos outros questionamentos.

A florinae balançou a cabeça e Melina retirou o braço dos olhos em tempo de vê-la finalizar o gesto.

— Não eram Sombras como as que combatemos em Flyn. — Voltruf afirmou, sonorizando os pensamentos dela. — Já disse isso antes, acho que nem Sombras eram. Estou certa de que são apenas espíritos.

— E outra questão se levanta. — Melina suspirou. — Se são espíritos, como todas as pessoas na cidade puderam vê-los, assim como a sua pequena amiga, Anerim? Somente quem possui magia espiritual possui esse dom e, ainda assim, alguns espíritos são capazes de se ocultar dessas pessoas.

Escondeu o rosto entre as mãos, os pensamentos fervilhando na cabeça. Indagou:

— E quanto ao abismo? O que foi que encontramos lá embaixo, Volt?

As orelhas do tigre tremeram ao ouvir a pergunta.

— Só posso supor, Melina. Não tenho uma resposta concreta para lhe dar, ainda.

— Mas já tem uma ideia, então não me deixe completamente no escuro.

O tigre suspirou.

— Apenas descanse, Melina. Você terá que cuidar de Lenór novamente, em breve. Podemos conversar sobre todas essas coisas, mais tarde.

Como se estivesse provocando-a, Melina se sentou na cama, recostando-se no travesseiro. As preocupações não lhe abandonavam, contudo sentia-se grata pela atenção e cuidado da florinae, embora ela o fizesse de forma velada.

— Você é uma mulher muito gentil, Voltruf. Não entendo porquê insiste em demonstrar o contrário para os outros.

— Eis um adjetivo que nunca usaram para me descrever antes. — Retrucou a outra.

Os olhos violetas do tigre fixaram a figura da ordenada, antes de soprar o ar longamente. Melina continuou:

— Mesmo? Bem, não é uma surpresa, afinal, seu povo valoriza mais o orgulho do que a boa educação. — Ela riu, mas logo assumiu uma expressão séria. — Acha que não sei o que está fazendo?

Voltruf piscou e parou de arranhar o chão, enquanto ela dizia:

— Seus ferimentos estão cicatrizando mais rápido, agora que voltamos para cá. Todavia, é um fato de que deveriam ter se fechado poucas horas depois do embate na ponte. Você tem um voto sagrado com a minha sobrinha. As duas compartilham a mesma aura mágica, porém você tem evitado usar esse poder.

Voltruf retornou a forma humana e afastou-se em direção a janela. Por sua vez, Melina sentou-se na cama e depois juntou-se a ela.

— Não se trata de querer ou não usar esse poder, Melina. Como lhe disse antes, este lugar me afeta de uma maneira estranha. Quando estou na forma animal seus efeitos são mais suaves. Lá embaixo, no abismo, senti meu laço com Marie instável. Não sei como descrever isso para você, mas não era nada bom.

— O que o abismo é?

A florinae pousou a mão no ombro dela e deu uma tapinha suave.

— Você não precisa perder seu sono com isso. Pelo menos, não agora. Volte para a cama.

— Eu não sou uma criança, sabia? Já tenho 80 anos. — Melina se queixou em tom de brincadeira.

Sabia que Voltruf mantinha o mistério porque ainda não havia descoberto a resposta correta. O tempo lhe ensinou que com a florinae, não adiantava insistir. Ela só falaria sobre algo quando estivesse segura.

— Perto de mim, será sempre uma criança. — Retrucou Voltruf, enquanto ela retornava para o leito.

A grã-mestra sentou na cama, fitando o arco e a aljava, que repousavam sobre a mesa no canto do cômodo. Quando recebeu aquela arma florinae, a idade avançada era evidente em sua aparência.

Apenas cinco pessoas no mundo podiam usar uma arma tucsiana. Durante a guerra contra o Cavaleiro Vermelho, em Flyn, formar uma ligação mágica com o arco era necessário para a realização do ritual que o impediria de devastar aquele mundo. Mas a ligação trouxe um resultado inesperado, a juventude que há muito Melina tinha perdido.

No início, foi difícil se acostumar. Por vezes, lamentou o fato, pois acreditava que já tinha cumprido seu papel e queria um pouco de descanso nas terras imortais. Porém, o tempo passou e as percepções sobre a sua nova realidade mudaram. Nem por isso, era menos incômodo.

Ela passou tanto tempo em silêncio, que Voltruf até se surpreendeu quando ela falou:

— É uma benção e uma maldição, também.

A florinae também admirou a arma. E algum tempo se passou até que encontrasse uma resposta adequada para o comentário, contudo, Melina já tinha se deitado e virado de lado sem intenções de continuar a conversa.

 

***

 

Vanieli observou o dia chegar, recostada à janela. O corpo pedia o merecido descanso, porém não conseguia relaxar o suficiente para dormir, ainda mais com Lenór tremendo de febre ao seu lado.

O ideal seria que encontrasse outro aposento para descansar, mas todos os quartos disponíveis do Castelo estavam ocupados. Além disso, ela não deixaria Lenór sozinha depois do que passaram para encontrá-la.

Tão pouco tempo havia transcorrido desde que trocaram os votos, contudo, era como se ela fosse sua companheira há anos. Darlan tinha um ponto interessante e certeiro no que dissera. Ela escolheu estar com Lenór. Independente do motivo, foi uma decisão sua. Mas amor… Afinal, o que era amor? Certamente, não era isso que sentia por Lenór. 

Voltou-se para a cama. A noite estava na metade, quando Melina encerrou a sessão de cura, que iniciou assim que chegaram. Na ausência de água corrente, que poderia potencializar a cura, a grã-mestra optou por imergir a comandante na água da banheira do quarto de banho, o que conferiu um resultado melhor na cura, todavia, estava longe de ser o ideal.

— Fiz o possível para minimizar os ferimentos mais graves. Porém, ela ainda está uma bagunça por dentro. Precisará de muitas sessões, entretanto, devo ser sincera. Não sei se ela voltará a ser a mulher que era antes de cair no abismo. — Dissera ela, aceitando um copo de água, oferecido por Rall. As mãos trêmulas e um suspiro profundo evidenciaram seu desgaste.

O gemido de Lenór se tornou mais audível e Vanieli abandonou a janela e as lembranças das palavras da ordenada para ir sentar-se na beirada da cama. Ela passou um pano úmido na testa da esposa, que havia passado a madrugada em conversas delirantes com pessoas das quais nunca ouvira falar. 

As feridas externas já não existiam, porém deixaram outro conjunto de cicatrizes no corpo da comandante. Vanieli passou o dedo sobre uma delas, um pouco abaixo do pescoço da esposa. Estremeceu ao imaginar o terror que ela viveu ao se dar conta de onde estava e dos inimigos próximos.

Fungou baixinho, a vista embaçando pelas lágrimas que se aproximavam, contudo, não chorou. Não era o momento de se entregar à fragilidade, embora desejasse muito derramar aquela gama de sentimentos conflitantes através do choro.

Inspirou fundo, passando a mão no rosto, antes de enxugar uma gota de sangue que escorreu entre os lábios da comandante. Fitou os olhos negros que se abriram, de repente. Lenór devolveu seu olhar, todavia o nome que usou para chamá-la deixava claro que não era ela, Vanieli, a quem via. Mesmo assim, a Kamarie estava aliviada em vê-la se manifestar além dos gemidos febris.

— Najili…

A comandante esticou o braço e tomou a mão de Vanieli, oferecendo um sorriso débil para o fantasma que enxergava no rosto dela.

— Você me perdoa? — Lenór perguntou, antes que Vanieli pudesse tentar demovê-la daquela visão. — Eu não queria te trair, eu só…

Sem saber como agir, Vanieli decidiu responder, a fim de livrá-la do tormento que deformava suas feições.

— Está tudo bem. — Disse ela, incerta.

A comandante soltou a mão dela, aparentemente satisfeita, porém continuou a falar.

— Você sempre foi tão compreensiva. Mesmo quando eu quis fugir de você, não me repreendeu.

Ela foi tomada por uma crise de tosse, regada a sangue. Vanieli pousou as mãos em seus ombros para diminuir a agitação do corpo, porém Lenór permaneceu imersa no delírio.

— Eu sei que prometi que nunca amaria outra pessoa além de você, mas foi mais forte que eu.

Cada vez mais incomodada, Vanieli procurou palavras que pudessem consolá-la.

— Está tudo bem. — Disse. — Tenho certeza de que essa pessoa é merecedora do seu amor. Eu não estou magoada.

Lenór tornou a apertar a mão que descansava em seu ombro, os lábios trêmulos e vermelhos de febre. 

— Ela se parece com você… — Mostrou um sorriso vacilante e vermelho sangue. — Às vezes, é tão frágil… E, de repente, se mostra forte e decidida.

A comandante tossiu outra vez e concluiu:

— E, assim como você, não pode me pertencer.

Vanieli baixou a vista para a mão dela sobre a sua, confusa.

— Está tudo bem, Lenór. Vai ficar tudo bem. — Fez um carinho rápido em seus cabelos. A comandante serenou por um momento e ela já se afastava, quando a ouviu dizer:

— Eu achei…

Lenór inspirou fundo e de forma entrecortada. Soou ainda mais débil.

— Achei que esse casamento era só uma farsa, que poderia lidar com isso. Que terrível engano. Por favor, Najili, me perdoe!

Ela riu baixinho, com olhar cada vez mais insano sendo preenchido por lágrimas.

— Acho que é o meu destino amar quem não posso ter. — Declarou.

Vanieli arregalou os olhos. Ela estava mesmo dizendo o que achava que estava?

— Mas, enquanto estivermos juntas, irei cuidar dela, protegê-la. Farei de Vanieli forte para que ela consiga sobreviver fora deste reino. — Voltou a sorrir. — Espero estar ajudando ela a alcançar seus sonhos. Naj…

Fitou Vanieli, cujo coração parecia ficar cada vez mais apertado no peito.

— …você pode me perdoar? — Lenór insistiu na pergunta.

Ainda sem acreditar no que acabara de ouvir, Vanieli forçou um sorriso e sentou um beijo na testa febril dela.

— É claro. Está tudo bem. — Fez novo carinho nos cabelos empapados de suor, vendo-a relaxar até retornar ao sono conturbado.

Vanieli a observou por um longo tempo, ainda tentando absorver o fato de que Lenór a amava. Não como uma amiga, mas como mulher. Escondeu o rosto entre as mãos, pensando no beijo que trocaram nos túneis e a forma como Lenór a olhou depois. Estava constrangida demais naquele momento para conseguir interpretá-lo.

— Deuses… — Murmurou. — O que eu faço agora?

 

 



Já sabem:

  • Sem revisão/ terminei de escrever e já fui postando.
  • Vocês podem encontrar erros e partes desconexas que pretendo corrigir ao longo da semana.
  • Infelizmente, não conseguirei postar esta semana, devido compromissos de trabalho. O próximo capítulo será postado no sábado dia 13/03. Agradeço a compreensão de vocês.
  • O Lesword precisa de doações para se manter em funcionamento, então se puderem e tiverem interesse em ajudar, qualquer quantia é bem-vinda. 

Um grande beijo e boa semana a todas. Nos reencontramos dia 13/03.

 



Notas:



O que achou deste história?

8 Respostas para 24.

  1. Tattah, tenha piedade da Lenor! Traz a Marie ou a Tamar pra ajudar a arrumar a bagunça que ela se encontra, por favor!
    E faz as fichas da Vanieli caírem pra se dar conta que também já tá apaixonada pela Lenor.
    Ficarei ansiosa pela volta.
    Abraços.

  2. O que você faz, Vanieli? Abre esses zóios amarelos e o coração e veja que mulher incrível é Lenor, o quando ela te ama e respeita. Está disposta a abrir mão de você imaginando que jamais será correspondida. Quer te preparar para uma vida longe dela, por amor.
    E aos deuses você só tem que agradecer.

  3. Genteeeeee!! Quando você criou a Lenór estava na tpm né?! Só pode! Cara, como a guria sofre… toda estropiada, por fora, por dentro e ainda declara o amor por Van numa febre infernal… oras, é judiar demais da menina!!
    Só tenho uma coisa a dizer: acaba logo com esse sofrimento da bichinha!!
    Que maravilha de capítulo 😆😆 e volte logo pra arrumar as coisas pras meninas lindas de meu core!!❤️💖

  4. Ausente nos comentários, mas super presente na leitura e amando demais!

    2020/2021 não estão sendo nada fáceis, mas a gente segue na luta e a leitura ajuda a atravessar esses momentos, viu!

    Amando Vanieli, Lénor, a construção desse amor e a magia sempre presente!

    Bjão em algum momento eu volto! haha

  5. São tantas informações…

    Uau, Melina e Volt… 🥰😍

    Vanieli, qto orgulho desta guria,
    ver o qto cresceu, ver como ela não
    mais fica a sombra de Lenór e sim a
    acompanha como uma força da natureza.
    Quero ver Lenór renascer e juntas
    mostrarem pra esse bando de Lordes
    quem manda no pedaço.

    Capitei sua mensagem queridíssima
    mestra, semana q vem sem cap. (vou
    chorar piscinas, mas vou me comportar).

    Arrasando como sempre…

    Bjs,

  6. Amei demais esse capítulo. Vanieli mostrando o quanto está decidida e forte, perante aqueles homens obtusos, meu coração ficou quentinho com a Lenór agora, e Vanieli vc não tem o que fazer, só se permitir amar e ser amada, Lenor tá aí pra isso.
    Boa semana

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