*

 

Vanieli ajeitou os travesseiros de Lenór, deixando-a em uma posição mais confortável, enquanto terminava de narrar tudo o que tinha se passado desde a sua queda no abismo com o máximo de detalhes possível.

— Eu sinto muito pelo rei. — Ela concluiu, e enroscou os dedos nos da comandante com esperança de confortá-la.

Lenór parecia assustadoramente calma com a notícia da morte do amigo. Vanieli fitou suas mãos unidas, feliz por receber o seu toque de volta, assim como o olhar negro e enigmático. Essa pequena percepção a arrastou para a conversa com Voltruf e acabou por soltar a mão da esposa.

— Eu também sentiria, se acreditasse que ele está realmente morto. — Lenór falou, mais séria que o normal.

Ela voltou a pegar a mão de Vanieli, fazendo um carinho suave no dorso. Sentia-se muito cansada e ainda um pouco desorientada após tantos dias inconsciente. Contudo, também havia a sensação de leveza; de que um peso tinha sido arrancado do seu peito, ainda que não soubesse exatamente do que se tratava. Porém, uma coisa era certa. Estava feliz por Vanieli não ter desistido dela e ido buscá-la, quando tudo indicava que havia morrido.

— Como assim?

— Não tenho ideia do que está se passando, Vanieli. Porém, conheço Dimal. Se Mardus e, principalmente Dalise, estivessem debaixo dos escombros do palácio, ele só teria deixado Nazir após encontrá-los e realizar o funeral. Não se deixe enganar por aquela expressão de frieza. Por baixo dela há um homem muito passional.

— Agora, estou muito confusa. Achava que tinha entendido o que estava se passando, mas se o rei está realmente vivo, nada do que imaginei faz sentido.

— Conte-me sobre as suas impressões.

Vanieli fez menção de afastar a mão dela, porém Lenór a impediu.

— Fiquemos assim por mais um momento, por favor. Tocar você me faz perceber que estou realmente viva e que escapei daquele pesadelo…

Os olhos de Vanieli marejaram, recordando a angústia de vê-la cair no abismo.

— Não imaginava que segurar a minha mão poderia ser tão triste. — Lenór a provocou para fugir da sua própria emoção.

— Não poder segurá-la nunca mais é que é realmente triste. — Vanieli confessou, levando a mão dela até seus lábios.

O gesto e a sinceridade desconcertaram Lenór e ela aceitou o carinho com um descompasso no peito. Todavia, recuperou-se rápido.

— Você pode beijar outras partes, também. Não faço questão. — Brincou, como de hábito. — Acho até que ficaria curada mais rápido.

Vanieli a acompanhou no riso, feliz por poder ouví-lo. Sabendo o que agora sabia, poderia ter se sentido incomodada com aquela declaração em tom de galhofa, mas isso não ocorreu.

— Não me dê outro susto desses, Lenór.

— Infelizmente, não posso fazer esse tipo de promessa. A guerra é tão imprevisível quanto o amor. Nunca se sabe por quais caminhos ela nos levará.

Deixou a tristeza dominar suas feições, lançando um olhar inconsciente para o anel que pertenceu à Najili.

— Mas prometo que tentarei ser mais cuidadosa de agora em diante. Por você, por Rall e, principalmente, pelo meu filho.

Ela sorriu devagar e Vanieli a admirou com um nó a se formar na garganta. Tinha aprendido a apreciar aquele sorriso na comandante, visto que era despido da costumeira provocação e ironia. E ele nunca pareceu tão bonito quanto naquele instante.

Outra vez, Vanieli deu-se conta de que a felicidade de tê-la de volta não podia ser medida.

— Eu queria muito poder te abraçar forte agora. — Contou.

— Venha. — Lenór abriu os braços para que se enfiasse entre eles com cuidado.

A alegria que Vanieli sentia era tão gratificante que, contrariando suas próprias resoluções, se curvou e a beijou. Foi apenas um encostar de lábios, ligeiro e estalado, que deixou Lenór sem reação. Mas quando Vanieli se afastou, já se questionando a razão de ter feito aquilo, ela brincou:

— O quão enferma tenho de estar para ganhar outro desse? Ou será você quem está doente?

Recebeu um peteleco na testa.

— Se quer outro, vai ter que levantar dessa cama e vir pegá-lo, Comandante Azuti.

Vanieli se colocou de pé e foi até a janela. Estava surpresa consigo. Tudo o que menos queria era dar falsas esperanças para Lenór, todavia não iria se recriminar por estar feliz com a sua recuperação.

— E se eu fizer isso, você o daria mesmo?

— Só saberá se tentar. — Deu de ombros, com uma expressão desafiadora.

A comandante balançou a cabeça, divertida. Não levou a brincadeira à sério, assim como o beijo, visto que estava acostumada às provocações de Vanieli, mesmo que elas não costumassem ser tão prazerosas. Afinal, eram comuns entre elas.

Contudo, sentia algo diferente na esposa.

Era como se ela tivesse mudado profundamente durante o tempo que passou dormindo.

— Me conte a sua teoria. — Pediu, deixando as brincadeiras de lado.

A chuva ainda caía sobre a cidade e o dia se erguia preguiçoso. O clima úmido tornava os ventos noturnos frios, porém o quarto mantinha uma temperatura aconchegante. Vanieli voltou-se para a esposa, pensativa.

— Talvez seja melhor deixar isso para outra hora; você acabou de acordar. Agora precisa se concentrar na sua recuperação. Além disso, ainda existem alguns pontos confusos nas minhas suposições.

— Quanto antes discutirmos essas coisas, melhor. Temos um castelo cheio de homens poderosos e zangados. Possivelmente, um deles foi responsável pelo atentado da noite que se passou. Então, mesmo que não tenha certeza, quero saber o que pensa. Muita coisa ficou clara para mim, quando passamos aquele sufoco nos túneis, então também tenho algumas hipóteses que gostaria de compartilhar com você.

O som de um trovão, ao longe, trouxe para Vanieli lembranças do abismo. Ela balançou a cabeça, concordando.

— Tudo bem. — Se escorou na parede. — Estou certa de que Zaidar está por trás de tudo isso. As tentativas de assassinato do rei, a morte de Mirord, o incêndio em Verate, a emboscada que sofremos no caminho… Tudo! Exceto, as criaturas do abismo.

Lenór mostrou um sorriso satisfeito para ela que, diante do gesto, afirmou:

— Pelo que vejo, você concorda com isso.

— Sem dúvida. Por favor, prossiga.

Ela teve um acesso de tosse e Vanieli apressou-se para lhe dar um pouco d’água. A Kamarie sentou na beirada da cama, enquanto ela tomava a água.

— Em uma conversa recente, o ministro Jarfel contou que alguns lordes apoiam a ideia de que o filho mais velho do rei de Zaidar assuma o trono de Cardasin e mantenha a linhagem real. Porém, o testamento nos coloca em uma posição privilegiada, o que impede isso.

— É um excelente motivo para tentar nos matar. — Lenór observou com um sorriso tranquilo. — Principalmente, porque o testamento é real.

— Está brincando?!

A comandante aumentou o sorriso, encolhendo os ombros rapidamente.

— Eu gostaria de estar, Vanieli. Porém, esse é o tipo de coisa que Mardus faria. Acredite em mim, Jarfel não tem tanta imaginação, tampouco inclinação para a confusão.

— Deuses! Você sabia disso?

— Mais ou menos.

Vanieli exigiu:

— Explique-se.

— Um pouco antes de deixarmos a capital, Mardus me disse que se algo acontecesse com ele, Cardasin estaria em minhas mãos e que tomaria providências para isso. Confesso que naquele momento achei que se tratava de mais um dos seus exageros. Ele estava um pouco ébrio na ocasião, então não levei o que disse a sério; principalmente, porque ele estava tentando me irritar.

Ela fitou o copo nas mãos, enquanto Vanieli dizia:

— Se o testamento é real e alguém teve acesso ao seu conteúdo enquanto estávamos a caminho do Castelo do Abismo…

— … todas as tentativas de nos matarem podem ter a ver com isso e não com a nossa vinda para cá. — Lenór completou.

Vanieli passou a mão no rosto.

— Estou muito confusa. — Declarou.

Diante do que agora sabia da relação de Lenór com o rei, fazia sentido que ele tivesse mesmo tomado a decisão de torná-la sua herdeira.

— Por que ele faria isso com você? — Quis saber.

— Porque odeio Cardasin. — Lenór respondeu, como se estivesse falando sobre o tempo. — Eu odeio os clãs, os lordes, as leis, as tradições… Se não fosse por Mirord e Mardus, nunca teria voltado para cá.

Seus olhos marejaram, revelando a força do sentimento que as palavras ditas em tom cadenciado e tranquilo não eram capazes.

— E é exatamente por isso que ele fez de mim sua herdeira; porque eu destruirei tudo isso e realizarei seus desejos, além de vingá-lo. — Fez uma careta. — Manipulador de uma figa!

— Eu… não sei nem o que dizer. — Vanieli confessou.

— Eu estou pensando em vários palavrões adequados à situação. Porém, seus ouvidos não merecem isso. — Lenór sorriu, voltando a tranquilidade costumeira.

Estava tão feliz por estar de volta ao lar, que nem conseguia sentir raiva de Mardus. Vanieli fitou o fogo e afagou o colchão, enquanto colocava os pensamentos em ordem. Falou, após algum tempo:

— Deixando as intenções do rei de lado, voltemos ao Castelo do Abismo e os motivos de termos sido enviadas para cá. Qual a importância dele para os planos de Zaidar? — Perguntou. — Estou supondo que Mirord descobriu e por isso foi assassinado.

— Não é o caso; Aisen teria me falado se fosse. — Lenór garantiu. Vanieli a fitou com uma sobrancelha arqueada, como sempre ocorria quando o assunto se voltava para a daijin. — Contudo, acredito que sei a resposta. Pelo menos, ela me parece encaixar com perfeição nessa história, ainda que pareça um pouco fantasiosa.

Ela fez uma pausa para tomar o resto da água no copo que segurava, então o entregou para Vanieli com dedos trêmulos.

— Eu acredito que o próprio Castelo do Abismo é a resposta. Antes de Mirord ser enviado para cá, dois outros comandantes receberam essa missão e ambos estão mortos. — Relembrou. — Nos túneis, um dos mascarados mencionou o “Vale Dourado”.

— Eu me recordo. — Vanieli disse.

Aquela noite parecia tão distante, porém as lembranças lhe chegavam vívidas, como se tivessem acabado de passar pelos momentos que remontavam.

— Ele se mostrou preocupado de que ao derrubarem a galeria, não pudessem mais acessá-lo. Porém, aquele que parecia ser o chefe do bando, disse que tinham outra forma de chegar até o vale. Você tem ideia de onde fica esse vale, exatamente?

— Se soubesse onde, já estaríamos a caminho dele. — A esposa declarou. — Contudo, o pouco que ouvimos naquela noite me faz suspeitar de que fica sob o castelo; abaixo dos túneis que encontramos.

Lenór fez nova pausa, ponderando sobre outras questões. Juntava as informações que reuniu ao longo daqueles meses, quando Vanieli se cansou do silêncio e falou:

— O nome é bastante sugestivo, então me corrija se a minha suposição estiver errada, pois acredito que esse tal vale nada mais é do que uma mina de ouro.

Lenór enrugou a testa quando a fitou. Embora a sua expressão aparentasse descrença, ela balançou a cabeça em concordância. Apreciava a inteligência e perspicácia da esposa.

— Creio que você tem razão. — Disse.

— Você concordou rápido demais com essa ideia. — Vanieli acusou.

A comandante fez um gesto de desculpas, embora acreditasse que não havia motivos para tal.

— A ideia só me ocorreu quando estávamos escalando o paredão do abismo. Fiquei rememorando a conversa que testemunhamos nos túneis. Como você disse, “Vale Dourado” é um nome bastante sugestivo. Juntei isso com meia dúzia de observações ao longo da nossa estadia aqui, ao teor de uma carta que recebi em Verate e o relato vago e choroso de um jovem escravo assustado. Sinceramente, era uma hipótese bastante absurda, mas ouvir você falar que chegou à mesma conclusão, me dá a certeza de que é disso que se trata.

Vanieli apertou o copo que segurava e o girou por um momento.

— Não faz sentido! Por que um reino, cuja riqueza vem da exploração de minas de ouro, se daria ao trabalho de inventar monstros, matar oficiais e derrubar uma ponte de outro reino por mais uma mina? Eles têm dezenas. — Ela observou.

Lenór encolheu os ombros e fez novo silêncio. Novamente, Vanieli começava a se pôr impaciente, quando ela finalmente falou:

— Na verdade, Vanieli, se observarmos a história do Castelo do Abismo nos últimos 20 anos e a juntarmos com a de Zaidar, nossas suposições terão muito sentido.

— Por favor, me esclareça.

— Ah, vejamos se você concorda comigo — Lenór soprou o ar, com nova careta a deformar as feições. — Há cerca de vinte anos, Zaidar era um reino devastado por disputas internas, que tinha perdido grande parte de seus aliados pela intolerância e leis rígidas e cruéis. Enquanto o resto do continente, bem ou mal, engatinhava em direção a abertura de suas fronteiras para o comércio entre si e com os reinos de Amarilian, além de começarem a mudar certas tradições, Zaidar se isolou. Na verdade, ele foi isolado pelos reinos vizinhos. Somente Cardasin manteve relações cordiais com Zaidar, graças ao parentesco de seus governantes.

“Segundo as histórias, Zaidar definhava e só não se tornou vítima de invasões por estar localizado entre Cardasin, Dravel, Aman e os Picos da Morte. Um reino amigo; um reino belicamente fraco e pacífico; um reino que não se interessa pelo resto do mundo e uma cordilheira inabitável, respectivamente.

“Então, um nobre achou ouro em suas terras, próximas à fronteira com Cardasin. Zaidar começou a explorar essa mina e os relatos dizem que outras foram encontradas na região. O resultado, claro, foi o crescimento do reino. Sua riqueza abriu muitas das portas que haviam se fechado no continente.

“Na mesma época, o estreito entre o Castelo do Abismo e o Deserto de Chadre ruiu. Cardasin perdeu sua rota de comércio e prosperidade.”

Sorriu de lado, tomando um pouco de ar, antes de perguntar para Vanieli:

— Você sabia que o tal nobre zaidarniano que encontrou ouro em suas terras era amigo íntimo de Lorde Caldes, o antigo senhor do Castelo do Abismo?

A moça arqueou as sobrancelhas, revelando sua ignorância.

— Como sabe disso?

— Enzio pode ser bastante tagarela se tiver a bebida certa em mãos. — Ela afirmou. — E Rall sabe bem como extrair informações de bêbados.

— Deixe-me ver se entendi, Lenór. Você está sugerindo que o ouro de Zaidar na verdade é de Cardasin?

— Exatamente.

Vanieli ficou de pé e foi depositar o copo na mesa, refletindo:

— As histórias de maldições, a água envenenada, as constantes aparições demoníacas na floresta, os desaparecimentos… tudo cuidadosamente planejado para manter o castelo isolado e continuarem a exploração das nossas riquezas impunemente.

Lenór concordou com um meneio de cabeça, então complementou:

— Com a ponte restaurada, o fluxo de pessoas seria intenso e o exército faria patrulhas constantes. A possibilidade de que esse segredo fosse descoberto e encontrarem a mina seria enorme.

Assistiu Vanieli caminhar pelo cômodo, pensativa.

— Não seria mais fácil invadir essa parte do reino e tomar o que queriam de uma vez? — A moça questionou.

Era uma pergunta justa e arrancou outro sorriso de Lenór.

— De fato. — A comandante concordou. — Porém, é mais inteligente tomá-lo de forma legítima, assumindo o trono como um herdeiro de sangue e sem deixar espaço para revoltas internas.

Vanieli estacou diante da cama e Lenór tratou de explicar:

— Pense um pouco. Há duas décadas a situação de Zaidar era completamente desfavorável; se tentasse invadir Cardasin, sofreria uma derrota humilhante. Tínhamos muitos recursos na época, além do apoio dos nossos vizinhos. Além disso, se soubéssemos que isso tudo se tratava da exploração de ouro em nossas terras, seria uma guerra ainda mais violenta.

— Então, os zaidarnianos colocaram em jogo um plano muito bem elaborado para explorarem essa riqueza debaixo dos nossos narizes. Derrubaram o estreito, isolaram o Castelo do Abismo pondo fim à rota do comércio, o que empobreceu nosso reino. — Vanieli supôs. — É possível que também tenham sido responsáveis pela morte do antigo senhor do castelo, Lorde Caldes, e também do rei anterior?

— É bastante possível. — Lenór admitiu. — Mardus não estava diretamente na linha de sucessão ao trono. Na verdade, ele ficou muito surpreso ao receber a notícia de que herdou a coroa, já que era um primo distante do principal ramo da família real.

— Agora que você comentou, recordo ter ouvido um rumor sobre as intenções dos zaidarnianos de reivindicarem o trono de Cardasin durante o funeral do rei Tales. Todavia não passou disso, visto que o Rei Mardus foi coroado em seguida.

— Imagino que os zaidarnianos ficaram muito frustrados. Certamente, não esperavam que houvesse um primo do outro lado do mundo apto ao trono. — Lenór observou, pragmática.

— Essa conversa está me dando dor de cabeça. — Vanieli suspirou.

— Não é para menos.

Lenór sorriu de um jeito estranho e jogou a manta para o lado. Ela passou os olhos sobre as novas cicatrizes nas pernas, imaginando o estado deplorável que a encontraram.

— Continuaremos mais tarde. Venha, preciso que me auxilie com as roupas e, por favor, peça a alguém para chamar Elius. Preciso inteirá-lo do que vai acontecer.

— O que pretende fazer? A grã-mestra precisa vê-la, antes que você saia batendo perna por aí!

Vanieli foi até ela.

— Aquela velhota poderá me avaliar o quanto quiser, mais tarde. Prometo. Temos de aproveitar o momento. Os lordes já devem estar se reunindo no salão de refeições; confusos e irritados com o que houve na noite passada. Talvez, já estejam se acusando. Na verdade, é mais provável que estejam lamentando o fato de ainda estarmos vivas.

— E o que você vai fazer? — Vanieli quis saber.

— Iniciar uma guerra, é claro!

— Não brinque com uma coisa dessas! — A repreendeu.

— E quem disse que estou brincando?

Vanieli tentou ampará-la durante o esforço para ficar de pé, todavia Lenór a afastou. Ela ficou tonta, como o esperado. As pernas estavam bambas, porém, se ergueu sem ajuda.

— Pronto. — Ela disse, ofegante.

Deu um passo incerto e chegou mais perto de Vanieli. Ofereceu a mão para ela, que a pegou pronta para se queixar. Todavia, Lenór diminui a distância entre seus corpos e juntou seu rosto entre as mãos.

— O que está fazendo?

— Pegando o meu prêmio. — Lenór respondeu.

— Como assim? 

Estava muito longe de ser um beijo como o que trocaram nos túneis. Na verdade, não passou de um roçar de lábios estalado, porém a surpresa fez Vanieli sentir as bochechas arderem como se fosse o seu primeiro beijo.

— Você disse que se eu quisesse um beijo teria de ficar de pé e pegá-lo. — A esposa explicou ao se afastar, então voltou a sentar na cama.

Ela mostrou um sorriso traquina e arrancou um riso sem graça de Vanieli, que pousou a mão na cabeça dela e fez um carinho singelo.

— Achei que você gostasse de beijos um pouco mais ardentes. — A moça troçou, ainda desconcertada.

— Com toda a certeza. Mas eu não beijei uma amante e sim uma amiga querida, que foi capaz de ir ao inferno para me resgatar.

 

 

 

***

 

 

Lorde Arino acreditava que a primeira refeição do dia era a mais importante. Um estômago satisfeito transformava o humor de um homem e tornava seu dia mais aprazível. Entretanto, desde que chegou ao Castelo do Abismo, não houve uma só refeição que fez com prazer.

Ele encarou os rostos sisudos e mal-humorados antes de tomar o último gole de chá e encerrar sua refeição. Incrivelmente, aquela foi a primeira vez que dividiu um desjejum silencioso com eles. Como Vanieli havia exigido, usando as tradições de hospitalidade, os lordes evitavam debates acalorados e acusações quando estavam reunidos. Entretanto, sempre havia alguma animosidade à mesa.

Para Arino, o silêncio dizia muito mais que palavras. Todos pensavam e tentavam descobrir a mesma coisa: Quem havia sido o mandante do atentado contra Lenór e Vanieli?

Antes que ele pudesse deixar a mesa, uma das portas do salão se abriu para dar passagem à comandante e sua esposa. Lenór caminhava devagar e com grande esforço, apoiada em Vanieli. Os homens ficaram de pé para lhes oferecer um cumprimento, enquanto o Ministro Jarfel ajudou a comandante a dar seus últimos passos até a mesa.

— Me alegra o espírito vê-la desperta, Comandante. — Ele foi polido.

— Aparentemente, você é o único.

Ela se ajeitou na cadeira e Vanieli sentou ao seu lado. Por sua vez, Jarfel retornou ao seu lugar.

— Comandante Azuti, creio que falo por todos, neste momento. Sua recuperação nos deixa animados; assim poderemos resolver de uma vez o assunto que nos trouxe aqui. — Lorde Everin disse.

— Sei… o testamento do rei. — Lenór falou, com ar irônico. — Já me contaram sobre isso. O que há para resolver a respeito?

A descrença nas feições dos homens era quase cômica e um instante silencioso se passou até ela se voltar para Jarfel e indagar:

— Ministro, você é o executor do testamento do rei, correto?

— Sim.

— É verdade que ele fez de nós, Vanieli e eu, suas herdeiras?

O ministro limpou a garganta.

— Sim, senhora.

— Então, o que há para discutir? — Ela tornou a questionar os ocupantes da mesa.

Lorde Taniel bateu na madeira, chamando a atenção para si.

— O que há para discutir?! Senhora, há muito para se conversar. Nós não vamos permitir que vocês usurpem o trono de Cardasin! Sobretudo, não permitiremos que uma cria da rainha florinae continue mandando e desmandando em nosso reino!

Um sorriso irônico bordou os lábios de Lenór, atiçando a raiva do rapaz.

— Cardasin nunca vai pertencer àquela escória mágica! — Ele findou.

Um suspiro cansado escapou dela, embora sua resposta tenha soado firme:

— O meu passado em comum com Virnantya Dashtru não cabe nesta conversa, Lorde Taniel. Sinceramente, não sei de onde tirou uma imaginação tão fértil. Cardasin e Flyn são reinos muito diferentes; principalmente, distantes. Suas suposições e acusações são ridículas.

Ela voltou a falar com Jarfel, ignorando o gesto de protesto do rapaz.

— Voltando ao assunto que nos interessa… Ministro, por favor, nos explique quando um testamento deve ser lido e seus desejos executados.

— Quando a pessoa, cujos desejos estão expressos nesse documento, falece. — Ele respondeu, notando para onde se dirigia o raciocínio dela.

Um servo colocou um recipiente com chá à frente de Lenór e repetiu a ação com Vanieli. A Kamarie atirou uma pedrinha dentro de cada bebida; desde a noite da fogueira tornou-se um hábito verificar se havia veneno em qualquer bebida que lhes oferecessem.

— Obrigada. — Lenór falou para Jarfel. — Até onde eu sei, o corpo do rei ainda não foi encontrado. E se ainda não houve um funeral, não entendo o motivo para vocês estarem aqui, discutindo inutilmente os desejos póstumos de um soberano que ainda pode estar vivo! As leis de Cardasin são bastante claras sobre a ascensão de um novo rei.

— É preciso que o soberano anterior esteja comprovadamente morto e que os ritos funerários sejam realizados por sete dias em todas as províncias, antes que um herdeiro assuma o trono. — Vanieli complementou.

O silêncio que se seguiu foi pesado e incômodo, porém Lenór não demorou para interrompê-lo.

— De fato, um esforço inútil. — Ela disse. — Entretanto, já que tiveram a “boa-vontade” de virem até aqui, devo agradecer por me pouparem o trabalho de ter de ir atrás de vocês.

Fez um gesto e o Capitão Elius, que aguardava na entrada do salão, adentrou nele acompanhado de vários soldados. Os homens se espalharam pelo lugar, rendendo os protetores dos Lordes que vigiavam o local.

— O que está acontecendo? — Lorde Kanor indagou.

Pela primeira vez, desde que se sentou à mesa, Lenór se deu ao trabalho de olhar para o pai.

— A partir deste momento, os Lordes de Cardasin são prisioneiros do Castelo do Abismo. — Ela explicou com prazer.

— Enlouqueceu? — Lorde Everin se pôs de pé. — Sob que acusação?

— A lista é bastante extensa, Lorde, porém todas se resumem a uma palavra: Traição!

 



 



Notas:



O que achou deste história?

5 Respostas para 27.

  1. Tu é fantastica! Todo capitulo novos acontecimentos que sempre deixam um gostinho de quero mais kkk

  2. Lenor acodou com tudo. Colocando os lordes contra a parede. Lunda a relação de cumplicidade das duas.

  3. Mais um capítulo quentinho pra alegrar meu coraçao, autora. Maravilhoso!!!
    Lenór é a melhor colocando ordem na bagaça kkkk.
    E Vanieli poderia ter melhorado o premio de Lenór, só um selinho e muito pouco pra tanto esforço.
    Boa semana
    Bjs

  4. Eitaaa que o fogo no parquinho começou! Ops, fogo no castelo! haha

    Lenór voltou com tudo! Adoroooooo!

    Bjuuu

  5. Táttah!!

    Simplesmente inacreditável, q tua imaginação cresça e
    seja alimentada constantemente.
    Mais um cap. maravilhoso, vejo q encontraste o caminho,
    q ele seja luxuriante já q acharam uma mina de ouro com
    jazida sendo explorada.
    Como sempre, arrasando Táttah; me sinto mega sortuda por
    acompanhar mais esta obra maravilhosa.

    Bjs,

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