*

Vanieli juntou as mãos e a magia jorrou delas na forma de lascas de gelo, que se prenderam nas árvores em volta e só não atingiram Voltruf porque ela criou uma parede líquida para se proteger.

Irritada por não ter conseguido criar a esfera líquida que a mentora pediu, a moça soltou um gritinho.

Tentou outra vez e o resultado foi ainda mais desastroso. A chuva dos últimos dias havia dado uma trégua, mas o solo ainda estava encharcado e o seu descontrole fez estacas geladas se projetarem do chão em várias direções, o que obrigou Voltruf a interferir e bloquear o avanço do gelo por uma dezena de metros.

A florinae teve mesmo um momento de dificuldade para desfazer a magia da aluna.

— Qual o seu problema? — Ela indagou, ouvindo o gemidinho frustrado de Vanieli.

A moça passou a mão na testa úmida, baixando os olhos para os pés dela. Voltruf transformou o gelo em água, cuja terra saturada absorvia devagar. Ela aguardava a resposta no meio de uma poça.

— Isso é muito difícil! — Justificou a Kamarie.

— Você não é muito boa mentindo, Vanieli. O poder você já possui e até mesmo usou. O que estou exigindo é um pouco de concentração para que consiga acessá-lo sempre que desejar.

Vanieli escondeu o rosto entre as mãos, com os pensamentos agitados. Estava cansada física e mentalmente, pois tinha esperado o retorno de Lenór durante toda a noite e quando percebeu a chegada do dia, tratou de ir procurá-la. Ela não estava com Rall e Gael, tampouco com Aisen, muito menos com Melina e Voltruf.

Na verdade, ninguém a tinha visto depois que deixou os aposentos.

— O que aconteceu? — Rall a questionou, enquanto seguiam em direção ao salão de refeições com Gael a tiracolo.

— Eu fiz uma grande besteira. — Ela respondeu com um nó a se formar na garganta. — Nós… meio que brigamos.

— Hm… Não se preocupe, Lenór tende a procurar o isolamento quando está zangada. Ela fica remoendo o assunto até a raiva arrefecer. Melhor assim, o mau humor daquela menina é terrível.

Apesar do que ele disse, Vanieli não conseguiu sossegar. Começava a se desesperar, quando trombaram com Dimal saindo da biblioteca particular de Lenór. O palatin trazia nas mãos o uniforme extra, que a comandante costumava deixar em uma bolsa de viagem guardada naquele cômodo.

— Yoha! — Ele cumprimentou, então se curvou rapidamente e seguiu seu caminho sem dar explicações.

Rall balançou a cabeça, com um sorriso maldoso.

— Acho que me enganei. — Deu um tapinha camarada nas costas de Vanieli. — Há outras maneiras de aliviar a raiva do que ficar remoendo ela sozinho.

Os passos curtos de Voltruf, chapinhando na lama, chamaram sua atenção. Ergueu o olhar para o rosto sério dela e desatou a falar sobre a conversa que teve com Lenór e como estava se sentindo mal por tê-la magoado.

— Você é idiota?! — Voltruf perguntou, quando finalizou seu relato.

— Também não precisa ofender! — Queixou-se.

— Por Cazz! Se eu estivesse no lugar de Lenór, nunca mais iria querer olhar para você!

— Foi você quem me aconselhou! — Vanieli acusou-a.

— Não distorça as minhas palavras para justificar os seus erros. — Voltruf ergueu um dedo. — Eu falei sobre sentimentos, não sobre desejo. E agora está bem claro que você não sabe diferenciar um do outro. É isso ou se faz de tonta com maestria!

Vanieli sabia que merecia ouvir aquelas palavras. Mesmo assim, continuou tentando se justificar:

— Ela é sempre tão segura; me falou uma dezena de vezes sobre os termos do nosso casamento…

— Termos que foram estabelecidos quando vocês se casaram. De lá para cá, muito tempo se passou; a situação mudou e os sentimentos de ambas, também. — Voltruf enfatizou. — Você sequer faz ideia do que fez de verdade.

Mirou-a com um balançar suave de cabeça.

— Apesar de jovem, Lenór tem uma vivência ampla e certamente poderia lidar com isso de uma forma mais amena. Estou certa de que seria assim, se você não tivesse dito que “ela não te importa”.

— Mas eu não fiz isso! — Vanieli apressou-se a refutar.

— Foi exatamente o que você fez! Você disse para a mulher que te ama, que quer se deitar com ela e dividir momentos de prazer por um ano e, quando esse período acabar, irá embora de Cardasin sem olhar para trás. — Ela voltou a erguer o dedo e repetiu a última frase, dando ênfase a cada palavra: — Sem olhar para trás!

Pousou as mãos na cintura, e uma mecha dos cabelos negros deslizou pelo seu rosto, ocultando o olhar violeta por um instante.

— Vanieli, em algum momento chegou a se perguntar se ela quer ficar aqui quando seu casamento acabar? Cogitou a possibilidade de que Lenór possa querer te acompanhar ou gostaria de ficar em contato com você, mesmo que não tenham mais um laço romântico?

Ela já sabia a resposta para a pergunta e o silêncio desconsertado da pupila não a surpreendeu.

— O que Lenór te confessou de forma inconsciente é o desejo de ajudar você a alcançar seus sonhos, mesmo que nunca fiquem juntas. Mas você fez questão de dizer a ela que irá apenas usá-la para o seu prazer, nada mais.

Quando pronunciou a última palavra, o choro de Vanieli havia se tornado quase compulsivo. Ela tinha se escorado a uma árvore e deslizado até o chão, escondendo o rosto entre as mãos.

Voltruf teve pena dela e, ao mesmo tempo, sentiu raiva. Pois, Vanieli realmente a fazia lembrar de si mesma e dos erros que cometeu em um passado distante.

— O que você sente quando está com Lenór? — Quis saber de repente.

— Por que essa pergunta? — Os olhos dourados, vermelhos e úmidos, a focalizaram.

— Apenas responda. — Voltruf perdeu a paciência.

A resposta começou com um dar de ombros tímido, que deu lugar a um sorriso suave.

— Paz, carinho… É como se ela fosse um lugar especial e eu pertencesse a esse lugar. — Fungou forte e concluiu: — Não sei explicar direito.

— Quando passou a se sentir assim?

Vanieli fez uma rápida avaliação das suas emoções desde que conheceu Lenór.

— Não tenho certeza. Acho… acho que desde a primeira noite que passamos juntas.

— Por quê?

— Ela se mostrou diferente do que imaginei e esperei. Lenór é sincera, ponderada, respeitosa, carinhosa, leal… Não houve um só dia em que não me senti segura ao lado dela, mesmo quando fomos atacadas na estrada ou nos túneis. Se ela estava lá, estava tudo bem. — Tomou um pouco de ar, recuperando parte da calma.

— E quando ela caiu no abismo? — Voltruf insistiu.

Um sorriso estranho moldou os lábios de Vanieli, enquanto admirava o semblante dela. Fosse outro a lhe perguntar aquelas coisas, certamente se sentiria incomodada e desviaria do assunto. Contudo, apesar dos modos grosseiros e o irritante sarcasmo, Voltruf a deixava à vontade.

— Foi como se tudo isso tivesse se partido, como se eu estivesse quebrada. — Admitiu sem se dar ao trabalho de pensar na resposta.

Satisfeita, Voltruf andou até ela e ajoelhou-se à sua frente.

— Amor não se explica, apenas se sente. — Disse, quase como se estivesse recitando um poema baixinho.

Suas expressões, geralmente sérias ou irônicas, suavizaram ao ponto de quase parecer uma estranha.

— Às vezes, ele pode tomar a forma de ódio, porque você ainda não consegue entender aquela palpitação diferente no seu peito ou o suspiro bobo que sempre lhe escapa quando vê uma determinada pessoa. Às vezes, ele é claro e transparente como as águas calmas de um riacho. Noutras, — ela mirou Vanieli significativamente — nós sabemos da sua existência, mas insistimos em dar outro sentido para ele, porque temos medo que nos leve por caminhos diferentes dos que planejamos. Então, escolhemos usar a lógica e acabamos nos magoando e a quem amamos.

Fez uma pequena pausa, colocando a mão sobre a dela, no joelho.

— Você a ama, Vanieli, mas faz questão de não enxergar isso porque tem medo das escolhas que esse sentimento irá te obrigar a fazer: ser diferente do resto do reino e ousar amar uma mulher, ficar em Cardasin, esconder sua magia, abdicar dos seus desejos de conhecer o mundo e entrar para a Ordem, passar o resto da vida sendo objeto de ódio e rejeição, mesmo estando em uma posição de nobreza e poder.

Segurou o queixo dela, obrigando-a a erguer a face completamente.

— Às vezes, amar é a maior batalha que podemos travar. Aceite o conselho de alguém que perdeu a própria batalha porque teve medo de reconhecer esse sentimento e das barreiras que se ergueriam a partir disso. Não repita os meus erros. Se quer estar ao lado de Lenór como esposa dela durante um ano, não faça porque quer ter prazer, mas porque quer saber como é ser amada e como é dar amor. Sobretudo, faça com que ela saiba disso.

Ficou de pé, observando o entorno, enquanto Vanieli enxugava as lágrimas com as costas das mãos.

— Venha, vamos caminhar um pouco.

— Para onde vamos?

Volt ofereceu a mão para ela e a ajudou a se erguer. Indicou o caminho e começou a andar, tomando a direção contrária a do castelo.

— Uma boa caminhada ajuda a colocar os pensamentos em ordem. E acho que depois dessa conversa você tem muito em que pensar. —  Sorriu para a expressão desolada e quase infantil que ela fazia. — Além disso, quero tentar algo diferente com você e quanto mais distantes ficarmos do castelo melhor.

Um agradável silêncio acompanhou-as durante a caminhada na mata e, como Voltruf tinha afirmado, isso ajudou Vanieli a acalmar-se. 

Estavam próximas ao abismo, quando Volt parou de andar.

— Enquanto conversávamos, me ocorreu que estou cometendo um erro com você. 

— Como assim?

Vanieli perguntou com voz firme. Já não se sentia tão angustiada e reconhecia que fora bom desabafar com ela.

— Magia exige muito da gente, física e emocionalmente. Principalmente, se o seu dom estiver fortemente vinculado a um elemento espiritual. Nossas personalidades tendem a ser influenciadas por eles. Melina, por exemplo… — fez uma ligeira pausa para encontrar o adjetivo correto. — Ela é sempre cálida. Entende? Mesmo séria, triste ou zangada. Tudo o que faz é intenso. O fogo combina com ela, assim como a cor do céu nos seus olhos.

A última frase fez Vanieli rir baixinho e observar:

— Você é muito boa em falar dos sentimentos alheios, mas já se deu conta de que sua voz é mais suave quando fala o nome dela? Isso, sem falar que tem sempre um sorriso no canto da boca quando Melina está por perto.

A mestra a fitou seriamente.

— Que foi? — Vanieli perguntou. — Acaso só os meus sentimentos devem ser discutidos? Eu tenho uma ou duas observações sobre vocês duas, também.

A outra riu, balançando os ombros. Porém, não aceitou a provocação e deu prosseguimento à explicação:

— A água é um elemento fluido, o que significa que seus usuários se adaptam a novas situações e ambientes com facilidade. Imagine uma série de jarros de diferentes formatos. Sempre que adicionar água a eles, o líquido irá se adaptar às suas respectivas formas. Mas se continuar adicionando água, irão transbordar.

Enquanto falava, ela fez um pequeno recipiente de gelo e colocou água nele para ilustrar suas palavras.

— Você é como a água que transborda. Como um rio caudaloso, não quer ser contida, então o que eu estava tentando lhe ensinar não condiz com a sua personalidade. Acho que, no seu caso, para aprender a controlar seus dons, você tem que perder o controle deles.

— Me parece muito contraditório. Como faríamos isso, afinal?

Voltruf criou uma haste de gelo e, sem aviso, investiu contra ela. Vanieli esquivou-se por pouco e berrou:

— Enlouqueceu?!

— Até agora, seus poderes têm se manifestado em momentos de extrema tensão. Ainda que de uma forma crua, eles obedecem a sua vontade. Então, o que iremos fazer é criar uma situação que obrigue seu corpo a invocar esse poder. E quando você perder o controle, fará o mesmo que fez no abismo, lembra?

— Pensar em algo que me traz paz?

— Exato.

— Mas isso não vai me fazer parar?

— É aí que está o ponto, eu não vou deixar você parar. — Voltruf sorriu de lado, de uma forma quase maldosa.

Ela fez a haste de gelo crescer mais alguns centímetros e deixou claro:

— Vou atacá-la para valer. Se você não reagir, vai se machucar feio. Quem sabe, pode até morrer.

Ela não esperou que Vanieli absorvesse o significado do que disse e investiu contra ela. A moça se jogou no chão para escapar do ataque, lama espirrou na sua face e ela rolou por mais alguns centímetros até ficar de pé. Cambaleou para o lado quando pequenas estacas de gelo quase se fincaram nos seus pés.

Recuperava o equilíbrio, quando uma nova rajada de gelo passou perto da sua face. Vanieli sentiu o sangue escorrer de um corte na bochecha. Passou a mão sobre ele e olhou para o sangue na ponta dos dedos.

A mentora a encarou, inexpressiva.

Pela primeira vez, desde que a conheceu, Vanieli sentiu perigo real vindo de Voltruf. Então pegou uma das estacas dela, longa o suficiente para ser um cajado. Quando assumiu uma posição defensiva, a estaca derreteu completamente.

— Se quer se proteger, faça o seu próprio gelo! — Voltruf sorriu de lado.

***

— Você quer conversar? — Rall perguntou.

O garfo parou a meio caminho da boca de Lenór. Ela arqueou uma sobrancelha, depositando-o no prato.

— Não. — Suspirou a resposta.

O amigo fez um gesto para que voltasse a comer, o que ela fez com evidente desânimo. Afinal, ainda não tinha recuperado o apetite de antes de cair no abismo, tampouco se sentia disposta após uma noite insone remoendo o amargor que a proposta de Vanieli lhe trouxe.

— Vanieli parecia muito preocupada com você, hoje cedo. — Disse ele.

— Você não vai desistir, vai? — Ela tornou a soltar o talher.

Rall sorriu de lado, cofiando a barba rala.

— O que você acha?

— Acho que você é muito irritante, às vezes. — Os olhos dela se fecharam, levemente. — Principalmente, porque sabe me levar com essa conversa mole.

Passou a mão na testa, onde gotículas de suor se acumulavam, ouvindo-o rir com gosto.

— Se eu realmente tivesse esse poder, não estaríamos aqui. — Ele afirmou.

Lenór tentou empurrar o prato para longe, porém foi impedida.

— Termine. — Rall ordenou, deixando claro que aquele prato só sairia da sua frente quando estivesse vazio.

Resignada, a comandante voltou a pegar o garfo e forçou-se a terminar a refeição. A comida não tinha sabor para ela, tampouco o vinho. O amigo aguardou pacientemente e fez uma careta satisfeita ao ver o prato vazio.

— Você não precisa me contar nada. — Ele disse, por fim. — São seus assuntos e já me intrometi demais neles.

— Você faz porque é um bom amigo e apesar de me irritar algumas vezes, sei que só deseja o meu bem. Além disso, costuma ter razão na maior parte do tempo.

— Aha! — O velho riu, dando uma batidinha na mesa. — Só estando doente mesmo, para você admitir isso!

Lenór tentou acompanhá-lo no riso, todavia só conseguiu fazer uma careta. E um minuto se passou até se decidir a contar:

— Ela quer ser minha esposa entre os lençóis, mas deixou claro que não passaríamos da relação amigas-amantes.

— Oh! — Rall franziu o cenho, compreendendo o que isso significava para uma mulher como Lenór. — Eu sinto muito.

— Não há nada para sentir. Nunca me iludi em relação a Vanieli e o nosso casamento. Porém, doeu ouví-la dizer essas coisas. Doeu mais do que sou capaz de descrever… E estou mesmo decepcionada. Não com ela, mas comigo.

— Por quê?

— Por estar magoada.

— É seu direito. — Ele pontuou.

— Não quando fui eu quem citou as regras desse casamento.

Rall encheu as bochechas de ar, desistindo de argumentar que um casamento não era como comprar uma carroça.

— Na verdade, eu a compreendo, Rall. Conheço os anseios e sonhos dela, porque eles já foram os meus, ainda que de uma forma diferente. — Recostou-se ao espaldar da cadeira, em meio a um sorriso anasalado. — Se trata de liberdade, de ter o controle sobre o próprio destino.

Ele balançou a cabeça com um suspiro que poderia ter várias interpretações.

— Não posso negar que também compreendo esse desejo. — Disse. — Entretanto, me entristece que essa moça esteja tão cega por ele, que não é capaz de enxergar que a liberdade tem várias formas, assim como o amor.

Juntou as mãos e brincou com os polegares, antes que sua seriedade desse lugar a um sorriso travesso. Declarou:

— Mas se estivesse em seu lugar, aceitaria a proposta.

O olhar chocado da amiga aumentou seu sorriso.

— Uma boa companhia entre os lençóis faz bem a alma, Lenór. — Afirmou, sabichão. — Além disso, sempre há a possibilidade de que esses pequenos momentos de intimidade e satisfação a façam mudar de ideia sobre a sua relação.

— Talvez você tenha razão, mas eu não quero estar com Vanieli dessa forma. — Encolheu os ombros rapidamente.

Os dedos dele tamborilaram na madeira grossa da mesa, analisando-a.

— Se a vida nos dá uma migalha, Lenór, cabe a nós fazermos dela um pão inteiro e saciar nossa fome. — Fez um breve silêncio, enquanto ela dedicava atenção às próprias unhas. — Não estou sendo insensível com os seus sentimentos, tampouco com os dela. Só acho que você merece viver esse romance, mesmo que o amor esteja apenas no seu coração. Ao menos terá feito isso e não se culpará por nunca ter ido adiante como aconteceu com Najili.

— Não vamos voltar a esse assunto!

Ele ignorou o pedido.

— Belgar estava morto, vocês estavam longe de Barafor e tinham a minha aprovação. Não precisavam esperar três anos para ficarem juntas!

— Honramos seu filho, Rall!

— Eu conheço bem o sentido de honra, Lenór! O ensinei a Belgar e assim ele fez seu caminho. — Alteou a voz levemente. — Me diga, de que valeu esperarem tanto tempo em nome dessa “honra”? Najili morreu sem que vocês pudessem se casar e viver o que sentiam plenamente.

Lenór girou o anel no dedo, admirando seus detalhes. Seus lábios tremeram quase imperceptivelmente.

— Isso não é exatamente verdade. — Contou, abandonando a contemplação da joia para fitar o amigo. — Nós nos casamos dois dias antes do ataque à Clarivon.

Rall inclinou o corpo para frente, enrugando a testa e ela continuou com voz falha:

— Você nos fez ir ao festival das flores, lembra? Fez questão de ficar com Gael e cuidar dele para que tivéssemos um pouco de diversão. E Najili tinha resolvido aceitar seus conselhos, então quando chegamos à cidade, ela me surpreendeu com um pedido formal de união. — Riu baixinho. — Ela nem esperou minha resposta para me arrastar para o templo mais próximo.

Os olhos dela marejaram. Como de hábito, Rall imaginou que as lágrimas logo sumiriam sem serem derramadas, porém, surpreendeu-se quando uma delas atreveu-se a cair e logo após outras traçaram caminhos úmidos no rosto moreno.

— Dois dias… os mais felizes da minha vida. Então, aqueles piratas desgraçados atacaram Clarivon. Tudo se tornou medo, dor e caos… e eu a perdi.

Ela abaixou a cabeça e Rall assistiu seu pranto silencioso. Condoído, ele esticou o braço sobre a mesa e pegou a mão dela. Ficaram assim, até que Lenór se sentiu capaz de encará-lo, novamente.

— Por que nunca me contou?

— Não sei. — Ela fungou, enxugando as lágrimas. — Acho que queria guardar esse pequeno pedaço de felicidade apenas para mim.

Mostrou um sorriso trêmulo.

— Não existe um só dia em que não pense nela, mas agora… — a voz fraquejou.

— … existe Vanieli. — Rall completou.

— Sim… Eu não procurei por isso, tampouco desejei, mas sinto. E é igualmente bonito e forte, além de doloroso e triste. Não há futuro para nós, assim como não houve com Najili.

Houve um caloroso momento de silêncio, que Lenór aproveitou para se recompor. Rall queria poder gritar com ela, pedir para que lutasse em vez de desistir, mas havia um limite para até onde poderia se meter na vida e escolhas dela. Restava apoiá-la e torcer para que aquela situação se resolvesse da melhor forma possível.

A chegada de Aisen pôs um fim definitivo à conversa dos dois. A daijin cruzou o cômodo com passos ligeiros, reparando nas quatro cadeiras dispostas diante da mesa que eles ocupavam.

Ela fez uma mesura e, sem rodeios, declarou que o despertar da comandante a deixou alegre.

Foram palavras comedidas e suaves, pronunciadas de forma cadenciada. Pareciam cuidadosamente ensaiadas e polidas, mas Lenór tinha aprendido a interpretar as sutis expressões de Aisen. Sabia que ela realmente se sentia feliz com sua recuperação e também percebeu que algo a preocupava antes mesmo de ouvi-la perguntar:

— Posso ter um momento da sua atenção? Damna Vanieli já deve ter falado do que se trata, contudo há muito mais a esclarecer. 

— Vanieli não me contou nada. — Lenór revelou, deslizando a mão pela lateral da mesa até encontrar a bengala que Rall lhe dera um pouco antes da refeição. O apoio a fazia se sentir criança outra vez, quando até mesmo usar muletas era algo extremamente difícil.

— Neste caso, será uma conversa ainda mais longa. — Declarou a daijin.

O capitão Elius entrou no quarto e anunciou que as ordens que a comandante lhe dera, mais cedo, foram cumpridas. Silencioso, Rall recolheu o prato, talheres e o cálice de vinho. Então, se dirigiu para a porta.

— Mande-os entrar. — Lenór pediu para ele, antes que alcançasse a porta, então se voltou para Aisen: — Conversaremos mais tarde. Fique aqui, sua companhia poderá ser útil.

A moça balançou a cabeça e posicionou-se atrás da cadeira que ela ocupava.

— Comandante. — Elius falou. — Não acha que é cedo para ter um novo embate com eles depois do que houve ontem? Além disso, seu estado ainda inspira cuidados. Não devia se esforçar tanto.

— Agradeço sua preocupação, Elius. Sei que é sincera. Porém, se der mais tempo a eles, não obterei as respostas que quero.

— Compreendo. — Ele suspirou, com ar derrotado.

— Não fique assim. Tenho muita consideração e respeito por suas opiniões. E você está com a razão, devia mesmo repousar um pouco mais. Entretanto, não temos muito tempo para agir. Assim que Zaidar souber da prisão dos lordes, irá se posicionar.

— Se o que espera se concretizar, uma guerra será inevitável. — O capitão afirmou, apreensivo.

Lenór preferiu o silêncio como resposta. E isso deu ao capitão a falsa impressão de que concordava com suas suposições. Pelo contrário. Para Lenór, toda guerra podia ser evitada. Bastava fazer bons movimentos, nos momentos certos.

Resignado, o capitão posicionou-se junto à parede, enquanto Dimal adentrava no quarto, seguido pelos lordes de Cardasin.

***

Vanieli estava exausta, após uma tarde inteira fugindo das investidas de Voltruf.

De fato, a tática da florinae dera bons resultados. Ainda que de forma atabalhoada, Vanieli conseguira um controle parcial da magia. Naquele momento, ela segurava um fiapo quebradiço de gelo, satisfeita por ele se manter daquela forma há vários minutos.

— Acho que é o suficiente por hoje.

— Mas já? Justo agora que estou começando a pegar o jeito!

— De nada servirá isso, se você desmaiar de exaustão. Acabará passando os próximos dois dias se recuperando e perderemos um tempo precioso. — Voltruf argumentou. — Além disso, logo irá anoitecer.

Com uma pequena careta de decepção, Vanieli desfez o gelo e iniciaram o retorno ao castelo. Poucos minutos depois, ela interrompeu os passos para dizer:

— Eu sinto… — Sua intenção era concluir com a palavra “perigo”, porém Voltruf completou de outra forma:

— …cheiro de sangue.

Ela fez um gesto de silêncio para Vanieli e alguns instantes se passaram até ouvirem os primeiros passos e sussurros de uma conversa acalorada. As duas buscaram a proteção de um arbusto e não demorou para que três homens passassem ao seu lado.

— Por que você tinha que matá-la?! — Queixou-se um deles.

Ele carregava algo grande e pesado dentro de um saco. Usava o uniforme da Guarda Real, embora Vanieli estivesse certa de que nunca o vira no Castelo do Abismo. Como tinha adquirido o hábito de acompanhar as tardes de treino conduzidas por Lenór, conhecia cada soldado por nome e rosto; mesmo aqueles que chegaram em companhia do seu pai e Lorde Taniel, no dia em que partiu para o abismo. Após seu regresso, fez uma breve visita ao pátio de treinos da Guarda e o capitão Elius fez questão de apresentá-la a todos os soldados recém-chegados.

— O que esperava que eu fizesse? Ela me flagrou envenenando os barris de vinho na adega do castelo. — Respondeu outro. Este carregava um saco menor e Vanieli o reconheceu como um dos servos do castelo, cujo nome não conseguiu recordar no momento.

O terceiro homem também era familiar para ela.

Segundo as histórias de Enzio, Ravis foi o único sobrevivente do grupo que, anos antes, tentou ir até a nascente que abastecia a cidade e foi dizimado por criaturas malignas. Era comum encontrá-lo sentado em uma pedra na entrada da floresta, alertando e aterrorizando com suas histórias, os poucos coitados que tentavam se aventurar na mata. Era um sujeito grande com aparência abobalhada e conversa desconexa.

Ele parou de andar e se voltou para os outros dois.

— Parem com essa discussão inútil!

Na moita, Vanieli sentiu um arrepio percorrer sua coluna. Não havia nada de bobo em Ravis naquele momento e as sensações que lhe chegavam gritavam “perigo” com desespero.

O soldado deixou o saco cair no chão, resmungando sobre o peso dele. O saco rolou por alguns centímetros até se acomodar e um braço feminino deslizou para fora dele.

— Eu gostava dela. — Lamentou o servo, olhando para o braço feminino e sujo de sangue, que saía do saco do soldado. Ele colocou também colocou o saco que carregava no chão, entretanto, o fez com cuidado. Algo dentro dele se moveu e fez um barulhinho esganiçado, revelando se tratar de uma pessoa.

— Essa lambança é culpa sua! — Ravis acusou o servo.

O homem balançou a cabeça em silêncio e ele continuou:

— Tudo o que você tinha que fazer era colocar o veneno no vinho e sair da adega. Mas você tinha que agir de forma suspeita e atrair a atenção! E quanto a isso?! — Ele apontou para o saco menor, que tremeu rapidamente. — Uma serva desaparecida vai chamar a atenção, mas com toda essa confusão que houve há duas noites, é provável que pensem que foi ela quem abriu o portão norte para os assassinos. Ela ficou com medo de ser descoberta e fugiu! Nos viria a calhar!

Ele fez uma careta, olhando de novo para o saco menor.

— Mas isso aí vai ser difícil de explicar!

Estalou os lábios, irritado. Por fim, fez um gesto nervoso e ordenou:

— Vamos logo! O abismo está próximo e poderemos nos livrar desse problema. Pelo menos, de um deles. — Tornou a fitar o saco menor, agastado.

O servo suspirou, pegando-o pelo nó na ponta, todavia não voltou a colocá-lo nas costas.

— Como eu poderia adivinhar que esse pirralho estava brincando na adega? — Reclamou. — Ele me viu envenenar o vinho e matar Rawina, quando ela me flagrou.

— Devia tê-lo matado também! — Opinou o soldado.

Com o

 canto do olho, Vanieli percebeu as garras de tigre de Voltruf se projetando e fincando-se no tronco da árvore em que ela se apoiava, enquanto sentia a sua própria agitação de sentimentos tomar a forma de um ódio assombroso.

— Sou muitas coisas, mas não um assassino de crianças. — Declarou o servo.

— E o que você acha que vai acontecer com ele quando chegar à mina? — Ravis retrucou. — Um moleque dessa idade não vai durar uma semana.

— Mas aí, não terei sido eu a matá-lo.

Ravis deu de ombros, concordando. Recomeçou a andar enquanto dizia:

— O problema vai ser quando derem por falta dele. A comandante fez um escarcéu quando o velho servo dela se meteu em confusão com o Tenente Darilo, imagina como será quando perceberem que o neto dele sumiu?

— Talvez… — o soldado começou a responder, mas interrompeu-se ao sentir a queda drástica da temperatura.

Ele observou a mesma curiosidade que sentia nos companheiros, então baixou o olhar para os pés e admirou a camada de gelo que se formava na folhagem, antes que algo frio e pontudo atravessasse seu coração.



Sem revisão, amores.

Beijos e muito obrigada pela companhia e paciência!



Notas:



O que achou deste história?

5 Respostas para 30.

  1. Vaniele descobrindo sentimentos. Lenor deixando aflorar. No final, coitados desses indivíduos. Pegaram o menino errado.
    Show!!👍👍💥

  2. Agora a Vaniele vai despirocar e meter o loko.
    Já quero ver Voltruf e Melina junto, certamente esse desenvolvimento vai ser engraçado.
    Estou amando a história, não para❤️.

  3. No capítulo anterior…
    Elas na cama em um diálogo tranquilo e carinhoso. E quando eu penso “ agora vai!” Foi nada!! De repente leio Vanieli metendo os pés pelas mãos, falando um monte de besteiras, enfim… magoando Lenor e deu no que deu.
    Neste capítulo leio Voltruf esfregando na cara de Vanieli tudo que eu fiquei com vontade de falar a ela no capítulo anterior. Obrigada, Volt! Te gosto muito.
    Também gosto de Vanieli, além de muito bonita com seus olhos exóticos, ela já provou que tem um coração enorme, só está confusa e o sonho de liberdade está a cegando.
    Lenor, aos poucos está deixando as barreiras de proteção de seu íntimo cair, se permitiu chorar na presença de Rall, linda essa amizade deles. Seria bom se Lenor seguisse os conselhos do velho, duvido Vanieli, com todo esse sentimento no peito, querer ir embora depois que experimentar. Aliás, ela pode até querer partir, mas com certeza vai querer Lenor a tiracolo.
    Pegaram Gael?!! Agora Van tem um ótimo motivo para praticar sua magia.

    Obrigada, Tattah
    Beijo

  4. Meu Deus! É o Gael, agora Vanieli explode em magia.
    Sorte delas terem se afastado do castelo, se não nem imaginariam o que teria acontecido com o pequeno.

    Agora, Se eu fosse a Lenór, aceitava o que Vanieli propôs e mostrava pra ela o que é uma amor verdadeiro, e o que estaria perdendo se for embora.

    Depois que ela sentir o gostinho não vai querer outra coisa, pode apostar. Kkkk

  5. Aff
    PQP, tu tá realmente querendo briga.

    Como assim eu me comporto, espero pacientemente e tu
    me apronta essa??
    Quem fez a temperatura cair?? Volt ou Vanieli??

    Qual a intenção de Lenór?? O que ela pretende fazer?
    Tu é mto má, e mesmo assim tb és ótima… k k k

    1 Cap. sensacional…

    Parabéns Táttah, tu tá arrasando a cada cap.

    Bjs,

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.