— Deuses! Por que você fez isso? — Perguntou o ministro Jarfel.

Lenór cerrou as mãos trêmulas, efeito causado mais pelo ódio que a dominava do que pela condição física que ainda inspirava cuidados. Ela apoiou-se na janela e inclinou-se o suficiente para visualizar o corpo do homem que atirou para o vazio momentos antes. Um par de soldados confusos, tentava entender o que se passou, rondando o corpo de Donis — um dos servos do castelo.

A comandante retornou a atenção para o interior do quarto, sem se incomodar com os olhares de surpresa e acusação dos presentes.

A reunião com os Lordes mal tinha começado quando Vanieli e Voltruf entraram no cômodo com Ravis e o recém falecido Donis. A Kamarie trazia Gael agarrado à sua mão. Quando o menino viu a mãe, correu para ela.

Se tivesse atentado para o número excessivo de guardas no corredor e porta dos seus aposentos, Vanieli teria levado o menino e seus raptores para outro local. Voltruf havia sugerido isso, um pouco antes de entrarem no castelo. Entretanto, Vanieli ainda estava com a mente nublada pelo o que se passou. Apenas ansiava pelo calor e conforto do seu quarto e, principalmente, pela segurança da presença de Lenór.

— Mas o que foi que aconteceu com você?! — Lorde Arino perguntou para a filha, que o fitou rapidamente, antes de desprezar a pergunta e decidir ficar em silêncio, enquanto Gael chorava, apontando para os dois homens no chão.

Com palavras atropeladas e falhas, regadas com grossas lágrimas, o menino tentou contar para a mãe o que se passou com ele. Contudo, foi Voltruf a explicar o que de fato acontecera, tomando o cuidado de não entrar em detalhes sobre os motivos que a levaram junto com Vanieli até a floresta. Foi um relato rápido e sucinto.

A comandante fez um carinho na face do filho, enxugando suas lágrimas. Disse que aqueles homens não iriam mais machucá-lo e pediu que Aisen o levasse para o avô. Vanieli optou por ir junto e Voltruf fez o mesmo.

Quando a porta se fechou atrás deles, a comandante pediu que os lordes também se retirassem e, como esperado, não foi obedecida. Se aqueles dois eram traidores, suas ações podiam inocentar os líderes dos clãs, sendo assim, ficariam e os interrogariam também.

Contudo, interrogá-los passava longe da mente de Lenór, naquele momento. Razão pela qual Donis implorou misericórdia quando a viu deixar a cadeira que ocupava. A raiva que a dominava era tanta, que por alguns instantes toda a dor e fadiga que a tomavam desapareceu e o servo lhe pareceu leve como uma pena quando o atirou pela janela em meio a um grito de fúria.

— Você é um monstro como aquela maga maldita! — Ravis berrou, após o choque inicial de assistir a morte do companheiro.

— Monstro…— Lenór repetiu, como se a palavra fosse estranha para ela.

Apoiou-se na mesa, sentindo a aproximação da fadiga. Recuperou a bengala que estava escorada na borda e claudicou até ele.

— Onde está a honra no que acabou de fazer? — Ravis cuspiu as palavras. — Vocês nobres não passam de um bando de porcos!

O capitão Elius deu um passo em direção a ele, porém Lenór refreou seu ímpeto com um gesto.

— Você fala de honra como se tivesse alguma, mas não passa de um traidor do seu próprio povo e reino. Eu teria prazer em dar uma espada a um inimigo honrado, para que ele lutasse pela vida e morresse com dignidade. Mas, por que eu deveria ter tal consideração e respeito por alguém que envenenou o alimento dos seus iguais, assassinou uma mulher inocente e planejou um destino cruel para uma criança?

Encostou a ponta da bengala no peito dele, onde havia sangue coagulado de um corte profundo. Ravis gemeu de dor, enquanto a madeira penetrava sua carne fazendo-a sangrar novamente.

— Você deve estar se achando sortudo por ainda estar vivo, mas irá descobrir que o sortudo dessa história é o seu amigo morto no pátio.

— Acha que temo você? Não passa de uma mulher imunda, que acredita ter algum direito neste reino porque está metida nesse uniforme! Você não passa de uma brincadeira depravada de um rei libertino!

Uma ruguinha discreta desmanchou a seriedade da comandante.

— Não quero que tenha medo de mim, Ravis, mas você vai. Pois, aos meus olhos, você e aqueles a quem serve cometeram o pior de todos os pecados.

— Cardasin está prestes a mudar; você e esses bufões não podem impedir! — Ele cuspiu no chão. — Trair essa porcaria de reino não é pecado algum! É só olhar para você e aquela sua maldita mulher. Hoje você me tem de joelhos à sua frente; amanhã será você nesta posição.

Ela girou a bengala, fazendo-o gemer mais alto.

— Se ilude, se acha que esse devaneio irá se realizar. Pois, o seu pecado não foi trair Cardasin. O crime que você e Zaidar cometeram foi mexer com a minha família. Meu irmão; o rei que me acolheu, se tornou meu amigo e que fez questão de me adotar como prima em uma terra estrangeira;  minha esposa e agora… — ela inspirou fundo, colocando mais força na bengala. — agora, o meu filho!

Ravis berrou quando a bengala o transpassou.

— Eu serei o seu tormento, o seu pior pesadelo. E quando extrair tudo o que você sabe sobre esse maldito complô, serei o seu carrasco! Você decide se quer ter uma morte rápida e piedosa ou lenta e dolorosa. Qualquer que seja, irei desfrutar o momento imensamente.

Retirou a bengala e se afastou, gesticulando para que Elius o levasse dali.

— Filho? — Perguntou Lorde Aidar. — Parece que você tem muito a nos explicar, Comandante.

Lenór fitou o sangue de Ravis na bengala e depois olhou para a janela, fingindo recuperar a calma. Na verdade, suas emoções estavam à flor da pele. Retornou a atenção para os lordes e notou o desconforto no rosto rígido de Lorde Kanor. Se não o conhecesse, pensaria que a ideia de ter um neto lhe agradava.

— Você atirou pela janela as provas que nos inocentavam do crime que nos acusou. — Disse Lorde Everin, mais interessado nas questões que lhe diziam respeito.

— Um dos crimes. — Ela pontuou, sombria. — Vocês estão muito distantes da inocência, Lorde. O que está acontecendo em Cardasin tem a conivência de vocês, ainda que baseada na ignorância que fizeram questão de ter.

Lorde Aulos se agitou na cadeira que ocupava, indignado. Todavia, Lenór ainda não tinha terminado de falar:

— A minha vontade era de atirar os dois pela janela, mas não sou estúpida. Minha ira nunca irá me cegar ao ponto de nublar os pensamentos. Existe o momento certo para libertar o ódio, assim como existem momentos adequados ao diálogo, demonstrações de afeto e de força.

Apoiou-se na bengala, ocultando o desconforto físico por se manter de pé por tanto tempo, principalmente após tanto esforço.

— Aquele infeliz servo era apenas uma ferramenta. Ravis, por outro lado, faz parte desse complô desde o início.

Começou a retroceder para a cadeira que ocupava antes do seu rompante. Enquanto isso, respondeu a pergunta de Lorde Aidar.

— Eu ajudei aquele menino a vir ao mundo. Fui a primeira pessoa a segurá-lo, o primeiro rosto que ele viu. O pai dele foi um amigo querido e o melhor companheiro de armas que já tive. A sua mãe foi minha comandante, minha amiga e, por um breve espaço de tempo, também foi minha esposa. Então sim, Lorde Aidar, ele é meu filho.

Sentou-se devagar e Lorde Arino tomou a palavra:

— Bom, já que estamos no assunto… Anuncio que, não pela responsabilidade do casamento, mas por desejo do coração da minha filha, ele também é meu neto.

Os olhos de Lenór se prenderam aos dele, que vislumbrou uma rápida surpresa na nora. Estava claro que Vanieli ainda não havia lhe contado sobre aquilo. O lorde sorriu, deixando à vista seu orgulho.

Em Cardasin, uma criança poderia nunca mais voltar a chamar alguém de “pai” ou “mãe”, porém teria sempre alguém cuidando dela, motivo pelo qual não existiam orfanatos no reino. Por mais humilde que fosse, havia sempre um lar para uma criança carente.

Ter seus próprios filhos era uma dádiva para qualquer casal, mas amar um filho que não tinha seu sangue era uma atitude admirada e respeitada, desde que aquelas terras eram divididas pelas tribos da antiga Cardrácia.

— Ora… Esse casamento deu frutos rápida e inesperadamente. — Brincou lorde Timerio, deixando-se levar pela satisfação do amigo. — Uma criança Azuti e Kamarie! Talvez estejamos mesmo condenados!

Ele riu baixinho e Lenór deu uma batidinha na madeira da mesa, fazendo uma careta dolorida.

— Desejava ter uma conversa diferente com vocês. Contudo, o que acabou de acontecer me fez mudar de ideia.

— Pretende nos deixar no vácuo? — Kanor rosnou. — Quanto tempo mais irá nos manter prisioneiros? Somos lordes!

— Vocês são homens! Apenas isso. Nobres em títulos e fracos em outros sentidos. Pobres cordeiros indo para o abate, ludibriados por falsas promessas de prosperidade, como aquele tolo que acaba de sair daqui arrastado. Acham que os prendi apenas pelas atitudes suspeitas em relação ao desaparecimento do rei? De uma maneira ou de outra, todos os lordes de Cardasin são peças em um jogo de poder. — Recostou-se na cadeira, apreciando a brisa suave que entrou pela janela, aliviando o calor que começava a tomar conta do ambiente. — Você é um bom exemplo disso, Lorde Aidar.

Aidar fez um barulhinho indignado com a garganta, porém optou por esperar que ela concluísse o pensamento para refutar a acusação.

— Há anos tem permitido o transporte do ouro extraído por Zaidar através da sua província.

— Não é nenhum crime. — Ele argumentou.

— Está certo. Porém, nunca fez questão de inspecionar as carroças que retornavam para Zaidar e ignorou as preocupações do Reino de Dravel sobre os constantes ataques às vilas nas fronteiras.

— São problemas de Dravel, não de Cardasin. Nunca houve ataques do nosso lado da fronteira.

— São problemas de todos nós! — O ministro Jarfel enfatizou. — Pois, você andou permitindo que saqueadores zaidarnianos cruzassem nosso reino, levando consigo escravos capturados em Dravel. Pessoas que nasceram livres!

— Isso é calúnia! — Aidar ficou de pé, o rosto rechonchudo e moreno adquirindo um tom avermelhado.

— Isso é um fato e a sua frágil indignação não poderá mudá-lo. Seu desinteresse pelas terras que o seu clã governa levou miséria para os nossos vizinhos. — Jarfel retrucou. — E isso quase nos custou um laço diplomático de décadas com Dravel. 

O mal-estar se instalou entre os ocupantes da mesa, enquanto Lenór cruzava as mãos sobre esta. Havia um pouco de sangue em suas unhas, de quando agarrou o servo traidor e o jogou pela janela.

— A verdadeira razão de tê-los confinado, é que isso irá limitar os recursos dos zaidarnianos e obrigá-los a agir de forma direta.

— Você está armando uma guerra que não podemos vencer. — Lorde Taniel comentou, percebendo a artimanha.

Sua voz soou rouca e anasalada, já que até o momento não tinha ousado falar. Sua aparência não era das melhores, visto que havia hematomas em toda a pele visível.

Um pouco antes de serem convidados a entrarem no quarto para aquela reunião, Lorde Timério se mostrou indignado com o espancamento que, acreditava, o rapaz tinha passado. Contudo, de uma forma estranhamente humilde, Taniel esclareceu que ninguém o havia tocado, desde que a comandante defendeu-se do seu ataque no dia anterior. Os hematomas eram o resultado dos poucos golpes que ela usou contra ele.

— Zaidar quer possuir Cardasin. — Lenór enfatizou. — E vocês estão ajudando nisso quando fazem campanha contra o Rei Mardus e suas ações.

Ela endireitou-se na cadeira, olhando rapidamente para Dimal, que havia se posicionado junto à porta. Apesar de terem passado a noite anterior em companhia um do outro, ainda não tinham conversado sobre o que acontecera com Mardus e Dalise.

— Seu confinamento — prosseguiu ela — impede que o Príncipe Riksen reivindique o trono pelo laço de sangue entre as duas famílias reais com o apoio de vocês. Isso também impede que um conflito entre os clãs ocorra, deixando a Guarda Real ocupada demais para vigiar as fronteiras e impedir uma invasão.

— Então, o que você quer de nós? Por que nos chamou até aqui? — Kanor perguntou. — Se o que diz é verdade, não há como impedir Zaidar de invadir Cardasin. A nossa Guarda Real já não é  expressiva. Não temos forças contra um exército bem armado e numeroso como o deles.

— O que eu quero de vocês ficará para outro momento. A grã-mestra Melina me pediu para ser cuidadosa com a minha saúde e após tantas emoções, admito que já não me sinto disposta ao debate. — Fez uma careta de dor. — Além disso, tenho um prisioneiro para interrogar e, talvez, suas revelações mudem os planos que tenho para vocês.

**

Vanieli aceitou o abraço de Rall com uma mistura de carinho e constrangimento. Despediu-se dele lançando um olhar preocupado para Gael, que após algumas lágrimas e uma refeição quente, tinha caído no sono na cama do avô.

— Venha. — Melina colocou a mão em seu ombro e a conduziu até os seus aposentos.

Apesar de Gael não ter ferimentos visíveis, a ordenada insistiu em avaliar o menino e ficou claro que usou sua magia para tranquilizá-lo.

— Deixe-me ver esses cortes. — Melina falou, entregando uma caneca de chá para ela.

O líquido escorregou agradavelmente pela garganta da moça, levando consigo o sabor férreo do sangue e parte do seu nervosismo.

— Obrigada. — Disse ela, ao que Melina respondeu com um aceno de cabeça, antes se dirigir a Voltruf:

— Precisava exagerar assim? — Perguntou, claramente desconfortável pelo estado da jovem.

A outra deu de ombros.

— Um mal necessário.

— Ela parece ter saído de uma guerra. — Queixou-se Melina.

Relaxada, Voltruf encheu uma caneca com chá para si.

— Foi você quem me pediu para instruí-la. Não adianta reclamar agora.

— Exatamente. Pedi para instruí-la, não para espancá-la! — Refutou a ordenada, deslizando pela face de Vanieli um dedo envolto em um fio de magia. Uma cicatriz fina e quase imperceptível ficou no lugar do corte que acabara de curar.

O espírito tomou seu chá de um gole, então depositou a caneca na mesa e se aproximou delas. Colocou as mãos nos ombros da pupila, encarando Melina com ar de desafio. Círculos luminosos percorreram seus braços e deslizaram para o corpo de Vanieli.

— Uma cura desleixada! — Reclamou Melina, percebendo o que fazia. — Vai deixar cicatrizes!

— São cicatrizes de batalha. Ela as mereceu. — Volt afirmou.

Mais um instante se passou, enquanto as duas se enfrentavam com o olhar. Melina deu-se por vencida rápido, o que pareceu decepcionar a florinae.

A grã-mestra se afastou e sentou na beirada da cama, observando o trabalho da amiga. Como Voltruf lhe dissera inúmeras vezes, curar não era uma habilidade à qual tinha se dedicado com esmero. Fora treinada para a guerra, então seus conhecimentos curativos se resumiam ao básico para estancar ferimentos e cicatrizar pequenos cortes, como os que Vanieli possuía.

De um modo geral, até mesmo os curandeiros florinaes não se importavam com a estética, visto que seu povo orgulhava-se das cicatrizes em seus corpos. Elas contavam histórias, falavam de vitórias e derrotas, dos valores de cada indivíduo.

E ainda que Voltruf não tivesse se dado ao trabalho de expressar isso em palavras, o simples fato de tomar a responsabilidade de curar Vanieli e deixar aquelas poucas cicatrizes na pele dela, denunciava que estava orgulhosa da aluna.

— O que aconteceu realmente? — Melina questionou.

— Eu não sei dizer. — Vanieli a fitou, fazendo uma pausa para gemer baixinho quando os círculos curativos passaram sobre um corte profundo.

Aquele ferimento fora obra do punhal de Ravis.

Quando o patife viu o companheiro morto com uma estaca de gelo no coração, armou-se. Mal avistou Vanieli saindo do seu esconderijo dentre as árvores e a atacou. Jogou-se sobre ela, desferindo um golpe em direção às suas costelas. Ela desviou, porém não foi rápida o suficiente e a lâmina abriu caminho pela túnica e carne.

Entretanto, a raiva a cegava ao ponto de mal sentir o golpe.

— Quando percebi que conversavam sobre Gael, simplesmente agi.

— Ainda que de uma forma crua, ela foi admirável. — Voltruf elogiou, fazendo Melina arquear uma sobrancelha, visto que raramente dispensava elogios para alguém.

De fato, Voltruf não chegou a se envolver na contenda. Não por falta de vontade, mas sim porque Vanieli se mostrou mais do que capaz de lidar com a dupla de canalhas. Em certa altura, chegou a acreditar que a moça perderia o controle dos poderes, entretanto, a pupila demonstrou mais domínio sobre os seus dons naquele momento de fúria, do que no treinamento que tinham acabado de encerrar.

Ficou verdadeiramente impressionada quando Vanieli fez a água no solo encharcado congelar, dificultando a locomoção dos inimigos. Diante da tentativa de Ravis de apunhalá-la no peito, ela fez gelo se acumular no local, como se estivesse vestindo uma couraça. E, quando Donis recuperou a espada do soldado caído e também investiu contra ela, foi empurrado contra o tronco de uma árvore por uma rajada de gelo e água.

— Foi assustador. — Vanieli admitiu. — Eu senti tanto medo e raiva ao mesmo tempo. E junto com isso havia aquele poder crescendo dentro de mim, pedindo passagem para o exterior, para punir aqueles homens.

Passou uma mão no rosto, afastando uma mecha de cabelos que ameaçava deslizar sobre os olhos.

— Eu não me arrependo de tê-los machucado. Na verdade, o que me assusta é que eu gostei disso. Eles mereciam!

— É fácil se perder entre a justiça e a vingança. Você fez o que era necessário, no momento correto. E diante dos crimes que esses homens cometeram, é perfeitamente natural que se sinta dessa forma, contudo…

— Ela não precisa ouvir seu discurso ordenado sobre paz e amor ao próximo agora. — Voltruf interferiu, encerrando seu trabalho. — E você também não precisa se esforçar para atraí-la para o seu rebanho na Ilha Vitta. Vanieli já deixou bastante claro que quer se juntar à Ordem no futuro.

Mostrou um sorriso provocador para ela e afastou-se de Vanieli. A grã-mestra teria lhe respondido à altura, todavia batidas na porta a levaram a ficar em silêncio. Ela foi abrir e ofereceu um gesto gentil para Darlan.

— Perdoe-me, senhora. — Disse ele. — Só queria saber se Damna Vanieli está bem. Vi quando passou…

Ele interrompeu-se ao avistar a moça por sobre o ombro da grã-mestra. Ensaiou um sorriso, mas a pergunta de Voltruf congelou o gesto.

— Você não devia estar em um calabouço ou algo assim?

O rapaz se endireitou, respondendo com evidente orgulho:

— Sou bom em me esquivar da vigilância. 

— Às vezes, é bom se iludir um pouco. — A florinae provocou-o. — Se está perambulando facilmente pelo castelo, é porque Lenór permitiu. Sinto o cheiro das suas sombras no fim do corredor.

Deu um toquinho no próprio nariz. E embora não quisesse dar o braço à torcer, Darlan acabou virando a face para a direção mencionada. Não havia ninguém à vista, porém a tocha no corredor lateral projetava duas sombras na parede oposta.

— Seu rei não fez dela uma comandante à toa. E me surpreende que vocês, cardasinos, ainda não tenham compreendido isso.

Ele fez um barulhinho baixo com a garganta. Inclinou a cabeça, humilde, e falou para Vanieli:

— Eu só queria saber do seu estado e estou feliz em ver que nada de grave lhe aconteceu.

Inclinou-se um pouco.

— Com sua licença. Retornarei ao meu posto.

A jovem se colocou de pé, pedindo que ele a esperasse. Agradeceu o cuidado das duas estrangeiras e saiu do quarto em companhia do protetor.

— Seu orgulho é quase palpável. — Melina provocou a companheira, quando fechou a porta. Escorou-se na madeira, cruzando os braços.

— Ele de fato existe, mas não pelas razões que imagina. Era nossa segunda lição. Com efeito, conseguimos avançar bastante, mas o que Vanieli fez com aqueles homens é mérito dela e de Lenór.

— Como assim?

— Como você sabe, ela tem dificuldades em acessar a magia, mas quando posta em situações extremas ela o faz rapida e facilmente. Isso é por causa de Lenór. Quase todas as noites, desde que se casaram, ela ensina Vanieli a lutar e a controlar seu medo e ansiedade. Por isso, resolvi mudar minha metodologia de ensino com ela. Tivemos bons resultados, mas o que aconteceu depois que aqueles bastardos apareceram foi, de fato, admirável. Me faz recordar…

Ela ficou em silêncio repentinamente, o que obrigou Melina a finalizar a frase:

— … Virnan?

— Sim. — Volt confirmou após um sutil dar de ombros.

Um suspiro baixo escapou de Melina.

— Faz sentido. — Disse ela.

Foi até a janela e observou a noite que se aproximava. Evitou baixar a vista para o pátio. Daquele ponto, era possível ver o local onde o finado Donis caíra. Seu corpo já tinha sido recolhido pela Guarda, todavia o sangue permanecia manchando as pedras que calçavam o lugar.

— O daiquirtua não é uma arte que possa ser comparada ao manibut, todavia também exige muita concentração do seu usuário. Quando a magia de Virnan despertou, ela usou o manibut como base de equilíbrio para dominar seus dons sem o auxílio de um mestre.

— Saiu melhor do que a encomenda. — Volt concordou. — Foi isso que Lenór fez por Vanieli. Ao ensiná-la a lutar, deu a ela mais que um meio de aprender a controlar seus medos.

— Lhe deu uma base de equilíbrio para a magia. Fascinante! — Voltou-se para o interior do quarto. Voltruf havia se recostado à parede e fitava o chão, distraída. Melina a observou por um longo momento, antes de se animar a mudar de assunto e perguntar: — O que há entre você e aquele rapaz?

Voltruf ergueu o olhar para ela, ainda sem compreender a pergunta.

— Conheço sua propensão para a discórdia, — continuou a grã-mestra — contudo, você o ataca gratuitamente sempre que o vê. Tem algum interesse nele?

A outra sorriu abertamente e perguntou em tom de troça:

— Por que quer saber? Ciúmes?

Melina respondeu no mesmo tom:

— Talvez. — Balançou os ombros suavemente.

— Ele é mesmo bem apessoado. E se ficar de boca fechada, até que se torna agradável. Contudo, você estaria perdendo seu tempo. A única maga que interessa a ele, é Vanieli.

A ordenada tamborilou os dedos na madeira da janela. Declarou:

— Prefiro homens mais velhos, você sabe. É o mesmo em relação às mulheres, principalmente, se tiverem alguns séculos a mais.

Dividida entre o divertimento e um pouco de constrangimento, Voltruf endireitou-se, abandonando o apoio da parede.

— Você nunca foi tão direta. — Falou.

Por sua vez, a grã-mestra fitou a paisagem desértica ao longe. Suspirou profundamente.

— Acho que já estou cansada desse joguinho entre nós. — Contou, voltando a admirar o semblante dela. — Você finge que não está atraída por mim e eu faço de conta que não percebo e que também não estou interessada.

Aquilo era ainda mais direto. Voltruf não fez questão de negar, porém, se defendeu, tentando ignorar a agitação que tomou seu corpo ao ouví-la.

— Eu tenho razões muito boas para isso. Você é tia da minha mestra, sou um espírito e já tenho alguém em meu coração, assim como você.

— Oh, por todos os círculos da Ordem! Não estou pedindo você em casamento!

O vento bagunçou os cabelos de Melina, enquanto mostrava um sorriso.

— O que eu sinto pelo meu falecido marido nunca vai mudar, mas tenho alguns anos de vida pela frente e estou cansada de me sentir culpada por isso. — Contou a grã-mestra, com voz suave e cadenciada, embora sentisse uma excitação crescente por colocar aqueles sentimentos em discussão.

Ela fez um carinho no bracelete que simbolizava seu casamento com Andrus, deixando um sorriso saudoso transformar sua face.

— Estar em sua companhia nos últimos anos tem sido refrescante e não pense que os argumentos que acabou de citar não passaram pela minha cabeça. Eles também me pesam.

— Então, por que isso agora?

— E por que não? — Ela riu, suspirando em seguida. — Sabe, os meus dias se tornaram sombrios e melancólicos sem você por perto. Foi quando me dei conta de que já estava na hora de parar de fugir dos sentimentos que me inspira.

Abandonou o refúgio junto à janela e caminhou até Voltruf. Pousou uma mão na cintura dela.

— Você ama alguém que pertence a outra pessoa. Eu amo um homem que já fez a passagem para as Terras Imortais. Quando eu morrer e o encontrar do outro lado, se encontrar, ele não vai mais saber quem sou; terá esquecido 30 anos de amor… É triste e me machuca ao ponto de desejar não saber o que virá depois da morte. Todavia, também me diz que não posso mais continuar agarrada ao passado. Andrus será meu amor enquanto eu viver, mas já que ele partiu e ainda estou viva, quero desfrutar dessa dádiva. E isso implica em fazer algo que desejo há bastante tempo.

— Você irá se arrepender. — Alertou Voltruf, quando ela encostou o corpo ao seu.

— Antes me arrepender pelo o que fiz do que pelo o que não fiz. — A empurrou contra a parede com suavidade. — Mas a verdadeira questão, é saber se eu posso ser tão interessante para você quanto os amantes que encontra nas estalagens que pousamos.

Um sorriso raro e muito atraente se formou nos lábios de Voltruf, que colocou uma mão no ombro dela e escorregou para a nuca. A florinae deixou seus rostos a meros centímetros e apreciou sentir o hálito dela acariciando sua face.

— Você mesma disse, Melina, eu estou atraída por você. Na verdade, é muito mais que isso. Você me chamou a atenção quando ainda era uma senhora idosa e simpática.

— Ora, achei que o seu tipo fosse pele morena, rostinho de menina, olhos verdes e muito sarcasmo. — Melina se esforçou para não gargalhar.

— Eu tenho um gosto variado e sempre admirei o dom da velhice.

— Não sei se posso interpretar isso como um elogio.

— Não é mesmo. — Volt sorriu e insistiu: — Certos momentos não podem ser apagados, Melina. Não há como voltar no tempo, se você se arrepender…

— Não haverá arrependimentos, garanto. Pelo menos, não virão da minha parte.

— Não diga que não avisei.

— Para quem não gosta de conversar, você fala demais nos momentos em que somente os gestos bastam. — Melina acusou-a, com fingida irritação. — Eu quero beijar você, Nária.

Voltruf sorriu de lado, apreciando o som do seu nome nos lábios dela, os quais cobriu com os seus.



Notas:



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5 Respostas para 31.

  1. Genteeeee! to passada, chocadaa com esse casalzao, viu. Nunca imaginei as duas juntas, mal posso esperar pra ver o desenrolar dessas duas!

  2. Quero ser igual a Melina quando crescer, chegar nos crush de voadora.
    Amando muito a história ❤️

  3. Adorando o enredo e a interação entre os personagens. Um jogo de xadrez onde peças se movimentam e dão o ritmo das intrigas e das relações. A relação entre as personagens é intrigante e cheia de melindres, mas com paixão.

  4. Meu Deus!!!
    Não esperava menos do que essa cena da Voltruf e Melinda, mas pq Volt tá fazendo charminho, claro que ela não precisa disso, pois ela tem um charme natural e deixa qualquer uma a mercê de seus encantos, Melinda não ia ficar imune jamais. Kkkk

    Muito bom capítulo, mas acabar no melhor dos paranauê é sacanagem

  5. 😒
    Isso é hr de parar…
    Nada a ver esse corte brochante.
    Amei saber q Vanieli já consegue ter controle
    de seu DOM.
    Volt orgulhosa da pupila achei uma graça já q
    ela finge não se importar com nada e ninguém.
    Mas quem me admirou mesmo foi Melina e sua as-
    sertividade, ela desmontou toda negação possível
    que Volt pudesse ter. Muito fofa em suas certezas.
    Arrasando como sempre.
    Bjs,

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