33.

— Você tem certeza disso?

Lenór balançou a cabeça, afirmativa. Havia um nó na garganta, assim como um aperto no peito. Entretanto, a voz soou firme quando respondeu:

— Você sabe que é o certo a se fazer.

O olhar de Vanieli varreu o chão antes de pousar na carruagem que estava prestes a partir. Ela se abraçou, mais como uma forma de conter a tristeza, do que pelo frio da noite. Enquanto isso, Rall jogou uma sacola no interior do transporte com uma expressão de lamento, ao passo que Gael apertou-se à cintura da mãe choramingando baixinho.

Vanieli não precisava compreender as palavras para entender que ele não queria ir embora e deixá-la. Lenór bagunçou os cabelos do filho e reprimiu uma expressão de dor ao se ajoelhar diante dele.

— Serão poucos meses, pequeno. Sua maatik precisa cuidar de homens maus e eles podem querer machucar você e o seu avô. — Explicou. Preferia nunca mentir para o filho.

Crianças precisavam ser crianças, brincarem, viverem despreocupadas, mas isso não significava que os adultos tinham de tratá-las como indivíduos limitados. Para ela, existia uma grande diferença entre a ingenuidade inerente a idade e a ignorância gerada pelos adultos que acreditavam proteger seus filhos assim.

O mundo era imperfeito e cheio de perigos. Não queria que Gael se tornasse um homem iludido e, consequentemente, uma vítima.

Após novo protesto do menino, ela riu alto e o puxou para um abraço. E fez aquele momento se prolongar o máximo possível, memorizando seu calor e cheiro. Então, beijou-lhe a testa e se pôs de pé com a ajuda de Vanieli.

— Estaremos juntos logo. — Garantiu.

— Você promete? — Ele perguntou, surpreendendo-a por ter deixado de lado a língua das Ilhas Lester.

— Sim, eu prometo. — Fez um carinho no rosto dele.

Não foi uma decisão fácil. Lenór estava de coração partido por ter de se separar do filho e de Rall, mas depois do que aconteceu com Ravis, e agora que seu parentesco fora revelado, acreditava que enviá-los para longe era a melhor forma de manter sua família protegida. Além disso, havia uma guerra se aproximando.

— Cuide-se, menina. — Disse Rall, abraçando-a forte e repetindo o gesto com Vanieli.

O velho, assim como o neto, não estava contente com a separação, porém concordava que era a melhor solução.

— Vocês duas! — Ele acrescentou, afastando-se de Vanieli.

— Sentirei saudade. — A Kamarie garantiu aos dois. Ela entregou um livro grosso para Gael, dizendo: — Queria ler esse com você, mas o seu avô o fará em meu lugar.

O menino balançou a cabeça e envolveu sua cintura, agradecendo. Ele murmurou uma frase ligeira, da qual Vanieli só conseguiu compreender seu nome. Enquanto isso, Lenór entregou três cartas para Rall.

— Apresente esta carta ao General Jihan. Ele providenciará a documentação para que vocês possam assumir os bens herdados de Najili e Belgar.

— Após tanto tempo sem reivindicá-los, acredita mesmo que é possível tomar posse deles agora?

— A Guarda Real de Barafor administra os bens de palatins falecidos até que os herdeiros se apresentem. Muitos, assim como Belgar e eu, são estrangeiros. Às vezes, a notícia de suas mortes demora a chegar até seus familiares. Se nenhum herdeiro se apresentar em um prazo de dez anos, esses bens são anexados aos da Guarda ou Ministério da Guerra. Então sim, tenho certeza de que não terão problemas com isso.

Ela colocou o dedo sobre um dos papéis que ele segurava.

— Esta é para o Príncipe Agnir.

— E esta? — Rall mostrou um papel levemente mais escuro que os outros dois.

— É o meu testamento.

A tristeza se plantou na face do velho, que pediu:

— Não se atreva a nos fazer passar por essa dor de novo, Lenór.

A amiga colocou as mãos nos ombros dele, terna.

— Eu não pretendo, Rall. Contudo, acho justo que vocês saibam minhas últimas vontades, caso não voltemos a nos encontrar.

O velho bufou, ante a perspectiva de algo assim acontecer. Ela completou:

— Você bem sabe que a vida pelo fio de uma espada é cheia de surpresas desagradáveis. Quase perdi a minha no abismo e enquanto estava lá embaixo sozinha, só conseguia pensar em vocês e nas coisas que queria ter dito antes da morte me levar. Só quero me certificar de que isso não aconteça de novo.

— Você acabou de fazer uma promessa ao seu filho. — Ele relembrou.

— Promessa que pretendo cumprir a qualquer custo. Mas, se não for possível…

Ele inclinou a cabeça, desgostoso. Então, fez o neto entrar na carruagem, onde o ministro Jarfel já tinha se acomodado. Lenór o fizera retardar o retorno para Nazir em alguns dias, a fim de providenciar a partida de Rall e Gael com ele.

Um soldado passou ao lado deles, segurando uma tocha. A chama iluminou a tristeza no semblante de Lenór, enquanto ela fitava o filho. Ao longo do dia, ela fizera com que três cortejos deixassem o Castelo do Abismo. Todos, aparentemente, levando o ministro para a capital através de rotas diferentes. Como Jarfel era o executor do testamento do Rei Mardus, a possibilidade de sofrer alguma investida na estrada era grande.

Da mesma forma, dois comboios estavam para sair naquele momento. Ambos fortemente armados. E aquele em que Jarfel, Rall e Gael seguiriam era especialmente escoltado pelos melhores soldados da Guarda. Homens escolhidos a dedo pela comandante; soldados que ela treinou pessoalmente desde que chegou ao Castelo do Abismo.

Todavia, Lenór só se sentiria realmente tranquila quando recebesse notícias de que a sua família estava em um navio rumo a Barafor.

Ela ainda tinha negócios em Andalus, uma pequena estalagem nos arredores do porto de Aziree. Não haveria problemas se os dois retornassem para lá, afinal, fora o seu lar por três anos. Contudo, preferia colocar um oceano entre seus inimigos e a sua família. E como Rall não estava disposto a retornar para as Ilhas Lester, Barafor se tornou uma opção mais que conveniente.

O velho enfiou as cartas no bolso da túnica, onde levava uma quarta mensagem. Esta era destinada ao capitão de um navio ordenado, que estava ancorado no porto de Aziree.

A cada quatro meses, o Guerreiro dos Mares atracava em Andalus. O navio costumava retornar para a Ilha Vitta cheio de enfermos ou novos candidatos à Ordem. Todavia, o auxílio e transporte não era oferecido a qualquer um que alegasse estar doente ou expressasse o desejo de se tornar um ordenado. Mentiras tinham pernas curtas diante dos mestres que tripulavam a embarcação. Por isso, a grã-mestra escrevera uma mensagem ao capitão, marcando o papel com sua magia, a qual o homem não teria dificuldades em reconhecer.

O documento garantia a passagem de Rall e Gael no navio, pelo que Lenór se sentia imensamente grata.

— Não é um adeus, — disse Rall ao entrar na carruagem — é um até logo.

A comandante forçou um sorriso para ele e para o filho. Então, vislumbrou um par de orelhas pontudas se eriçarem no topo da carruagem e logo depois os olhos amarelos de Aneirin encontraram os seus, enquanto o transporte cruzava os portões do castelo.

A gatinha era uma proteção extra para o comboio. Sugestão feita por Voltruf. Assim que deixassem a floresta e chegassem ao Posto da Guarda no povoado de Avardia, a pequena retornaria para o Castelo do Abismo.

— Eu sinto muito. — Disse Vanieli, enxugando as lágrimas.

— É como tem de ser. — Lenór respondeu, complacente.

Os olhos estavam marejados, todavia, as lágrimas não lhe escaparam.

— Se fosse possível, enviaria você com eles. Assim, não ficaria com o coração tão apertado de medo, pois todas as pessoas que amo estariam seguras.

Ela mancou na direção dos portões e Vanieli apressou-se a acompanhá-la, ouvindo-a finalizar:

— Contudo, eu sou a Comandante Azuti; você é a minha esposa Kamarie. E enquanto Mardus não aparecer, nós somos as responsáveis por Cardasin. — Ela parou de andar para fitar Vanieli. — Então, Esposa, vamos nos preparar para uma guerra.

A frase soou mais sombria do que tencionou.

— Assim será, quando o dia raiar. — Disse a Kamarie. — A noite ainda é uma criança e você precisa de repouso.

— Não sei se conseguirei dormir depois de mandá-los para longe.

Ela fitou o portão à frente, o coração apertado de medo e saudade.

— Acho que vou dar uma volta, arejar a mente e esticar as pernas. — Ela riu das últimas palavras, fitando a bengala em que se apoiava. — Não irei longe.

Vanieli conteve a vontade de seguí-la. Estava preocupada com seu estado, contudo, também compreendia a necessidade dela de buscar o isolamento para absorver as consequências das suas próprias decisões.

— Estarei esperando por você. — Limitou-se a dizer.

Lenór olhou para o portão, inspirando fundo. O vento soprou forte, levando para elas o cheiro da fumaça e o som da música na praça ali perto. Era noite de fogueira.

— Está tudo bem? — Vanieli perguntou, notando sua relutância em partir.

— Sim… — Balançou a cabeça, voltando a olhá-la. — Estava apenas me perguntando se você não gostaria de ir comigo.

O vento se tornou mais forte, enquanto oferecia a mão para Vanieli.

— Com medo de sentir minha falta enquanto caminha por essas ruas escuras e vazias? — A Kamarie a provocou, pousando a mão na dela. E não escondeu que estava feliz pelo convite.

— Na verdade, com receio de me cansar rápido e ter de me humilhar pedindo o auxílio de um soldado ou morador da cidade. — A esposa respondeu no mesmo tom.

— Pelo menos, sou uma bengala bem mais bonita que essa. — Vanieli sorriu, enlaçando o braço ao dela.

— Jamais pensaria em discordar disso.

As duas alcançaram a rua em poucos passos e seguiram rumo a praça. Havia verdade no que Lenór disse. Apesar de se esforçar para demonstrar o contrário, sua debilidade era uma realidade. Contudo, o motivo que a levou a pedir a companhia de Vanieli era o simples desejo de não ficar sozinha, ao contrário do que tinha dado a entender.

Dois guardas escoltavam-nas. Seguiam perto o suficiente para interferir, caso houvesse uma investida contra elas, porém, convenientemente longe para lhes permitir um diálogo privado.

A música se tornava mais alta à medida que se aproximavam da praça e Vanieli comentou:

— Me surpreende que sejam capazes de festejar diante dos acontecimentos recentes.

Lenór forçou-se a abandonar as preocupações sobre o destino da sua família para concordar com ela. Como tinha dito que faria, encontrou um jeito de ocultar a prisão de Ravis e a morte dos amigos deste. Na realidade, a ideia partiu de Rall.

Era um plano simples, porém conveniente, e baseava-se nas lendas que os zaidarnianos alimentaram por décadas. Uma fera misteriosa havia matado três infelizes almas que se arriscaram a andar pela floresta. Seus corpos foram encontrados por um caçador — Rall — e estavam tão dilacerados que foi difícil identificá-los. Era certo que um deles era o “louco” da cidade — Ravis —  e outro se tratava de um dos servos do castelo. O terceiro homem não pôde ser reconhecido e como nenhum morador da cidade estava ausente, concluiu-se que se tratava de um andarilho.

A comandante se aproveitou de que o ataque de uma fera misteriosa a um grupo de soldados zaidarnianos, que caçava um escravo fugitivo, ainda era uma história fresca na memória das pessoas. Além disso, havia a investida das criaturas do abismo.

Ambas eram explicações oportunas para essas mortes e a comandante fez questão de reforçar a vigilância na cidade, assim como, proibiu a entrada dos moradores naquela parte da floresta, enquanto a Guarda Real não capturasse ou matasse a tal fera.

— Eles tiveram duas décadas para se acostumarem ao clima sombrio que cerca o Castelo do Abismo. Estão assustados, mas não querem permitir que o medo domine suas vidas. — Lenór retrucou. — Um pequeno ato de rebeldia contra a “natureza”.

— Você parece gostar disso.

— Respeito, na verdade. Aprecio que eles estejam lutando contra seus medos, ainda que seja de uma forma incomum. — Sorriu rapidamente. — O som de um riso é muito mais bonito que o do choro. Não acha?

— Sendo poética outra vez. — Vanieli acusou-a, se dando conta do quanto tinha sentido falta de caminhar com ela daquela forma pelas ruas da cidade.

— Não há poesia nisso, apenas uma boa dose de realidade. — Lenór retrucou, notando a pele da esposa arrepiada pelo frio, então jogou sua capa sobre os ombros dela.

Atou a presilha em volta do pescoço com cuidado, resvalando os dedos na pele sedosa. Enquanto se dedicava à tarefa, Vanieli perguntou:

  — Você me levará lá algum dia? Para Barafor?

A pergunta surpreendeu Lenór, que respondeu com outra:

— Você gostaria de ir lá comigo?

— O que você acha?

— Sinceramente, parei de tentar fazer suposições sobre o que você deseja ou fará.

Era uma resposta justa, diante das atitudes dela. Entretanto, Vanieli não se deixou abater por isso. Ela mostrou um sorriso tímido e ligeiro, desprezando o fato de que estavam na entrada da praça, onde a música era alta, assim como o falatório e os risos. Só tinha olhos e ouvidos para Lenór.

— Eu quero ir a todos os lugares que você ama e conhecer todas as pessoas que são importantes na sua vida. Sobretudo, quero conhecer a verdadeira Lenór. Não falo da Comandante Azuti, ou a capitã palatin, tampouco a mulher com quem me casei e convivo. Falo da mulher que encontrou a liberdade longe daqui; a mulher que não tem o peso de tantas responsabilidades sobre os ombros, que não dorme com uma adaga embaixo do travesseiro ou acorda de madrugada para assistir a troca da Guarda enquanto planeja o treinamento do dia ou uma guerra. E, quando isso acontecer, eu vou perguntar para ela se há um lugarzinho no seu coração para uma jovem e boba Kamarie, que cometeu o erro de dizer que não estava apaixonada, por estar com medo do que isso realmente significava e, também, por um dia ter se achado incapaz de amar alguém além de si mesma.

Lenór engoliu em seco, absorvendo aquelas palavras como se elas fossem um sopro de vida. E quando reuniu forças para respondê-las, Vanieli já tinha se afastado para cumprimentar as pessoas que se aproximavam.

***

Draifus ofereceu um copo para Lenór. Ela o fitou longamente, recordando o que se passou na última vez em que esteve em um evento como aquele. Não havia motivos para desconfiar do engenheiro, que havia se tornado um bom amigo nos poucos meses que conviviam, todavia, a comandante não se moveu.

— Não precisa se preocupar. — Garantiu ele, tomando um gole farto da própria bebida. — Esta maravilha atravessou o oceano comigo.

Apontou para o odre em sua cintura.

— Sinta o aroma! — Incentivou.

Lenór aceitou o copo e fez o que ele disse. O aroma do vinho baraforniano invadiu suas narinas e ela salivou ante a expectativa de prová-lo. Pediu desculpas ao amigo e retirou uma pedrinha do bolso da túnica.

— Sem ofensas. — Disse para ele, que deu de ombros, falando algo sobre ela estar certa em prezar sua segurança.

Satisfeita com o resultado negativo que a pedra lhe apresentou, ela sorveu um pequeno gole, imergindo no sabor da bebida e nas recordações que lhe trazia.

— Deuses! Isso sim é vinho de verdade! — Falou, abandonando completamente as preocupações com um possível envenenamento.

O amigo riu alto, batendo seu copo no dela em um brinde desajeitado, que derramou algumas gotas de vinho em suas botas. Sentou-se no banco ao seu lado.

— Damna Vanieli me contou que você não gosta do vinho cardasino. Então, quando as vi se aproximando, há pouco, fiz questão de pedir a Jeor que fosse até nosso alojamento e trouxesse este. É uma tradição abrir um barril de vinho baraforniano quando terminamos uma obra. Como parece que isso ainda está muito longe de acontecer, resolvemos fazer uma exceção. O seu retorno do abismo e recuperação merecem um brinde com uma bebida a altura!

A comandante deu um tapinha caloroso no ombro dele e bebeu um pouco mais. Fitou o copo por alguns instantes, então mirou Vanieli, que havia aceitado o convite de Jeor para dançar e, naquele momento, rodopiava em volta da fogueira, alguns metros adiante.

Ela tinha optado por ficar um pouco distante do festejo, já que os moradores, apesar de respeitosos e de lhe prestarem desejos de melhoras, mostravam-se incomodados com a sua presença. Não era condenável, diante de tantas histórias estranhas que envolviam o lugar. E a mais recente estava falando e andando depois de “morrer” no abismo.

— Algum problema? — Draifus perguntou, seguindo seu olhar.

— Pelo contrário, foi uma agradável e saborosa surpresa. — Mostrou novo sorriso para ele. — Me fez recordar de dias mais tranquilos e felizes. Obrigada.

— Me alegra ouví-lo. Mas, se me permite observar, você não parece feliz, e sim triste.

Com meia dúzia de frases, ela contou sobre a partida de Rall e Gael.

— Lamento que isso tenha sido necessário. — Ele encheu o copo dela e fez o mesmo com o seu.

— É apenas a saudade falando alto, Draifus. Enquanto eles estiverem seguros, estarei em paz e feliz, ainda que isso não seja evidente no meu semblante.

Ele meneou a cabeça, observando-a mais um pouco.

— Sinto que algo mais a incomoda.

— Você é bom em ler as pessoas. — Ela sorriu, voltando a admirar os passos ritmados da Vanieli. Foi sincera: — Tenho muitas preocupações, é verdade. Porém, neste momento, estou apenas lamentando o fato de que não posso dançar com a minha esposa.

— Compartilho do seu desejo. — Draifus suspirou a resposta. — Gostaria de poder dançar com Jeor uma magnífica Batarinah, mas estamos em Cardasin… No momento, só vocês duas possuem essa liberdade sem temer represálias.

Ela coçou o queixo, pensativa.

— Sempre tive curiosidade em saber o porquê de vocês terem aceitado esse trabalho. Como você disse, aqui é Cardasin.

— Você pode nomear como desejar: orgulho, ambição, vaidade… — Ele sorriu de lado, olhando para o fogo. — Eu só não consegui resistir ao desafio de construir algo que muitos falharam em fazer. Jeor, por sua vez, acredita que foi o destino que nos trouxe aqui. Em muitos aspectos, ele acha que alguma força misteriosa nos desejava Cardasin para ajudar vocês duas. Bem, não tenho me achado muito útil nos últimos tempos, mas ele tem dessas crenças e quem sou eu para julgá-lo?

— Destino… também não acredito nele, porém, sou muito grata pela presença e amizade de vocês.

O farfalhar de uma capa chamou a atenção dela e uma figura sombria sentou ao seu lado um instante depois de Draifus ter se afastado para conversar com um de seus trabalhadores. Lenór fitou a mulher com um leve arquear de sobrancelhas, principalmente, quando esta lhe tomou o copo das mãos e provou o vinho.

— Hmm… muito saboroso. — Disse a estranha.

Ela não era uma moradora da cidade, tampouco, uma das mulheres que se alistaram na Guarda Real, pois a comandante já as tinha conhecido.

— E você é?

— Uma inimiga. — A mulher respondeu, tomando outro gole do vinho. — Mas não hoje. Esta noite podemos ser apenas duas mulheres conversando tranquilamente durante um festejo.

— Não costumo ter inimigos tão atraentes ou tão ousados. — Lenór comentou.

A mulher sorriu, revelando dentes muito alvos, que formavam um magnífico contraste com a pele morena. À primeira vista, parecia jovem, porém, uma observação mais apurada revelou que devia estar perto dos quarenta anos. Havia algo familiar nela, não na aparência, e sim na postura, no jeito de falar e gesticular.

— Que tal me contar o motivo de sermos inimigas?

— Você não sabe mesmo? — Ela indagou, divertida.

Como Lenór permaneceu em silêncio, resolveu enveredar por outro assunto.

— Foi uma excelente ideia criar um monstro para ocultar os assassinatos que a sua esposa maga cometeu. — Ela pareceu decepcionada por não ter conseguido uma reação da comandante, então fitou Vanieli que saltitava ao lado de Jeor. — Me pergunto como essas pessoas reagiriam se soubessem que uma das senhoras do Castelo do Abismo tem magia.

Novamente, a declaração não surtiu efeito no semblante de Lenór. Entretanto, a comandante retrucou:

— Se pretende me fazer uma ameaça, vai ter que se esforçar um pouco mais.

A outra riu, lhe causando a sensação de que era um gesto artificial.

— Oh, não vim fazer ameaças. Não esta noite. Só queria conhecer a mulher que pretendo matar, em breve.

— Interessante. Suponho que você também não irá me dizer o motivo de desejar a minha morte.

— O mistério a incomoda?

— Na verdade, gosto de mistérios. — Lenór deu de ombros, fazendo um biquinho. — Contudo, há tantos por aqui que estou ficando cansada deles.

A estranha balançou a cabeça, pensativa.

— É justo.

Ela sentou mais ereta, deixando o capuz escorregar para os ombros. Os cabelos eram curtíssimos.

— Bom, você e a sua esposa se tornaram uma grande pedra nas botas daqueles a quem sirvo. Eles ainda têm esperança de que seus planos se realizem do jeito que imaginaram, mas nós duas sabemos que, nesta altura, somente sangue derramado pode fazer isso. Desde o início, você se mostrou uma boa adversária, escapando das emboscadas, do veneno e até mesmo de uma morte no abismo. Que não planejamos, obviamente. Aliás, estou muito curiosa sobre isso, mas acho que você não vai me contar o que viu lá embaixo. — Fez um gesto largo, abarcando tudo à sua volta. — Sejamos honestas, Comandante, você já sabe do que tudo isso se trata, afinal…

Passou um dedo sobre o braço de Lenór, tracejando a tatuagem no local.

— … essas marcas não são dadas a qualquer um. Além disso, não teria se dado ao trabalho de tentar ocultar as mortes daqueles três, se não soubesse de algo.

Ela girou o copo que segurava, com um balançar de ombros.

— É divertido ver esses homens nos subestimarem, não é mesmo? Mulheres! Nos vêem como objetos. Pobres almas tolas!

Havia uma ruga maldosa no canto da boca dela, oferecendo para Lenór a certeza de que escondia sentimentos muito mais intensos do que o desprezo que despejou naquelas palavras.

— Eles continuam insistindo na falsa crença de que você e sua bela esposa são apenas um capricho do seu rei. Obviamente, não cometerei esse descuido e estou mesmo ansiosa para descobrir do que você é capaz. Afinal, há muito tempo não tenho uma adversária digna da minha atenção.

Os músicos emendaram a melodia que tocavam à outra e alguém elevou a voz entre eles, cantando versos sobre um amor que se perdeu. Com o canto do olho, Lenór percebeu a aproximação de Vanieli, assim como o fato dela ter escorregado a mão para a adaga na cintura.

A visitante prosseguiu seu monólogo, sem dar atenção para a Kamarie.

— Respondendo a sua pergunta, somos inimigas porque você está no caminho dos meus mestres. E se não fosse assim, continuaríamos sendo inimigas.

Lenór mostrou um sorrisinho debochado.

— É uma declaração muito forte. Me lembraria de ter conquistado o ódio de alguém tão bonita no passado, no entanto, nunca a vi até poucos instantes.

A mulher riu, divertida com o comentário. Estava mesmo intrigada com Lenór, afinal, ela era diferente do que imaginou. Continuou fitando-a nos olhos, desprezando a presença de Vanieli que havia parado à sua frente. A aproximação da Kamarie foi imitada pelos guardas que escoltavam as duas, visto que a moça tinha gesticulado discretamente para eles.

— Não é nada pessoal. Pelo menos, não em relação a você. A questão é que qualquer pessoa que cative a atenção e cuidado de Amani, me terá como sua algoz. E, um dia, será a própria Amani a morrer pelas minhas mãos.

— Curioso. — Lenór respondeu, acariciando o cabo da bengala.

— Quando ouvi sobre a daijin que servia o seu irmão, imaginei que ele devia ser um homem ímpar para que Amani ligasse o seu destino ao de uma nobre guerreira. Só que, hoje, compreendo que ele era apenas um meio de chegar até você.

— Por quê pensa assim?

A comandante indagou, recordando um comentário de Aisen a respeito, alguns meses antes. De fato, suas obrigações a fizeram deixar o assunto inacabado com a daijin.

— Quando o mestre morre, uma daijin pode retornar para Aman com a certeza de que a sua missão foi cumprida. Contudo, a daijin do seu irmão sobreviveu ao ataque que o vitimou e agora serve a você. — Cerrou os olhos por um instante, como se estivesse buscando algo na memória. — No outro dia, senti a presença dela na floresta… Uma presença que, acreditava, nunca mais sentiria. Me trouxe muitas recordações, sabe? Também atiçou antigos ressentimentos.

Ela fez silêncio por um instante, então tomou o resto do vinho e devolveu o copo para Lenór, ficando de pé.

— É por isso que farei com que ela assista a sua morte.

— Não estou conseguindo encontrar muito sentido nisso. — Lenór foi sincera. — Nunca vi essa tal deusa, tampouco pedi a lealdade de uma de suas daijins. Por que deveria ser odiada pelas decisões de outros?

A companheira balançou os ombros, sorrindo de lado. Era raro que daijins recebessem a missão de acompanhar os poucos e atrevidos homens que ousavam ir até o templo de Aman para pedir sua lealdade. Porém, em nenhum momento da história, uma delas deixou de retornar para Aman quando a missão chegou ao fim, tampouco escolheu dar sua lealdade a outra pessoa.

— O que disse só me faz ter certeza de que minhas suposições estão certas. — Declarou a intrusa. — Se você não pediu por isso e ainda assim tem a lealdade e proteção de uma daijin, é porque você é especial para Amani. Não fosse assim, ela não teria ligado seu destino ao da sua “mão esquerda”.

— O quê?

— É assim que Amani a chama, pois Aisen é sua protetora pessoal, mais que isso até. Então, matar você será como matar a própria Amani. Pelo menos, os sonhos dela. Assim como ela fez com os meus. — Sorriu ligeiro. — Então, me faça um favor; diga para Aisen que estou ansiosa pelo nosso reencontro e que, dessa vez, minha lâmina não irá quebrar. Irei arrancar o coração dela!

Vanieli fez um barulhinho irritado, dizendo:

— Talvez, seja Aisen a arrancar o seu, Yahira.

Não havia dúvidas de quem ela era. A conversa, a atitude, sobretudo as armas que trazia consigo e davam forma à descrição detalhada que Dimal lhe fizera.

— Ela me pareceu bastante ávida por isso. Contudo, irei privá-la desse prazer se você voltar a se aproximar da minha esposa.

Yahira se voltou para ela, notando o gelo que começava a se acumular em suas pernas. Fato ignorado pelas pessoas ali perto, visto que estavam entretidos com a dança e a música. Ela deu um passo à frente e o gelo se desfez sem dificuldade. Por sua vez, Vanieli retirou a adaga da bainha.

— Deixe-a, Vanieli. — Lenór pediu. Ela sorriu para a descrença que tomou a face da esposa e concluiu: — Não se toma a presa de outra pessoa.

Fez um gesto suave e, a contragosto, Vanieli voltou a guardar a adaga. Todavia, permaneceu com a mão sobre o cabo desta.

— Você é mesmo interessante, Comandante. O que a faz pensar que sou uma presa e não uma caçadora? — Yahira perguntou, irônica.

— Todo caçador pode se tornar caça. E desde que você deixou claro que existe uma rixa entre você e Aisen, decidi enxergá-la como a presa dela.

— É justo. Todavia, apenas uma questão de perspectiva. — Yahira concordou.

A comandante balançou o copo ao lado da face, displicente.

— Já que você veio até aqui sem um convite, decretou meu destino e ainda tomou o meu vinho, poderia fazer a gentileza de me ajudar a elucidar um mistério. Diga, você sabe quem matou o meu irmão? Pode dar um nome para o meu ódio?

Esperou em silêncio, enquanto Yahira decidia a resposta que daria.

— Hm, então o que dizem sobre você ser do tipo vingativa é verdade.

— Vingança não apaga o passado, tampouco afasta os demônios de alguém. Entretanto, dormirei muito melhor à noite, sabendo que o desgraçado que matou meu irmão, já não respira.

Yahira gostou da resposta. Afinal, a Azuti e ela concordavam em algo.

— Edelorn é o nome dele. — Contou.

Ajustou a capa, puxando o capuz para a cabeça.

— É fácil reconhecê-lo. Alto, musculoso, com uma cicatriz bem feia atravessando a face. Usa um tapa-olho para esconder a ausência da órbita que o seu irmão lhe arrancou. Grandessíssimo bastardo! — Sorriu de lado.

— Achei que não iria contar. Posso saber o motivo?

— A ideia de ver Edelorn perecer nas mãos de uma mulher me parece bastante atraente. Me fez até considerar matá-la depois disso acontecer. Deseja saber algo mais?

— Sim, mas não esta noite. Estou satisfeita.

Yahira admirou-a, divertida.

— Foi uma visita deveras interessante. — Disse, meneando a cabeça em um cumprimento singelo. — Obrigada pelo vinho. Abençoadas uvas o fizeram.

O vento soprou forte na praça e as chamas da fogueira e tochas no local se apagaram por um instante. Quando voltaram a arder, ela tinha desaparecido.

***

Yahira caminhava na beirada do abismo, sentindo o vento gélido açoitar sua pele como se fosse uma carícia dolorosa. Sentia que a ousada visita não tinha sido proveitosa. Seu instinto nunca falhava; algo tinha lhe escapado naquele encontro.

Ela parou de andar ao perceber que era observada.

— Achei que fosse se esconder, como fez na floresta. — Disse.

Alguns metros adiante havia um rochedo que dividia o descampado naquele ponto e o início da floresta. Aisen estava de pé sobre ele. A daijin não se moveu, tampouco fez menção de falar e, apesar da penumbra, Yahira sentiu os olhos dela sobre si, desnudando sua alma ante o feroz desejo de vingança.

— Ainda está zangada, “amor”? — Provocou-a.

Aisen saltou para o chão e se aproximou da ex-esposa. O coração batia acelerado dentro do peito, embalado por uma mistura cruel de amor e ódio. A corrente em sua cintura se agitou com a proximidade da sua gêmea na cintura de Yahira.

O silêncio de Aisen sempre incomodou Yahira, mesmo quando a relação delas era rica de momentos de amor e carinho. Ela nunca soube o que realmente se passava na mente da esposa, diferentemente daquele momento. Podia sentir a raiva que ela emanava através da corrente que, pela proximidade, expandia o sentimento para a sua própria.

— Achei mesmo que tivesse te matado. — Contou, deixando implícito que lamentava o fato de não ter alcançado o objetivo.

— Posso dizer o mesmo. Mas nunca é tarde para corrigir um erro.

Yahira sorriu e tocou o rosto dela, como se quisesse ter certeza de que ela era real.

— Nós poderíamos ter sido grandes juntas, mas você escolheu ela em vez de mim.

— Achou mesmo que a seguiria depois que os seus delírios e soberba tiraram o que tínhamos de mais precioso neste mundo? — Aisen perguntou.

— Amani fez isso, não eu.

— Até quando irá culpá-la pelos seus erros, seus crimes? Você, e somente você, instigou o ódio dos senhores da guerra de Guilas. Permitiu que marchassem em nossas terras. Deixou que destruíssem nossa cidade, matassem nossas irmãs, irmãos e… — a voz falhou ante a emoção que a dominava.

Yahira se afastou, retrucando:

— Amani podia ter evitado aquilo. Bastava uma palavra, apenas uma! E teríamos marchado para a guerra e massacrado nossos inimigos! E Kijan… ele estaria vivo.

Aisen estremeceu ao ouvir o nome do filho.

— Ela só precisava dizer uma palavra, Aisen. Uma palavra… — Repetiu. — E mesmo ela tendo se recusado a salvá-lo, você ainda a segue como um cão.

— Foi você a me ensinar o verdadeiro significado de fidelidade, e a minha, diferente da sua, não desaparece de acordo com a conveniência. Tampouco, pode ser distorcida pela ilusão do poder ou sentimentos de culpa.

— Culpa? Eu fiz o que era necessário e ainda estou fazendo.

— Servindo os homens que tanto desprezava? Destruiu nossa família por nada. Não passa de uma hipócrita!

A acusação inflamou as emoções de Yahira e o punhal na cintura vibrou, alimentado pelo sentimento. Ela o retirou da bainha, ao passo que Aisen fez o mesmo com a sua espada. Em um piscar de olhos, ambas se viram com as lâminas encostadas em suas gargantas. Se encararam por um momento longo e odioso.

— Fique longe de Lenór e Vanieli.

— A sua comandante vai morrer em breve. E me certificarei de que não sobre nem mesmo uma alma para as Terras Imortais.

Sangue começou a escorrer do nariz de Aisen, enquanto a lâmina em sua garganta vibrava. A magia dela percorreu seu corpo, agoniante. Porém, manteve-se firme e Yahira a empurrou para longe.

— Esta noite não, meu bem. Mas na próxima vez em que nos encontrarmos, somente uma de nós sairá viva desse encontro.

Ela guardou o punhal, deu-lhe as costas e partiu.



Notas:



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3 Respostas para 33.

  1. É eita atrás de eita, socorroo!
    To vibrando com os capítulos, ansiosa pra ver o desenrolar disso tudo!!

    Você arrasa, mulher!!

  2. Nossa!
    Que capítulo, com tantas emoções e sentimentos.
    E essa Yahira gente, como pode prejudicar seu povo e o filho?
    Muitas revelações
    Aisen vai te matar de novo o que fez não tem perdão

  3. Tattah,

    Ó, já odeio a Yahira, o q esta peste pensa q é pra tomar o vinho bom da minha comandante e implicar com Aisen.

    Cadela, tua hr vai chegar… não esquece de Vanieli, as pessoas q não dão devida atenção a ela, depois se arrependerão.

    Arrasou…

    Bjs,

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