*

— Onde esteve?

Yahira lançou um olhar sombrio para Lorde Vans, que parecia muito à vontade sentado em sua cama.

— Por aí — ela respondeu, jogando a capa no encosto de uma cadeira.

Vans ficou de pé e se aproximou dela.

— Onde você esteve? — perguntou em tom ameaçador. — Os vigias disseram que foi para a floresta, em direção a fronteira.

— Se eles disseram, então por que está perguntando?

Ele cerrou um dos punhos e uma tatuagem luminosa apareceu no pescoço de Yahira, fazendo-a juntar as mãos no local, na tentativa de conseguir um pouco de ar. A corrente em sua cintura se agitou, mas foi o punhal a arma que ela escolheu para se defender. O brandiu no ar, como se estivesse se defendendo de uma investida, e o laço invisível que a conectava ao lorde se partiu e ele foi empurrado por uma força, também invisível, até o outro lado da cama. Ele caiu de costas no chão frio e deixou um gemido baixo escapar.

— Eu não sou uma daquelas pobres almas lá fora, Vans. — Apontou para além da janela, de onde o som dos chicotes, ordens gritadas e gemidos de dor se misturavam aos das ferramentas e carroças sendo carregadas com minério. — Não sou sua escrava. Tente fazer isso outra vez e irei decepar o seu braço.

— Você me deve lealdade! — Ele rosnou, se colocando de pé.

— Ser leal não significa baixar a cabeça e se permitir ser agredida.

— Fala como se pudesse escolher… Eu sou o seu dono, mulher!

Yahira despejou água em um copo e tomou um grande gole, enquanto ele foi até a janela e a abriu para permitir a entrada de ar puro.

— Continue pensando assim… — ela sorriu, maldosa. — Não posso matá-lo, mas posso machucá-lo bastante. Meu juramento não é um escudo para você.

A ex-daijin o amaldiçoava mentalmente, lamentando o dia em que seus caminhos se cruzaram. Aisen não poderia estar mais enganada, quando a acusou de servir de boa vontade os homens que tanto desprezava.

Lorde Vans a encontrou no momento mais frágil da sua vida e usou isso para conseguir sua lealdade através de um voto. Se ela soubesse o que agora sabia, se pudesse ter previsto o caminho que iria trilhar, jamais teria dito “sim” para ele.

Em vez disso, teria escolhido a morte.

— Eu fui até o Castelo do Abismo — contou. — Precisava investigar a notícia das mortes daqueles três.

— Ordenei que ficasse aqui.

Yahira sorriu de lado, desprezando suas palavras.

— Ela sabe — falou.

O lorde fez uma careta, aguardando que se explicasse.

— A comandante Azuti sabe dos nossos planos.

— Como?

— É uma mulher inteligente, Vans. Quanto tempo achou que esse teatrinho de monstros e maldições iria durar? Não faço ideia do quanto ela sabe, mas é suficiente para que esteja reforçando a segurança da cidade. Além disso, os rumores de que prendeu os líderes dos clãs e os acusou de estarem traindo o reino e de conspirarem para matar o rei são verdadeiros. Sem os lordes se acusando pelo assassinato do rei ou disputando o trono, instituiu um Estado de Guerra com o apoio dos outros Comandantes Gerais.

Vans bateu o punho fechado na base da janela.

— Maldita seja! — ele passou uma mão no rosto. — Tudo se direciona para uma guerra…

Seu olhar se prendeu em um grupo de escravos a encher uma carroça com minério, sob o açoite nervoso de um guarda. Voltou-se para o interior do quarto.

— Se o incompetente do meu irmão não tivesse deixado aquele reizinho idiota escapar, a esta altura estaríamos assistindo a coroação do Príncipe Riksen.

 — É isso que acontece, quando se manda um idiota fazer um trabalho que exige mais do que ele é capaz de realizar.

Ela se preparou para ouvi-lo vociferar, porém, Vans não se manifestou. Afinal, ele concordava com cada palavra. Ainda mais, depois do que aconteceu com o Rei Mardus.

Quando seus espiões informaram que o Rei Mardus tinha feito um testamento de próprio punho, nomeando Lenór Azuti e sua esposa como herdeiras do trono Cardasino, o rei de Zaidar começou a ter um vislumbre dos seus planos sendo arruinados. Por algum tempo, ele focou seus esforços em assassinar o casal Azuti e Kamari. Enquanto isso, espiões tentavam pôr as mãos no testamento, contudo, Mardus tinha feito planos para mantê-lo seguro e longe das vistas de curiosos ou inimigos.

Tendo falhado em ambos os planos, outra ideia ocorreu ao soberano zaidarniano. Investir contra a capital cardasina, sequestrar o rei e instituir o caos no reino. Dar a entender que Mardus estava morto fazia parte do planejado. Pois, a ideia era obrigá-lo a escrever um novo testamento, nomeando o príncipe Riksen como seu herdeiro.

Infelizmente, falsificar esse documento estava fora de cogitação. Os soberanos cardasinos usavam um tipo de escrita codificada, que era impossível de imitar. Portanto, tinha de ser a letra de Mardus, sua assinatura e o selo real do anel que usava, cujo desenho também era único.

O novo documento seria usado para refutar o testamento anterior. Contudo, o plano começou a dar errado quando os captores tiveram que trazer o rei algemado à protetora pessoal dele. A estrangeira era uma maga e, de alguma forma, fez com que as algemas que os conectavam se tornassem inquebráveis. Tentaram lhe cortar o braço, mas as lâminas envergavam ao tocar a pele encantada dela e cortar a mão do rei não era uma opção.

Após alguns dias sacolejando em um transporte, que seguia para a capital de Zaidar, os dois conseguiram escapar.

— Nenhuma notícia da caçada, enquanto estive fora? — Yahira perguntou.

— Não consigo entender como ainda não acharam um rei preguiçoso, perambulando por Zaidar ao lado de uma mulher tatuada e tão branca quanto leite!

— Se essa palatin é uma maga tão boa na manipulação de metais e próprio corpo, é justo imaginar que estão procurando um casal de aparência comum em Zaidar. Me surpreende que você ainda não tenha cogitado essa possibilidade.

— Acha que eles conseguiriam fazer algo assim?

Ela deu de ombros e Vans deixou a janela para ir até a porta.

— Mais soldados chegarão nos próximos dias. Prepare-os para o combate discretamente. E faça alarde de que estão aqui para um exercício de combate. Se nós temos… — interrompeu-se com um gemido irritado e corrigiu-se — tínhamos espiões no castelo e nossas intenções já não são uma segredo para a comandante Azuti, é possível que ela tenha seus próprios espiões aqui.

— E o que você fará enquanto isso?

— Eu vou para a capital, conversar com o rei. E é provável que ao voltar, tenhamos sua permissão para invadir o Castelo do Abismo. Afinal, ele sempre foi nossa prioridade.

**

Quando Vanieli despertou pela manhã, Lenór já não estava nos aposentos e os guardas informaram que a comandante fora ao pátio de treinamento da Guarda. Decepcionada, comeu seu desjejum no quarto à espera de Voltruf, que não tardou a chegar em companhia de Melina.

A florinae havia prometido um treino desgastante para aquele dia e parecia especialmente mais propensa às provocações que o normal.

— O que há de tão especial naquela porta para você não tirar os olhos dela?

— Nada! — ela respondeu, ajeitando-se na cadeira enquanto tomava o último gole de chá na xícara. Tornou a enchê-la, a fim de retardar a saída para o treino, com esperança de que Lenór retornasse nesse meio tempo.

— Você é tão fácil de ler — Voltruf continuou a provocação. — Que tipo de besteira fez dessa vez?

— Deixe a menina, Volt — disse Melina. — Não há nada de mais em querer ver a esposa dela e se despedir adequadamente, antes de sair para passar um dia inteiro aguentando suas provocações.

Ela sorriu para o estreitar de olhos da florinae e Vanieli escondeu um risinho por trás da xícara resolvendo, também, provocar a mestra.

— Estou certa de que se tivesse uma vida amorosa, ela pararia de se importar tanto com a minha. E talvez, não tentasse aliviar sua tensão me espancando todos os dias!

A grã-mestra riu alto com o comentário e perguntou:

— Acha que isso a tornaria menos rígida?

— Tenho esperanças!

— Não seja boba! — retrucou Voltruf. — Ao contrário do que ocorre com você, minhas emoções não interferem no meu trabalho.

— Oh, agora sou seu trabalho! O que houve com aquela história de “não sou mestra de ninguém”?

— Você me entendeu.

Ela deu a volta na mesa e parou ao lado de Melina.

— E pare de fazer suposições sobre a minha vida amorosa. Ela não tem nada a ver com o seu treinamento, ao contrário da sua que já deixei claro que influencia na sua concentração e magia.

O comentário em tom irônico, levou um pouco de rubor às bochechas de Vanieli.

— Percebo que se trata de uma conversa recorrente entre vocês — a grã-mestra deixou a curiosidade falar mais alto.

— Ela acha que gosto de você, Melina — Volt explicou.

Melina descansou o queixo na mão apoiada na mesa, sorriu de lado.

— E você gosta? — perguntou em tom de troça.

— O que você acha? — a florinae devolveu no mesmo tom, fazendo Vanieli arquear uma sobrancelha, pois ficou em dúvida se estavam brincando com ela ou se havia mesmo uma cumplicidade romântica naquelas poucas palavras.

A grã-mestra desconversou, voltando-se para a Kamarie.

— O que acho é que Vanieli precisa saber algo sobre os florinae. Eles levam seu dever muito a sério, estando apaixonados ou não. São provocadores natos, do tipo que nos leva ao extremo das emoções. Por um lado, isso é muito irritante; por outro, tem seu charme e utilidade. Quanto mais irritante Voltruf for para você, mais difícil será aprender a controlar suas emoções e, consequentemente, sua magia. E à medida que a dificuldade aumentar, pequenos gestos, frases e situações já não a deixarão magicamente instável. Se bem que, pelo que soube, Lenór a ajudou bastante nesse quesito.

Vanieli aquiesceu, enquanto Voltruf se aboletava na janela. Vê-la fazer isso, a fez perceber que ela sempre buscava aquele lugar quando vinha até seus aposentos. E pensando um pouco mais sobre, também era o local preferido de Aneirin.

— Ela fez o que pôde — disse. — Mas sempre existiu um limite para o que podia me ensinar, assim como a certeza de que precisava de um instrutor mágico. Alguém “gentil e atenciosa”, como você, “Mestra”!

— Por Cazz! Me chame de “mestra” outra vez e vai perder esse sorriso bobo!

A gargalhada escancarada de Melina interrompeu a discussão.

— Se vocês são assim em descanso, não quero nem imaginar como são durante o treino.

***

O dia ainda não tinha iniciado quando Lenór cruzou os portões do castelo e se dirigiu para o pátio de treinamento dos soldados. Ao lado de Elius, ela sentou no banco mais baixo de uma pequena arquibancada na lateral do pátio, onde os soldados em treinamento se aglomeravam à espera do início das atividades.

Não demorou para que Dimal se juntasse a eles, assumindo a função de instrutor. Vanieli a tinha alertado sobre o descaso do tenente Laudes, que conduzia os treinamentos após sua queda no abismo. Por sua vez, Elius se mostrou envergonhado por se manter ausente nessas questões. Ele havia instruído Laudes de forma que treinasse homens e mulheres da mesma forma, entretanto, por falta de fiscalização, o homem agiu de acordo com a própria vontade e chegou a instigar situações desagradáveis e humilhantes para as soldadas sob seu comando.

Ao se inteirar dos fatos, Lenór fez questão de assistir um de seus treinos na surdina. Laudes ignorava completamente as mulheres e quando lhes dedicava alguma atenção, fazia questão de colocá-las em situações degradantes. O cenário não mudava quando as soldadas retornavam para os alojamentos ao fim do dia.

A comandante recebeu relatos preocupantes, após uma pequena investigação. Coisas que escaparam dos ouvidos e atenção de Elius, e pelas quais ele se sentia revoltado e ainda mais embaraçado; tanto que chegou a pedir que Lenór o dispensasse da função como forma de punição.

— Eu realmente sinto muito — disse ele, enquanto a escoltava de volta ao castelo, pelas ruas ainda pouco movimentadas.

— Já disse que parasse com isso, um erro não irá fazer com que a confiança que lhe dedico se desfaça como fumaça ao vento. Além disso, o erro não é apenas seu. Outros viram o que se passava e não o alertaram. Você é um capitão, então é justo confiar nos seus subordinados, ainda mais quando tem questões mais urgentes em mãos.

— Fui negligente.

— É verdade, mas enquanto isso se passava, você estava atuando em outras frentes. Reforçou as defesas da cidade; lidou com funerais de soldados após o ataque das criaturas, depois com a notícia da morte do rei e a chegada de um bando de lordes arruaceiros, enquanto sua comandante, ao que tudo indicava, estava morta. Como esperado, você delegou funções.

Ele ergueu a mão, tentando enfiar outro argumento na conversa, porém, Lenór o cortou com rispidez:

— Este assunto está encerrado, Elius. Tome o que aconteceu como uma lição, pois se algo semelhante voltar a acontecer sob o seu comando, não irei dispensá-lo e sim castigá-lo de acordo com as leis que regem a Guarda. Terei prazer em aplicar as mais severas.

O capitão se empertigou, soprando o ar com força e fazendo um gesto afirmativo em seguida. Apesar da expressão séria, e das palavras pronunciadas como uma ameaça, o tom dela era brando.

No dia anterior, a comandante rebaixou o tenente Laudes a soldado e fez questão de enviá-lo de volta à capital junto com um dos comboios que, supostamente, levavam o Ministro Jarfel. No entanto, o destino final do ex-tenente era a cidade de Verate, onde sofreria outra punição por seus atos, ao cumprir 2 meses de prisão. O homem tinha esperneado, argumentado e até mesmo esboçado uma reação agressiva ao ser informado disso, porém, acabou se conformando. Pois, se negar a aceitar a punição agravaria seu crime e se tentasse fugir dela, poderia ser penalizado com a morte.

— Devia mesmo estar fazendo tanto esforço? — Elius perguntou a poucos metros do castelo.

— Estou bem.

O soldado suspirou e tomou uma liberdade que raramente utilizava.

— Cada passo que dá é claramente doloroso.

Lenór o fitou em silêncio, enquanto uma gota de suor deslizou por sua fronte.

— Eu convivo com a dor há tanto tempo, que não senti-la seria estranho. Sabe, passei minha infância enfiada em uma cama, assistindo a vida passar através de uma janela e esperando a piedade de um servo ou a bondade de um irmão, que não está mais aqui, para me colocar nos braços e levar aonde desejava ir. Prometi a mim mesma que isso não iria mais acontecer. Então, faço o meu caminho, seja ele doloroso ou não.

Ele balançou a cabeça resignado.

— Se isso a faz se sentir melhor, que assim seja — disse Aisen, a poucos passos deles. — Entretanto, saiba que mesmo que o seu irmão não esteja aqui, você tem pessoas que a admiram, respeitam e também amam. Pessoas que a levarão nos braços ou lhe oferecerão sustento a qualquer momento, não por obrigação ou piedade.

Se aproximou, oferecendo a mão para Lenór que a fitou rapidamente e perguntou:

— Está fazendo isso pelos motivos que citou ou apenas seguindo ordens da sua deusa?

— O que você acha?

—  Que você tem muito para me contar.

— Não tanto quanto imagina.

Em poucas palavras, Lenór dispensou o capitão e acabou por aceitar o amparo que a daijin lhe ofereceu. 

— Mulher interessante a sua — disse a comandante, enquanto cruzavam os portões do castelo.

Um suspiro longo escapou de Aisen e a tristeza em seus olhos se tornou perceptível.

— Você não soube? — perguntou ela. — Eu sou viúva.

A comandante interrompeu o passo, apenas para lhe tocar o queixo, obrigando-a a erguer a face e mostrar o corte na garganta. Não passava de um arranhão, todavia, tinha profundidade suficiente para derramar o sangue que avistou nas roupas dela em seu retorno ao castelo com Dimal.

— Um fantasma fez isso? — perguntou, supondo acertadamente que o ferimento foi obra de Yahira.

Aisen afastou sua mão, delicada. Retomaram o caminho.

— Pensei que não acreditava em fantasmas — disse ela.

Um sorriso sem dentes imperava nos lábios de Lenór quando alcançaram o saguão. Ela fez uma pequena careta ao subir o primeiro degrau da escadaria que levava ao pavimento superior, onde se localizavam seus aposentos.

— Você não precisa me falar sobre ela, mas gostaria de entender a razão dela desejar a minha morte por uma suposta preferência da sua deusa.

A daijin só respondeu quando alcançaram o topo da escadaria:

— Embora me desagrade um pouco ter de concordar com Voltruf, a verdade é que Amani não é uma deusa, como todos pensam. Já lhe disse em uma conversa anterior que ela é apenas uma mulher.

Soltou a mão dela, antes de concluir:

— Amani é uma rainha, Lenór.

A comandante a acompanhou pelo corredor, deixando escapar um risinho sarcástico.

— Então, é assim que as mulheres das Terras de Aman chamam sua rainha? Amani. Faz sentido que os outros reinos achem que é uma deusa imortal.

— Está enganada — Aisen a fez parar de andar e recebeu dela um olhar estranho, que misturava curiosidade e dúvida. — Existem homens em Aman. Mas ao contrário do resto do continente, vivemos em uma sociedade igualitária. Talvez, sejamos mais livres do que as pessoas do continente além-mar. Entretanto, somente mulheres podem servir no templo.

Ela brincou, inconscientemente, com a corrente que envolvia a sua cintura. Lenór já tinha notado que era um hábito, assim como ela própria costumava apertar o cabo de uma das espadas com frequência.

— Quanto a Amani, — ela continuou — só existiu e existe uma rainha com esse nome.

Uma ruguinha discreta se formou no canto da sua boca, contudo não sorriu completamente.

—  Amani está neste mundo desde o início da sua existência. E ela é ainda mais velha que ele. 

— É uma brincadeira?

— Não mesmo. Amani é uma enaen.

A comandante riu, fazendo um gesto largo.

— Foi uma boa piada! — falou, retomando o caminho.

Todavia, Aisen não saiu do lugar.

— O povo florinae era uma lenda até pouco tempo, no entanto, a sua mestra é um deles. E, pelo o que sei, tem mais de 3 milênios de existência. Neste momento, sob o teto deste castelo, você está abrigando o espírito de uma florinae de idade equivalente. Por que a ideia de que uma antepassada desse povo seja a Senhora das Terras de Aman é tão ridícula para você?

Lenór se voltou para ela, o riso morrendo em seus lábios. As lendas diziam que o povo enaen era uma raça imortal e de grande poder mágico. Nunca teve razão para acreditar que eram mais que uma fábula, nem mesmo quando os florinaes, que se declaravam seus descendentes diretos, ressurgiram naquele mundo.

Suspirou forte. Aisen não era mesmo dada a piadas.

— E o que uma criatura tão fantástica iria querer com uma mulher como eu?

Aisen se aproximou dela, perguntando:

— Você acredita em destino?

— Se refere a algum tipo de caminho pré-estabelecido?

— Sim e não.

— Eu não acredito nessas coisas — respondeu, finalmente.

A daijin deu de ombros, arqueando um dos lábios. Ela sabia a resposta antes de fazer a pergunta, contudo, queria ouví-la. Indicou a janela às costas dela e sentaram na base desta, recebendo o vento frio da manhã que se iniciava.

— Amani não é uma divindade, mas seu poder é grande. Sabe, pela crença que as pessoas têm de que é uma deusa, algumas vezes, suas orações a alcançam. Seus desejos são tão profundos, que suas almas dão uma forma mágica a eles.

Lenór fixou a expressão orgulhosa em sua face com uma inquietação crescente. A característica apatia, que imperava na daijin, tinha desaparecido completamente ao passo que falava. Sua devoção a Amani era tão evidente, que a comandante acreditou ser quase palpável.

— Amani ouviu você, Lenór.

Um sorriso escarninho moldou os lábios da Azuti, conforme uma incômoda tristeza a tomou. Ela pensou em negar, mas acabou admitindo que houve um tempo em que suas preces estiveram voltadas para as Terras de Aman.

— Era apenas uma criança, quando ouvi falar dela. Me pareceu uma deusa mais piedosa do que os deuses que o meu clã adorava. Mas, se ela realmente me ouviu, como você afirma, deve ter me achado uma criança boba. E agora que sei que não é uma deusa, faz sentido não ter meu pedido atendido.

Aisen a mirou, condescendente, antes de voltar o olhar para além da janela; a imagem borrada do rosto pálido e bondoso de Amani se formando na mente. Por um momento, deixou-se afundar na saudade de casa. Ao lado da sua rainha, toda dor física e emocional parecia suportável, mesmo que incurável.

— Ela considera seu dom uma maldição — falou. — Pois, o “destino” é imutável. Ele pode ser interrompido com a morte, por exemplo. Todavia, será cumprido em outra vida. Entre seu povo, Amani era conhecida como a “rainha da morte”.

Voltou a olhá-la.

— Por isso, ela te ouviu. Porque você rezou pedindo para morrer.

Admirou a escuridão profunda nos olhos dela, indo da desconfiança para a raiva e, por fim, uma grande tristeza. Poucas vezes, tinha visto Lenór deixar suas barreiras caírem ao ponto de ser quase possível adivinhar seus pensamentos.

— Por que uma criança iria desejar algo assim? — Perguntou, embora tivesse ouvido os motivos através de um tagarela Mirord, em uma noite de bebedeira e confidências. Não que ele soubesse dos desejos e orações da irmã, apenas relatou situações da sua infância.

Aisen também sentia saudades dele. Apesar de algumas vezes irritante, Mirord era um bom homem e após alguns atritos, vieram a se tornar bons amigos. E assim como Lenór, ela ansiava encontrar seu assassino em nome da vingança.

— Porque eu tinha medo de morrer. — Os lábios de Lenór tremeram enquanto respondia. — Contudo, a morte me rondava todos os dias. Eu só pensava nela e em quando meu pai enlouqueceria outra vez e me espancaria. “Será agora?”, me perguntava, quando ele me batia.

Os olhos marejaram, porém não chorou.

— Eu pensava tanto nisso e tinha tanto medo, que rezei para Amani, implorando que me concedesse a morte enquanto dormia. Eu só queria fechar os olhos e deixar de existir. Ser… livre.

Fungou forte e sorriu, amarga.

— Mas aqui estamos… E todo esse falatório ainda não me deu uma resposta para a pergunta que lhe fiz. Por que Amani se interessa por mim ao ponto de me enviar sua protetora pessoal?

Aisen cruzou as pernas, encostando-se no umbral.

— Você me perguntou, meses atrás, por que não tinha exigido que fizesse um teste para lhe dar minha fidelidade.

— E você me respondeu que já tinha feito esse teste.

— De fato. Quando sua oração alcançou Amani, ela viu o seu destino. Você tem um papel a desempenhar neste reino e mundo. E eu estou aqui para garantir que você o cumpra. Pois, os seus passos me levarão ao meu próprio destino.

— Que bobagem!

Ela riu. Um riso largo e bonito, como Lenór nunca tinha visto.

— O que você esperava, algum tipo de conspiração divina?! É assim que as coisas são em Aman, Lenór. Uma daijin só deixa o templo se o seu destino estiver ligado ao daquele que pediu pela sua lealdade.

— Mas é essa a questão. Eu não pedi.

— Você pediu a ajuda de Amani. Ela escolhe o tipo de ajuda que dará ou não, e em que tempo isso acontecerá.

A comandante passou a mão no rosto.

— Esta é a conversa mais confusa que já tive na vida. Você fala muito e não me diz nada.

Aisen riu, novamente.

— Eu não posso ir muito além disso. Destino e Futuro são irmãos. Saber demais sobre qualquer um deles pode influenciar em suas decisões. A diferença, é que o futuro é mutável, mas o destino não. Se você morresse hoje, sua alma retornaria daqui algum tempo para uma nova vida, cujo destino seria o mesmo. É um ciclo que não se fecha até que esse objetivo seja alcançado. Além disso, nada sei do seu, apenas que ele me levará ao meu.

Ela ficou de pé, deixando a apatia retornar às feições.

— Todavia, parece saber do seu — Lenór observou.

— Sim, eu sei — admitiu com um leve dar de ombros.

— Isso não contradiz a “regra” que acabou de citar?

— No meu caso, não — afirmou.

— Por quê? — A comandante insistiu.

— Porque eu fiz uma promessa há muito tempo. E promessas regem destinos. E quando digo isso, estou sendo bem literal — descansou as mãos na cintura. — Então, meu único objetivo nesta vida é cumprir o que prometi.

Novamente, Lenór se pegou achando aquela conversa sem sentido, embora muito tivesse sido esclarecido.

— Mas eu não preciso tomar decisões nesse caso, basta ficar ao seu lado — concluiu Aisen.

Lenór sabia que ela não estava sendo completamente sincera. Havia mais por trás daquela história, contudo, achou por bem não pressioná-la e deu o assunto por encerrado. Pelo menos, por enquanto.



Notas:



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