*

— O que acham de contar ao seu rei o que andaram aprontando nos últimos meses? — Mardus perguntou.

Lenór, que se enfiava dentro da couraça com o auxílio de Vanieli, respondeu:

— E que tal o rei nos contar por onde andou e o que fez enquanto seu reino pegava “fogo”?

Ele sorriu, jogado em uma das cadeiras perto da lareira.

— Na maior parte do tempo, me escondendo das patrulhas zaidarnianas. No resto dele, tentando não deixar Dalise zangada o suficiente para desejar me matar ou me abandonar a própria sorte.

Ele sorveu o vinho da taça que segurava, dirigindo um olhar penetrante para a mulher parada junto à janela. Dalise passou tanto tempo escondendo a própria aparência que, naquele momento, lhe parecia uma estranha.

— Me arrisco a dizer que foi por isso que a trouxe para ser minha protetora — findou, arrancando um riso torto da amiga. — Tenho certeza de que a ideia deve ter passado pela cabeça dela algumas vezes.

Enquanto Lenór terminava de se vestir, ele aproveitou para observar seu contato carinhoso com a esposa, reprimindo a vontade de sorrir. Resolveu, por fim, contar o que ela pediu.

Narrou o rapto e a viagem através do seu próprio reino e Zaidar. Dalise o interrompia, vez ou outra, para complementar as informações. Contudo, foi um relato bastante superficial e apressado. Nenhum deles queria recordar, no momento, as coisas terríveis e tristes que presenciaram no reino vizinho.

— Havia magos entre eles — revelou Dalise, o olhar fixo na comandante.

Assim como seu irmão, ela olhava para Lenór com um misto de respeito e admiração, que não podia ser disfarçado. Antes de se acostumar com Dimal, isso incomodou Vanieli por um bom tempo, pois, vez ou outra, lhe passava pela cabeça a ideia de que havia segundas intenções nesse apreço.

— Já imaginávamos. — Lenór suspirou. — Os relatos do desabamento de parte do palácio foram muito confusos, mas todos concordavam em algo. Explosões não foram ouvidas e, depois do ocorrido, não encontraram nada que indicasse o uso de algum material explosivo.

— Além disso, tivemos um problema semelhante na noite em que Lenór caiu no abismo — Vanieli crispou os lábios. — Apesar das leis e tradições que beiram a crueldade, os zaidarnianos possuem magos nas fileiras de seu exército.

— São os homens mais próximos do rei Dakar, sua guarda pessoal. E ao que tudo indica, o resto do exército é alheio a esse fato.

Mardus cofiou a barba.

— Por que desperdiçar tanto poder, se pode usá-lo ao seu favor? — perguntou. — Sendo um homem tão ambicioso, não é surpresa que meu “amado” primo tenha encontrado um jeito de usar as pessoas que as leis cruéis do seu reino condenam ao aprisionamento e morte. Mas o que o povo diria e faria se soubesse disso?

Sorveu outro gole de vinho. Perdeu-se rapidamente em pensamentos, dos quais saiu para beber mais um pouco e retornar ao relato interrompido por Dalise.

— Eles nos mantiveram dopados e sacolejando no piso da carruagem de um suposto comerciante durante a viagem por Cardasin. Quando cruzamos a fronteira, a carruagem luxuosa deu lugar a uma carruagem de prisioneiros, mas continuaram nos drogando. Felizmente, mesmo nessas circunstâncias, Dalise conseguiu sustentar a magia que nos unia através das algemas. Um nível de concentração impressionante.

Seus olhos seguiram os da amiga até a baraforniana. Lenór afivelou o cinto, e conferiu os itens na bolsinha que sempre carregava presa a ele. Os cabelos soltos derramavam-se sobre os ombros em uma cascata perfeitamente negra.

— Parece até que previu o que aconteceria.

— Meus poderes de adivinhação continuam tão inexistentes quanto em nosso último encontro. Acho que você pode, apenas, concordar com o fato de que é um homem muito sortudo. Se eu não tivesse esbarrado em Dalise e Dimal, meses antes de vir para Cardasin, você teria de se contentar com o rostinho bonito e a incompetência sem tamanho daquele pobre infeliz que o protegia anteriormente.

Ela retirou da bolsa a mesma caixinha a qual recorreu quando foram atacadas pela criatura nos túneis. Milagrosamente, o objeto não havia se espatifado quando caiu no abismo. Graças a isso e a ajuda da pequena Aneirim, foi capaz de sobreviver até ser resgatada.

Ela a abriu, deixando à vista as misteriosas bolinhas de vidro, que Vanieli agora sabia se tratar de Magia de Sábio. Eram pequenas doses de poções que, se misturadas, causavam efeitos semelhantes à magia: fogo, resfriamento, fumaça, explosões, entre outros. Os sábios eram estudiosos, mestres na arte de criar poções e tão raros quanto os magos naquele reino. Seu conhecimento era mais apreciado para o tratamento de enfermidades e raramente usado de forma bélica.

Desde que começaram a se preparar para a invasão zaidarniana, ela acompanhou com extrema curiosidade o trabalho minucioso da esposa, Dimal e, para a sua surpresa, a mercadora de ervas Dagnar. O conhecimento da mulher sobre ervas e poções era muito mais profundo do que ela deixava transparecer. Já para Lenór e Dimal, conhecer o básico de Magia de Sábio era essencial para os palatins que não possuíam magia.

A comandante apertou um mecanismo na lateral interna da caixa e a almofada se deslocou para o lado, revelando um novo compartimento. Bolinhas vermelhas repousavam ao fundo, mas na verdade eram sementes. Lenór catou uma delas e atirou para Dalise, que segurou-a com um semblante sombrio.

— Já que está aqui, suas mãos e habilidades serão de grande ajuda.

— Acabo de sair de um inferno e pretende me jogar em outro? — a moça fez um muxoxo. 

— Não pode reclamar de não ter sido avisada — Lenór a lembrou.

A outra balançou a cabeça e quis saber:

— Como você ainda tem sementes? Tivemos que devolver as nossas para o grão-mestre quando deixamos os Palatins.

— Eu nunca me desliguei oficialmente dos Palatins, embora tenha expressado minha vontade ao Príncipe Agnir através de cartas. Em teoria, ainda estou a serviço de Barafor, visto que ele fez questão de me escrever com uma ordem de licença por tempo indeterminado. Você passou muito tempo concentrando sua magia para modificar sua aparência. Deve estar exausta. Isso vai te ajudar a se recuperar mais rápido.

A moça assentiu suavemente e colocou a semente na boca, pensando no quanto o príncipe regente de Barafor era apegado aos seus protetores. Dizia-se entre as fileiras do exército, que Agnir era um mago sensitivo e escolhia seus guardiões a dedo. Não pelas habilidades, as quais realmente importavam, mas, principalmente, pelos sentimentos que eram capazes de lhe inspirar. E era de conhecimento geral o apreço que ele tinha pelo trio de protetores formado por Lenór e os falecidos Belgar e Najili.

Alteri palatin — ela disse como uma prece, então mordeu a semente. Ouviu-se um pequeno estalar antes de engolir e, por um instante, nada aconteceu.

Mardus chegou perto delas. Parecia tão fascinado quanto Vanieli quando uma linha sutil começou a brilhar nas tatuagens palatins, tracejando-as como se um dedo invisível estivesse a percorrê-las. O rei estendeu uma mão cobiçosa para a caixinha que a amiga segurava, mas Lenór a fechou em um rompante e guardou na bolsa.

— Sementes de guerra não são para enxeridos — repreendeu.

Ele fez uma careta quase infantil, e quis saber:

— Você não vai consumir uma?

— Quando e se for necessário, irei.

Mardus sentiu a apreensão crescer em seu íntimo. Lenór parecia tão confiante que chegava a assustá-lo. Por isso, se ouviu perguntar com certa desconfiança:

— Isso vai mesmo acontecer? — referia-se a guerra.

Lenór assentiu. Pegou as espadas que repousavam sobre a mesa, conferindo o fio das lâminas como se houvesse a remota possibilidade de estarem cegas, e prendeu-as na cintura.

— Parece arrependido de ter me deixado no comando.

— Talvez eu esteja — ele admitiu.

— Que bom, porque eu ainda estou com muita raiva de você por isso. Mas falaremos dessas coisas depois. Esta noite temos uma guerra para vencer.

— Não quer dizer uma batalha?

— Não. Me refiro a guerra mesmo. Ela vai começar e terminar esta noite. Seu reino ficará seguro e, talvez, pacífico como nunca esteve antes.

— E como pretende fazer isso, Lenór? Zaidar tem um exército três vezes maior que o nosso.

— No momento, não vamos fazer nada — Vanieli falou, tão confiante quanto a esposa. — O rei Dakar está vindo ao nosso encontro agora mesmo. Então, só precisamos esperar.

Ela olhou para a escuridão além da janela, como se fosse capaz de enxergar algo nela que os olhos do rei não alcançavam.

— Há tanto ódio nessa gente… — abraçou-se, esfregando as mãos nos braços, como se isso pudesse protegê-la das sensações desagradáveis que vinham da floresta. A reunião de tanta gente com intenções assassinas lhe dava a ideia de que essas impressões eram quase palpáveis.

— Dakar está ciente de que é esperado e, portanto, preparado para uma possível armadilha. — Lenór retomou a palavra. — Ele é tão orgulhoso, que não irá resistir à vontade de trazer consigo todo o seu exército para mostrar e reforçar o poder que tem.

— Ainda não vejo motivos para você exibir esse sorriso convencido.

— Acontece, meu amigo, que enquanto ele se dirige para cá, os exércitos dos Lordes Taniel e Aulos avançam por suas costas.

— Taniel e Aulos? Os clãs Baruki e Tarize juntos?!

— Na noite passada, os deixei acampados próximo à fronteira, à espera da invasão zaidarniana. Enquanto isso, os Lordes Everin e Timério se posicionaram ao norte, bloqueando a passagem de qualquer grupamento que se aventure naquela direção, cujo bloqueio, todos sabemos, poderia nos deixar completamente isolados do resto de Cardasin.

Vanieli retirou um pergaminho de um armário e o abriu sobre a mesa, revelando um mapa da região. Apontou para os locais que a esposa havia acabado de citar.

— Não vimos nada quando passamos por lá, mais cedo — o rei pontuou.

— Deixe ordens para que assumissem a posição correta ao cair desta noite. Seus amigos ladrões, a esta altura, devem estar se borrando de medo ao encontrá-los. Mas Elius providenciou uma passagem segura para eles.

— E, por fim, os clãs Azuti e Kamarie estão a nordeste. Perto o suficiente para agirem assim que convocados e longe o bastante para não serem avistados pelos zaidarnianos até que seja tarde demais. — Vanieli concluiu.

O rei dirigiu o olhar do mapa para as duas mulheres.

— Como conseguiram isso? — indagou, admirado. — Durante nossa viagem até aqui, tudo o que ouvíamos nas vilas onde passávamos era que os clãs estavam em guerra porque vocês prenderam os lordes e estavam tentando assumir o trono. Havia relatos de batalhas sangrentas e campos de morte em todas as províncias.

Elas riram, satisfeitas.

— Fora a prisão dos lordes, todo o resto não passa de rumores, Majestade.

— Rumores que fizemos questão de alimentar, aqui e ali, nas vilas mais próximas da fronteira. — Lenór endossou. — Precisávamos movimentar os exércitos dos clãs sem que os espiões zaidarnianos percebessem o que realmente estávamos fazendo.

— Ao mesmo tempo, nos negamos a permitir a leitura total do seu testamento até que seu corpo fosse encontrado e deixamos claro que, se você nos nomeou suas herdeiras, então não fugiríamos dessa responsabilidade e qualquer pessoa que se negasse a aceitá-lo seria nosso inimigo.

— Queríamos que Dakar acreditasse no sucesso dos seus planos ao causar discórdia no reino, enfraquecendo-o. Mas que também nos visse como uma barreira que o impedia de alcançar seu verdadeiro objetivo: o Castelo do Abismo e as terras que o cercam. Então, o tornamos ainda mais importante para Dakar. Tanto que ele trouxe quase todo o exército para cá e deixou a maior parte do seu território desguarnecida. — Lenór colocou um dedo sobre o mapa e o tracejou devagar. — Antes do raiar do dia, os comandantes Saules e Dairós terão domínio sobre as províncias que fazem fronteira com Cardasin. E o mesmo acontecerá com aquelas que fazem fronteira com Dravel. Nossos vizinhos ficaram muito satisfeitos em nos acompanhar nessa investida.

— Quanto à sua pergunta sobre os clãs… — Vanieli juntou as mãos diante do ventre. — Nossos líderes não querem ser vistos como traidores, tampouco, ficaram felizes ao saberem das trapaças zaidarnianas e as manipulações que sofreram.

Lenór sorriu para ela, dizendo:

— Vamos ser sinceras, eles só querem se livrar da forca e depois encontrar uma forma de fazer o mesmo conosco para voltarem a brigar pelo trono. Principalmente, agora que sabem que há uma fortuna em ouro nestas terras.

— Você tem uma visão muito crua das pessoas, Lenór.

— Eu sou realista e honesta o suficiente para admitir que também manipulei os nossos “honrados” chefes dos clãs. Só foi preciso encontrar o argumento certo para fazer deles aliados.

Ela voltou a olhar para Mardus, que disse:

— Estou surpreso, satisfeito e muito preocupado. Dakar ainda está vindo para cá com um exército muito maior que o nosso, uma massa de homens bem armados e lutadores ferozes. O ataque de Taniel e Aulos não fará muita diferença, só irá empurrá-los para nós.

— Será uma investida eficiente se eles estiverem dispersos.

— E como isso poderia acontecer?

Lenór colocou as mãos sobre os ombros dele, uma ruguinha soberba no canto da boca.

— Oh, Mardus, você não ouviu as histórias? O Castelo do Abismo está amaldiçoado. A floresta que o cerca é habitada por demônios. E a comandante Lenór Azuti, que sobreviveu a uma queda no Abismo de Tenzin, é um deles. — Seu sorriso alargou. — E acredite, meu amigo, vou fazer o título valer à pena.

***

A escuridão da floresta era quase reconfortante. Assim Voltruf pensava, enquanto seguia os passos de Melina, que eram quase tão silenciosos quanto os seus. Os cabelos loiros e longos balançavam às costas dela, presos em um rabo de cavalo frouxo, que exalava o perfume dos florais com os quais costumava se banhar.

— Você parece tranquila demais.

Melina diminuiu os passos, respondendo por sobre o ombro.

— Sabe bem que a guerra me incomoda, mas depois de Flyn e o Cavaleiro… — fez um muxoxo. — Como uma ordenada é meu dever buscar a paz, contudo, preciso confessar que, às vezes, perco a esperança na humanidade.

Ela tornou a olhar para a frente, onde a fraca luz de tochas quebrava a escuridão das árvores. Falou:

— Você não precisa me acompanhar. Afinal, não concorda com o que pretendo fazer e até ajudou nos planos de Lenór.

— Assim como você, fiz o que acreditava ser o certo. Flyn é um reino cheio de defeitos, mas nunca tivemos a escravidão como opção, de inimigos ou não. Então, não foi difícil tomar a decisão de ajudar, embora tenha feito muito pouco, na verdade. Sei que concorda comigo, mas enquanto vestir esse manto e atender por Grã-mestra da Ordem, você sempre será neutra. Ou, pelo menos, seus atos. — Parou de falar, enquanto se aproximava dela. — Quanto a acompanhá-la, sei que é perfeitamente capaz de se defender, mas a Ordem exige que os ordenados em missões tenham a companhia de, pelo menos, um guardião. Como você veio para Cardasin sozinha, serei sua guardiã esta noite.

— E isso não tem nada a ver com o seu desejo de ficar perto de mim? — Melina perguntou, brejeira.

— O que você acha?

A grã-mestra a fitou demoradamente. Na penumbra, os olhos violetas eram ainda mais impressionantes.

— Acho que cada centímetro do seu corpo sabe o que penso — encerrou o assunto com um piscar de olho ligeiro.

Alguns momentos se passaram até que uma fileira de soldados parou diante delas e, instantes depois, o próprio rei Dakar se juntou a eles. Melina apresentou-se e, apesar do deboche misturado ao desprezo que a face rígida exibia, o soberano a ouviu com atenção.

A Ordem não interferia em conflitos, mas costumava se oferecer para fazer a mediação em busca da paz. Embora sua intervenção não tivesse sido solicitada por Cardazin ou Zaidar, a grã-mestra acreditava que era o seu dever oferecer uma opção para o diálogo e, talvez, evitar que sangue fosse derramado.

— Você é quase tão ousada e ridiculamente insana quanto a Comandante Azuti. — Disse o rei. — Você e sua gente abominável e miserável, não tem voz aqui. A Ordem não significa nada para mim, exceto, algo que desejo expurgar deste mundo. E quando Cardasin estiver sob o meu comando, vocês jamais voltarão a pisar aqui sem ter a morte como punição.

Ele fez uma pausa, apenas para causar mais efeito ao declarar:

— Pensando bem, talvez eu deva começar fazendo isso agora mesmo.

— São palavras mordazes para um homem que está tão próximo da morte — Voltruf deu um passo à frente. — Erga uma mão para ela e essa guerra não terá chance de começar, pois farei você em pedaços.

— Parece que a Ordem é mais violenta do que disseram — o rei troçou.

— Para o seu azar, homenzinho, eu não sou da Ordem.

Melina colocou a mão sobre o ombro dela.

— Na ausência de um guardião da Ordem, a castir Voltruf do Reino de Flyn fez a gentileza de me acompanhar esta noite, Rei Dakar. Lamento por sua agressividade, contudo, se for sua intenção nos ferir, não posso impedi-la de nos defender.

A menção ao reino além-mar fez o homem estreitar o olhar, avaliando a mulher alta e esguia, cujos olhos violetas pareciam quase animalescos sob a luz das tochas.

— Sinto se o ofendi ao tentar encontrar um meio para o diálogo entre os dois reinos e evitar uma guerra. Estou apenas cumprindo o juramento que fiz quando entrei para a Ordem. Levar a paz por onde passe, ou, pelo menos, tentar. Se o seu desejo é prosseguir, lamento pelas vidas que irão se perder. Mas, assim como fiz em incontáveis conflitos, estarei no campo de batalha oferecendo cuidados curativos aos feridos cardasinos e zaidarnianos.

Ela deu um passo para o lado, fazendo um gesto para que eles continuassem seu caminho. O rei fez uma careta.

— Já disse que não precisamos da ajuda da sua laia — ele começou a andar. — Garanto que não sobrarão cardasinos para curar. É melhor desistir dessa ideia, flechas se perdem o tempo todo no campo de batalha.

A ameaça soou como uma promessa e Melina vislumbrou as garras de tigre de Voltruf, se projetando. No entanto, ela não fez menção de atacar.

— Esse homem merece o que está para acontecer — disse Voltruf enquanto a seguia Melina de volta às sombras da floresta. Alguns passos depois, completou ao ver a expressão sombria da amante: — Se Lenór não o matar, farei o serviço com prazer. E não me olhe assim, você já sabia que as coisas seriam dessa forma.

— Eu tinha de tentar, e sim, sabia que a possibilidade da minha proposta ser aceita era muito remota. Mas como disse ao rei, fiz um juramento e não ficaria feliz comigo mesma se, de repente, resolvesse me abster de cumprí-lo porque tenho uma predileção por Cardasin ou não sou benquista deste lado do oceano. A verdade, Volt, é que não existem lados certos na guerra e, no fim, não são os governantes, mas o povo quem acaba sofrendo com elas. É pelas pessoas que não têm voz nesses conflitos, que a Ordem age.

Ela voltou ao caminho, planejando refazer seus próprios passos até o Castelo do Abismo, mas Voltruf a segurou pelo braço e disse:

— Sinto cheiro de coisas ruins. 

***

Estavam indo em direção a uma armadilha. Todos sabiam. Mas, o rei Dakar não se importava com isso. Na verdade, quando a fúria pela afronta que sofreu diminuiu, ele caiu na risada e decidiu que aceitaria o desafio da comandante cardasina, apesar dos seus conselheiros se manifestarem pelo contrário.

— Não há mais razões para esperar — dissera ele, contrariando o que falou naquela manhã, antes da visita de Lenór, quando se mostrou disposto a esperar um pouco mais para o confronto direto. — Estamos sendo aguardados. Isso não vai mudar, sendo a luta hoje, amanhã ou daqui um mês. Pois que seja hoje, enquanto nossos homens ainda estão em boa forma e ansiosos pelo combate.

Ele acreditava na superioridade do seu exército. Tanto os números, quanto às habilidades. E não importava o que os cardasinos estivessem planejando para detê-lo, estava confiante na vitória. Assim, não houve argumento capaz de fazê-lo mudar de ideia.

O general Handor passou a mão no rosto, tentando enxergar o caminho à frente. A noite na floresta era quase tão assustadora quanto o dia. Não que ele fosse crédulo como grande parte dos seus soldados, tampouco ignorante. Embora tivesse ajudado a espalhar as mentirosas histórias demoníacas sobre o lugar, ele sempre sentiu que havia algo sombrio e realmente maléfico entre aquelas árvores. Principalmente, quando se aproximavam do abismo.

Ele olhou para o rei, que planejava estar diante do Castelo do Abismo ao amanhecer. O encontro com a grã-mestra da Ordem fez sua vontade de sobrepujar os cardasinos tornar-se mais forte. Lorde Vans trouxe o cavalo para mais perto do seu.

— Eu também não gosto disso — falou o nobre, reconhecendo no semblante carregado do velho guerreiro o que se passava em sua mente. As palavras soaram alto o suficiente para serem ouvidas, apenas, por Handor.

O general devolveu um resmungo ininteligível e qualquer coisa que o lorde estivesse preparando como resposta ficou no esquecimento quando uma névoa estranha começou a envolvê-los.

As tochas se tornaram ineficazes e a marcha dos soldados parou. Ao longe, um som animalesco rasgou o ar trazendo o medo consigo. Após alguns instantes de avaliação, em que cada homem se dedicou a imaginar que tipo de criatura fizera tal som, o rei vociferou:

— Continuem andando!

O característico craque de madeira se partindo foi ouvido e, instantes depois, uma grande árvore iniciou sua queda e atingiu o chão com um forte estrondo, tirando a vida de uma dezena de soldados. Na tentativa de escaparem de uma morte esmagadora, os homens se dividiram e alguns, literalmente, afundaram no chão lamacento.

Os gritos de socorro começaram a se elevar de todas as direções, junto com rugidos ferozes e o som das espadas deixando as bainhas e se chocando com algo também metálico.

A névoa diminuiu e uma criatura peluda, de garras longas e dentes afiados, surgiu no campo de visão do rei. Dakar apontou para ela e Lorde Vans incubiu dois dos cavaleiros que o protegiam de a matarem. Os soldados incitaram os cavalos e poucos metros depois suas cabeças foram separadas dos corpos por algo invisível. Os corpos tombaram no chão, a criatura fez um barulho estranho e voltou a sumir entre as árvores.

— Que inferno era aquilo? — Handor rosnou.

A névoa sumiu completamente, e notícias das fileiras mais afastadas começaram a chegar. Criaturas estranhas surgiram do nada, atacaram e mataram vários homens, então desapareceram. Um dos generais investigou uma das árvores caídas e encontrou marcas profundas de garras, assim como nos homens mortos.

— Deuses… — Vans sussurrou, olhando para as vísceras de um soldado caído.

— Este lugar está amaldiçoado! — um soldado murmurou, apavorado.

O medo dele se refletia nos outros homens em volta.

— Foi ela! — disse alguém. — A comandante demônio!

— Ela está nos punindo por invadir suas terras!

Os sussurros se espalharam pelas fileiras, tão rápido quanto o vento. Furioso, o rei berrou:

— Não existem demônios! Seja lá o que acabou de acontecer, é um maldito truque! Voltem à marcha!

Handor concordava, mas já era tarde, o medo já tinha sido plantado nos homens e tornou a crescer quando novos rugidos foram ouvidos, anunciando que sua noite infernal estava apenas começando.

***

— Está mesmo disposta a pôr fim na nossa contenda esta noite — Yahira falou.

Ao saírem da floresta, percebeu que estavam à beira do abismo. O vento forte e frio açoitou seu rosto, junto com algumas gotas da chuva que ficou acumulada na folhagem das árvores. As nuvens ainda escondiam as estrelas e a lua, cujo brilho se infiltrava através delas, apenas o suficiente para indicar sua presença.

Havia um círculo traçado no chão, delimitado por pequenos postes que ostentavam tochas, onde o fogo resistia bravamente ao vento.

Daquele ponto era possível vislumbrar as chamas da pira no alto do Castelo do Abismo com perfeição. Ao contrário da costumeira cor alaranjada, elas tinham um tom esverdeado e alcançavam vários metros de altura, liberando uma fumaça da mesma cor. Esta, por sua vez, subia aos céus vistosa e brilhante ao ponto de ser percebida a vários quilômetros de distância, agora que a chuva havia passado e o céu se revelou límpido e atapetado de estrelas.

Yahira passou a mão pelos cabelos curtos. Enquanto seguia os passos de Aisen pela floresta, foi inevitável não se deixar arrastar para as lembranças da vida que compartilharam em Aman. Pareceu-lhe que séculos haviam se passado, em vez de apenas uma década.

Ela entrou no círculo e Aisen falou:

— Vamos fazer do jeito antigo.

— Eu não sou mais uma daijin — Yahira fez questão de lembrar.

— É o que você diz, mas ainda usa Kladis.

Yahira passou a mão na corrente que lhe envolvia o tronco, tão fina que mais parecia um detalhe da couraça. O gesto fez Kladis se mover suavemente, enquanto a sua gêmea — Adrakis —  refletia o movimento no braço de Aisen.

— É uma boa arma — admitiu.

— Arma que Amani lhe presenteou e que, por ainda estar com você, indica que continua sendo uma guerreira das terras de Aman, apesar dos crimes que cometeu.

— Não vamos retornar a essa conversa. Você vai me acusar, eu vou acusar você e Amani, então perderemos a calma e, no fim, sairemos no tapa de uma maneira muito distante da tradicional que está desejando. Eu fiz uma escolha, você a sua. Independente de quem está ou não com a razão, viemos aqui para lutar e não discutir.

— É justo. — Aisen inspirou fundo.

Ela retirou a espada da cintura e atirou para fora do círculo. Fez o mesmo com a couraça e braceletes, ficando apenas com a corrente e roupas do corpo. À contragosto, Yahira a imitou. Mas quando chegou a hora de jogar o punhal, a resistência em seu semblante foi perceptível.

— Jogue-o, se quiser pôr fim a essa contenda de um modo honroso.

Yahira apertou o punhal com força. Ela nunca se afastou dele mais que um metro e a ideia de não ter o seu auxílio no combate era inquietante. Além disso, a própria arma estava enviando uma estranha vibração, como se estivesse se negando a ser privada de um papel naquela luta.

E havia algo mais.

Ela não tinha certeza do que era, mas aquela sensação esteve presente em todas as vezes que encontrou Aisen. Era como se o punhal desejasse machucá-la de novo. E estranhamente, enquanto caminhava até a linha que limitava o círculo, Yahira sentiu a arma vibrar, o poder escapando dela em ondas de ódio invisível. Olhou para Aisen, quando Kladis — a corrente — se agitou em seu corpo.

A ex-companheira tinha se curvado e apoiado as mãos nos joelhos. Ela cuspiu uma boa quantidade de sangue, e quando Yahira sentiu o punhal novamente expandir seu poder, percebeu que Aisen curvou-se mais e acabou se ajoelhando em meio a um ataque de tosse regado a sangue. 

Seu primeiro impulso foi o de correr para ela, mas assim que deu o primeiro passo, o punhal brilhou e a própria Yahira começou a se sentir mal.

— O que está acontecendo? — ela sussurrou para si, a mente nublando momentaneamente. E teve a impressão de ouvir vozes vindas do punhal, sussurrando coisas ininteligíveis, porém, carregadas de ódio. Recuou um passo, depois outro, e deixou o círculo. E a cada movimento, a resistência da arma se tornava mais forte. Por fim, a soltou.

Aisen jogou-se no chão, o rosto virado para as estrelas, a respiração ofegante e um fio de sangue escorrendo pelo queixo. Yahira, por sua vez, fitou o punhal no chão e depois a própria mão, onde havia uma queimadura profunda.

Nada parecido lhe aconteceu em todos os anos em que possuiu aquela arma.

Ela voltou a entrar no círculo e andou até Aisen, cuja respiração normalizou devagar. A daijin não se moveu, tampouco mostrou interesse em falar quando ela parou ao seu lado. As duas se olharam por um tempo curto, antes de Yahira notar que a mancha de sangue na túnica dela crescia devagar.

— Eu quero ferir você — disse. — Mas ele queria muito mais.

Olhou para o punhal e mostrou a palma da mão queimada. Aisen ficou de pé e se afastou. A corrente enrolou-se em sua mão e ela assumiu uma posição de combate.

— O que aquela coisa maldita quer, não me interessa. Só vamos acabar logo com isso — falou.



Notas:



O que achou deste história?

5 Respostas para 39.

  1. E lá vai esse povo embarcar em mais uma guerra!
    Bom ter Mardus de volta.
    Tava com saudades, obrigada pelo capítulo.

  2. Uau, q loucura, é uma saga sem fim.

    Só posso dizer q amo a cada cap q nos apresenta, tua imaginação
    é sem fim. Continua com essa magia pra nos levar ao desenrolar desta
    história maravilhosa.

    Bjs, NLopes

  3. meu deuses… que surpresa maravilhosa.. amei o capítulo, como sempre… aí, tomara que Aisen e Yahira se perdoem e acertem logo. Elas não podem morrer… bjs Tah. volte logo

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