Lenór olhou para o seu reflexo no espelho, desconfortável. Arqueou uma sobrancelha, sentindo-se uma completa estranha, embora tivesse a mesma tez morena, cicatrizes na pele e expressão séria.

— Ficou muito bonito. Obrigada. — Ela ofereceu um sorriso para a mulher que a ajudou a se vestir.

Satisfeita, a serva inclinou a cabeça rapidamente.

— Que os deuses abençoem a sua união. — Disse ela, baixinho.

A comandante a observava através do espelho e não ocultou suas impressões quando respondeu:

— Ouço suas palavras, mas não percebo sinceridade nelas.

A mulher empalideceu e começou a gaguejar uma desculpa, porém Lenór a interrompeu:

— Não estou ofendida. — Balançou os ombros. — Apenas prefiro que as pessoas digam o que realmente pensam. Então, vá em frente e fale. Não haverá consequências, se é isso o que teme.

Ela se voltou para olhar a serva diretamente e, por alguns instantes, assistiu o desconcerto dela dar lugar a várias e diferentes expressões em sua face. Percebeu um pouco de medo, uma pitada de aversão e, por fim, a dúvida.

— Realmente, sinto muito, Senhora. — Disse a mulher, fitando o chão. — Não quis agastá-la. Tomarei mais cuidado com as minhas palavras no futuro.

Um suspiro longo escapou de Lenór. Afinal, aquela reação já era esperada. Com efeito, as mulheres da nobreza eram privadas de muitas liberdades, todavia era pior para as mulheres do povo. O silêncio era segurança, assim como a obediência. E para uma serva, ele significava sobrevivência.

— É uma pena. — Lenór comentou. — Teria apreciado uma conversa sincera.

A mulher inclinou a cabeça devagar. Pegou a capa curta sobre a cadeira próxima, última peça da vestimenta, e colocou sobre os ombros dela. Ajustou a presilha junto ao pescoço e Lenór voltou a se olhar no espelho, ainda mais incomodada com o que via.

O verdadeiro problema não era a roupa, tampouco a cerimônia da qual estava prestes a participar. Por mais que o tempo passasse, que as expressões faciais mudassem e as marcas em sua pele aumentassem, o espelho sempre lhe mostrava a menina que fugiu de Cardasin. E a Lenór mulher não gostava da menina que um dia foi, porque ela a lembrava de como era ter medo e se achar impotente.

Após a saída da serva, ela aproveitou o momento de solidão para meditar sobre as voltas que a vida dava. Passou tanto tempo odiando Cardasin e, agora, retornava para ela com intuito de salvá-la de si mesma.

Ironia. Sua vida estava cheia dela.

Encontrou Lorde Arino a esperá-la no corredor. Ao lado dele havia um rapazinho de cabeça raspada e tintura no rosto, usando uma túnica sem qualquer atrativo, exceto por ser de um vermelho vivo.

A presença deles era esperada. Contudo, Lenór chegou mesmo a acreditar que aquele ritual não seria realizado, visto que era uma mulher. Suspirou, segurando a vontade de revirar os olhos de uma forma quase infantil.

— Cardasin e suas tradições. — Falou, estendendo a mão para o lorde.

— Também não me agrada, mas disso você já sabe. — Resmungou Arino.

O sacerdote que acompanhava o lorde trazia um punhal em uma mão e um castiçal na outra. Ele segurou a vela embaixo da mão de Lenór e entregou o punhal para Lorde Arino que, sem cerimônia, fez um corte pequeno, mas profundo na mão dela. Gotas de sangue caíram sobre a chama da vela, que não se apagou. Em vez disso, liberou uma luminosidade quase dourada.

Arino pareceu decepcionado com o fato, todavia manteve o silêncio enquanto o jovem sacerdote murmurava uma prece.

Segundo a tradição, o pai da noiva devia derramar o sangue do seu futuro “genro” três vezes sobre o fogo. Se, em algum momento, a chama se apagasse, era sinal de que os deuses não haviam abençoado a união e o sacerdote poderia se recusar a realizar a cerimônia. Não era incomum que acontecesse e estava claro que Lorde Arino torcia por isso.

O lorde caminhou à frente de Lenór que, como prometida da sua filha, só teria direito de andar ao seu lado quando derramasse seu sangue pela terceira vez. Arino a guiou pelos corredores desertos, pois todos os guardas estavam de prontidão no salão do trono, graças a multidão que se aglomerava lá dentro para assistir a cerimônia.

Pararam na metade do caminho, exatamente diante da estátua da divindade que representava o matrimônio. Lenór lançou um olhar irônico para a escultura e, novamente, Lorde Arino a cortou.

A vela não se apagou e o sacerdote entoou nova prece.

— Me pergunto como a minha noiva está se saindo. — Lenór comentou.

Eles adentraram no último corredor. Ao fim dele, estavam às portas do salão. Os dois soldados que as vigiavam trocaram um ligeiro inclinar de cabeça ao vê-los. Diante das portas, andando de um lado a outro como se fosse um animal enjaulado, estava Kanor Azuti.

— Lorde Kanor recusou-se. — Explicou Arino, olhando para a vela que o sacerdote carregava com um esgar e depois para o homem em questão, ainda muito distante deles para captar a conversa. — Ele disse que você não é sua filha, que não é uma Azuti, portanto, não faria o ritual com Vanieli.

Torceu o nariz, olhando-a por sobre o ombro.

— O rei, é claro, já esperava por isso. Como Mirord adotou você como filha e, como o nosso soberano é o executor do testamento dele, tomou para si a tarefa de realizar o ritual como se fosse seu parente.

Ele capturou um ligeiro tremor nos lábios dela, porém foi tão rápido que não soube dizer se era mesmo um sorriso ou uma careta.

— Eu faria o mesmo no lugar de Kanor. — Arino sentiu a necessidade de dizer. — Você renegou Cardasin, seu clã, sua família e nome para servir a uma deusa que ninguém, além das daijins, venera.

Ele parou para fitá-la nos olhos diretamente e não gostou muito do que viu refletido nas íris negras.

— É provável que eu fizesse algo pior do que rejeitar um ritual.

Menos de uma dezena de metros os separava da porta e Lorde Kanor havia parado de andar para observá-los. Mesmo tendo rejeitado o ritual e dito que Lenór não era sua filha, ela ainda representaria o Clã Azuti naquela união e, assim, era seu dever como líder do clã adentrar no salão do trono à frente dela, enquanto Arino faria o mesmo com Vanieli.

Com uma ruguinha soberba no canto da boca, Lenór ofereceu a mão para Arino, mais uma vez. Ele tomou o punhal das mãos do sacerdote e a sangrou. O sangue formou uma pequena poça no chão, quando escorreu pela vela de forma mais intensa que as anteriores. No entanto, ela não se mostrou incomodada.

Lorde Arino sustentou seu olhar, ouvindo a prece do jovem sacerdote se tornar mais longa e os passos de Lorde Kanor, que caminhava em direção a eles como se carregasse um defunto sobre os ombros. Enquanto isso, o vento varreu o corredor, fazendo a capa curta sobre os ombros de Lenór esvoaçar, revelando que usava uma túnica sem mangas que deixava à mostra as tatuagens em seus braços.

Arino fitou os desenhos na pele dela, engolindo em seco. Ele afastou-se, encarando uma surpresa semelhante à sua na face de Lorde Kanor.

— Uma mulher não precisa servir a deusa Amani para aprender a usar uma espada e se tornar alguém de valor. — Lenór declarou para o futuro sogro, depois encarou Lorde Kanor. — Eu fui bem mais longe que as Terras de Aman. Coloquei um oceano entre nós, mas nunca rejeitei meu clã e nome. A única coisa que reneguei, de verdade, foi o homem que nunca agiu como meu pai.

 

***

 

Foi uma cerimônia simples e mais rápida do que o esperado, assim Vanieli achou.

Durante todo o tempo em que a mão de Lenór esteve entrelaçada a sua, ela só conseguia pensar dois anos à frente; no dia em que voltariam a estar diante do rei e outro sacerdote para dissolver aquela união.

Ainda que esse fosse o seu foco, não deixou de notar o incômodo que tomava os rostos em volta. A atmosfera que as cercava era claramente hostil e somente o rei conseguia se mostrar feliz. Entretanto, enquanto faziam o ritual de sangue, ele lhe confessou que ainda se preocupava com os clãs e que realizarem o casamento não significava que estavam salvas de retaliações.

A conversa que presenciou na tarde anterior era prova suficiente disso.

O casamento levou muitas pessoas ao palácio. O Rei Mardus queria um grande espetáculo e mandou que os portões fossem abertos ao povo e este veio em peso. Após a cerimônia, ele não se poupou de um discurso longo, no qual enfatizou a paz através da união dos Clãs Azuti e Kamarie.

Contudo, ele foi além disso.

Mardus falou sobre a amizade com o Comandante Mirord e o respeito e confiança que dedicava à irmã dele, Lenór, que tinha herdado seus títulos, posses e deveres. E que, embora ela fosse mulher, era uma grande guerreira e não faria feio frente aos homens que o irmão comandou. Sendo assim, estava lhe confiando uma missão importante ao torná-la e à sua esposa Vanieli, Senhoras do Castelo do Abismo.

Com efeito, essa parte do discurso caiu mal para muita gente, principalmente, ministros, conselheiros e líderes dos clãs. O rei bem sabia que, mais uma vez, se colocava em risco de morte, todavia não desistiria de seus planos.

— Você nos enganou, Majestade. — Lorde Kanor acusou. — Vocês dois. Ela não pertence às Terras de Aman. Daijins não têm tatuagens, exceto a marca da Deusa Amani.

O rei estava de pé, ao lado do trono, cercado por alguns lordes e ministros. Observava Lenór e Vanieli sem esconder um sorrisinho de satisfação. Elas estavam sentadas em um banco longo e almofadado, disposto em uma das laterais do salão. As pessoas iam até elas com votos de felicidade e um casamento próspero, levando consigo uma flor de pétalas brancas e longas, a qual depositavam aos seus pés. Antes que as noivas se retirassem do salão, as flores seriam queimadas. As cinzas seriam postas na saída do salão e todo aquele que desejasse um pouco de boa sorte, levaria um pouco delas consigo. Um simples passar de dedos no recipiente bastava.

 

 

 

— Recomendo que tome mais cuidado com as palavras, Lorde Kanor. Eu ainda sou o seu rei. — Mardus aconselhou, fitando os homens à sua volta e percebendo que aquele confronto havia sido planejado. — Eu nunca disse que ela era uma daijin. Mirord fez isso, anos atrás. Só repeti a mentira que ele contou.

Os músculos do rosto de Lorde Kanor tremeram, e o rei notou o esforço que o homem fazia para não deixar seu ódio vir à tona. Mardus o mirou, inflexível.

O soberano podia contar nos dedos de uma só mão, o número de pessoas de quem realmente sentiu raiva ou desgostava. Entretanto, seus sentimentos em relação a Lorde Kanor iam além de um simples rancor.

Mardus o odiava.

Sempre que olhava para ele, recordava os pesadelos e gritos de Lenór, que tantas vezes o despertaram no meio da noite. Pensava na tristeza sempre presente no olhar dela e na dor que sentia todos os dias a cada passo que dava, graças a perna que o lorde lhe quebrara em um ataque de fúria.

O então Príncipe Mardus, quis muito cruzar o oceano apenas para vingar-se em nome da amiga. No entanto, quando isso realmente aconteceu, ele se tornou rei. E um soberano devia sempre colocar o seu povo à frente dos seus desejos. Kanor era o líder de um clã, uma peça importante para o reino. Não podia machucá-lo como desejava, mas se satisfazia um pouco ao provocá-lo e humilhá-lo sempre que podia, para que o lorde nunca esquecesse que o seu poder tinha limites.

— Em vez de me acusar levianamente, você deveria estar orgulhoso, Lorde Kanor. Digo o mesmo para você, Lorde Arino. Que meu bom amigo Mirord me perdoe, mas Vanieli não poderia se casar com alguém melhor.  — Sorriu de lado. — Lenór é ainda melhor que uma daijin, afinal ela já foi uma honrada oficial da Casa Real de Barafor. Até serviu ao Príncipe Agnir como sua guarda pessoal.

A revelação atraiu os olhares dos homens para a mulher em questão. Lorde Arino engoliu em seco recordando as tatuagens que vira nos braços dela e ouviu Lorde Aidar começar a formular a pergunta que já tinha ganho forma na sua mente:

— Meu rei, o senhor quer dizer que…

— Sim! Lenór é uma Palatin. — Mardus o interrompeu com um sorriso brejeiro.

 Ele assistiu, com prazer, a surpresa e o mal-estar ganhar forma nas feições dos lordes e ministros que o cercavam. Estava certo que, depois daquela revelação, alguns deles pensariam muito bem antes de atentarem contra a vida de Lenór e Vanieli.

Mardus não era bobo. Ele sabia bem que, apesar da aquiescência do Conselho dos Lordes, alguns deles tramavam contra aquela união e seus planos. Acreditavam que atingir as duas mulheres era mais fácil que derrubar o rei.

Na opinião dele, era justamente o contrário. Seria muito mais fácil atingí-lo de forma efetiva, do que ao novo casal do reino.

Sorriu mais abertamente.

— Mas esta conversa não cabe aqui, onde não faltam ouvidos curiosos para línguas ávidas de uma boa fofoca. Além disso, estamos em um casamento! Vamos comemorar! — Declarou.

 

***

 

Vanieli mal se recordava de quantas pessoas cumprimentou, nem quantas vezes teve de fingir-se de desentendida, ante comentários venenosos. Como Lenór dissera, os clãs respeitariam o laço que os unia e, eventualmente, concentrariam o seu ódio nelas.

E para isso acontecer, não demorou muito.

Seus parentes se lamuriavam de que ela tivesse de se ligar a um Azuti, mulher e sobretudo uma daijin. Enxergavam aquela união como algum tipo de cerimônia fúnebre e não faltou quem se mostrasse apto a cair no choro ou iniciar uma contenda a partir de provocações veladas, que as noivas fingiram não perceber.

Por parte do Clã Azuti, a situação era ainda mais estranha e tensa. Eles não falavam com Lenór, sequer a olhavam, mesmo indo até elas com flores em mãos, como demandava a tradição.

Por sua vez, Lenór limitou-se a distribuir olhares gélidos e quase nenhuma palavra. A passividade dela chegou a irritar Vanieli. Ninguém podia ser tão frio assim, pensava. Contudo, mesmo em seu imperturbável silêncio, Lenór lhe ensinou que não podia se deixar irritar por todos. Afinal, ela mesma se colocou naquela posição e afirmou que a suportaria sem hesitar.

Porém, suportar e aceitar eram coisas bem diferentes.

A noite já ia bastante adiantada quando Vanieli dirigiu um sorriso desconcertado para a serva que a acompanhava, antes de ser introduzida no aposento preparado para sua noite de núpcias.

Quando a porta se fechou às suas costas, ela encarou a cama como se fosse um tipo de animal peçonhento e lamentou a sobriedade. Talvez, se estivesse bêbada, fosse mais fácil se entregar a outra mulher.

Curiosamente, só pensou no que aconteceria naquela noite quando se viu diante da cama. Até então, manteve-se apegada ao que o futuro lhe reservava dali dois anos.

— Acho que não consigo fazer isso… — ela murmurou, passando a mão na testa antes de se dar conta da presença de Lenór no aposento.

A Azuti estava recostada em um canto de parede, tão imóvel que parecia uma estátua. Tinha os olhos fechados e um cálice de vinho na mão. Os olhos se abriram devagar e fixaram o rosto corado de Vanieli, que se empertigou, repreendendo-se por ter se expressado em voz alta.

Uma ruguinha irônica surgiu no canto da boca de Lenór, mas não chegou a se tornar um sorriso. Ela girou a taça entre os dedos delgados e focalizou o líquido nela, antes de tomar um gole longo.

— Estava mesmo me perguntando quando a sua determinação iria fraquejar. — Disse ela. — Demorou menos do que imaginei.

O rubor de Vanieli aumentou. Por um momento, ela acreditou que Lenór não tivesse captado a frase, já que aos seus ouvidos as palavras não foram mais que um sussurro. Tentou fazer um gesto de desculpas, mas a outra prosseguiu sem lhe dar espaço para falar:

— Esta união tem um objetivo e certamente não é o de nos forçarmos a fazer algo que não desejamos. Creio que isso está claro desde o começo.

Tomou mais um gole de vinho, antes de abandonar a parede e caminhar até o centro do cômodo, onde a esposa se encontrava. Passou os olhos pela camisola longa e convidativa que a moça usava.

— É assim que vai funcionar entre nós. — Tornou a falar, achando graça, intimamente, da vergonha de Vanieli. — Neste reino, tradições são encaradas com severidade e já estamos quebrando muitas delas… Não devemos dar motivos para que desconfiem da nossa união. Contudo, não precisamos ter relações para isso. O que acontecer entre essas quatro paredes só diz respeito a nós.

Vanieli não conseguiu esconder uma expressão de alívio pelo o que ouvia e Lenór prosseguiu, fingindo que não o tinha percebido:

— Só devemos partir para o Castelo do Abismo daqui um mês. Enquanto vivermos aqui, na capital, podemos ter aposentos separados, mas é necessário que passemos pelo menos duas noites juntas por semana, a fim de que não surjam boatos. Isso lhe parece adequado?

— Sim, parece. — Vanieli sentou na beirada da cama.

— É provável que eu tenha de fazer uma pequena viagem, antes da nossa partida para o Castelo. Devo ficar longe por dois ou três dias. — Informou a comandante. — Você está familiarizada com as tradições bem mais que eu, então sabe que é esperado que passemos a noite do meu regresso juntas.

— Assim será. — Garantiu Vanieli, cada vez mais tranquila com o rumo que as coisas tomavam.

A ideia de ser obrigada a deitar-se com alguém por quem não sentia atração havia mexido com seus nervos. Eventualmente, teria de fazê-lo com Mirord, mas ajudava saber o que esperar de um homem. Com uma mulher, não tinha a mínima ideia de como se comportar ou o que fazer.

— Não me importo que tenha amantes, — Lenór declarou — assim como espero que você faça o mesmo em relação a mim. Só peço que seja discreta, como pretendo ser se, porventura, encontrar alguém que me interesse.

— É justo. — A Kamarie concordou, cada vez mais satisfeita com os termos dela.

— Por favor, deixe-me saber sobre suas tradições. Não quero correr o risco de desrespeitá-la, tanto na intimidade quanto em público.

— Irei informá-la com o passar do tempo. — Prometeu Vanieli, regozijada por perceber que Lenór era uma mulher ponderada.

— Ótimo! Então, acho que é isso. Acabamos de “consumar” nosso casamento.

A Azuti abriu os braços ligeiramente, então emborcou o resto do vinho goela abaixo. Depositou o cálice em uma mesa próxima, que ostentava uma pequena, mas farta refeição, e disse:

— Que tal dormir um pouco? Não sei você, mas estou muito cansada e, verdade seja dita, esse vinho é uma porcaria e eu prevejo uma ressaca amanhã.

Vanieli achou a forma dela se expressar bastante jovial. Afinal, Lenór não era tão fria como se mostrava. Ajeitou-se ao seu lado na cama, deixando escapar um suspiro de aprazimento.

Ainda era possível ouvir o som da música do baile no salão de festas, um andar abaixo de onde estavam. O rei fez questão de que passassem a primeira noite de casadas no palácio e mandou que preparassem aquele aposento especialmente para isso. No dia seguinte, elas se mudariam para a sua residência oficial na capital, a mesma casa que pertenceu a Mirord e Lenór herdou.

Vanieli olhou para as paredes suntuosas, deixando um sorriso discreto vir aos lábios. Então, juntou o lençol entre os dedos, dizendo:

— Lamento que tenha ouvido aquilo. Não é que você… É que eu… — enrolou-se com as palavras e acabou ficando em silêncio.

— Eu não sou o seu tipo. Não se preocupe com isso, já entendi.

— É… Bem, a realidade do que teríamos de fazer nesta noite só me chegou quando me vi diante desta cama. Por isso, aquela reação.

Sorriu, nervosa, e continuou tentando se explicar:

— Olha, eu nunca me imaginei numa situação dessas. Como disse ao rei, sabia desse tipo de relação, mas nunca conheci um casal formado por duas mulheres ou dois homens. Não faço a menor ideia de como deveria me comportar na cama com uma mulher. Eu faria, pelo menos, tentaria, se você insistisse. É um casamento, afinal, estaria no seu direito… Porém, sendo ainda mais sincera, nunca senti atração por mulheres.

Ela mal conseguiu pronunciar a última palavra, pois estava verdadeiramente envergonhada por Lenór ter ouvido o que disse ao entrar no quarto. Todavia era a verdade. Notou outra ruguinha soberba se formando no canto da boca de Lenór, enquanto ela dizia:

— Ainda que essa situação, inicialmente, nos tenha sido imposta, nós aceitamos participar dela, mas eu jamais insistiria para que você fizesse algo que não deseja e espero que tenha a mesma consideração comigo. Para ser franca, desejo que nossos planos funcionem como o esperado e que você saiba aproveitar a liberdade que irá receber. — Virou-se para o lado oposto, afundando a cabeça no travesseiro. — Você disse que quer sair de Cardasin; independente de para onde deseja ir, se puder, siga meu conselho. Conheça o mundo inteiro antes de fixar raízes. Aproveite toda e qualquer oportunidade de viver uma nova experiência, mesmo que a ideia jamais tenha lhe passado pela cabeça.

— Por quê? — Vanieli perguntou.

— Porque, se um dia nos reencontrarmos, eu gostaria de saber se você ainda pensa e sente da mesma forma. — Ela ajeitou-se melhor entre os lençóis.

— Creio que isso não irá mudar. — Declarou Vanieli com o cenho franzido.

— E eu acredito que você ainda é muito inocente. — Lenór virou-se para olhá-la, outra vez. — Como pode, de fato, afirmar que algo não lhe agrada, se nunca experimentou? Alguma vez se sentiu atraída pelo olhar de alguém? Ou, talvez, se encantou com um sorriso? Ou ainda, apaixonou-se pelas palavras, coragem e dedicação de alguém? Alguma vez, você enxergou mais que corpo, aparência e gênero? Existem muitas formas de querer e, também, de se entregar a alguém. Não deixe que a visão estrita das pessoas deste reino molde suas experiências.

O vinco na testa de Vanieli tornou-se mais intenso. Ela ponderou sobre aquilo por alguns instantes. Eram questões bastante interessantes e, para todas elas, a resposta era a mesma: não! Em vez de contar isso para a esposa, que a olhava com apuro, outras palavras lhe escaparam:

— Isso quer dizer que você gostaria de ter relações comigo?

A pergunta foi provocativa e brincalhona e não esperava por uma resposta, entretanto, Lenór a deu com seriedade:

— Se este casamento fosse “real”, sim, eu gostaria de fazer amor com a minha esposa. Afinal, é uma mulher muito atraente. — Ela encolheu os ombros rapidamente e sorriu. — Posso ser uma farsante, não uma idiota.

Batidas apressadas na porta, impediram Vanieli de retrucar.

— Damna Vanieli! — Uma voz masculina se fez ouvir no corredor e a nova comandante da Guarda Real deslizou para fora da cama, antes que a esposa tivesse tempo de pensar no que fazer.

Darlan se precipitou para o interior do aposento, assim que Lenór escancarou a porta. Antes que Vanieli dissesse algo para expulsá-lo, falou:

— Perdão pela minha intromissão neste momento, Senhoras, mas preciso muito falar com vocês.

— Deuses, Darlan… — Vanieli começou, mas ele a interrompeu:

— Damna! — Ele usou o termo respeitoso para se referir a uma mulher nobre, deixando claro para Vanieli que não estava ali como um amante despeitado. — Necessito de um momento da sua atenção para um assunto delicado e urgente.

A porta foi fechada com um estrondo quando Lenór a soltou de chofre.

— Que seja rápido. — Ela disse, semicerrando os olhos em desagrado.

— Darlan, Senhora. — Ele se apresentou. — Sou…

— Eu sei quem você é, o vi em companhia de Lorde Arino. Vá direto ao ponto, Guarda. — Lenór ordenou, fazendo-o travar o maxilar.

— Testemunhas, Senhora. Alguém solicitou testemunhas para a sua noite de núpcias. Devem chegar aqui em alguns instantes. — Explicou ele, lançando um olhar significativo para Vanieli.

O silêncio tomou conta do ambiente por um momento longo e incômodo. Darlan balançou-se em dúvida do que fazer a seguir, mas logo endireitou a postura, fez uma reverência breve e começou a se dirigir para a porta, dizendo:

— Apenas achei que deveriam saber.

O guarda puxou o ferrolho da porta, mas antes de abrí-lo, Lenór pousou a mão na madeira.

— Não me interessa seus motivos para vir nos avisar, Guarda, embora faça uma boa ideia de quais são. — Ela mirou Vanieli, rapidamente. — Mas, já que o fez, peço a gentileza de não comentar sobre isso com mais ninguém.

O rapaz inclinou a cabeça em um gesto discreto e saiu. Lenór se voltou para Vanieli, ainda segurando a tranca da porta.

— Bom, alguém exigiu que a tradição fosse cumprida ao pé da letra e pela forma como o “seu” guarda apareceu, está bem claro que nós temos um problema. Minha adorável esposa não é virgem.

— Você disse, há pouco, que não se importa que eu tenha amantes, então não deve se afetar com esse tipo de coisa. — Vanieli pontuou, de queixo erguido.

— Não dou a mínima. — A comandante admitiu. — Acaso acha que sou casta?

— Deuses! — Vanieli passou a mão na cabeça. — Não pedem testemunhas para um casamento há décadas. Por que justo agora?! Acaso esperam que uma de nós engravide magicamente e temem que a criança seja bastarda?! Isso é ridículo!

Casamentos entre a nobreza andavam sob um manto de tradições incômodas e rigorosas, entre elas, aquela em que quatro testemunhas deveriam “assistir” à primeira noite dos nubentes, a fim de atestar a virgindade da noiva. No caso delas, isso seria feito através de um humilhante exame.

Em algum momento da história do reino, os nobres começaram a se incomodar com isso e pressionaram os regentes para mudarem as leis para que os testemunhos só fossem realizados se solicitados pelos nubentes, suas famílias ou qualquer nobre que acreditasse estar prestando um serviço ao noivo.

A resposta à pergunta de Vanieli era muito clara, todavia Lenór falou mesmo assim:

— Foi a forma que encontraram de se opor ao rei e de nos humilhar, também. Lembre-se do que ouviu Lorde Aulos dizer ontem. Nós não teremos sossego a partir daqui.

Ela se recostou na porta com os braços cruzados.

— É uma jogada perigosa, inteligente e, também, estúpida. É quase como pintar um alvo em suas costas para o rei poder mirar sua ira com mais precisão.

— Ele estava certo em desconfiar da aceitação deles tão rapidamente. — Vanieli afirmou, vendo seus sonhos, mais uma vez, se perderem.

Lenór dirigiu o olhar para a outra porta no local, que dava para um aposento anexo. Relaxada, caminhou até a mesa e encheu outro cálice de vinho para si. Fez o mesmo para Vanieli, que o recebeu com um suspiro de derrota, enquanto pensava na punição que receberiam.

Seriam publicamente humilhadas e rechaçadas por seus respectivos clãs. Banidas, na melhor das hipóteses. O casamento seria desfeito e os planos do rei destruídos, junto com a possibilidade de realizar seus próprios sonhos.

— Eles não se importam com a punição. — Lenór garantiu, como se estivesse lendo seus pensamentos. Ela sorveu a bebida com calma. — O golpe que o rei receberia é o que lhes interessa. Ele seria ridicularizado diante do povo e os clãs reforçariam a “necessidade” de manter essas tradições aviltantes, mostrando que nem mesmo as herdeiras de seus líderes estão livres de um castigo.

Fez uma pausa, puxando uma das cadeiras que ladeavam a mesa para sentar.

— Lorde Kanor é mesmo uma víbora ardilosa. — Ela disse com um sorriso sombrio.

Não era a primeira vez que Vanieli notava que Lenór demonstrava um olhar doentio durante uma menção ao pai. Em duas ocasiões em que estiveram juntas, ela deixou que o rei tomasse a palavra e quase não se manifestou. Todavia, sempre que o soberano se referia a Lorde Kanor, como pai dela, uma sutil, mas perceptível transformação ocorria em sua fisionomia.

Essa mudança foi ainda mais nítida durante o casamento, quando o sogro teve de acompanhá-las na entrada do salão e, também, durante a troca de bênçãos. Momento em que seus respectivos pais lhes presentearam com braceletes. Não lhe escapou a rigidez que tomou a postura de Lenór quando Lorde Kanor colocou o bracelete nela. Por alguns instantes, a mão entrelaçada a sua aumentou a pressão, que logo diminuiu quando o lorde se distanciou.

— Como pode estar tão certa de que foi ideia dele?

— Sei bem que você não é inocente como gosta de se mostrar, “esposa”. Certamente, percebeu a forma que Lorde Kanor age em minha presença. Ele não se importa com a vergonha de um testemunho, porque eu já sou uma vergonha para os Azuti. A ideia partiu dele, mas teve a conivência do seu pai, Lorde Arino.

A firmeza com a qual ela se expressava dava a certeza, para Vanieli, de que Lenór sabia o que iria acontecer muito antes de Darlan bater à porta do quarto.

— Discutir isso agora não irá nos ajudar com o problema que se apresenta. — Vanieli declarou. — Mas você se mostra tão tranquila, que só me resta presumir que já tem um meio de escapar desse testemunho.

A observou sorver um longo gole do vinho e depois fazer uma careta, olhando para o cálice.

— Deuses, o vinho de Cardasin ainda vai me fazer parar de beber! — Lenór reclamou, depositando o copo sobre a mesa, antes de se erguer e ir até Vanieli e tomar a mão dela entre as suas.

Retirou a fita que envolvia a mão da esposa, revelando um corte raso na palma, semelhante ao que tinha na sua própria mão. Lenór traçou a linha do corte com a ponta do dedo indicador. Foi tão suave que Vanieli quase não sentiu seu toque.

— Como nosso casamento tem o intuito de trazer paz aos nossos clãs, tivemos de assinar um contrato com sangue. — Lenór recordou. — Seu pai e Lorde Kanor fizeram o mesmo, um pouco antes de nós, se comprometendo a fazer dessa união um símbolo de amizade entre os Azuti e Kamarie.

Ela fitou Vanieli nos olhos, deixando que a moça percebesse a sagacidade dos seus.

— Eles só não tiveram o cuidado de ler todos os termos e, aparentemente, você também não se deu ao trabalho de fazê-lo.

Tornou a amarrar a fita e soltou a mão dela devagar, então foi para a cama e ajeitou-se entre os lençóis. Descansou a cabeça no travesseiro, dizendo:

— Deite-se e relaxe. Não haverá testemunhas esta noite. Ao assinarem aquele documento, eles abdicaram de solicitar a aplicação da Lei da Pureza, e nós também.

 


Oiê, Amores!

O capítulo de hoje teria mais de uma ilustração, mas desenhar toma tanto tempo quanto escrever, então só consegui terminar uma. Espero que tenham gostado dela e do capítulo, então já sabem:

Leu, gostou/não gostou, comentou ou clicou em uma das carinhas abaixo.

Nos encontramos na quarta-feira que vem!

Beijos!



Notas:



O que achou deste história?

10 Respostas para 4.

    • Hehe… Valeu!

      Amo desenhar tanto quanto escrever. Saber que gosta da arte tanto quanto do texto me deixar super feliz!

      Beijos!

  1. Tão linda a capa da história. E gosto muito das ilustrações tanto quanto história.

    Ah essa Lenor, já tô apaixonada pela personagem.

    • Hehe, obrigada, Flávia!
      Desenhar é outra paixão e realmente me divirto ilustrando os capítulos.
      Olha, pelo o que andei percebendo, você terá bastante concorrência pela Lenór. Hehe…

      Beijos!

  2. Tattah,

    Mas tá mto bom… a cada ataque o rei e minhas lindas,
    tem um contra ataque pronto. k k k só faltou Vanieli cha-
    mar Darlan de guardinha… k k k
    Lordes Arino e Kanor só estão se dando mal com um Rei
    inteligente que antevê os passos do inimigo, como dito o
    Rei Mardus pode não ser um homem de armas, mas consegue
    antever os passos dos Lordes com a antecedência necessária.
    E usa de artimanhas pra conseguir o q quer.
    Continuas arrasando…

    • Você tem toda razão, Nádia. O Mardus é um cara inteligente e se depender dele, esse casamento estará para lá de blindado. 😉

      Obrigada pelo comentário!

      Beijos!

  3. Que sofrimento! Eu quero é sempre mais! hahaha

    Adorando as ilustrações!

    Ranço desses lord’s malas, parecem até com os políticos de um país latino-americano que conhecemos! haha

    bjãooo

    • kkkkkkkkkkkkkkkkk… Parecem mesmo, né? Mas qualquer semelhança é mera coincidência. Juro, juradinho! 😉

      Beijos!

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