— Enquanto Vans estiver vivo, não importa se Cardasin tiver vencido a batalha — Yahira decretou.

— Por quê?

Ela afastou a gola da camisa, revelando uma marca na altura da clavícula. Parecia um hematoma, porém via-se claramente que tinha uma forma espiralada.

— É o símbolo do meu voto de lealdade. E eu não o dei de boa vontade.

Curiosa, Voltruf chegou mais perto.

— Os Sentinelas são uma piada. Uma tentativa do Rei Dakar de criar um exército mágico. Mas seu verdadeiro poder está em Vans. A família dele serve a coroa de Zaidar há gerações. Os segredos da sua magia são passados de pais para filhos. Vans não é como os pobres coitados do povo que eles sequestraram o obrigaram a lutar pelo rei. Se ele realmente quisesse, poderia se tornar o novo rei de Zaidar. Porém, sua lealdade à coroa é quase tão grande quanto o poder que possui.

Voltruf tocou a marca no ombro dela, que continuou a falar:

— Quando ele me encontrou, estava quase morta depois de confrontar Aisen e Amani. Ele logo percebeu que eu era uma daijin e me pediu lealdade em troca da minha vida. Obviamente, me neguei. Ele pediu de novo, a resposta continuou sendo não. Na terceira vez, Vans não pediu e me fez sentir coisas que nenhum ser humano imagina ser possível, então recitei os votos. — Deixou à vista um sorriso desdenhoso. — Ele não precisava e nem precisa de mim. Sou um mero disfarce para as atrocidades que comete em nome do rei. Enquanto ele estiver vivo, Dakar ainda pode conseguir o que quer.

Voltruf recuou, ao passo que Melina dizia:

— Temos que ir, Volt!

— Como assim?

— Vans é um mago de sangue — ela explicou. — Temos que ir ou não vai sobrar ninguém naquele campo.

— Mas que inferno é um mago de sangue?!

— Exatamente isso, Volt, eles são um inferno.

Ela olhou para Yahira, que foi enfática ao afirmar:

— Ficarei aqui. Não vou deixar Aisen sozinha nesse estado, ainda mais, perto dessa coisa — fitou o espírito aprisionado no círculo de fogo. — Além disso, não posso fazer muito contra Vans, graças a este voto.

— Leve-a para o Castelo. Nada lhe farão — garantiu a grã-mestra.

— E ele? — a ex-daijin indicou o espírito.

— Enquanto eu respirar, o círculo o manterá prisioneiro. Vá agora.

Com a ajuda de Voltruf, Yahira colocou Aisen nas costas e partiu sem olhar para trás.

— Precisamos correr! — Melina disse para a florianae, que não esperou o fim da frase para assumir a forma felina. Dessa vez, sua transformação culminou em uma fera maior que o costume. Grande o suficiente para que a grã-mestra a montasse. — Rápido!

***

Dakar puxou a faca e sustentou o corpo de Lenór, encostando a lâmina na garganta dela. Pressionou-a contra a pele, arranhando-a e derramando uma gota de sangue. Ele sorriu, sádico, e forçou a arma, aumentando a profundidade do corte.

Alguns metros adiante, os cardasinos tinham despertado do susto e tentavam ultrapassar a estranha barreira mágica criada por Lorde Vans, que levantava poeira do chão ainda úmido pelas chuvas recentes. E no meio da confusão, alguns zaidarnianos, imbuídos pelo sentimento de traição uniram força a eles.

Em resposta, Lorde Vans fez um movimento suave com uma das mãos. Parecia estar apagando algo no ar, mas o gesto se refletiu na barreira e ondas de magia reverberaram nela, atirando os soldados para todos os lados. Aneirin estava entre eles. A gatinha tentava atravessar a proteção em desespero, mas a poeira que a circundava a afastava violentamente, deixando cortes profundos em seu pequeno corpo, que logo retornava ao normal.

Dentro do círculo mágico, Dakar interrompeu o movimento que rasgava a garganta de Lenór. Seus dedos congelaram e pequenas estacas de gelo abriram caminho pela carne e pele. Espalharam-se, por sua mão e braço, fazendo-o expulsar a dor através de um grito gutural. O ar no local tornou-se tão frio, que respirar era quase doloroso.

O rei olhou para Vanieli, que mesmo no tormento da sua “prisão”, descobriu que ainda conseguia manipular a magia. E todo o seu ódio estava direcionado para ele.

— Maldita bruxa! — Dakar berrou.

Atento ao que se passava, Vans fez suas gavinhas de pó e magia escalarem o corpo dela, estrangulando-a como uma serpente. Vanieli sentiu a pressão aumentar, o ar faltar e os ossos quase estalarem. O sangue parecia ter parado de circular em suas veias. E havia o ódio que se revirava em seu interior, tão terrível, intenso e daninho, mas também reconfortante ao ponto de lhe instigar e não permitir que se rendesse. Então, o gelo em volta do rei aumentou, e as estacas brotaram em seus pés. Ele caiu, incapaz de permanecer de pé.

Entredentes, Vanieli declarou:

— Você nunca mais colocará suas mãos nojentas nela!

Vans aumentou o poder que a estrangulava e Vanieli quase desapareceu entre as formas escuras das gavinhas. O desejo dela de machucar Dakar cresceu na mesma proporção, cegando-a para a própria dor. Novas estacas dilaceraram as pernas do soberano zaidarniano e alcançaram o seu ventre. Nessa altura, os berros dele tinham se tornado gemidos quase inaudíveis e, temeroso do que estava por vir, Vans dedicou toda sua concentração à Kamarie.

Ele deixou a barreira protetiva e de aprisionamento cair por um instante, o que foi mais que suficiente para Dalise e Dimal se libertarem e evitarem uma nova imobilização ao alcançarem um ponto longe do contato com as gavinhas mágicas. Entretanto, no momento seguinte, os gêmeos investiram contra o lorde. Eles percorreram os poucos metros que os separavam do inimigo, saltando sobre os fios de magia e esquivando-se da sua tentativa de contato, pois pareciam ter vida própria.

A espada de Dimal cortou o ar a poucos centímetros da cabeça do lorde, que inclinou-se o suficiente para não ser decapitado. A irmã atacou-o por baixo, Vans defendeu-se com a espada, resvalando a lâmina na dela e desviando o golpe. O zaidarniano deu alguns passos para trás, a fim de impor uma distância segura dos inimigos, porém os gêmeos voltaram a encurtar os espaço entre eles, e a luta tornou-se intensa e violenta. Vans mostrou-se mais que capaz e habilidoso ao rechaçar os ataques de ambos sem perder a concentração em Vanieli, que permanecia imobilizada.

Aneirin se aproximou da Kamarie, circundava-a usando as garras e dentes para desfazer as gavinhas. Enquanto isso, o capitão Elius e Lorde Taniel — que recuperou-se rápido do desmaio sofrido — também entraram no combate contra Vans que, naquele instante, fez a magia se deslocar a partir do seu corpo e jogou os gêmeos alguns metros para trás. Soldados o cercaram, alternando os lugares no combate com seus líderes, entretanto, Vans conseguia repelir a maior parte deles com o uso da magia.

— Comandante! — disseram Adalie Baruk e outra moça, a qual Lenór recordou se chamar Mélia. Elas auxiliaram-na a sentar. 

— Ajude-a! — Lenór rosnou para Adalie, apontando para Vanieli.

O rosto da Kamarie estava completamente coberto pelas gavinhas e ela, literalmente, sufocava.

 — Use isto!

Adalie olhou para a espada que ela lhe oferecia e não pensou duas vezes para obedecer. Enquanto a jovem se unia à gatinha Aneirin, literalmente cortando a magia que desmanchava-se em fumaça e pó, Lenór pediu o auxílio de Mélia para tirar a couraça. A mulher usou uma faca para cortar as tiras de couro que a prendiam ao seu corpo.

— Está sangrando muito, senhora! — a subordinada olhou para o ferimento, alarmada.

— Está tudo bem — Lenór respondeu, e encarou o rei a poucos centímetros de distância, impressionada com os poderes da esposa.

Não havia como Dakar sobreviver àquilo.

A sua própria dor era um tormento, e se não se livrasse dela e interrompesse o fluxo de sangue que saía do corpo, morreria em minutos. Embora soubesse que o estrago que Dakar fez aos seus orgãos era maior do que conseguia imaginar e poderia aliviar com o seu Manibut.

— Curandeiro! — a soldada berrou, mas sua voz foi abafada por uma forte explosão mágica que atirou soldados e elas por vários metros.

Lenór caiu de cara no chão, sentindo a dor do impacto se misturar a do ferimento. Ela ajoelhou-se com a respiração entrecortada. Os ouvidos zuniam e, por um momento, teve a impressão de que o tempo estava parando. Viu os soldados correrem lentamente, passando por ela em direção ao confronto com Lorde Vans, assistiu Adalie se erguer, metros adiante, e retornar para junto de Vanieli, cujo rosto já estava livre das gavinhas e podia respirar normalmente. Assim que a herdeira do Clã Baruk libertou um de seus braços, ela fez uma lâmina de gelo e também começou a cortar as gavinhas que a aprisionavam.

Mais à frente, um soldado pisou nos fios de magia de Lorde Vans, o mago ergueu a mão livre num movimento ligeiro, como se estivesse dando uma patada no ar, e o soldado foi, literalmente, partido em 3 pedaços. Em seguida, o lorde fez a magia circundar seu corpo, criando um pequeno redemoinho e aumentando o raio de distância entre ele e seus oponentes. Todos os que ousaram se aproximar, nesse instante, receberam cortes profundos e depois foram repelidos.

— Maldito — Lenór gemeu e pressionou pontos específicos do corpo, fazendo o sangramento diminuír.

A mistura de um gemido e uma risada lhe chegou. Olhou para o lado e viu o rei Dakar, cuja insistência em continuar vivo parecia uma provocação. O corpo dele estava jogado sobre um tronco, tão contorcido que era surpreendente o fato de ainda ter forças para falar:

— Vocês vão morrer… todos neste campo irão morrer. Sem mim para contê-lo, Vans só irá parar quando tiver consumido a última gota de sangue do último homem de pé.

Ele riu novamente, os olhos vidrados e loucos.

— Desgraçado! Cale essa boca de uma vez! — gritou Vanieli, cuja liberdade alcançada a fez correr imediatamente até a esposa. Ela ergueu a mão espalmada na direção do rei e cerrou o punho, tomada por uma satisfação quase insana ao fazer uma estaca de gelo se projetar do peito dele.

Ela se ajoelhou diante de Lenór, levando a mão até o ferimento dela.

— Você está bem?

— Vou ficar — prometeu Lenór, muito ciente da mentira que contava.

Ali perto, Adalie ajudava Mélia a ficar de pé, Lenór fez o mesmo com o auxílio de Vanieli. Soldados, que estavam nas margens da floresta, se aproximaram.

— Tirem os feridos daqui e voltem para o Castelo.

— Comandante?! Tem certeza? — perguntou um tenente.

— Apenas obedeça e faça isso rápido, antes que aquele demônio resolva… — ela interrompeu a fala para tossir uma mistura de sangue e areia. — Precisamos tirar o máximo de soldados daqui.

— Ele é forte, mas podemos dar um jeito, Lenór! — Vanieli argumentou. — Podemos vencer!

— Não se ele perder o controle. Se isso acontecer, estaremos condenados. Nós já vencemos a guerra. O que virá agora é apenas morte e terror.

Ela voltou a fitar o tenente.

— Dê a ordem e corra para longe daqui. Só pare quando chegar ao Castelo. Preciso que diga ao rei que Lorde Vans é um Mago Sangrento, ele saberá o que fazer.

O soldado obedeceu, pegou o pequeno chifre que carregava na cintura e soprou três vezes. Ao longo do campo, o som voltou a se repetir através de outros soldados. E os cardasinos começaram a recuar em direção à floresta. Assustados com a retirada, os zaidarnianos também começaram a fugir.

— Vá com eles, Vanieli!

— Só saio daqui com você! Nem adianta insistir, já conversamos sobre isso.

Lenór chegou mais perto dela, disposta a usar seu manibut para nocauteá-la e depois deixá-la aos cuidados do tenente, entretanto, a voz de Vans se projetou magicamente por todo o campo:

— Malditos cardasinos, vocês serão massacrados esta noite! Vocês e os traidores de Zaidar!

O casal olhou na direção em que ele estava, no meio de um círculo de névoa e poeira, longe das armas e ataques inimigos. Mesmo daquela distância, era possível notar a loucura que tomava suas feições e voz esganiçada.

Grande parte dos soldados havia deixado o local quando a névoa que o circundava subiu em direção ao céu e, em seguida, caiu como algo pesado, quase sufocante, espalhando-se pela clareira e o início da floresta em volta. Era tão densa, que tornou-se impossível enxergar além de poucos metros.

O silêncio tomou o lugar.

Adalie Baruk e a companheira se aproximaram das duas mulheres, instantes depois Elius juntou-se a elas. A parca luz da lua, que atravessava a névoa, tornava assustadoras as poucas sombras que podiam divisar.

— Vanieli, nos dê um pouco de luz — Lenór pediu, já que ela estava segurando a espada que havia dado para Adalie.

A Kamarie concentrou a magia na espada e a lâmina emitiu um brilho suave, porém suficiente para iluminar os rostos em volta.

— Temos que ir para o castelo — Lenór decidiu, empunhando a outra espada.

— Mas, há pouco, você queria ficar e lutar.

— Isso foi antes de sermos engolidos por essa névoa demoníaca, Vanieli. Agora somos alvos fáceis para Vans.

— Se não enxergamos, ele também não enxerga.

— Gostaria que fosse tão simples, Elius — Lenór ergueu a mão, de onde um corte gotejava sangue. As gotas não chegavam a tocar o chão, pois eram arrastadas para a névoa. — Eu nunca encontrei um Mago Sangrento, e até onde sei, todos foram caçados e executados há séculos… Mas isso…

Ela mostrou outra gota de sangue a ser arrastada para a névoa.

— …não pode ter outra explicação além dessa.

Um soldado cardasino surgiu à sua frente, realizando a incrível façanha de estar de pé, visto que havia uma lança atravessando o seu peito. Os olhos eram dois pontos luminosos e assustadores, as feições nada indicavam além da apatia da morte sofrida.

Ele avançou na direção deles no que parecia uma tentativa de ataque, embora não estivesse segurando arma alguma. Assustada, Vanieli recuou um passo e o soldado acabou trombando com Elius. A ponta da lança, que se projetava do peito dele, perfurou o braço do capitão, que tentou segurá-lo para, logo em seguida, tentar empurrá-lo para longe. Entretanto, o homem mantinha-se firme no objetivo de machucá-lo.

Coube à Lenór resolver a situação ao empurrar o soldado para longe de Elius e, quando ele fez questão de retornar à agressão, Dalise saiu do nevoeiro e decepou a cabeça dele.

— Deuses! — exclamou a baraforniana. — Parece até que voltei para aquele maldito campo de batalha em Flyn. Que inferno, Lenór! Trabalhar com você nunca é fácil.

— O que foi isso? — Elius perguntou, tentando recuperar a compostura.

— Isso é o pesadelo que um Mago de Sangue pode causar em um campo de batalha. Irmãos contra irmãos. Companheiros mortos, contra os vivos — explicou a comandante.

— Nunca imaginei que viveria para ver algo assim — resmungou Dalise. Havia um corte profundo em seu braço e o sangue saía dele em abundância. Assim como o corte que Lenór mostrou em sua mão, o sangue dela era absorvido pela névoa.

— Precisamos sair daqui — a comandante falou, vasculhando a bolsa atrelada ao cinto, de onde tirou um vidrinho com um líquido escuro e viscoso. — O sangue dos mortos alimenta a magia de Vans, quanto mais sangue, mais poderoso ele fica.

— Retiro todas as bobagens que disse sobre as Guerras de Sangue, quando Mestre Viltor nos obrigou a estudá-las! — Dalise gemeu quando Lenór derramou algumas gotas do líquido do vidro sobre o ferimento dela. A comandante fez o mesmo com o corte de Elius e, por fim, derramou a substância em seu próprio ferimento.

Os três rilharam os dentes de dor, porém seus respectivos sangramentos foram estancados.

— Isso vai ajudar por um tempo — Lenór garantiu. — Não podemos nos permitir continuar alimentando o poder dele. Venham! Vamos sair desta névoa miserável.

— Não entendo. O que está havendo, senhor? — Seguindo-a de perto, Adalie perguntou para o capitão, quase esbarrando no irmão mais velho, Taniel, que cruzou seu caminho carregando Lorde Aulos, ainda inconsciente, nos ombros. Outros soldados o acompanhavam. Taniel fez uma careta para ela e fitou Lenór.

— Mago desgraçado! — disse ele. — Nem quero imaginar o como, mas ele está trazendo os mortos de volta à vida!

Os sons de gritos e lâminas se chocando elevaram-se ao longe.

— Não se trata disso! — Dalise contou. — Ele só está usando o sangue.

— Como é que é?

— Afinal, o que é um mago de sangue? — Vanieli complementou a pergunta, acompanhando a esposa de perto, que a empurrou para trás, quando outro soldado morto surgiu.

Dessa vez, tratava-se de um zaidarniano com metade do rosto queimado. Lenór desviou da investida dele e desferiu um golpe brutal, cortando uma das suas pernas que, ainda assim, continuou avançando em sua direção. Por fim, ela decepou a cabeça dele.

— A última vez em que se ouviu falar de um mago de sangue, foi há 300 anos — Dalise respondeu. — Eles conseguem controlar os mortos, desde que ainda tenham cabeça e o seu sangue ainda esteja quente.

— Deuses! — Vanieli exclamou, sentindo um pouco de vertigem. Havia muito sofrimento naquele nevoeiro e essas impressões a machucavam de uma forma quase física, embora ela não conseguisse imaginar como isso era possível.

— Malditos magos! — Taniel rosnou para ela e Dalise, então ergueu a espada na direção da Kamarie. Mas não foi além disso, pois a irmã caçula o surpreendeu ao encostar a espada na garganta dele.

Os olhares dos dois se encontraram na penumbra e a rivalidade foi facilmente percebida pelos outros. Na postura de Adalie havia a sombria resolução de matá-lo, se insistisse em ameaçar a esposa da sua comandante. O lorde trincou os dentes, considerando a situação, e baixou a arma. Adalie fez o mesmo, embora tenha levado mais tempo que o necessário para completar o movimento.

— Não generalize, Lorde. Magia de sangue é o resultado de experimentos proibidos no extinto Reino de Solusta, que hoje conhecemos como os reinos de Primian e Bantos. — Lenór contou, irritada, não com a estupidez de Taniel, mas com a situação em que se encontravam. E fez um gesto para prosseguirem. — As Guerras de Sangue quase destruíram metade do continente de Amarilian há 300 anos e todos os magos que participaram de tais experimentos foram presos e executados. Ao menos, era o que se supunha ter acontecido. Mas não temos tempo para aulas de história. Magos de sangue alimentam a própria magia com o sangue do campo de batalha, quanto mais mortos e feridos, mais fortes ficam. Precisamos sair logo daqui.

Alguns metros depois, um soldado comentou:

— Nunca ouvi falar de algo assim.

Dalise soprou o ar, cansada do falatório. Contou:

— Em Barafor, histórias de guerras assim não se perdem no tempo. Nós aprendemos com elas. Em nossas bibliotecas, há registros detalhados de todas as grandes guerras do continente de Amarilian, desde que o nosso reino se formou. E quem diria que esse conhecimento seria útil um dia?

Lenór resmungou algo ininteligível e pediu silêncio. À medida que avançavam entre as árvores, a quietude da floresta era perturbada por gritos e sons de lutas, a maioria oriundos da clareira. Em dado momento, Vanieli perguntou:

— Já não deveríamos ter saído da névoa? Achei que ela só estivesse envolvendo a clareira.

À frente do grupo, Lenór interrompeu os passos, pensando a respeito. Ela duvidava que Vans conseguisse sustentar uma magia daquela proporção em uma distância tão longa.

— De fato. Isso só pode significar que Vans está vindo em nossa direção e o raio da névoa se move com ele.

— E o que faremos? — Taniel inquiriu, passando Lorde Aulos para os ombros de um soldado. — Não conseguimos arranhar aquele bastardo, quando podíamos enxergá-lo. Agora que ele tem a vantagem…

O estalar de um galho seco o fez se calar e todos ficaram tensos à espera do aparecimento de um morto andante, porém um miado os saudou e Aneirin juntou-se ao grupo, correndo em direção à Lenór.

— Bem-vinda, pequena! — Lenór dispensou um pequeno sorriso para o espírito e agachou-se diante dela. — Estávamos mesmo precisando de bons olhos. O que você viu?

A gata miou algumas vezes e Vanieli ficou feliz por conseguir compreender cada palavra do que ela disse, assim como se surpreendeu ao perceber que Lenór também conseguia entendê-la.

— Qual a distância entre nós e eles?

Aneirin miou a resposta.

— E quantos o acompanham?

A gatinha sentou sobre as patas traseiras, fornecendo a informação.

— Não parece tão ruim — Vanieli considerou, o olhar preso ao da esposa. Não estava gostando da forma como a respiração dela parecia curta e cansada.

Os demais permaneceram em silêncio, enquanto elas dialogavam com a gata. Lorde Taniel passou a mão na cabeça, exasperado com a loucura da situação e quando comentou isso, Vanieli falou:

— Você é, simplesmente, o homem mais irritante deste reino. E olha que eu considero o meu sogro uma verdadeira desgraça.

— Deixe-o, Vanieli. Ele não é o único a achar que enlouquecemos aqui — apontou para o resto do grupo, então explicou serenamente: — Aneirin é um espírito. E sim, nós entendemos o que ela diz. Se sobrevivermos a esta noite, contaremos essa história. Mas antes, precisamos sair desse nevoeiro. A pequena será nossa guia a partir daqui.

Satisfeita com a ausência de questionamentos, ela retornou ao caminho, seguindo Aneirin. A gatinha guiou-os para a segurança da floresta e longe do alcance de Vans. Quando alcançaram uma pequena elevação, Lenór os fez parar.

— Os feridos devem seguir para o Castelo do Abismo. Aqueles capazes de lutar, fiquem conosco. 

Quando os feridos partiram, ela escorou no tronco de uma árvore. Durante o breve trajeto havia trocado algumas ideias com Vanieli, levando em consideração o que a viu fazer com o Rei Dakar.

— Lorde Taniel tem razão, do pouco que observei da luta, Vans é muito bom em manter seus adversários longe. Então, para derrotá-lo, precisaremos agir à distância.

— Como, se nem as nossas flechas foram capazes de perfurar a proteção dele?

— Às vezes, Elius, só podemos combater magia com magia. Se conseguirmos atrair Vans para o local ideal, Vanieli poderá nos dar uma chance contra ele.

— Por que ela não fez isso antes? — Adalie perguntou timidamente.

Vanieli foi suave e muito sincera ao responder:

— Sou nova nesse negócio de magia. Aprendi a dominar o suficiente para não causar perigo às pessoas com quem convivo e participar de um combate em um ambiente controlado, como há pouco. Mas Lorde Vans é capaz de nos aprisionar usando o nosso sangue e eu só consegui me libertar do domínio dele com a sua ajuda e a de Aneirin.

— Então, o que você poderia fazer agora, que não foi capaz antes? — Taniel quis saber, deixando de lado seu desagrado.

Compreendendo para onde a conversa se dirigia, Dalise tomou a palavra:

— Se o inimigo estiver em um ambiente em que a magia de Vanieli é mais forte, talvez possamos acabar com ele. Você tem afinidade com a água, certo? Há um rio ou lago aqui perto?

— Na verdade, sim. — Foi Lenór a responder. — Estamos bem em cima da nascente que, anteriormente, fornecia água para o Castelo.

Embora tivesse um pouco de pressa, ela foi cautelosa ao explicar seu plano. E quando Elius começou a distribuir ordens para os soldados, a fim de preparar a emboscada, ela se permitiu escorregar pelo tronco da árvore até o chão.

— Você precisa de um curandeiro — Vanieli ajoelhou-se ao seu lado.

— Eu só preciso de um momento. Estou bem.

— Sei quando está mentindo para mim, Lenór.

A comandante limitou-se a sorrir, afagando a mão que ela colocou em seu ombro. Dalise ajoelhou-se do outro lado e passou um par de mãos luminosas sobre o ferimento dela.

— Você pode ajudá-la? — Vanieli quis saber, esperançosa.

— Não, ela já fez o que era necessário. Estancou o sangramento, agora é preciso alguém para costurar as feridas. Não se preocupe, sua esposa é um osso duro de roer.

A moça não sentiu muita firmeza nessa afirmação, porém não tinha o que fazer. Voltruf não lhe ensinou a curar. Sem se dar ao trabalho de pedir permissão, Dalise enfiou a mão na bolsa de Lenór e tirou a caixinha com Magia de Sábio. Apertou o mecanismo para abrir o compartimento oculto e pegou uma das sementes vermelhas contidas nele.

— Coma — ela ofereceu a semente para Lenór. — E vê se não faz cara feia. Sabe que isso vai te ajudar.

— Eu não quero.

— Ficarei de olho em você, não se preocupe.

A amiga fez uma pequena careta, mas pegou a semente que lhe era oferecida. Ela não gostava de consumir sementes de guerra, pois além do efeito curativo e da força que costumavam fornecer aos guerreiros, em Lenór, também causavam alucinações. Normalmente, elas vinham quando o pico de força diminuía e, na maioria das vezes, após o fim do combate. Ela torceu para que fosse assim dessa vez.

Alteri Palatin — murmurou e levou a sementinha vermelha à boca. O efeito foi quase imediato, a dor desapareceu e a euforia da batalha a tomou, fazendo-a ficar de pé.

Por sua vez, Vanieli encarou a caixinha que Dalise lhe entregou sentindo uma mistura de raiva e medo vindo de Lenór, que a fitou estranhamente, antes de dar um passo para a frente e cair inconsciente em seus braços.



Notas:

Opa!

Desculpem o capítulo curto.

Beijos e até o próximo!




O que achou deste história?

8 Respostas para 43.

    • Oiii, moça!
      Desculpa o sumiço! A vida tinha outros planos para mim e ficou um pouquinho difícil de escrever. O novo capítulo já foi postado.
      Não desista do Castelo!

      Beijos!

  1. Nossa!
    Esses dois últimos capítulos foram de deixar o coração na mão, de cair o cu da bunda kkk
    Tenso o negócio, mas o importante é nossa heroína viva!

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