Revisão: Naty Souza e Néfer.


 

Oi, amores!

Então, no capítulo passado acabei não postando as últimas linhas do texto. Consertei rapidinho, mas algumas pessoas já tinha lido o capítulo, então peço desculpas por isso. Para que ninguém fique confuso, vou postar esse trecho abaixo e daremos seguimento ao texto.

 


 

NO CAPÍTULO ANTERIOR…

 

— Acha que um dia vai confiar em mim? — Vanieli quis saber, como se tivesse lido seus pensamentos.

Lenór fitou as costas dela, respondendo com sinceridade:

— Se quer a minha confiança, você terá que conquistá-la. Entretanto, garanto que enquanto estivermos juntas, eu cuidarei de você e a protegerei.

— É uma promessa?

— Não. É apenas uma verdade.

Depois dessa declaração, a conversa cessou e ambas caíram no sono. Contudo, não demorou muito para que fossem despertadas pelo cheiro de fumaça, gritos e passos. Lenór saltou da cama, encarando as chamas que começavam a consumir a porta do quarto.

A voz de alguém na rua se elevou e atravessou o som da chuva e a janela fechada:

— Fogo! Fogo! A estalagem está pegando fogo! Ajuda!

 


 

 

Vanieli franziu o cenho, antes de fitar as costas largas de Lenór, que seguia um pouco à frente do comboio. Como se a comandante adivinhasse que estava sendo observada, contorceu-se sobre a sela e seus olhares se encontraram.

Embora sua face demonstrasse a tranquilidade costumeira e estivesse perfeitamente limpa, foi impossível para a Kamarie não recordá-la tão suja de fuligem, que somente os olhos se destacavam no rosto castigado pelo cansaço.

Mesmo que dois dias tivessem se passado desde o incêndio, Vanieli ainda percebia o coração descompassado pelo medo.

Ela afastou um mosquito, que rondava sua face e fez esforço para engolir um pouco de saliva, sentindo a garganta arder, antes de fitar as botas chamuscadas de Lenór. Fechou os olhos, retornando rapidamente às lembranças da estalagem em chamas.

Por um instante, viu-se novamente correndo ao lado de Lenór pelo corredor ardente. As mãos tremeram quando alcançou a memória mais assustadora daquela noite. Enquanto procuravam uma rota de fuga, o piso do corredor cedeu sob os pés de ambas e, por muito pouco, elas não foram engolidas pelas chamas que tomavam o cômodo abaixo daquele ponto.

A Kamarie voltou a abrir os olhos e passou a mão pelo punho esquerdo. Os dedos de Lenór deixaram nele marcas escuras e doloridas, que ainda mantinham o tom roxo. Agarrada à borda do buraco que se abriu, a comandante a sustentou por segundos horripilantes em que o calor intenso, aliado à fumaça, fez com que Vanieli parasse de respirar.

Enquanto a morte certa bailava diante dos olhos dela, Lenór gritou pelo esforço de içá-la até que fosse capaz de alcançar a borda do piso, onde uma Adel silenciosa a ajudou a retornar para o corredor, antes de fazer o mesmo por Lenór, no exato momento em que as chamas abaixo dela se tornaram mais altas.

Ao lado de dois soldados, que também eram hóspedes do lugar e do próprio estalajadeiro, elas correram até a escadaria que levava ao salão comum da estalagem, onde as chamas haviam se espalhado e formado um mar de fogo que consumiu parte da escada que almejavam.

As três mulheres se encararam por um instante sombrio e fizeram o mesmo com os homens que as ladeavam. Não havia para onde ir ou como escapar.

— Nós vamos morrer! – Alguém murmurou.

Naquele momento, em meio a um acesso de tosse, Vanieli implorou aos deuses pela salvação e ela não tardou a chegar.

— Capitão, você vai primeiro!

A voz de Lenór se infiltrou nos seus ouvidos e deu-se conta de que ela já não estava ao seu lado. Em vez disso, a esposa havia subido no que restou do corrimão superior e apoiou as costas na parede. O capitão Elius a imitou e aceitou o apoio dela, que havia unido as mãos sobre o joelho para que ele pudesse se erguer até uma das vigas do teto, onde as chamas ainda não tinham chegado.

O capitão percorreu alguns metros, até onde a viga era interceptada por outras duas e uma pequena e estreita claraboia havia sido construída para permitir que a luz solar se infiltrasse no salão ao longo do dia. Com algum esforço ele conseguiu abrí-la e, enquanto isso, Lenór ajudou os outros a seguirem seus passos.

Ao alcançarem a parte externa do teto úmido e escorregadio, graças a chuva fina que ainda caía sobre a cidade, o grupo saltou o metro e meio que separava a estalagem de outro estabelecimento e, finalmente, se encontrou em segurança.

— Você está bem? – Indagou Lenór, que havia feito o cavalo diminuir o trote para emparelhar com o dela.

A pergunta arrancou Vanieli, de vez, das memórias. Todavia, ela não conseguia esquecer o quão perto estiveram da morte.

— Só estou um pouco cansada. – Admitiu, recebendo um inclinar de cabeça positivo da esposa.

A comandante não lhe dissera nada sobre as suas suspeitas, porém Vanieli estava certa de que tinham chegado a mesma conclusão. O incêndio fora criminoso. Obviamente, não havia provas em que pudessem apoiar essa ideia. Fosse o caso, assim Vanieli pensava, a esposa teria se esforçado para encontrar o responsável. Ao menos, seria assim que ela própria agiria, caso estivesse no comando da Guarda Real.

De todo modo, era muita coincidência que a estalagem tivesse pegado fogo justo quando as duas estavam pernoitando nela.

Lenór esticou o braço até as rédeas de Vanieli, fazendo com que os dois cavalos parassem. Os homens prosseguiram seu caminho, lançando olhares curiosos para as duas.

— Cansou de ser ignorada pelo capitão Elius? – Vanieli indagou, um pouco agastada.

O desprezo do homem pela nova comandante era quase palpável e ficava mais evidente pelo fato de que raramente falava com ela e nunca se manifestava sobre as atitudes insultantes dos soldados, principalmente, do Tenente Adamus. De quem, geralmente, partia as piadas e insinuações maldosas sobre mulheres, das quais Vanieli tanto se queixava.

O dia amanheceu úmido e chuvoso. Após a estressante estadia em Verate, Vanieli estava feliz de retornar à estrada, porém aquele clima tornou o caminho mais cansativo e penoso para ela, cujos lábios tremiam de frio, à medida que o humor piorava.

— Estava apenas desejosa de um momento a sós com a minha esposa. – Disse a comandante em tom irônico.

Ela lançou uma olhada rápida para as costas do capitão. Elius estava muito longe de conseguir incomodá-la com a atitude de desprezo e indiferença.

– Na verdade, — voltou à seriedade habitual — estava me perguntando quando você irá se manifestar sobre o que aconteceu em Verate. Verdade seja assumida, você não pode ser chamada de tagarela, entretanto, mal falou nos últimos dois dias e admito que estou preocupada com esse silêncio.

Não era sobre o incêndio que ela falava e, sim, sobre o que houve depois, quando o estalajadeiro perdeu o controle das emoções e acusou as duas de serem as culpadas por ter perdido seu negócio e lar.

Era a voz do desespero falando, todos sabiam e compreendiam. Todavia, ele tinha parado de fingir que era um homem gentil e prestativo, que não se importava em hospedar um casal de feminino. Supersticioso, declarou que elas davam azar por terem um casamento anormal, que ia contra as leis da natureza, e que levavam a desgraça por onde passavam.

Algumas pessoas à sua volta balançaram a cabeça em concordância, como se aquelas palavras insanas carregassem as verdades do mundo. Foi um momento muito desagradável para as duas, principalmente, quando o homem cuspiu aos seus pés em um gesto que representava um grande insulto, antes de lhes dar as costas de forma bastante simbólica.

— Somos ensinadas a temer a rejeição do nosso clã, desde cedo. É natural que se sinta um pouco sem rumo depois daquilo, apesar de não ter passado de meia-dúzia de pessoas maltrapilhas e traumatizadas pelos eventos recentes.

— Isso realmente me assustou. – Vanieli confessou, incomodada por ela ter percebido seu desconforto sobre o assunto tão facilmente. Contudo, não havia se esforçado para escondê-lo. – Mas, também, me irritou. Que histórias e motivos estúpidos para nos rejeitarem! E por que você não fez nada a respeito?

Lenór fez um carinho no cabo de uma das espadas, observando a estrada. O afastamento delas serviu de incentivo para alguns homens iniciarem uma conversa tranquila, intercalada por risadas suaves. Mesmo aqueles que seguiam o preconceito descarado do tenente Adamus, não se sentiam confortáveis em conversar abertamente na presença das duas.

— Precisamos mesmo retornar a essa conversa? Achei que tinha sido bastante clara da última vez.

— Sei, sei… Você é paciente… Só estou me perguntando quanto tempo mais a sua paciência irá durar.

– Só porque carrego uma espada na cintura, não significa que estou disposta ao embate ao menor sinal de contrariedade. Não irei retaliar com o peso deste uniforme, sempre que alguém se achar no direito de rejeitar a minha existência como um membro do Clã Azuti ou como Comandante da Guarda. Tampouco irei demonstrar a minha indignação da forma que está exigindo, quando as pessoas resolverem me criticar por estar casada com uma mulher.

Vanieli segurou as rédeas com firmeza e o cavalo parou.

— Então, é isso? Você me condena por exigir que nos defenda?

Os lábios de Lenór se comprimiram rapidamente. A inocência de Vanieli a irritava, porém não podia culpá-la por esperar dela a iniciativa da ação, afinal isso fazia parte da sua criação, mesmo que tivesse ideias contrárias. Vanieli ainda estava projetando nela o papel de marido e não de companheira.

— Acho que você ainda não entendeu o que lhe disse há algumas noites, Vanieli. Não vou ficar passando a mão na sua cabeça, como se fosse uma criança indefesa. Não espere por mim sempre que se sentir ofendida por alguém. Use a sua voz! Você é livre para isso. Se quer que as coisas sejam diferentes para nós, tem que começar a agir diferente também. Você já pensa assim, agora precisa aprender a agir conforme suas ideias e a se impor com as pessoas que nos cercam.

Elas retornaram para o caminho devagar. Os soldados haviam desaparecido em uma curva da estrada, contudo, a serva Adel ficou para trás, fazendo com que o seu cavalo marchasse lentamente. Porém, ela manteve uma distância discreta das senhoras, lhes permitindo continuar com a conversa privada.

A Kamarie encheu as bochechas de ar e o liberou devagar, concluindo que estava mesmo se escondendo na sombra da esposa, à espera de que ela usasse seu status como comandante para se impor à sociedade cardasina.

— Talvez, você esteja com a razão. – Admitiu parcialmente.

Deu o assunto por encerrado naquele momento, porém, sentiu que Lenór ainda tinha algo a dizer. Entretanto, a comandante manteve o silêncio e não tardou para se juntarem a Adel e alcançarem a curva no caminho.

Poucos metros as separavam de uma pequena elevação, onde os soldados se espalharam, observando algo além dela. Aproximaram-se, buscando espaço entre os homens e, finalmente, puderam divisar um vilarejo às margens da floresta.

Embora já não existisse fogo, a fumaça do incêndio que consumiu a maioria das casas do lugarejo, ainda se erguia dos escombros.

— Deuses! O que aconteceu aqui? — Vanieli perguntou.

O tenente Adamus, ao seu lado, respondeu com um dar de ombros:

— Saqueadores, Damna. Há muitos deles por aqui.

O descaso com que ele falou a incomodou tanto quanto suas costumeiras piadas depreciativas.

Uma dúzia de pessoas maltrapilhas começaram a surgir das poucas casas que restaram de pé no vilarejo. Os rostos cansados, sangue e fuligem ainda nas vestes. Havia corpos espalhados pelo lugar e, como se desejasse tornar o cenário ainda mais triste, o vento levou para o grupo o cheiro da morte.

Os olhos de Lenór se apertaram, tentando divisar algo mais que destruição entre a centena de metros que os separava do vilarejo.

— Qual o nome deste lugar? — Ela indagou.

— Avardia, creio. — Respondeu Elius.

— Nem imagino o que saqueadores viriam procurar neste chiqueiro. – Adamus resmungou. — Só há agricultores por aqui e com a seca do ano passado, duvido que tivessem alguma comida armazenada. De todo modo, é melhor que sigamos nosso caminho, afinal não há nada que possamos fazer por eles. Podemos fazer um pequeno desvio, mais adiante. Vai nos custar algumas horas a mais de viagem, contudo será mais seguro e evitaremos esbarrar nesse bando de assaltantes, embora eu acredite que eles já devem ter cruzado a fronteira com o seu saque e os pobres coitados que, certamente, sequestram do vilarejo. A esta altura, é certo que venderam todos como escravos para as minas de ouro de Zaidar.

O nome do lugar ressoou na mente de Lenór, como o eco em um vasto salão. Ela passou a mão sobre o bolso que carregava a mensagem que recebera em Verate e o discurso de Adamus inflamou suas emoções.

— Então, isso satisfaz você, Tenente?

A pergunta dela o fez se voltar para encará-la, enquanto a ouvia continuar:

— Bandidos de Zaidar invadem nossas fronteiras, saqueiam e destroem vilarejos, sequestram nosso povo e tudo que você tem a dizer é que devemos fazer um desvio no caminho para não encontrá-los?

Ela mostrou um sorriso desdenhoso e concluiu:

— Me parece que a Guarda Real de Cardasin estava mesmo precisando de uma mulher, porque alguns dos exemplares masculinos que vi, até agora, são uma verdadeira desgraça para o gênero e o exército.

Apertou as rédeas com força, antes de chicotear o cavalo e seguir para o vilarejo. Vanieli e o Capitão a seguiram de perto e quando atingiram o centro da vila, a comandante apeou do cavalo antes mesmo que ele parasse. Seus pés afundaram na lama da chuva recente e que, com certeza, tinha ajudado a apagar o fogo que consumia as casas.

Lenór se aproximou da primeira pessoa que viu e perguntou:

— Aqui é Avardia?

O velho, sentado sobre um barril quebrado à sombra de um alpendre caindo aos pedaços, a encarou com os olhos mais sofridos que já tinha visto. Ele arreou os ombros, suspirou e respondeu:

— Sim, Damna. Isso é o que restou de Avardia. — Apontou com o queixo para o monte de escombros à sua volta. A voz dele era ainda mais triste que o seu olhar.

Alguns metros atrás de Lenór, Vanieli também apeou do cavalo, admirando a destruição do lugar. Os olhos da comandante seguiram os dela, tornando-se turvos a cada metro que percorriam.

Ela voltou a questionar o velho, demonstrando certa urgência:

— Há estrangeiros nesta vila?

O idoso observou as roupas militares dela, com a testa franzida.

— Havia um homem com uma criança. Uma moça estranha os acompanhava. — Disse ele, após uma forte crise de tosse.

A inquietação de Lenór tornou-se evidente para Vanieli, cuja memória de vê-la receber uma carta dias antes, lhe chegou naquele momento. Obviamente, não leu a mensagem, mas ao passar ao lado da esposa enquanto ela o fazia, capturou algumas palavras do texto, entre elas, a palavra Avardia.

— O que houve com eles? — Lenór chegou mais perto do velho.

Àquela altura, um agastado Adamus tinha se reunido a eles, junto com o resto dos soldados. E outra moradora do lugar se aproximou. Era uma mulher de meia idade com uma faixa ensaguentada na cabeça e um corte profundo no queixo.

— Eles vieram ao raiar do dia, aqueles malditos! — Contou a mulher, fazendo uma reverência para Lenór e outra para Vanieli. — Damna Azuti. Damna Kamarie.

As notícias do casamento haviam percorrido todas as províncias de Cardasin e outros reinos também, então não foi difícil deduzir quem as duas mulheres eram.

— Além de todo o nosso alimento, eles tentaram levar nossos maridos e filhos. Felizmente, não tiveram sucesso nisso por causa daqueles dois estrangeiros, que estavam hospedados na estalagem. — Continuou a mulher com voz pastosa, apontando para uma construção sem graça, cuja porta estava parcialmente destruída. — Não fosse por eles, talvez aqueles bandidos tivessem matado todo mundo.

O velho sobre o barril tossiu novamente e apontou para a floresta, que se iniciava a algumas centenas de metros dali. Contou:

— A maioria da nossa gente fugiu para a floresta. Foram acobertados pelos estrangeiros, mas alguns salteadores os seguiram. Acho que ainda estão por lá, escondidos. Ou, talvez, os bandidos tenham pego todos eles… — A voz falhou na última frase e seus olhos se fecharam rapidamente, antes dele soltar um som rouco pela garganta.

— Pobres almas. — Disse Adamus, como se realmente sentisse pena daquelas pessoas. — Se não voltaram ainda, é porque estão mortos. Não há nada para fazermos aqui, Capitão. Voltemos ao nosso caminho.

Lenór encarou o tenente e depois os homens, ainda sobre os cavalos.

— Acho que você ainda não entendeu o que aconteceu em Nazir, antes de partirmos, Tenente. O capitão Elius está aqui para me servir, assim como todos vocês. Não é para ele que deve fazer recomendações, é para mim. Eu dou a palavra final e, neste momento, é a minha vontade que você cale a porra da boca e faça o trabalho para o qual está sendo pago!

Adamus sorriu do alto de sua montaria, incrédulo.

— Você é uma piada de mau gosto do rei, mulher. Ele já conseguiu o que queria com esse casamento fajuto e todos sabemos que essa história de serem enviadas para o Castelo do Abismo com o intuito de restaurar o estreito com o deserto, é apenas uma desculpa para se livrar de vocês. São ferramentas descartáveis, já serviram ao seu propósito. Agora, estão sendo jogadas fora. — Ele fez um gesto de desdém. — Você pode ser irmã do Comandante Mirord, pode ter recebido os títulos dele, mas continua sendo uma mulher. Vamos parar com esse teatro de uma vez. Afinal, nosso verdadeiro comandante é o Capitão Elius.

Ele inspirou fundo e cuspiu no chão.

— Uma maldita daijin traidora nunca terá vez entre nós. E lamento muito que o rei e os nossos lordes tenham permitido que você trouxesse sua desonra para uma damna da nobreza. Sempre que olho para vocês, penso que estou nos bordéis das fronteiras de Guilas.

— Como você ousa?! – Vanieli gritou sua indignação, antes de observar o rosto da esposa mudar completamente.

A costumeira máscara de indiferença que ela usava, já não existia. E teve certeza de que a paciência de Lenór não era tanta quanto ela fez parecer.

Uma expressão cruel deformou as feições da comandante, enquanto caminhava até o soldado. Certamente, ela não planejava perder a calma naquela viagem, tampouco desejava resolver o problema de comportamento dos soldados daquela maneira. Porém, Adamus não era um homem fácil.

Além disso, ver toda aquela destruição plantou o medo em seu peito.

Ela poderia aguentar sua desobediência e ofensas por bastante tempo. Tanto, que ele acabaria por se cansar delas. Lenór preferia conquistar o respeito e admiração dos seus comandados, demonstrando seu valor em combate e estratégia. Entretanto, assim que pôs seus olhos no Tenente Adamus, soube que, eventualmente, terminariam em uma situação semelhante. Por isso, havia dado “asas” a ele, permitindo que continuasse com os comentários maldosos e o desrespeito escrachado ao seu comando e presença.

O capitão Elius não a incomodava, como Vanieli presumiu de forma equivocada. O rei o escolheu para acompanhá-las ao Castelo do Abismo porque ele era um homem justo e sensato, que não se deixava influenciar por preconceitos de qualquer tipo, sobretudo o de gênero. Seu silêncio e passividade diante das atitudes do subordinado não era aquiescência, apenas obediência às ordens de Lenór, que exigiu que ele não interferisse no assunto.

Como ela dissera para Vanieli, existiam homens como Adamus em qualquer parte do mundo. Contudo, suas atitudes desagradáveis nem sempre eram oriundas de preconceitos. Pessoas como o tenente, simplesmente, gostavam de estar no poder e sentiam prazer em atormentar quem consideravam fracos.

Ela passou a mão pelo dorso do animal que o tenente montava. A deslizou pela sela até alcançar a perna dele, que se mostrou desconcertado com o gesto. Lenór deu uma tapinha ali, antes de o agarrar pela couraça e o atirar no chão. Assustado com o movimento brusco, o cavalo do tenente relinchou e galopou por alguns metros.

Ainda surpreso pela queda, Adamus tentou ficar de pé, mas Lenór o mandou de volta para o chão antes que conseguisse se erguer completamente.

— É disso que você gosta, não é mesmo, Tenente? Da atenção. Pois bem, todos estão olhando para você agora. Vamos! Levante-se! — Ordenou.

Ele tentou se erguer e Lenór o mandou de volta para o chão. Revoltado, retirou a espada da bainha, mas antes que pudesse empunhá-la da forma correta, recebeu um chute no rosto. Ele caiu de cara na lama, cuspindo sangue e um molar, enquanto a espada desaparecia em uma poça d’água.

— Eu sou apenas uma mulher, uma piada do rei, como afirmou. Você é um cavaleiro treinado e habilidoso, então pare de chapinhar na lama como um porco.

Se afastou, permitindo que ele ficasse de pé. O tenente passou a mão no queixo, limpando o sangue e lama que escorriam pela barba longa.

— Você… – Ele rosnou.

— É “senhora” para você. – Ela o interrompeu. – Está na hora de aprender a se comportar e o que significa a palavra “respeito”.

Os músculos dele se tensionaram quando partiu para cima da comandante com uma fúria assassina. Desferiu um soco, do qual Lenór desviou ao se inclinar para o lado. Ela agarrou o braço dele, travando-o junto ao corpo, então o socou no abdômen, depois no peito e, finalmente, no queixo. Adamus caiu no chão tentando sugar o ar para os pulmões, mas eles pareciam ter parado de funcionar.

Com o canto do olho, ele percebeu alguns companheiros rindo do seu infortúnio, justo os homens que tinham servido ao Comandante Mirord. Com efeito, Adamus era o soldado mais forte e agressivo do grupo e a sua derrota fácil e humilhante era um recado bem nítido para os demais. Todavia, Lenór quis deixar as coisas ainda mais explícitas.

Ela encarou os homens e gritou para eles:

— Já está na hora de deixarmos algumas coisas claras, coisas que alguns de vocês insistem em ignorar. Pois bem! Eu sou a comandante aqui! E é bom que todos aceitem isso ou teremos muitos problemas pela frente. Por favor, não me obriguem a fazer algo como isso, novamente.

Fez uma pausa rápida, enfiando a mão numa poça e recuperando a espada de Adamus. Fincou a arma na frente dele, que ainda tentava fazer os pulmões lembrarem de como deviam atuar.

— Sim, herdei os títulos do meu irmão, mas estejam certos de que faço jus a cada um deles e o próximo que voltar a falar merdas sobre isso, vai perder bem mais que os dentes. É direito de vocês não aceitarem meu casamento com Damna Vanieli, entretanto, isso nada tem a ver com a função que desempenho na Guarda Real e espero que não voltem a misturar as coisas.

Ela olhou para Elius e este se empertigou sobre a sela, dizendo:

— Assim será, Comandante.

— Ótimo. — Lenór falou, mais branda. — Então, o que ainda estão fazendo sobre esses cavalos? Desçam daí e ajudem essas pessoas a enterrarem seus mortos!

Elius engoliu em seco, admirado com a tempestade no semblante de Lenór. Enquanto apeava do cavalo, o capitão recordou as palavras do rei, quando este o escolheu para aquela missão. O soberano o alertou para não fazê-la perder a paciência, porém deixou bastante claro que era exatamente o que ele desejava e que, para isso, o capitão deveria selecionar os soldados mais indignados com o fato de terem uma mulher na Guarda Real.

Elius achou estranho o pedido, entretanto não fez questionamentos.

Agora, compreendia as razões do monarca. O Rei Mardus queria cativar uma situação como aquela, em que a revolta de Lenór explodiria e ela mostraria sua força para os homens que, apesar da fidelidade ao soberano, não respeitavam a mulher que ele colocou no comando do grupo.

Demonstrações de força tinham bastante valor entre as tropas cardasinas. Por isso, homens como Adamus costumavam subir de patente com rapidez, além de arrastar seguidores fiéis. O medo que Lenór inspirou, quando ameaçou expulsar quase cinquenta soldados da Guarda Real, era momentâneo. Entretanto, uma exibição de força contra um tenente que era admirado e espelhado por muitos, a tornava diferente aos olhos dos soldados.

— Eles não são nossos mortos, Senhora. — Disse uma moça, que havia acabado de se juntar ao grupo. — Enterramos nossos amigos há pouco. Esses são membros do bando que nos atacou. Ainda não sabemos o que fazer com eles.

O velho sobre o barril teve uma nova crise de tosse em meio a uma risada estranha.

— Mulheres com espadas! — Disse ele, balançando a cabeça. — Parece que as coisas estão mesmo mudando neste reino. Nem preciso vê-la empunhando uma, Senhora, para ter certeza de que você é como aquela moça estrangeira que nos ajudou: um verdadeiro demônio.

Diante da declaração dele, a mulher com a faixa ensanguentada na cabeça, apressou-se a falar:

— Por favor, o perdoe, Comandante. Ele não quis ser grosseiro.

Mas Lenór não se importava com as palavras do velho, sequer as ouviu completamente, pois seus olhos tinham se fixado no grupo de pessoas que saiu da floresta, enquanto ela lutava com Adamus e fazia seu discurso para os homens.

A aflição que a tomava cresceu no peito e só encontrou alívio quando enxergou o velho Rall andando entre toda aquela gente. Apesar da grande quantidade de sangue nas vestes dele, o homem não aparentava estar ferido, assim como a criança que trazia pela mão.

Vanieli assistiu a aproximação deles, murmurando um agradecimento aos deuses e, com uma sobrancelha arqueada, notou a mão trêmula de Lenór e o suspiro de alívio que esta deixou escapar. Novamente, a seguiu de perto quando se juntou aos moradores da vila com quem conversavam e se precipitou em direção ao grupo.

Entretanto, o que começou com passos curtos, tornou-se uma corrida para Lenór, quando Rall apontou para ela, dizendo algo para o garoto. O menino soltou sua mão e correu para Lenór, gritando:

— Matik! Matik!

A criança saltou nos braços dela que o apertou com tanta força que temeu machucá-lo. Entretanto, o menino ria solto, como se a manhã traumática que vivenciou, jamais tivesse existido. Ele passou uma mão suja de terra no rosto dela, deixando o rastro dos seus dedos, e Lenór lhe sorriu, enquanto Vanieli parava ao seu lado.

Ligeiramente claudicante, Rall se aproximava deles em companhia da guardiã que o ajudou a proteger aquelas pessoas.

— Parece que você estava preocupada! — Disse ele para Lenór. — Acaso pensou que este velho não dava mais conta de erguer uma espada?

A comandante soltou o menino, passando a mão na cabeça dele, antes de responder:

— Não diga bobagens, velho! Até eu pensaria duas vezes antes de me meter em uma contenda com você! — Sorriu e ofereceu a mão livre para Rall, que a pegou, curvando-se levemente.

— E agora, quem está exagerando? — Ele riu alto, antes de abraça-la.

 

***

 

Auxiliada pelas nuvens escuras que dominaram o céu, anunciando uma tormenta que não chegou, a noite se fez presente. Os soldados armaram o acampamento rapidamente, enquanto as pessoas do vilarejo se acomodaram nas poucas construções de pé.

Os guerreiros compartilharam do pouco alimento de que dispunham com eles, após ajudarem a enterrar os bandidos mortos.

Alguns se mostraram preocupados com a possibilidade do bando retornar querendo vingança, contudo, o velho Rall garantiu que isso não aconteceria após dirigir um olhar misterioso para a guardiã, que fez questão de se manter completamente à margem da conversa. A moça não tinha nem mesmo se dado ao trabalho de se apresentar para eles, todavia quase ninguém percebeu o fato, ante toda aquela comoção.

— Pelos deuses, Rall! Quase me mataram de susto! — Lenór reclamou com o velho.

Assim que a fogueira foi acesa no acampamento, ela puxou o homem para um canto discreto, enquanto o pequeno Gael corria pelo lugar com as poucas crianças do vilarejo.

— Por que não foram para Nazir? Estariam seguros na capital do reino. Deixei ordens expressas de que fossem bem recebidos e tratados em minha casa. Por que não acompanharam Dimal e Dalise? — Ela continuou, deixando parte da sua raiva escapar nas palavras.

Com a tranquilidade que lhe era característica, mesmo diante dos momentos mais difíceis, Rall mostrou um sorriso suave para ela. Tomou sua mão com cuidado e acariciou o anel de prata no dedo anelar. Falou devagar, mas firme:

— Imprevistos acontecem, Lenór. Você sabe. Compreendo sua preocupação, todavia o que houve já é passado.

Os olhos de um tom acinzentado se fecharam levemente, quando ele fez um carinho na mão que segurava.

— Também compreendo seu desejo de querer nos manter distantes para que fiquemos seguros, mas você fez uma promessa. Recorda? Eu também fiz uma naquele dia…

Sua voz soou baixa e triste com a lembrança que se apresentou na mente, então soltou-lhe a mão e deu uma tapinha suave no ombro dela. Decretou:

— Meu neto e eu iremos onde você for.

E, com isso, pôs fim à discussão.

Lenór o observou se afastar sem conseguir se decidir se deveria sentir raiva ou gratidão por ter alguém como ele em sua vida. Resolveu-se pelo sentimento de gratidão e admitiu para si mesma que tinha mesmo sido inocente ao acreditar que Rall faria sua vontade e passaria a desfrutar uma vida tranquila em Nazir ao lado de Gael, enquanto ela se arriscava para manter vivos os planos de Mardus e buscava vingança.

— Teimoso. — Ela disse em voz baixa, notando a aproximação de Elius.

O capitão foi sucinto em relatar as ações que tinha tomado no tocante ao vilarejo e seus moradores. Pelo menos por aquela noite, seus homens fariam a vigília e ele tinha enviado um mensageiro até Verate, para que mais soldados se dirigissem ao local com ordens de fazer diligências na floresta e campos às margens dela.

As decisões dele pareceram razoáveis para Lenór que fitava a fogueira ao longe, quando disse:

— Seja lá o que o rei o mandou fazer, está na hora de parar, Elius.

O homem se empertigou, fitando o rosto sombrio dela, cuja parca luminosidade tornava ainda mais sério.

— A senhora sabia — Elius concluiu, deixando um sorriso sem graça visitar os lábios, crente de que tinha caído em algum tipo de jogada do rei.

Lenór fez uma breve careta, afastando a visão do fogo.

— Eu nunca saio em companhia de homens aos quais não conheço a índole. — Revelou. — O rei fez questão de dizer que você escolheu os melhores homens para esta missão. Do pouco que lhe conheço e investiguei, sei que um homem como Adamus não seria uma de suas opções. É o mesmo para metade desse grupo. Não tenho ideia do que o rei lhe pediu para fazer, entretanto conheço aquele homem o suficiente para esperar um pouco de discórdia em suas decisões.

— Por isso me pediu para agir daquela forma, como se concordasse com tudo que diziam e faziam?

— Não gostou?

— Para ser sincero, depois do que Adamus disse esta tarde, se a senhora não o tivesse posto em seu lugar, eu o faria.

O indício de um sorriso surgiu nos lábios dela.

— O seu rei é um idiota, Elius.

O homem sorriu, ligeiramente incomodado com a forma que ela usou para se referir ao soberano. Entretanto, contou:

— Ele falou que a senhora diria isso.

 

***

 

Vanieli assistiu a conversa dos dois, sentada à beira da fogueira. Analisava o semblante agastado de Lenór com interesse, enquanto Rall brincava com o neto ali perto. Os dois pareciam tão relaxados, que era difícil imaginar que tinham acabado de passar por uma situação caótica e traumatizante.

Aparentemente, a alegria dos dois também cativava o interesse da misteriosa guardiã que os ajudou. Em meio ao vai e vem de pessoas, a mulher encontrou um lugar para sentar junto ao fogo e assistia a brincadeira deles com olhos atentos e sérios.

O fato também não escapou à percepção de Rall, que recordou rapidamente seu encontro na estrada dois dias antes.

Embora a guardiã tivesse se mostrado reservada no início, já não aparentava se incomodar quando ele a interpelava sobre algo. De fato, quando a convidou para pernoitarem em Avardia, não imaginava que ela aceitaria a proposta e se mostraria uma boa companheira de copo. A moça sabia como beber e ainda estava completamente sóbria quando o ajudou a ir para o quarto, totalmente ébrio, na mesma noite em que chegaram ao vilarejo.

Ao que tudo indicava, ela estava mesmo cansada da estrada e resolveu aproveitar a bondade de Rall, ao se declarar seu parente para que pudesse pernoitar na estalagem por mais um dia.

A manhã ainda não havia se iniciado, e eles se preparavam para dizer adeus, quando a investida dos assaltantes começou. Era um bando mediano, porém suficiente para aterrorizar um vilarejo daquele tamanho, onde a coisa mais próxima de uma espada que os homens sabiam empunhar, era uma foice.

Foi um combate cruel. Por vezes, Rall se viu acuado e diante da morte certa, mas a guardiã o ajudou e ele fez o mesmo por ela em várias situações. Sua resistência acabou por fazer parte do bando assaltante se concentrar neles e permitiu que grande parte dos moradores fugisse para a segurança da floresta.

Em dado momento, foi a vez dos dois escaparem, entretanto os bandidos os seguiram e a guardiã se prontificou a ficar para trás e dar cobertura à fuga.

Tudo o que Rall recordava daquele momento, enquanto segurava Gael e incentivava os outros a correrem, era dos gritos dos bandidos atravessando a noite silenciosa da floresta.

Algum tempo depois, a guardiã os reencontrou. Ela tinha uma boa quantidade de sangue nas vestes, mas nenhuma gota era sua. Com efeito, o fato dela matar sem nenhum remorso aparente o incomodava, pois sabia que os juramentos da Ordem proibiam seus membros de tirar uma vida.

Estava certo de que Lenór havia percebido isso através do seu relato e dos moradores, também.

Ele afastou a vista para a comandante, que após encerrar a conversa com Elius, aproximou-se da fogueira com passos lentos. Rall a conhecia o suficiente para saber quando algo a incomodava em demasia e acabou trazendo o olhar para Vanieli, cujo semblante grave não escondia a curiosidade que a guardiã lhe inspirava.

Uma bela moça”, Rall pensou, se perguntando em seguida se Lenór já havia se dado conta disso ou ainda estava tão focada em sua missão, que não foi capaz de perceber que andava dormindo em tão bela companhia.

Ele torcia para que, se isso ainda não tivesse acontecido, que não demorasse muito para ocorrer. Afinal, elas já estavam casadas, era apenas uma questão de atitude. Lenór era uma boa mulher, contudo era dedicada demais às ações e tinha por hábito esquecer de cuidar de si mesma e do seu coração.

— Matik! — Gritou Gael, jogando-se nos braços de Lenór, quando esta sentou ao lado de Vanieli.

A Kamarie notou que o semblante carregado da esposa se desfez rapidamente para mostrar um sorriso para o menino que, Vanieli calculava, não devia ter mais que quatro anos. A comandante fez um carinho na bochecha dele, sorriu e o soltou para que retornasse para junto do avô.

— O que significa “matik”? — Vanieli perguntou para a esposa, mas foi o velho Rall quem respondeu com ar saudoso:

— É uma palavra que faz parte de uma canção popular nas Ilhas Lester.

Antes que ele continuasse, a guardiã resolveu abandonar o silêncio e explicou:

— Significa: Meu amor sem fim.

Ela não tirava os olhos de Lenór, desde que a comandante resolveu se juntar ao grupo em volta da fogueira. Alguns soldados conversavam baixinho ali perto, enquanto Adamus limpava sua espada, entregue a um silêncio humilhante, desde a surra que levou. Elius tinha se recostado à árvore sob a qual o tenente estava e mordiscava um pedaço de carne seca, enquanto a sopa que fervilhava no caldeirão sobre a fogueira, não ficava pronta.

Rall deu uma tapinha na perna, concordando:

— Sim, sim! É uma bela canção! A mãe costumava cantar para ele. Acabou que essa se tornou a única palavra que ele aprendeu a falar, ou quer falar. Gael não gosta muito de se expressar com as palavras, desde que a mãe faleceu… — Ele demonstrou um semblante pesaroso, que se refletiu no rosto de Lenór, e logo desapareceu para mostrar um sorriso largo. — Você é mesmo uma moça esperta, guardiã.

A frase foi a deixa ideal para que Lenór tomasse a palavra. Ela ficou de pé, curvou-se para a frente, em uma reverência singela, e disse para a guardiã:

— Obrigada pela sua ajuda. Sua intervenção salvou muitas vidas hoje. — A comandante se endireitou. — Mas também tirou algumas.

A guardiã sorriu de lado, já prevendo o que ela iria dizer a seguir.

— Dito isso, deixo claro que sou uma grande admiradora da Ordem. Tenho muito a agradecer a ela, principalmente, pela minha vida. E é por isso que peço que pare de desonrar esse manto. O juramento da Ordem proíbe seus membros de matar e nenhum guardião que se preze quebraria essa promessa.

A declaração trouxe silêncio ao local, interrompido apenas pelo crepitar do fogo e o fervilhar da sopa no caldeirão. Lenór ordenou:

— Livre-se desse manto agora ou eu mesma o tirarei. Você não é uma ordenada e não permitirei que continue se passando por uma.

A mulher riu alto, divertida com a situação em que se encontrava. Seus olhos percorreram a figura da comandante com curiosidade e também se pôs de pé, dizendo:

— Eu ouvi histórias pelo caminho até aqui. Após séculos de existência, Cardasin finalmente tinha uma mulher no exército e ela também era uma daijin. — Começou a retirar o manto devagar. — Pensei: “Levou milênios, mas é uma grande evolução para as tribos da Cardrasia! Antes tarde do que nunca”.

Em um passado longínquo, aquela região do continente paludiniano era conhecida como Cardrasia. Várias tribos a colonizavam e viviam em disputas constantes pelo domínio total do território. Em determinado momento da história essas tribos se uniram sob uma única bandeira, a região tornou-se um reino – Cardasin — e as tribos ficaram conhecidas como Clãs.

— De fato, não sou mesmo uma guardiã. — Ela admitiu. — Na verdade, sou tão ordenada quanto você é uma daijin.

Um ligeiro murmúrio se espalhou entre os homens em volta e Vanieli sentiu o impacto daquela declaração muito mais do que foi capaz de compreender naquele momento. Ela fitou Lenór como se estivesse diante dela pela primeira vez, novamente.

Por sua vez, Lenór deu um passo à frente. Ameaçadora, perguntou:

— E quem é você, afinal? Onde e como conseguiu o manto de um guardião? Por que finge ser uma ordenada, se não faz questão de sujar sua espada de sangue?

A mulher deixou o manto cair sobre a espada, que repousava no chão. Ela era tão alta quanto Lenór, mas aparentemente não tão forte fisicamente. Na verdade, tinha o aspecto delicado demais para alguém que empunhava a espada com tanta precisão, segundo os relatos que ouviram. Ela disse com um sorriso provocador:

— Respondo, se você me contar o que uma… — interrompeu-se, fazendo um gesto vago. — Desculpe, às vezes me confundo com os símbolos. — Ela apontou para os desenhos na pele de Lenór. — Essas são as tatuagens de um capitão, certo? Bem, tanto faz! A verdadeira questão é: “o que uma palatin de Barafor faz na Guarda Real de Cardasin?”

Um pequeno murmúrio se espalhou entre os soldados, e Adamus abandonou seu silêncio com evidente surpresa:

— Uma palatin?!

Ele encarou Lenór com alguma admiração e descrença. Os palatins de Barafor eram famosos em todo o mundo conhecido. Certamente, suas habilidades impressionavam e, dizia-se, tornar-se um deles era quase impossível. Não podia crer que aquela mulher fosse um deles.

Como se pudesse ler seus pensamentos, a estranha que se passava por uma guardiã falou:

— A surra que levou mais cedo, agora parece menos humilhante para você, soldado? — Ela riu baixinho. — Ainda estávamos longe, mas deu pra ver que foi uma bela coça.

O tenente se empertigou sobre a pedra em que sentava, claramente envergonhado. De fato, parecia que algo dentro dele se partiu quando a comandante o superou. Lenór decidiu-se por responder a pergunta dela, inabalável:

— Meu irmão morreu, eu herdei os títulos e as obrigações dele. É por isso que estou aqui. Mas de onde venho e o que já fui, agora é irrelevante. — Fez um gesto rápido. — É a sua vez.

A mulher deu de ombros, como se o que estava prestes a dizer não tivesse importância alguma.

— Eu não pertenço à Ordem de forma direta. Sou mais como… uma amiga. Vim até aqui em companhia da grã-mestra, que me deu o manto de guardiã por desejar evitar desconfianças em relação à minha origem. — Apontou para seu próprio rosto. — Como o Rall me disse em uma conversa anterior, não existem olhos como os meus por aqui.

Lenór fixou os olhos dela, admirando a cor violeta deles à luz da fogueira. Era impossível não perceber sua cor incomum. Havia revirado suas memórias e encontrado a resposta para isso no momento em que a viu ao lado de Rall, após deixarem a floresta. Todavia, aquele não era o momento para entrar no assunto e o deixou de lado.

— Você é florinae. — Afirmou a comandante.

— Sim. — Admitiu a mulher e em seguida se apresentou: — Nária é o meu nome, mas vocês podem me chamar de Voltruf.

 


Uou!

Acho que esse final de capítulo responde algumas dúvidas sobre o final da Volt em “A Ordem”. O que teve de gente querendo saber a resposta dela para a Marie! Haha…

Bem, amores, não consegui ilustrar nada para o capítulo de hoje. Mas espero fazer algo legal para a semana que vem.

Não esqueçam de curtir o capítulo ou me deixarem um recadinho. As meninas — Lenór e Vanieli — ficam muito felizes! rs…

Beijos e até a semana que vem!



Notas:



O que achou deste história?

14 Respostas para 6.

  1. Quebrei literalmente a cara, quem não achou que era Virnan? Tá de brincadeira, mas enfim, sanou algumas dúvidas que ficaram no ar kkkk
    Perfeito!!!

    • kkkkkkkkk…

      Admito que foi maldade minha. Hehe… Mas sim, a intenção era esclarecer a dúvida que deixei no capítulo final de “A Ordem”.

      Que bom que gostou!

      Beijos!

  2. Mds, eu tô berrando, amei essa capítulo, eu jurava que era a virnan, mas aí me toquei que ela não sairia de flyn e nem sem a marie, mas nunca que iria pensar que era a voltruf, pq ela é a spectru da marie e agora tô na curiosidade pra saber como ela tá tão longe dela?

    Mano, a virnan e a lenór lutando juntar seria gente correndo pra tudo que é lado, seria o demônio e o Satanás, não teria pra ninguém

    • Oi, Ruth!

      Perdão pela demora na resposta.

      Eu ri muito com a última parte do teu comentário. Muito bom! Haha…
      Bem, quanto a tua dúvida sobre a Voltruf estar tão longe da Marie, já respondi abaixo no comentário da Lins.
      Espero que a resposta lhe satisfaça.

      Te espero nos próximos capítulos!

      Beijos!

  3. Rapaz!!! Capítulo perfeito, desde a surra às revelações. Agora tô doida pra saber como a Voltruf está tão longe de Marie já que era seu spectru. ? Também pensei que fosse a Virnan.

    Querendo horrores outro capítulo, ????

    Abrs o/

    • Lins,

      Tudo bem?

      Que bom que curtiu o capítulo.

      Então, nada impede a Voltruf de se afastar da Marie. Na verdade, ela pode ir onde quiser sem a mestra. É a mesma coisa com Lyla e Virnan.

      A união Castir funciona de forma a dar uma forma física ao espírito. Então, ela é de carne e osso, também. O afastamento só limita a interação mental entre elas, já que é necessário estarem próximas para que isso aconteça.

      Há outras coisinhas, também, mas nada muito relevante.

      Quando a Marie convidou a Volt para ficar, a intenção era de que ela tivesse “liberdade” de caminhar por Domodo. Diferentemente do Bórian, que por não ter um laço com outro mago, só não é atraído para as Terras Imortais por ficar dentro dos limites de um círculo ou apegado a um objeto, como aconteceu quando ele viajou para Valesol com Melina e Marie.

      Enfim, é isso! rs…

      Beijão, visse?

      Até o próximo capítulo!

  4. Esse capítulo responde algumas perguntas, mas nem todas, Maga. rs
    Por exemplo, aquele anel que Lenór sempre olha com pesar é um compromisso assumido de honra com o velho, ou era um compromisso de casamento que ela tinha com a filha dele, mãe do menino?
    A surra contra o tenente foi ótima. Adoro quando babacas se dão mal! kkkkk
    Beijão, Maga! Tô que nem as meninas; É só terminar de ler que já quero ler o próximo. rsrs

    • Autora já vai logo de olho nos detalhes.
      Se eu responder as tuas questões, Mestra, vai acabar rolando spoiler. kkkk…
      Então, vamos deixar para os próximos capítulos.

      Que bom que você deu uma passadinha aqui.

      Beijão!

  5. Uau!!

    Mto bom, Vanieli se esconde nas pegadas de Lenór, mas isso vai mudar.
    Tanto fizeram q Lenór teve q tomar uma atitude… k k k DAR UMA SURRA
    NO IDIOTA DO ADAMUS… adorei… k k k
    Nária/Voltruf… quem diria… adorei ser ela quem ajudou Rall.

    Parabéns Tattah, arrasou no cap. bjs.

  6. Amei esse capítulo. Gostei da coça que o tenente levou, da esperteza do rei Mardus e de descobrir que a Voltruf ficou. Amei … Amei.
    Confesso que no capítulo anterior pensei que a estranha era a Virnan: cor de pele diferente, olhos estranhos e passarinho piando lá no céu… pensei mesmo que era a Virnam…. Da próxima vez vou esperar o vento se manifestar…

    • Oi, Flávia!

      Vá desculpando a demora na resposta. Fiquei muito feliz de ter conseguido te “enganar”.

      Perdão pela maldade.

      Beijos e obrigada pelo comentário.

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