O Festival de Mirdes

O Festival de Mirdes


*

— Ah, finalmente! — Fantin exclamou, assim que cruzaram os limites da floresta e pôde fitar os portões da cidade de Tamariana, ao longe.

O vento agitou a relva, trazendo alívio para o calor intenso. Ela passou a mão na testa, afastando os fios loiros e desgrenhados pela longa cavalgada. Secou o suor que lhe brotava com um sorriso satisfeito.

— Após tantos dias na estrada, esta é mesmo uma bela vista. — Disse o homem que cavalgava à frente dela.

Verdade fosse dita, a mesma satisfação e alívio que Mestra Fantin demonstrava se refletia nos demais integrantes da comitiva. E o motivo não era a cavalgada exaustiva ou má alimentação que tiveram nesse período, graças ao fato de terem doado grande parte dos seus víveres. Mas sim as lembranças amargas do que vivenciaram no condado de Niramar, do qual retornavam após mediar o fim do conflito que o abateu. Todos, sem exceção recordavam dos massacres que presenciaram e da miséria em que o povo foi atirado, sendo obrigado a escolher lados para não morrer de fome ou ser chacinado.

Algumas centenas de metros percorridos depois, o guardião Milan se voltou para exibir um sorriso amarelado sobre o ombro. Estavam diante dos portões da cidade, adornados com esmero por um grupo de mulheres, que curvaram-se em uma reverência respeitosa à passagem dos valorosos membros da Ordem.

O olhar de Milan encontrou o de Fantin e ele ajeitou-se na sela, antes de dizer:

— As flores deste ano estão lindas. — Voltou-se para cumprimentar os guardas nos portões.

Por onde passavam os cumprimentos respeitosos surgiam, afinal a Ordem era sinônimo de nobreza, não no sentido de riqueza e títulos, mas nos ideais de paz e igualdade que pregava, oferecendo mediação para conflitos e cura para as vítimas destes.

— Tamariana é sempre uma visão agradável com ou sem Festival de Mirdes. — Mestra Fantin concordou, reparando no sorriso raro que Mestra Alina dispensou para uma garotinha que lhe estendeu um ramo de flores, o qual ela pegou com um gesto suave e aspirou o perfume, deixando que o sorriso morresse tão rápido quanto surgiu.

— Mas com festival a estadia aqui é mais “prazerosa”. — A voz da guardiã Virnan se elevou, arrancando alguns risos dos ordenados mais próximos.

Ela cavalgava ao lado de Milan, exibindo um sorriso malicioso, enquanto agitava os cabelos longos para aliviar o calor. Fantin concordava com ela, mas não expressaria isso em voz alta. Não por uma questão de pudor, já que o festival tinha como uma de suas principais atrações uma noite de prazeres carnais e, sim, porque ela e a moça viviam em pé de guerra.

Próximo ao centro da cidade, a comitiva estacou diante dos portões de uma casa grande, cercada por muros altos e cheios de trepadeiras. Em um ponto discreto do portão de madeira, o símbolo da Ordem estava entalhado, indicando que aquele era um lugar de paz e cura. Embora não fosse um lar oficial da Ordem, existiam casas de apoio como aquelas em todos os reinos e grandes cidades do continente. Esses lugares ofereciam abrigo aos ordenados em sua viagens e, também, estavam abertos a todos os necessitados.

— Não é a Ilha Vitta, mas já me sinto em casa… — Fantin falou baixinho, satisfeita pela possibilidade de poder tomar um banho decente e recostar a cabeça em um travesseiro após tantos dias dormindo na estrada.

Ela tocou o sino ao lado do portão e este se abriu devagar, revelando um rosto magricela de um rapazinho espinhento, que sorriu lhes dando passagem. Fantin saltou do cavalo de modo intempestivo, ainda que com desenvoltura. Os pés fizeram ruído ao entrarem em contato com as pedrinhas no chão do pátio. Ela deu alguns passos, espreguiçando-se entre um gemidinho de cansaço e outro.

— Devia ser um pouco mais prudente, Mestra. — Milan recomendou. — Pode acabar se machucando, se continuar com essa mania de saltar do cavalo dessa forma.

Ele sorriu, amigável, e apeou devagar. Parecia estar demonstrando como ela deveria fazer. Como esperado, Fantin arqueou uma sobrancelha e ignorou-o.

— É um conselho inútil, Milan. Mestra Fantin é tão sutil quanto uma maça estrelada a esmagar cabeças. Qualquer dia, vai acabar quebrando o pescoço. — Brincou a guardiã Virnan, dispensando um carinho ao seu próprio cavalo e um sorriso provocador para a mestra em questão.

Os cabelos dela, negros e longos, balançaram ao vento quando desceu do animal. Tocou o chão suavemente e deu alguns passos cadenciados e silenciosos em volta de si mesma.

— Talvez devesse lhe dar um pouco dessa “sutileza” — Fantin bufou —, afinal estou lhe devendo uma resposta para aquela brincadeira idiota na estrada.

A moça riu alto, entregando as rédeas do cavalo para o mesmo rapaz magricela que abriu os portões. Desta vez, outros dois, recém saídos da casa, o acompanhavam.

— Ora, Mestra, foi só uma pequena peça. Eram apenas cipós. — Argumentou a guardiã, ainda com ar de deboche.

— Cipós que se pareciam bastante com cobras — relembrou Mestra Alina, assistindo a discussão, ainda sobre a montaria.

A guardiã aumentou o sorriso e caminhou até ela, lhe oferecendo a mão para auxiliá-la a descer do cavalo, enquanto se justificava:

— Já disse, foi apenas uma brincadeirinha. Não podem me culpar por tentar aliviar um pouco a tensão, após interceder no conflito em Niramar. Achei que precisávamos relaxar um pouco e rir.

Mestra Fantin cruzou os braços, rosnando:

— Estamos todos cansados e transtornados. É um fato que precisamos nos distrair, mas suas idéias de relaxamento sempre compreendem muita confusão e brincadeiras desnecessárias, Guardiã. E por que justo eu tenho de ser o alvo da sua infame tentativa de recreação?!

A moça não respondeu, em vez disso deu de ombros com uma ruguinha soberba no canto da boca e soltou a mão de Mestra Alina, que a inspecionava com evidente interesse. Virnan piscou para ela e reservou um carinho rápido para o cavalo desta, antes de retornar para perto do Guardião Milan, cuja a severidade dos traços não conseguia esconder que divertia-se com o diálogo.

Havia muito tempo, ele desistira de tentar mediar as discussões entre as duas e decidiu apenas divertir-se. Fantin continuou, acalorada:

— Sinceramente, não sei como Marie suporta você. Se tivesse sido minha aluna, em vez de ser dela, teria lhe ensinado a se comportar direito.

Milan coçou a cabeça antes de falar:

— De minha parte, acredito que foi sábio a Grã-mestra ter optado por Mestra Marie para orientar o treinamento de Virnan quando ela ingressou na Ordem. Com todo o respeito, vocês duas juntas acabariam por transformar o Castelo de Lonás em um amontoado de pedras e poeira banhado pelo mar.

Ele riu, acompanhado pelos outros guardiães e ordenados que integravam a comitiva. Até mesmo Mestra Alina, cujo semblante raramente desmanchava a seriedade, entregou-se ao riso.

— Os deuses sabem o que fazem! — O guardião Jovan brincou, arrancando mais risos dos companheiros que, aos poucos, foram se dispersando e entrando na Casa de Apoio da Ordem. Eles ainda exibiam semblantes abatidos e atormentados, mas o riso recente suavizou-os.

No pátio, restou apenas Fantin e Mestra Alina. Esta última caminhou devagar até a companheira de viagem e Círculo da Ordem. Ambas pertenciam ao Círculo dos Mestres, o da Sabedoria. Fantin retirou o saco de viagem da sua montaria, remoendo a raiva do ocorrido durante a viagem e sequer olhou para Alina quando ela lhe disse, com voz baixa e tranquila:

— Não ofereça mais armas para Virnan. Ela a provoca porque sabe que sua reação será sempre inflamada.

A outra deixou o saco cair, fitando-a com raiva e depois relaxou as expressões quando percebeu que o rompante a assustou.

— Essa mulher me irrita terrivelmente. Às vezes, me pergunto se ela será sempre assim, irresponsável. — Enfiou a mão nos cabelos. — Tenho sempre a impressão de que não leva nada a sério.

Mestra Alina balançou a cabeça com o olhar fixo na porta da casa. Inspirou fundo antes de retornar a atenção para ela. Não era seu hábito interferir nas relações alheias, mas achou por bem expor suas impressões. Afinal, Fantin costumava ter uma visão muito estrita das coisas e pessoas que a desagradavam. Não que elas fossem íntimas ao ponto de saber o que se passava na mente dela, contudo suas atitudes falavam claramente.

— Não creio que seja este o caso. — Revelou.

— Me convença. — Desafiou a outra.

A raiva de Fantin a intimidou por um momento. Estava claro que ela não tinha consciência do quão impressionante se mostrava quando perdia a calma. Ajudava o fato de haver sempre uma nota de brutalidade escancarada em sua voz. Alina pigarreou, fugindo da contemplação do rosto bonito e afogueado pelas emoções. Tomou um alento e continuou:

— Verdade seja dita, pouco sabemos sobre a vida de Virnan antes de se juntar a nós. Não podemos imaginar pelo o que passou até chegar à Ilha Vitta.

Fez uma pausa, passando as rédeas do cavalo para outro jovem membro da Casa de Apoio. O rapaz também levou o cavalo de Fantin consigo e por algum tempo o assistiram se afastar com os animais.

— Sei que você lembra do estado em que ela chegou até nós. Você mesma a ajudou a desembarcá-la e carregá-la para o castelo.

— Antes tivesse afogado ela. — Fantin resmungou.

Por um breve instante, Alina se perguntou se ela estava brincando ou se a ideia realmente a atraía. Preferiu entender como uma brincadeira, já que a Ordem tinha regras muito rígidas a respeito da violência, principalmente assassinato. Escorregou a mão para o queixo, como era seu hábito quando estava compenetrada em encontrar a resposta para uma importante questão ou tinha de dar uma explicação de uma forma simplória para alguém.

Fantin observou seu gesto com apuro. Bem sabia que Mestra Alina era de pouca conversa, exatamente porque as pessoas tendiam a ignorá-la quando se punha a falar sobre seus estudos na biblioteca da Ordem. Por um lado, a admirava e sentia pena dela. Por outro, às vezes se irritava com o silêncio que ela aprendeu a manter.

Todavia, se impressionava com o quanto Alina mudou com o decorrer do tempo.

Dezoito anos antes, quando auxiliou a grã-mestra Melina a recepcionar um grupo de novos ordenados, sequer lhe passou pela cabeça a ideia de que Alina se tornaria mestra e ascenderia ao Círculo da Sabedoria em menos de cinco anos de estudos — este era o círculo mais alto da Ordem, inferior, apenas, ao Círculo da Vida, que era ocupado somente pela Grã-Mestra.

Quando a viu desembarcar na praia, dando passos incertos na areia molhada, ela não passava de uma moça humilde e impressionável, que gaguejou um par de vezes antes de conseguir lhe cumprimentar adequadamente. “Um animalzinho assustado”, pensou na época, e imaginou se seria capaz de suportar as intempéries da vida de um ordenado. Chegou a conclusão que “não”, mas Alina e o tempo lhe provaram o contrário.

— Estou muito inclinada a concordar com Mestra Marie. — Disse Alina, arrancando-a de suas lembranças. — Ela me disse, várias vezes, que acredita que esse humor, no mínimo excêntrico e inconveniente, é a forma que Virnan encontrou para amenizar as intempéries de seu passado.

Baixou os olhos para o chão antes de retornar para a face de Fantin e encarar os olhos desta, azuis como o céu. A mestra era uma mulher de beleza estonteante e, naquele momento, ainda inflamada pela brincadeira da guardiã, tinha se tornado mais bela. Não era raro que estivesse sempre rodeada por homens e mulheres ou entregue a paixões passageiras.

Não era raro, também, que Alina se sentisse intimidada na presença dela.

Fantin a fitou de volta, estreitando os olhos como se estivesse entregue a avaliação do que disse. Na verdade, seus pensamentos vagavam para bem longe da existência de Virnan e sua possível história trágica de vida. O que se passava na mente dela era uma pergunta simples, que vinha se repetindo com frequência. Ela queria saber se estava próximo o momento em que Mestra Alina, finalmente, lhe confessaria seus sentimentos.

Havia algum tempo tinha percebido a forma como a bibliotecária a olhava ou o modo como se punha corada em sua presença, ainda que conseguisse se manter séria e objetiva. Eram pequenas coisas, atitudes que passariam e, com certeza passavam, despercebidas para a maioria das pessoas com as quais conviviam. Contudo, Fantin era uma mulher experiente e sabia reconhecer as paixões que inspirava.

Aquela mulher a queria, mas tinha por hábito sufocar suas emoções.

Por algum tempo, observar a atração que exercia nela a divertiu. Não por malícia, nem por vaidade; apenas lhe agradava o fato de saber que ela era capaz de se encantar com algo mais do que os livros e pergaminhos. Agora, esse sentimento de divertimento havia evoluído para algo incômodo.

Alina não a desagradava fisicamente. Pelo contrário, era uma mulher de feições aprazíveis e gestos gentis. Contudo, não podiam ser mais diferentes e Fantin ansiava pelo dia em que ela revelaria os sentimentos que carregava, apenas para que pudesse rejeitá-la gentilmente e acabar com aquela sensação de constrangimento que a assaltava sempre que estava na presença dela.

Entretanto, Fantin tinha quase certeza de que esse dia nunca chegaria.

O instinto lhe dizia que Alina era sábia o suficiente para reconhecer uma batalha perdida, mesmo que amorosa. Sendo assim, não empregaria esforço algum para revelar o que sentia e era essa atitude que irritava Fantin.

— Não é costume que eu deixe a biblioteca e venha em missões como essa, você sabe. — Alina tornou a falar, alheia ao que se passava com ela. — De fato, faz anos que não me afasto da Ilha Vitta… Pelo menos, não tão longe, nem por tanto tempo.

Fez uma pausa longa e os olhos castanhos pareceram perder o foco, demonstrando uma inquietante fragilidade. Com efeito, não era costume que Alina participasse de missões, exceto em alguns encontros diplomáticos, onde seu vasto conhecimento sobre as leis e costumes de todos os reinos do continente, era bastante apreciado.

Entretanto, alguns meses antes, a bibliotecária contraiu a febre vermelha de um dos muitos refugiados que buscavam cura na Ilha Vitta. Ela esteve bem próxima da morte e a sua recuperação foi lenta e dolorosa, graças as sequelas da doença. Após a fase crítica da doença, a apatia e falta de apetite a mantiveram na cama por mais tempo que o esperado e quando recuperou-se o suficiente para retornar às suas funções na biblioteca, não demonstrava o mesmo viço pelo trabalho que desempenhava; um sinal claro de que a doença ainda a consumia, mesmo que não fosse mais transmissível.

As preocupações de Mestra Marie, amiga íntima dela, se refletiam na Grã-mestra. Todavia, não sabiam como lidar com Alina, já que a febre vermelha, por vezes, levava suas vítimas a um estado de definhamento progressivo. Não tardaria para que ela retornasse para a cama e, provavelmente, não voltasse a sair dela. Alina sabia disso e parecia ter aceitado esse destino, até o dia em que a guardiã Virnan contou a Mestra Marie que certa erva curativa crescia às margens do Lago Tanahal. Não era a cura para a febre vermelha em seu estado crítico, mas se consumida da maneira correta poderia aliviar e curar as sequelas.

Houve certa desconfiança em relação a fonte da informação, devido a personalidade brincalhona da guardiã, mas ali estava algo que ela jamais faria: brincar com a vida de alguém. Virnan jurou que dizia a verdade e juramentos na Ordem eram levados muito à sério.

Como a missão para mediar o conflito em Niramar era dada como certa, Alina uniu-se a ela. Pois, coincidentemente, a cidade ficava às margens do Lago Tanahal. Segundo a guardiã, a infusão com as folhas da planta deveria ser preparada assim que elas fossem colhidas. Não haveria efeito curativo se usassem folhas murchas ou secas.

Portanto, seu trabalho em Niramar ia muito além de pôr fim a um conflito que se arrastava por meses. Se tal planta realmente existia, poderia ser a salvação de Mestra Alina e, também, de centenas de doentes que a Ordem recebia todos os anos.

Agora, depois de dois longos meses, retornavam para casa com a sensação de dever cumprido e uma sacola de sementes da milagrosa planta.

— Foi a primeira vez que viajei sob a proteção dos guardiães Milan e Virnan. — Alina voltou a falar. — Confesso que não sabia o que esperar, mas perante as desgraças que vimos em Niramar, o humor deles foi um alento.

À contragosto, Fantin concordou. De fato, a viagem se tornou menos penosa ante o riso daqueles dois.

— Não estou justificando as brincadeiras dela, — Alina apressou-se a esclarecer — nem eu mesma escapei de suas peças. Apenas acho uma dádiva que consiga rir após todo o sofrimento que vimos. Além disso, graças a ela, me sinto como se nunca tivesse estado doente.

Daquele ponto, Fantin não podia e nem iria discordar, então acabou por se entregar a novas conjecturas. Desta vez, referentes ao seu próprio passado e experiências com a guerra. Alina estava certa, era mesmo uma dádiva encontrar o riso após presenciar inúmeras desgraças. Quis dizer isso a ela, mas acabou por manter o silêncio. Por fim, Alina empertigou-se, passou as mãos nos cabelos assanhados pelo vento e começou a se afastar, dizendo:

— Bem, perdoe-me por interferir em assuntos que não me dizem respeito. Vou entrar e me acomodar. A viagem foi longa, mas estou grata porque passaremos alguns dias aqui, à espera do navio que nos levará para casa.

**

A noite já ia adiantada quando Mestra Alina despertou.

O cansaço da viagem a dominou completamente, após comer algo e banhar-se. Acordou em meio à escuridão do quarto e fitou o vazio por algum tempo, antes de decidir ir em busca de algo para molhar a garganta.

Caminhou pela casa estranhando o silêncio que a tomava e permitia que seus passos causassem eco. Enfiou a mão nos cabelos, perguntando-se se tinha dormido demais e já era madrugada. Mesmo que fosse o caso, haveria alguém acordado, já que a casa estava sempre de portas abertas e disposta a receber os necessitados a qualquer hora do dia ou noite.

Cansada de vasculhar os cômodos, que não eram poucos, decidiu-se a ir para o pátio. Lá, com certeza encontraria alguém fazendo a vigilância.

Estava correta.

No meio do pátio, uma fogueira ardia, enquanto os guardiães Virnan e Milan compartilhavam vinho. Não havia mais ninguém à vista, embora os portões estivessem abertos, convidando qualquer um a entrar.

— Onde estão todos? — Indagou a mestra, sentando em um dos bancos ao redor do fogo.

A guardiã deu de ombros, suavemente. Foi um movimento tão leve, que Alina quase não o percebeu. Virnan deitou-se, silenciosa, sobre o banco que ocupava. Coube a Milan responder a pergunta, o que ele fez ao balançar uma máscara de tecido vermelho com jeito brincalhão e um sorriso largo. O gesto sempre o fazia parecer mais jovem e, certamente, seria assim constantemente se ele abdicasse da barba longa e grisalha.

— No festival, Mestra. Não recorda?

Desconcertada, ela levou uma mão a cabeça, fazendo uma pequena careta. Tinha esquecido completamente que chegaram no dia em que se comemorava o Festival de Mirdes.

— Me perdoem. Foi um lapso.

O homem tornou a sorrir, gentil.

— Você estava bastante cansada da viagem, acabou de despertar. É natural que se sinta um pouco confusa. — Tomou um gole do vinho e perguntou: — Não pretende ir?

Ela se empertigou, mostrando-se ligeiramente desconfortável.

— Esses eventos não me apetecem — confessou.

O crepitar do fogo e o vento que balançava a macieira próxima ao estábulo, foram os únicos sons que captaram antes dela abandonar o silêncio que a tomou e indagar:

— Então, por que não foram também?

Milan desistiu da contemplação do fogo e sorriu de forma preguiçosa, enfiando uma mão nos cabelos também grisalhos.

— Acho que estou ficando mesmo velho. Tudo o que desejo fazer é dormir a noite inteira sem me preocupar com os perigos que a estrada oferece. — Se pôs de pé, esticando-se. — Em outros tempos, teria me atirado na farra sem pestanejar, mas agora meu coração se aquietou e anseia retornar para os braços da bela que deixei na Ilha Vitta.

A mestra sorriu ante resposta, balançando a cabeça em aprovação. Pousou o olhar na guardiã, que mantinha-se atenta ao céu noturno. Uma máscara repousava em seu colo, enquanto um dos pés balançava recostado no joelho da outra perna.

— E você, Virnan? — Não conseguiu evitar a curiosidade, já que a moça fazia bem o tipo de pessoa que costumava frequentar festivais como o de Mirdes. — Você era uma das pessoas mais animadas com isso esta tarde. Incentivou todos a irem.

Virnan sorriu, irônica. Era algo comum às suas feições, tanto que às vezes era difícil descobrir quando não estava sendo irônica, o que não era o caso naquele momento.

— Incentivei?

— Certamente. — Se demorou a admirar o rosto jovem e moreno, ainda voltado para o firmamento. — Seu entusiasmo contagiou os outros. No entanto, você está aqui. Você é jovem e…

Uma risadinha suave escapou de Milan, junto com um fungado. Ele cofiou a barba e disse:

— Perde seu tempo, Mestra Alina. Já usei esse discurso com ela, mas esta é a terceira vez em que nos encontramos em Tamariana durante o festival e Virnan nunca participou dele. — Arriscou um sorriso debochado, mas o dele não combinava com sua fisionomia benevolente. — Essa daí só tem olhos para certa pessoa, amiga sua, que está nos aguardando na Ilha Vitta.

— Ah! — Alina deixou escapar, um pouco constrangida.

A Ordem era uma comunidade pequena, assim como a ilha que habitava. Fofocas eram inevitáveis e, certamente, todos haviam percebido a paixão da guardiã pela tutora, Mestra Marie. Contudo, as duas nunca passaram da amizade.

— Não fale do que não sabe, velho! — Queixou-se Virnan em tom de brincadeira. — Não só meus olhos pertencem a Marie, meu coração também.

— Eu sei disso, a Ordem inteira sabe disso. — Cantarolou Milan.

Alina balançou a cabeça com um risinho. Só teve uma real ideia do carinho entre os dois guardiães, naquela viagem. Antes disso, só havia observado os dois interagindo no salão de refeições do castelo e algumas vezes durante os treinamentos obrigatórios no salão de armas, onde ambos costumavam se mostrar sérios e objetivos.

— Bem, se é assim, — Milan continuou no mesmo tom que ela — você deveria se declarar de uma vez e parar de persegui-la com esse olhar de animal faminto. Sabia que existem apostas entre os ordenados sobre se você vai ou não fazer isso?

A moça arqueou a cabeça, fitando-o com uma sobrancelha arqueada. A ideia lhe parecia cômica, era evidente.

— Deixe-me adivinhar, você apostou que eu vou e por isso me incentiva tão “carinhosamente”.

— Garota esperta! Minha melhor guardiã. — Ele riu mais alto, balançando o copo antes de entornar o resto do vinho nele.

— Não deixe que Petro ouça isso ou teremos uma guerra de verdade na Ordem. — Ela zombou. Afinal, todos sabiam que o guardião citado desgostava de seu comportamento e, por diversas vezes, queixou-se dela diretamente à Grã-mestra.

Os dois riram novamente e Alina fez um gesto suave para o Líder do Círculo de Proteção, quando ele se despediu das duas e entrou na casa com passos gingados, enquanto assoviava baixinho. O fogo crepitava, quase hipnotizante, quando Virnan virou-se para a mestra, arqueando o tronco e apoiando a cabeça na mão. Finalmente, resolveu responder a pergunta de Alina com seriedade.

Explicou, serena:

— Não preciso de um festival para aliviar o mal-estar que nosso trabalho em Niramar trouxe.

Esticou a mão para o copo de vinho que repousava no chão à frente do banco. Tomou um gole longo, fitando as chamas e prosseguiu:

— Se aparentei estar animada com esse evento, é porque nossos companheiros precisavam se aliviar e esse festival veio bem a calhar. Teria agido da mesma forma, se estivéssemos pousando em uma vila no meio do nada. Diria para encontrarem a taverna mais próxima e beberem, dançarem e brincarem a noite toda. — Curvou os lábios rosados. — Quando o dia raiar, teremos risos em vez de murmúrios e semblantes desgastados pelas memórias dos últimos dois meses.

Mestra Alina abanou um pouco da fumaça que o vento lhe atirou à face, admitindo:

— Estou impressionada com o seu discernimento. Afinal, você não é apenas deboche e brincadeiras.

Virnan a focalizou com uma sobrancelha arqueada.

— Talvez eu seja, Mestra. — Tomou mais um pouco de vinho.

— Marie não acredita nisso e eu também não. — Resolveu ser sincera.

A mestra cruzou as pernas, concentrada na figura dela. Sua amiga, Marie, costumava lhe falar que a pupila era mais do que deixava transparecer. Por algum tempo, acreditou que a amiga estava enganada, já que a guardiã raramente se permitia agir com seriedade diante de outros. Os últimos dois meses provaram que foi ela, Alina, a enganar-se.

Com efeito, desde que a moça ingressou na Ordem, havia quase dez anos, que não conversava com ela sem a companhia de outros.

— O que irá aliviar seu “mal-estar”, Guardiã? — Novamente, entregou-se à curiosidade do momento.

Virnan sentou-se, emborcando o resto do vinho goela abaixo. Tornou a encher o copo e pegou um outro para a mestra, que o aceitou com um agradecimento murmurado.

— Toda a tristeza e miséria que trouxe comigo de Niramar, irá desaparecer quando meus olhos divisarem a Ilha Vitta. Saberei que estou em casa e estarei em paz.

Novamente, Alina surpreendia-se com a resposta e a moça percebeu.

— Eu já caminhei pelos campos da morte, já assisti as desgraças que os homens podem realizar… — Virnan sorriu de lado, como se afastasse um pensamento inconveniente. — Posso assistir a morte de dezenas de pessoas sem pestanejar, mas isso não quer dizer que não me dói e que não foram poucas as vezes, nessa missão, que desejei quebrar meu juramento pacifista à Ordem, apenas para dar um pouco de justiça àquela pobre gente de Niramar.

Ela bebeu mais um pouco e observou as estrelas. Pela primeira vez em anos, Alina manteve o silêncio, não porque o desejasse, mas sim porque não tinha palavras. Todavia, não durou muito.

— Perdoe-me se estou sendo demasiado curiosa, mas seu conhecimento sobre aquela planta pode ter me salvado a minha vida e de muitos outros. Faz parte do meu trabalho na biblioteca, me inteirar do conhecimento de nossos ancestrais e, também, propiciar que novos métodos de cura sejam criados, afinal não podemos nos ater apenas ao uso da magia. Estudei centenas de plantas, mas nunca ouvi falar na “daliva”. Como sabia sobre ela?

Ao longe, a música do festival cresceu entre centenas de vozes. Virnan se pôs de pé e começou a dançar, arrancando um sorriso de Alina. Eram passos estranhos, mas harmoniosos. De modo algum haviam sido inventados naquele momento, tampouco eram resultado de movimentos de uma bêbada, coisa que a moça não estava.

— Você sabia, Mestra, que Mirdes era, na verdade, uma rainha Enaem?

Alina tentou não parecer decepcionada pela fuga do assunto e ouviu com atenção.

— Ela deveria marchar para a guerra, mas ao contrário de seus antecessores, buscou uma solução pacífica para o conflito que batia à sua porta. Convidou os líderes inimigos para um debate e quando eles chegaram, traziam consigo um exército. Mirdes então, resolveu realizar um festival para promover a paz entre os povos. O festival foi um sucesso, regado a bebidas afrodisíacas. Infelizmente, ela não alcançou a paz almejada naquela noite, mas o festival continuou sendo recriado ao longo dos séculos. Não pela luxúria, mas como o símbolo e desejo de novos ciclos.

— Não me lembro de ter encontrado qualquer referência a essa versão nos meus estudos. — Retrucou, curiosa.

Virnan bebeu mais um pouco e enxugou uma gota de vinho que escorreu até o queixo.

— Creio que seja mais romântico imaginá-la como uma deusa. — Sorriu com ar cansado. — Toda lenda tem um fundo de verdade e toda verdade pode ser distorcida ou perder-se ao longo do tempo. Tradições sobrevivem aos séculos, mas dificilmente permanecem iguais ao momento em que foram criadas.

Espreguiçou-se, com a face voltada para o céu estrelado, depois olhou a fogueira e, por fim, a mestra.

— Mesmo que não seja um hábito seu, deveria ir ao festival. Às vezes, fazer algo diferente nos traz um grande alento. Um pouco de vinho e uma boa companhia ajudarão a afastar esse semblante abatido. — Recomendou.

— Já disse que essas coisas não me apetecem e, pelo que entendi, você não é a mais indicada para me dar esse conselho.

A guardiã riu de lado, coçando a bochecha.

— Eu já estou fazendo o “algo” diferente. — Deu de ombros. — Você só precisa vivenciar algo divertido e relaxar, Mestra. Esquecer quem é por um momento e criar boas memórias para apagar as antigas e ruins. Você é uma estudiosa, então considere isso como uma oportunidade única de observar o comportamento humano em um festival que, provavelmente, não voltará a frequentar. — Piscou, sabichona.

— Você é uma mulher estranha.

— Obrigada. — Sorriu mais largo.

— Isso não foi um elogio.

— Mas prefiro enxergar assim. Ser estranho é divertido. Significa que me destaco dos demais — entregou-lhe a máscara que segurava.

Alina fitou o objeto como se fosse um animal peçonhento. Por fim, disse:

— Tudo bem, eu irei. Sob uma condição…

A guardiã cruzou os braços, com o característico sorriso sarcástico.

— Estou ouvindo.

— Você me diz como sabia da planta e eu dou uma chance à Mirdes.

Os cabelos de Virnan balançaram com o vento forte que as envolveu. Ela chutou uma pedrinha no fogo, enquanto ria.

— Sua sede de conhecimento é um pouco assustadora. Sabia?

A mestra sentiu o calor tomar conta das bochechas e isso nada tinha a ver com as chamas da fogueira. Lhe incomodava que as pessoas interpretassem seus anseios dessa forma. Era exatamente por isso que costumava se manter isolada do resto da Ordem.

— Não me entenda mal, Mestra. Não acho isso ruim. Conhecimento é poder e isso nem sempre quer dizer sobrepujar os outros. Acho você uma mulher admirável. Você almeja compreender o mundo à sua volta e as pessoas que o habitam, só tome cuidado para não esquecer de si mesma.

Espreguiçou-se vagarozamente, como se fosse um felino. Em verdade, o verde claro dos olhos dela sob a luz amarelada da fogueira, recordavam os olhos de um animal.

— Talvez seja o vinho… Talvez seja apenas a vontade de ver você abandonar sua zona de conforto e se aventurar em uma noite de prazeres com estranhos… — Sorriu, pensativa. — Eu poderia lhe contar o que quer saber e muito mais, todavia não tenho obrigação de fazê-lo.

— Está tentando me provocar como faz com Fantin?

— De modo algum, mas seria divertido ver você perder a calma. Isso é possível?

Os olhos de Alina se estreitaram.

— É, mas você não tem esse poder sobre mim.

Virnan deu de ombros, aumentando o sorriso, antes de se voltar para a casa e caminhar em direção a ela.

— Vá para a praça, Mestra. Você passou por muito nos últimos meses e merece um momento de relaxamento. Se desprender das amarras que se impôs, ao menos uma vez na vida, não irá lhe fazer mal.

***

Talvez tenha sido a conversa com Virnan ou aquela estranha sensação que a assomou após a guardiã se recolher, fato era que Mestra Alina decidiu ir ao Festival de Mirdes.

Despiu-se das vestes de ordenada e vestiu as roupas comuns a uma mulher do povo. Pensou em desistir, ainda nos primeiros passos que deu além dos portões da Casa de Apoio. Contudo, Virnan estava certa: não lhe faria mal abandonar um pouco da timidez e viver algo que lhe estranho. Ajudava o fato de que ninguém poderia reconhecê-la, já que um dos atrativos do festival era o uso de máscaras, o que garantia o anonimato aos participantes e atraía multidões para Tamariana naquela época do ano.

Embora as homenagens a Mirdes se repetissem em todos os reinos do continente, era na cidade de Tamariana que elas eram mais expressivas.

Alina ajustou a máscara de tecido vermelho antes de se deixar engolir pela multidão. Um dos muitos servos da cidade, que circulavam pela praça, lhe entregou uma pequena garrafa de cerâmica com um símbolo branco. A mestra a atou na cintura, assim como as pessoas em volta fizeram. Recebeu uma caneca de cerâmica e a encheu com vinho, antes de ser engolida pela multidão. Aos poucos, a bebida começou a fazer efeito e deixou-se conduzir por um dúzia de pares, rindo e dançando como nunca tinha feito antes.

Em dado momento, a música parou e os servos cruzaram a praça tornando a encher os copos, enquanto um sacerdote declamava um poema para Mirdes e mulheres vestidas de branco atiraram pétalas de flores sobre as pessoas quando ele findou e os músicos retornaram aos instrumentos.

A chuva de pétalas ainda caía, quando Alina se deu conta de que era observada por uma mulher. Ela era linda, na medida do que era possível enxergar. Dançava graciosa e sedutoramente, com um sorriso devasso, quente e convidativo. O corpo voluptuoso, movia-se lentamente, capturando não apenas o olhar de Alina, mas de todos em volta.

Não era hábito da mestra se relacionar com mulheres, embora já tivesse tido suas aventuras com o sexo feminino. Mas algo naquela mulher a encantou e foi inevitável chegar mais perto dela que, claramente, tentava seduzi-la. Ela era loira e as madeixas longas derramavam-se sobre os ombros como uma cascata. Quando a pretendente pousou a mão na sua cintura, Alina teve um breve momento de lucidez e perguntou-se o que estava fazendo ali.

A loira lhe sorriu, oferecendo um gole da bebida na garrafa que segurava. Alina reconheceu o símbolo branco nela, o que significava que o conteúdo era afrodisíaco. Um novo instante de dúvida a tomou.

Iria mesmo se arriscar a ingerir uma bebida desconhecida e, talvez, deitar-se com aquela estranha?

Não. Isso não era do seu feitio.

Ela gostava de olhar para a face daqueles a quem se entregava. Então, sorriu para a mulher, fez um gesto de desculpas e se afastou. Sentiu os olhos dela perseguindo-a, mas não se voltou.

Uma mão lhe tomou o braço e foi arrastada por um homem até o meio da praça. Ele lhe ofereceu a bebida também, mas assim como fez com a mulher, ela o rejeitou. Era assim que as coisas aconteciam no festival. Ali, quase tudo era permitido em relação aos prazeres carnais, mas o respeito imperava. Você tinha de aceitar ou oferecer sua bebida para a pessoa que lhe interessava. Palavras não se faziam necessárias, nomes não eram pronunciados, não havia ressentimentos ou culpas no dia seguinte.

A mestra dançou com o homem; dançou com uma dezena de homens e meia dúzia de mulheres, mas só. Vez ou outra, ela se deparava com os olhares e sorrisos lascivos da loira, que também dançou e brincou com uma dezena de pessoas, mas não se prendeu a ninguém.

A guardiã Virnan tinha razão, afinal. Fazer algo diferente era gostoso e realmente relaxante.

A meia-noite se aproximava quando Alina decidiu que já tinha se divertido demais e começou a se afastar, tomando a direção em que a Casa de Apoio ficava. Contudo, algo a fez parar. Recostou-se a um dos postes que iluminavam o entorno. A chama da tocha sobre sua cabeça balançou com o vento que percorreu a rua, quase deserta, naquele ponto da cidade, embora ainda estivesse próxima à praça. Alina inspirou fundo, ouvindo a música e admirando o céu estrelado.

Um tipo estranho de paz a tomava, lhe causando certa admiração. Todavia era muito agradável e ficou assim por um tempo até que percebeu que tinha se tornado alvo de contemplação.

Do outro lado da rua, a loira da praça a observava, recostada a outro poste, cuja tocha oferecia uma parca iluminação. Mas era ela, sem dúvida. Ela lhe sorriu e algo se revolveu em nas entranhas de Alina. Uma loira… Uma mulher de cabelos claros e corpo formoso, como aquela que habitava seus pensamentos e coração havia anos.

O vento soprou forte, arrastando consigo algumas das pétalas de flores da praça. As chamas das tochas tremularam, tornando a visibilidade ainda mais precária e o aparecimento de um casal entre risos, cortou a linha invisível que unia os olhares das duas. A mestra dedicou a atenção aos recém-chegados e quando voltou a olhar para o outro lado da rua, a loira não estava mais lá.

Com efeito, aquela era uma noite carregada de novas e estranhas sensações para Alina e, naquele momento, experimentou uma nova. Um sentimento de perda a tomou, como se forças invisíveis estivessem dizendo que não iriam mais lhe ofertar oportunidades como aquela.

Ela inspirou fundo e sorriu para o vazio, dizendo a si mesma que era melhor deixar para lá. Aquele tipo de coisa não fazia seu gênero e riu por ter cogitado a ideia de passar a noite com a loira.

Deu um passo atrás, planeando retornar ao seu caminho. A temperatura havia caído rapidamente e o vinho que consumiu em excesso durante a participação nos festejos, já não era capaz de aquecê-la. Esbarrou em algo quente e macio. Voltou-se e teve uma grata surpresa ao perceber que era a loira.

Na parca luz oferecida pela tocha no poste, Alina notou que os olhos dela eram claros, mas não conseguiu definir se azuis ou verdes. Todavia, achou-os bonitos e imaginou que a face debaixo da máscara era igualmente bela. A loira sorriu de novo e, sem aviso, envolveu sua cintura e a beijou.

Não era assim que as coisas deviam acontecer. Alina tinha de lhe dar permissão para fazer aquilo, mas a ideia de a empurrar ou reclamar sequer lhe chegou aos pensamentos. A trouxe para mais perto e a beijou com a mesma voracidade, apreciando o sabor do vinho nos lábios dela e o cheiro das pétalas de flores presas em seus cabelos.

Depois disso, tudo ocorreu sem pressa. Tomou da bebida da garrafa que ela ofereceu, aceitando seu convite e ela fez o mesmo. Sem que nenhuma palavra fosse trocada, elas caminharam de mãos dadas e adentraram na primeira estalagem que viram. Pouco lhes importava as paredes finas e descascadas ou o colchão duro da cama estreita. Naquela altura, a bebida já tinha atingido o ápice de seus efeitos, mas a mestra estava certa de que se sentiria da mesma forma mesmo que não a tivesse tomado.

Assim que a porta do quarto fechou, o chão reivindicou as roupas. E as mãos da loira queimaram sua pele, e os lábios deixaram um rastro de prazer por onde tocavam, enquanto ela sussurrava as coisas que ansiava fazer com seu corpo. Alina sentia a pele arrepiar a cada palavra que ouvia da voz rouca e sedutora.

O timbre dela lhe parecia familiar, mas era fato conhecido que as bebidas dos festivais mexiam com os sentidos e nada podia ser tido como certo após ingeri-las, exceto o prazer que proporcionavam. Efeito que a mestra estava disposta aproveitar completamente.

E, assim, o mundo além daquelas quatro paredes deixou de existir e Alina se desfez de qualquer inibição. Tomou as rédeas do prazer para si e conduziu o adorável presente que Mirdes lhe deu para o clímax. Bebeu dos lábios dela, encantou-se com seus suspiros e gemidos, realizou-se e compartilhou do seu gozo, entregando-se a ela na mesma medida.

** **

O dia se iniciaria em breve, já era possível ouvir o canto de alguns pássaros madrugadores.

Mestra Alina sentou-se na cama, ainda sentindo os efeitos do último orgasmo que teve. Pelo o que recordava, nunca vivenciou uma noite de prazeres como aquela. Sorriu ao sentir a mão da amante, deslizando por sua barriga. Como ela tivesse se mantido imóvel por algum tempo, acreditou que estava dormindo.

Voltou-se para fitá-la na penumbra, já que a vela que iluminava o quarto, havia muito, tinha derretido completamente. Se ela recomeçasse com as carícias, não teria forças nem vontade de abandonar o quarto. Entretanto, o efeito do afrodisíaco havia passado e agora que conseguia pensar com clareza, retornava ao costumeiro estado de espírito. Fora uma noite deveras agradável, mas a realidade a chamava de volta ao cotidiano e deveres.

Os dedos da loira deslizaram sobre a marca de nascença que tinha no ventre e Alina baixou os olhos para o local. A marca tinha uma cor rosada, como se fosse uma cicatriz. Possuía um formato engraçado, que recordava um pássaro. A loira a tracejou devagar, como se estivesse tentando decorar os detalhes e, por fim, puxou Alina para si. Não para recomeçar o ciclo do prazer, mas sim para apreciar um pouco mais da sua companhia. Gesto que a mestra apreciou imensamente.

Era uma adorável ilusão, Alina pensava.

Longe de todo o prazer carnal que dividiram, era aquele momento de contemplação e suave sentir do calor que seus corpos emanavam, que a fez se sentir realizada. Afinal, havia muito tempo que não via o raiar do dia entre os braços de alguém.

Um galo cantou ao longe, recordando-a de que tinha de partir. Com um suspiro de lamento, ela fez um carinho no queixo da amante, beijou o local e arrastou-se para fora da cama. Catou as roupas espalhadas pelo chão e começou a se vestir.

A loira permaneceu imóvel, observando-a com apuro. Uma ruguinha de satisfação imperava no canto da boca dela, acentuando a beleza dos lábios carnudos.

Alina terminou de se vestir, passou a mão nos cabelos e a encarou, emudecida. Queria dizer algo, contudo achou que um simples “obrigado” soaria demasiado seco e impessoal. Mas, afinal, havia algum cumprimento adequado para um situação como aquela? Acabou optando por um sorriso singelo e um tanto sem graça. Fez uma ligeira reverência para se despedir e começou a se encaminhar para a porta. Contudo, a loira saltou da cama e lhe tomou os lábios uma última vez.

O beijo foi tão impetuoso que o laço que prendia a máscara dela, já frouxo após a longa noite, se desfez. Então, quando se afastaram, a máscara caiu e o rosto dela foi revelado.

Mestra Alina admirou a pele alva e as sardas quase invisíveis sobre o nariz afilado. Pequenas e discretas rugas se formaram em volta dos olhos azuis celeste quando ela sorriu, acentuando a beleza dos traços. O ar faltou a Alina, por um momento, quando ela levou uma mão a boca, mordendo-a para que não deixasse uma nota de eto escapar na forma de um gritinho. À sua frente estava mestra Fantin, nua em pelo.

Fantin riu, apanhando a máscara do chão e atirando-a sobre a cama com um dar de ombros. Sentou-se, dizendo:

— O dia chegou, afinal, então não preciso mais dela. — Fez um gesto suave. — Agradeço pela noite, minha bela, e espero que tenha lhe sido tão ou mais satisfatória que a minha. — Sorriu.

Alina escondeu as mãos, para que não as notasse trêmulas. Endireitou-se, tentando parecer confortável com o fato de que tinha passado a noite com a mulher que amava há anos e ela sequer imaginava isso. O coração batia loucamente no peito e a dificuldade de respirar aumentou.

Mestra Fantin tornou a ficar de pé, evidentemente divertida com o seu silêncio. Aproximou-se devagar.

— Apreciaria mais uma hora em sua companhia, mas compreendo que deve partir. — Chegou mais perto, tão perto que Alina pôde sentir o seu cheiro nela. — Um beijo de despedida, então?

Curvou-se para beijá-la, mas Alina sentou a mão em seu ombro, impedindo-a de continuar. Ainda em silêncio, ela forçou-se a retribuir o sorriso, então inclinou-se levemente e saiu do quarto.

** * **

Fantin observava o mar revolto, na torre sul do castelo de Lonás na Ilha Vitta, quando notou a aproximação de Mestra Marie e Mestre Lian.

Três meses haviam transcorrido desde sua passagem por Tamariana, mas todos os ordenados que integraram a comitiva que atuou em Niramar ainda demonstravam traços de apatia, ante a experiência negativa que por lá tiveram. Ela era um deles e, por vezes, se pegava a recordar momentos traumatizantes. Daquela viagem, somente o festival de Mirdes deixou boas lembranças.

Ela fitou a amiga, Marie, concentrando-se nos sinais que ela fazia com as mãos, já que era muda.

A Grã-mestra deseja uma reunião com todo o Círculo da Sabedoria.

Foi o que ela disse e Mestre Lian complementou:

— Recebemos notícias do continente. A família real de Trícia está pedindo nossa ajuda para resolver um impasse com Bantos.

— Essa gente deveria se preocupar mais em governar e propiciar uma boa vida ao povo, do que se meter em confusão e vir correndo para nos pedir que limpemos a sujeira deles. — Fantin resmungou.

Mestre Lian a fitou com severidade, todavia não se privou de concordar fazendo um gesto com a cabeça.

— É para isso que estamos aqui, afinal. — Disse ele. — Precisamos decidir quem irá, desta vez.

As mãos de Mestra Marie tornaram a traçar sinais no ar.

Já avisamos quase todos os mestres, você poderia procurar Alina na biblioteca? Lian e eu precisamos nos reunir com Milan.

— É quase certo que ele irá querer ir com o grupo. — Disse Lian, já se afastando.

— Bem, não pretendo me canditar para esta missão. Diplomacia não faz parte dos meus dons. — Informou Fantin. — Todavia, espero que Milan leve Virnan consigo. Seriam algumas semanas de paz e tranquilidade longe daquela peste.

A risada de Lian foi abafada pelo vento e Fantin fez um gesto de desculpas para Marie, dizendo:

— Estou brincando, mas não nego que apreciaria um tempo longe da sua pupila. — Sorriu e deu um tapinha no ombro da amiga, antes de ir cumprir a tarefa que lhe pediu.

A noite se aproximava e as tochas já haviam sido acesas nos corredores do castelo. Ainda assim, era uma iluminação precária que, por vezes, propiciava alguns acidentes. Fantin demorou mais que o previsto para chegar à biblioteca na torre oeste do castelo e o motivo era o fato de que não desejava se encontrar com Mestra Alina.

Havia percebido o esforço dela para evitá-la nos dias que se seguiram ao festival de Mirdes e ele só aumentou após retornarem à Ilha Vitta. Não sabia o motivo, apenas conjecturava que a mestra dos escritos havia decidido sufocar seus sentimentos até esquecê-la. Por um lado, o afastamento de Alina a satisfazia. Por outro, a incomodava.

Simplesmente, não conseguia suportar o jeito retraído da bibliotecária.

Ela, Fantin, era naturalmente expansiva. Não conseguia ocultar seu desagrado por certas coisas e pessoas e também era assim quando se sentia atraída por alguém. Ela desejava, logo ia atrás de quem conquistou sua atenção e afeto. Pessoas como Alina, que reprimiam seus sentimentos, a irritavam. Contudo, não podia negar que o afastamento dela a deixava desconfortável, afinal tinha se acostumado com os olhos dela perseguindo-a pelos corredores.

— Ah! — Estalou os lábios, fitando a porta que levava para o interior da biblioteca. — É apenas um recado…

Empurrou a porta e entrou, esbarrando em meia dúzia de jovens ordenados que saíam apressados. Não conseguiu evitar o riso. Era igual com todos quando tinham de passar uma tarde na biblioteca. Não importava a idade deles, sempre pareciam ansiosos por ar puro, após uma aula no local. Ela jamais os culparia, também não apreciava o cheiro de papel velho e mofado.

Aparentemente, não havia mais ninguém na biblioteca e após caminhar a esmo entre as prateleiras abarrotadas de pergaminhos e livros antigos, começou a cogitar a possibilidade de que Alina não estivesse por lá. Planeava partir, quando ouviu ruídos e seguiu o som. No fim do salão, entre duas estantes empoeiradas, havia uma porta estreita e entreaberta.

Ela fitou a passagem com curiosidade. Não recordava daquela porta, mas, também, nunca tinha ido até aquele ponto da biblioteca. Novos ruídos vieram dali e Fantin resolveu entrar. No fim de uma escadaria mal iluminada, ela encontrou mestra Alina sobre um caixote de madeira, diante de uma estante. Segurava uma vela em uma das mãos, iluminando a urna de cerâmica que tentava alcançar no topo da estante.

— Precisa de ajuda? — Fantin indagou.

Alina se voltou, assustada. O movimento brusco a fez perder o equilíbrio e a mão esbarrou no jarro de cerâmica na prateleira de baixo. Um pouco líquido  nele entornou sobre ela e a chama da vela cresceu, se espalhando por suas roupas. Fantin correu até ela, usando sua própria túnica para apagar o fogo.

— Céus! Você está bem?

Ela perguntou, ajudando Alina a sentar-se sobre o caixote.

— Você está bem?! — Indagou outra vez e a mestra balançou a cabeça vigorozamente.

Fantin juntou seu próprio rosto entre as mãos, observando o estrago que o fogo fez nas roupas dela e a queimadura no braço e tronco.

— Eu sinto muito. Não queria te assustar. — Apontou para a faixa de tecido na cintura de Alina. — Tire logo isso! Deixe-me ver essa queimadura!

Ainda desnorteada, Alina obedeceu. Retirou a parte superior da túnica azul marinho, ficando apenas com a faixa que lhe recobria os seios. Em meio a dor, deu-se conta de que, outra vez, estava despida diante de Fantin e um violento rubor lhe tomou a face. Contudo, a outra mantinha-se séria e concentrada na realização da cura.

As mãos dela a tocavam com cuidado, emitindo um brilho suave que, aos poucos, foram afastando a dor e removendo as queimaduras, deixando em seu lugar uma pele clara e sedosa. Assim que a dor diminuiu, Alina dedicou-se a lhe prestar atenção com um aperto no peito.

Nos últimos meses, havia se esforçado para não cruzar seu caminho, não porque temesse que ela descobrisse a verdade sobre a noite do Festival de Mirdes, mas sim porque depois de experimentar o calor do corpo dela, seus sentimentos se tornaram ainda mais profundos. Consciente de que não tinha chances com Fantin, optou por manter-se distante, afim de que os sentimentos arrefecessem e tornasse a ter paz de espírito.

Verdade fosse dita, não estava tendo muito sucesso com isso, pois não havia um só dia em que não deixasse a mente vagar para aquele quarto em Tamariana. Eram sentimentos sufocantes e tornavam-se mais pela certeza de que não havia como ser correspondida ou livrar-se deles.

Fantin xingava-se, mentalmente, pelo ocorrido. Dedicou-se com esmero para remediar o mal que causou, percebendo a respiração de Alina acelerar sempre que tocava em um ponto sensível da queimadura. Em dado momento, a fitou diretamente nos olhos e esperou que ela fugisse do seu olhar, como de costume. Entretanto, Alina sequer piscou e foi Fantin a fugir ao buscar outro ponto para olhar, satisfeita por ter algo em que se concentrar. Enquanto realizava a cura, resvalou os dedos em uma marca na barriga dela e demorou-se naquele ponto, sentindo um sabor acre na boca.

A marca tinha a forma de um pássaro. Notando seu interesse,A  a escondeu com mãos trêmulas e a face rubra e Fantin terminou sua tarefa, observando com cuidado o resultado do seu esforço. No lugar da ferida, restou uma pele rosada que logo chegaria ao tom normal.

— O-obrigada. — Alina agradeceu, começando a vestir o que restou de suas roupas, mas Fantin a impediu.

A mestra loira inspirou fundo algumas vezes, submersa na verdade que acabara de descobrir. Estava pálida, mas isso durou pouco. Ela afastou uma mexa do cabelo de Alina, que lhe caía sobre os olhos, e deslizou a ponta dos dedos pelos lábios dela. Chegou mais perto, abrindo um sorriso malicioso e a puxou para si, encaixando-se no vão entre as pernas da bibliotecária. Um movimento e Alina poderia enlaçar-lhe a cintura com elas, contudo não ousou fazê-lo e o tom vermelho em sua face ficou mais intenso.

Fantin pousou a mão sobre a dela e a afastou para ter uma visão clara da marca. Estava tão próxima, que Alina podia sentir seu hálito a lhe acariciar a face.

— O que está fazendo? — Perguntou com grande esforço para que ela não notasse o tamanho do nervosismo que a tomava.

A mestra loira, fixou seu olhar e permaneceu assim por alguns instantes. Revolvia cada palavra, beijo e toque que trocaram naquela noite fria em Tamariana. Por fim, gargalhou, dizendo:

— Quem diria que você era o meu belo “passarinho” do Festival de Mirdes.

— Não sei do que está falando. — Desconversou, abrigando o olhar na parede atrás dela e Fantin tocou-lhe o queixo, obrigando-a a encará-la, novamente.

— Somos velhas demais para esses joguinhos, não acha? Por favor, não tente negar. Jamais esqueceria uma companhia tão ardente e, dificilmente haveria outra mulher com uma marca como esta, no mesmo lugar, com a mesma altura e cor de cabelo e olhos. — A soltou. — Poderia ter me dito que era você.

O desconcerto de Alina, trouxe algum divertimento a Fantin. Resignada, a bibliotecaria falou:

— O que acontece no festival, fica no festival. São essas as regras, não é? — Inspirou fundo, tentando manter a sobriedade e os pensamentos coerentes, ante a proximidade dela. — Naquela noite não tinha ideia de que estava em sua companhia e depois que sua máscara caiu, achei que poderia ser constrangedor para ambas se me revelasse…

Fantin gargalhou de novo, ainda sem se afastar.

— Não me sinto nenhum pouco constrangida. Surpresa, sim. Constrangida, de modo algum! — Estalou os lábios, mostrando um sorriso provocante. — Mas já que a verdade foi revelada e estamos tendo esta conversa, gostaria de saber se nossa noite lhe foi satisfatória?

Ela riu mais alto com a crescente vergonha de Alina.

— Não brinque assim comigo! — Queixou-se ela. — Aquela noite ficou no passado. Não há motivos para trazê-la à tona, apenas para alimentar o seu ego.

— Ai! Essa doeu! — Fantin troçou, depois se colocou séria e disse: — Tudo bem, Alina. Perdoe-me por minha curiosidade, mas não resisti. Contudo, como minhas memórias sobre o nosso agradável e prazeroso encontro ainda estão bem vívidas, recordo que você ainda me deve algo e, já que estamos aqui, longe de olhares curiosos…

Sentou a mão na nuca de Alina, com um sorriso provocante a lhe tomar os lábios antes de os pousar sobre os dela para um beijo demorado, ardente e sufocante.

Para Alina, foi como retornar a Tamariana e entregou-se àquela troca de sabores sem pudor.

— Agora, sim. — Fantin a soltou devagar com ar de troça. — Me permita lhe agradecer pela noite, mais uma vez.

Piscou, provocadora. Fez-lhe um carinho na bochecha, antes de se afastar completamente.

— Recomponha-se. A grã-mestra nos aguarda. Irei na frente e direi que irá demorar um pouco.

Alina a observou desaparecer na escuridão das escadas e se entregou a um choro dolorido, após ouvir a porta no alto delas se fechar. Naquela sala escura e silenciosa, ela sentiu o vazio dentro do peito aumentar. Sempre soube que seus sentimentos por Fantin jamais seriam correspondidos, entretanto, se perguntou dezenas de vezes como ela reagiria se tivesse revelado sua identidade naquele quarto de estalagem.

Era uma mulher pragmática, mas um coração apaixonado gosta de sonhar e não foram poucas as vezes em que se perdeu na imaginação de que aquela noite de luxúria, poderia ter se tornado um romance de verdade.

Felizmente, a racionalidade e os sentimentos conflituosos por descobrir que esteve com a mulher amada, a impediram de cometer o desatino de revelar-se naquele dia. O que não queria dizer que estava sendo menos penoso naquele momento. Não podia culpar Fantin por lhe causar aquela dor, afinal o Festival de Mirdes era dedicado a luxúria, não ao amor.

A única culpada era ela mesma por criar ilusões para sanar feridas que jamais teriam cura.

*** ***

Quando saiu daquela sala, Fantin trazia consigo um sorriso de satisfação.

Pensava que tinha compreendido o motivo do afastamento de Alina. No fim das contas, estivera certa todo o tempo. A mestra dos escritos era como todos os outros que a cercavam com um suposto interesse amoroso. Ela queria possuí-la e, como ocorreu com outros antes dela, assim que conseguiu seu objetivo, afastou-se.

Não haveria mais olhares perseguindo-a pelos corredores, nem sorrisos tímidos e corados. Passou os olhos nos livros que repousavam nas estantes, deu de ombros e partiu sem olhar para trás. 

Mas o tempo veio lhe provar o contrário.

Os olhos de Alina nunca mudaram. Eles sempre a encontravam em meio a multidão e continuaram a lhe oferecer um brilho cálido, ainda que a bibliotecária se mantivesse distante e procurasse agir com indiferença.

Com o passar dos meses e anos, Fantin percebeu que ela havia se tornado a observadora e, agora, eram seus olhos que perseguiam Alina pelos corredores, dando formas ao sentimento que nasceu em seu peito. Então passou a ansiar o momento de poder colocá-lo em palavras e, finalmente, entendeu o quão difícil era dizer para alguém que o amava.

Mas o dia de se confessar chegaria e torcia para que Alina compreendesse seus sentimentos e lhe desse uma resposta positiva.



Notas:



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5 Respostas para O Festival de Mirdes

  1. Adorei esse capítulo extra com a história das duas! Lindo ver o amor se desenhando…
    Valeu!
    Ansiosa pelos próximos e finais (infelizmente!!!), da Ordem.

  2. Sensacional apaixonantes… amo essas 2.

    Alina/Tamar é de uma sensibilidade a flor da pele, já Fantim é a gêmea de Virnan um verdadeiro evento da natureza sua força e carisma são apaixonantes.
    Adorei este cap. dedicado as 2.

    Parabéns Tattah

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