O Livro

O Livro.

 

O quarto escuro era meu lugar preferido desde o último verão. A tranquilidade que me trazia o “não ver nada” me dava a rara oportunidade de ver tudo o que tinha acontecido na minha vida até aquele momento. Um suspiro escapou de meus lábios mais por casualidade do que por algum sentimento de descontentamento. Uma tentativa vã de voltar ao passado me assolou com força e não pude evitar a vontade de chorar. “A verdade nunca está onde você pensa que está, e acreditar na verdade é a única saída… Qual é a sua verdade? Onde ela está?”. A pergunta martelava minha cabeça, agora invadida pela dor… Dor igual a que senti naquela tarde de início de verão…

 

— Não, mãe!… Eu sei… Eu sei, mãe, não precisa repetir!… Já estou indo pra casa… Já estou indo!!!… Tá mãe… Eu também te amo… Chego logo…

Desliguei o celular, um pouco emocionada. Era sempre assim quando minha mãe declarava seu amor por mim. Éramos apenas eu e ela depois que meu pai faleceu de um ataque cardíaco. Apesar de meus quarenta e dois anos completos, ela me tratava com uma menina de cinco. Eu estava assoberbada com os trabalhos na faculdade. Meu doutorado estava enganchado há mais de um ano e minha paciência já tinha ido embora de mala e cuia pra não voltar mais. Enquanto passava pelo parque que ficava no caminho de casa, ia pensando em tudo o que tinha de resolver durante a tarde e sofria ocom o calor sufocante que fazia àquela hora do dia. Meu cabelo vasto e encaracolado auxiliava no meu sofrimento divinamente, e foi enquanto tentava “amansá-lo” que senti a dor mais aguda de minha vida.

 

— Nina?

Quem me chamava daquela maneira tão peculiar? Só minha mãe me tratava com o apelido carinhoso. Menina Maria… Era meu nome de batismo. Nome que ela me dera para contrariar meu pai que torcia para que eu fosse um menino. Diante da cara desanimada dele ela pôs o nome que dizia a ele o que eu realmente era. Mas não era a voz de minha mãe que eu ouvira carinhosamente me chamar. Demorei um pouco para realizar o que eu via depois de despertar subitamente. A mulher jovem ao meu lado na cama me olhava preocupada. Deixava os cachos longos e ruivos caírem por sobre os ombros abrigados por um robe de seda rosa chá que, absurdamente, reconheci como meu.

— Está me olhando daquele jeito de novo…

— Jeito? – não mais que sussurrei.

— É… Como se não me reconhecesse! E não me venha com a história de faculdade e sua mãe, e sua “outra vida”! Isso é culpa do maldito absinto!! — ergueu-se da cama indignada, despindo-se. — Não volto a te ver até você se tratar! Estou farta! – vestia a calça preta por cima da camisa branca de punhos, muito elegante. Sentou-se na beira da cama pondo as botas de montaria e virou-se para mim com lágrimas nos olhos. — Há quanto tempo nos conhecemos, Nina?

Eu não sabia responder. Aquele lugar me era estranho… Ela me era estranha, mas eu já começava a achar familiar aquele cheiro aconchegante do quarto, a cor negra daqueles olhos enormes e redondos. Ela continuou sem esperar pela resposta.

— Vou te responder como das outras vezes… Há dez longos e maravilhosos anos… Apesar da marcação cerrada de seu marido!  Você não tem mãe! Não fez e nem faz faculdade! E eu me chamo Évora, caso tenha esquecido também! — calçou as luvas pretas, apanhou o chicote de cima da arrumadeira e disse em alto e bom tom: — A verdade nunca está onde você pensa que está e acreditar na verdade é a sua única saída… Qual é a sua verdade, Nina? Onde ela está? Você não sabe se vive ou se sonha… Se decidir, e for pela vida, me procura…

O ímpeto de tentar impedi-la de ir não me pareceu estranho. De uma forma avassaladora, senti que a cena tornara-se corriqueira e o mal estar que a acompanhava era tão conhecido meu quanto a confusão que se instalava. Como num passe de mágica recebi o mundo de informações sobre aquele ser abstrato que me interpelava com emoção. Cada traço, cada detalhe, cada movimento. Podia até sentir o toque das mãos macias, delicadas como uma pluma. Tinha voltado para meu lar, mas não a tempo de evitar que ela saísse inconformada.

 

O crepúsculo presenciava toda a tristeza perpetuada por minha embriaguez pobre. Retomei as rédeas da razão áspera, aniquilando de vez o rebuliço vulgar de minhas atitudes. Das outras vezes eu teria chorado, desta, não. A meu ver, encerrei com fina crueldade a esperança de ser feliz. Évora era meu passaporte para o mundo maravilhoso da paz e da compreensão. O ósculo angelical que me mantinha viva. Gostaria de encontrar uma maneira de lhe fazer entender minha necessidade quase que visceral de perder-me de mim mesma. Havia um motivo e ele se chamava Eduardo, meu esposo. Deveria explicar-lhe que se tornara insuportável acatar os direitos conjugais, que ficar muito tempo longe dela, era uma morte sem enterro, e o absinto, bebida alucinógena, me ajudava a não ceder às vontades da alma. Escondia de seus olhos os horrores pelos quais eu passava. Não podia, não queria, não devia contar-lhe de meu sofrimento. Évora, corajosa como era, interferiria e jogaria fora a própria vida.

A escuridão invadiu-me o universo cálido. Do quarto, só podia enxergar o baloiçar etéreo das cortinas iluminadas pelos últimos raios do dia findo. O ruído da porta se abrindo preparou-me o espírito para mais um encontro desagradável. Charuto e álcool, um perfume carregado de intenções baixas. Botas arrancadas a custo, causando arrufos indelicados. Eu me mantive quieta, no entanto estava certa de que esta minha manobra não evitaria o que estava por vir.

Nestas horas agarrava-me com força à memória de minha amada. O mau jeito do homem bruto ao meu lado era um pouco aliviado pela recordação terna do carinho infinito que eu recebia dela. Mal acabava de satisfazer seu instinto animal, ele roncava como um porco. Segundos de terror me afetavam os nervos. Muitas vezes, depois do gozo, tinha a miserável mania de humilhar-me batendo em minhas coxas com o chicote ou dando-me murros no ventre. Felizmente ele dormia. Fiz menção de levantar-me, então senti a mão pesada apertar meu braço com força desmedida e a pergunta feita num rosnado quase incompreensível querendo saber aonde eu ia. Voltei a me deitar inconformada.

 

O braço pesado caiu-me sem modos na cintura. Um enjoo forte agrediu-me o estômago. Não conseguia mais disfarçar o asco daquele homem. Um alívio tomou conta de mim quando ele levantou-se e entrou no banheiro. Chorei baixinho pela minha má sorte. Pensei imediatamente em Évora, no quanto queria que ela me levasse para longe de tudo. Algum tempo depois a porta do banheiro abre-se com força. O medo me domina. Sinto o suor frio a escorregar por minhas costas e umedecer meu rosto, braços e pernas. Ele questionou sobre o que eu havia feito no dia anterior e o pavor tornou-se quase que incontrolável. Respondi-lhe que fiz o de sempre e a perspicácia de sua réplica atingiu-me em cheio o coração, quando mencionou que “o de sempre” era a visita frequente de sua sócia. Ainda surpreendeu-me quando sugeriu que ela passasse os próximos dias na fazenda, pois ele teria que viajar em poucas horas e só voltaria em uma semana.

— Mas, antes de partir, quero te dar uma lembrancinha…

 

O pano úmido e quente pressionava meu rosto causando-me dor e desconforto. Meus olhos abertos não enxergavam, tapados pelo inchaço, então pude ouvir a voz chorosa de meu amor.

— Minha querida… Está me ouvindo?

“Sim”… Era a palavra sem som que tentava sair de minha boca acompanhada de uma lágrima. Então me lembrei do horror ao qual fui submetida. O calor em meu rosto muito castigado dava-me uma ideia da imagem que Évora via.

— Eu vou matá-lo!! — lágrimas caudalosas banhavam-lhe as faces vermelhas e um beijo carinhoso foi depositado em minha testa. — Por que escondeu isso de mim, Nina? Foi isso que te prendeu ao absinto, não foi?

— Precisava… Protegê-la… — sussurrei com dificuldade. –… Por favor… Não faça… Meu sofrimento… Parecer… Vão…

E a escuridão voltou ao meu mundo.

 

— Filha?…

Senti uma mão carinhosa afagar meus cabelos e rosto. Abri os olhos devagar e recebi a claridade muito forte com um resmungo de dor. Meu crânio tentava explodir meu cérebro com força. Sussurrei um nome… Évora… Quem era ela? Um vazio enorme tomou conta de meu ser e meus olhos, sem que eu percebesse, derramaram algumas lágrimas.

— Está sentindo alguma coisa, meu bebê?

— O que aconteceu, mãe? — falei devagar para evitar mais dor.

— Não sei, minha filha. Ligaram do hospital e me disseram que você estava internada. Levou uma pancada muito forte na cabeça… É só o que sei dizer…

A dor lancinante me fez gemer forte e isso preocupou minha mãe. Ela acionou a enfermeira que logo me aplicou um sedativo. Mais uma vez, a treva.

 

Um corpo quente e nu abraçava o meu também despido. Aquele cheiro… Quis me mover e braços suaves me aconchegaram ainda mais.

— Para onde pensa que vai, mocinha?

A voz rouca e dengosa teve o poder de me arrepiar a pele inteira. Então me lembrei de Eduardo e minha agitação foi imediatamente percebida por Évora. Eu toquei meu rosto e ele estava perfeito.

— Calma, meu amor… Mais um daqueles sonhos? — seus lábios se uniram aos meus e meu coração chegou à boca. — Quer me contar? Foi com sua mãe de novo? A faculdade? — como eu não respondia ela continuou. — Já sei… Foi com o marido? Eu já te disse várias vezes, querida… Não existe nenhum marido que te bate… Sua mãe faleceu quando você nasceu, lembra? A bendita faculdade você já terminou faz três anos. Nós nos unimos a mais de dez e somos muito felizes. Moramos nesta fazenda longe de tudo e estamos muito bem… Agora, mocinha… — voltou a beijar meus lábios e as lembranças de uma vida inteira ao lado dela chegaram-me rápidas como uma flecha. –… Você está terminantemente proibida de tomar remédios para dormir… — os olhos intensamente negros mergulharam nos meus… — Acredite na verdade, meu amor… É sua única saída… Acredite…

Tomou meus lábios mais uma vez e seu corpo cobriu o meu com toda sua magnitude e grandeza. A pressão daquela escultura sobre mim desligou-me imediatamente da realidade. Seu sexo molhado e quente encostou-se ao meu. O prazer daquele contato provocou em nós uma erosão primitiva e não conseguíamos mais nos afastar, presas em nosso próprio desejo. A língua desenhava desconexamente meu pescoço, e minha boca procurava a dela com loucura, mastigando-lhe os lábios com ardor frenético. O paraíso… O inferno… Não sabia qual, apenas queria devorar-lhe imediatamente. Pressa… Vontade… Enfiei meus dedos com força em sua vagina e recebi o doce e voraz gemido dos lábios que chupavam meus seios, ávidos e sem pudor. O tremor de seu ventre, o movimento das pernas facilitando-me o trabalho… Os quadris fortes rebolando, deixando-me ainda mais louca. Pedi que me penetrasse… Gritei que lhe queria o gozo, aumentando o ritmo de minhas estocadas. Dedos incansáveis rodeados de pedidos safados e carícias plenas. Invadiu-me de todas as formas. Sugou-me enquanto a sugava. Nos pertencíamos. Parecíamos apenas uma e um milhão ao mesmo tempo… Queria padecer naquele mundo de fluidos e tesão… Explodimos maravilhosamente num gozo enérgico.

— Amor… — falou com a voz falha. –… Mudei de ideia… Pode continuar… Tomando seus remédios e sonhando com sua outra vida… — deu um sorriso sem vergonha. –… Se for pra te ter desse jeito… — juntou seu corpo ao meu e caímos num sono profundo.

 

Um perfume. O despertar incomum me deu uma incerteza já comum. Olhos abertos bem devagar, e, como não podia deixar de ser, encontraram os negros mais profundos do mundo. Ela estava sentada ao lado da cama de hospital onde eu, mais uma vez, me encontrava. A emoção quis me invadir, mas o que vi naqueles olhos não permitiu. Estavam sérios demais, no entanto, um alívio sincero lhes dava um brilho especial.

— Évora… — a garganta seca deixou minha voz rouca.

— Mais um susto… — as lágrimas não foram impedidas de cair.

— Você veio… Minha cabeça… – levei a mão ao local e não havia nada de errado.

— Cabeça?

— Levei uma pancada na cabeça, não foi?

— Não, sua cabeça não está machucada… Pelo menos não por fora.

— Mas minha mãe…

Ela levantou-se com exaspero. Era notável como tentava se controlar dando voltas no pouco espaço do quarto hospitalar. De repente parou e me olhou com uma mágoa tão grande que eu quis chorar imediatamente.

— Ela está morta, Nina! Quando vai entender de uma vez por todas que “nós” a perdemos?!! Quando vai entender que a dor não é só sua?!! Também perdi uma amiga… Uma mãe…

Dessa vez me perdi na história. Olhei-a confusa demais para que não notasse. A expressão desesperada assumiu um controle que eu não conhecia. Não era minha Évora emocionada e despojada de medos. Ali estava outra mulher.

— Estou aqui por causa de nossa filha. Ela não dorme há dois dias. Chama por você. Eu não entendo o que aconteceu conosco… Sua mãe morreu há um ano e você se transformou nisso. Uma mulher perdida entre sonhos e vida. Uma mulher que deixou de se respeitar e de respeitar sua família…

— Évora… Eu…

— Não, Nina! Não precisa se esforçar para explicar. — voltou a sentar-se. — Sabe por que estou aqui? — com um gesto de mão me impediu de responder. — Não é porque você não tem mais ninguém nesse mundo. É por uma menina de quatro anos que está lá fora acompanhada de minha irmã… — engoliu em seco –… Que você fez o favor de assediar, talvez contando com o silêncio dela.

Era esse meu mundo agora. Lembrei-me de todas as humilhações que a fiz sofrer. Nas festas em família em que houvesse convidadas atraentes. Nos passeios com Gabriela, nossa filha. As babás… Até mesmo no nosso processo de divórcio com sua advogada.

— Posso vê-la? — pedi incerta da resposta positiva.

Ela ergueu-se sem palavras, abriu a porta e, em alguns segundos, uma menininha de cabelos e olhos muito negros, entrou, logo correndo para mim.

— Meu amorzinho! — apertei-a entre os braços.

— Mamãe, quando volta pra casa? Tem que me contar as histórias de Marieta! Como ela está? O que vai acontecer quando ela for para escola pela primeira vez?!

Tudo isso ela falou de um fôlego só apertando minhas bochechas como adorava fazer. Levantei-me da cama com ela nos braços. Surpreendentemente, não me sentia mal, nem sentia dores, muito pelo contrário, estava com uma energia fora do comum.

— Você não pode se levantar assim, o médico…

— Eu estou bem, meu amor… — segurei-a pela mão, acariciando-lhe os dedos macios.

O estremecimento dela era um bom sinal. Sinal de que eu ainda tinha uma chance de concertar as coisas.

— Precisamos conversar… — minha voz era quase um sussurro.

— Não sei o que ainda temos para conversar…

— O motivo está em meus braços agora… E está em seus olhos… E em meu coração…

Ao me ver terminar de dizer isso, pegou Gabriela de meus braços e saiu do quarto com ela. Senti uma palpitação medonha no peito achando que não tinha mais jeito, mas logo ela apareceu de novo e me tomou com sua boca sedenta e apaixonada, mordendo meus lábios até sangrá-los. Ela estava com raiva. Queria me machucar, mas ao mesmo tempo entregava-se ao desejo que sentia. Deixei que ela descarrega-se todo o sentimento ruim que eu tinha lhe causado. O beijo durou uma eternidade. Quando me soltou os olhos estavam em brasa e preocupados com o fio de sangue que descia de minha boca.

— Meu Deus… Eu te feri… — passou os dedos pelo líquido vermelho.

— Não mais que eu a você… — puxei-a de volta para meus braços. — Não sei o que está acontecendo comigo, Évora, mas quero e vou resolver isso o mais rápido possível… – beijava seu pescoço com carinho, deixando um rastro carmim por todo ele. — Quero minha vida de volta… Quero seu amor de volta… Quero nossa família de volta…

Minhas lágrimas molharam seu ombro fazendo com que ela me olhasse profundamente.

— Nem mesmo quando sua mãe morreu você chorou… — meus soluços agora se tornaram audíveis. Ela me confortava. — Nem mesmo quando saiu de casa com Gabriela aos berros pedindo que não fosse… — acariciava meu rosto com uma doçura incrível. — Não sei o que houve com você… Nem sei se quero saber, mas o amor que vejo dentro de seus olhos… Um amor que desapareceu de uma hora para outra, está de volta e é nele que eu acredito… Acredito nessa verdade que sinto vir deles…

Uma tontura me ocorreu ao ouvir a última frase e quase caio ao chão se ela não fosse rápida ao me segurar pela cintura. Colocou-me na cama com cuidado.

— Eu te avisei, mocinha… O médico pediu repouso absoluto…

— Ainda não sei o que aconteceu, como vim parar aqui…

— Encontraram você desmaiada no meio do parque que circunda a faculdade… Fizeram todos os exames e não encontraram nada. Depois que Sílvia se foi, você constantemente teve sonhos que muitas vezes misturou com realidade. Te recomendei um especialista, mas você não me ouvia… — baixou os olhos com tristeza.

Toquei seu queixo para que me olhasse. Dentro dos grandes olhos negros podia ver a força que os deixava mais autênticos.

— Nunca mais… Nunca mais a tristeza invadirá estes olhos… Não é uma promessa é fato… — um sono incomum me abateu. — Não… Quero… Dormir… Não posso te perder de novo…

Meus olhos insistiam em fechar-se e eu não conseguia mais resistir. Antes que caísse na escuridão mais uma vez, pude ouvi-la…

— A verdade nunca está onde você pensa que está, e acreditar na verdade é a única saída… Qual é a sua verdade? Onde ela está?

 

— Acorda!! Meu Deus!! Acorda, por favor!!

Aquela voz eu conhecia. Mãos fortes sacudiam meu corpo que estranhamente se via estirado na grama e uma dor forte bem no meio do crânio não me deixava raciocinar direito.

— Por favor… Acorde… — a voz estremecida denunciava o desespero.

Abri os olhos com dificuldade e lá estavam eles… Os grandes olhos negros.

— Évora…

A surpresa ficou visível naquele rosto amado.

— Como sabe meu nome?

Sem responder consegui me erguer com a sua ajuda. A dor piorou um pouco me fazendo gemer.

— Vamos para um hospital agora mesmo. — tentou me guiar, mas sentiu a minha resistência. — Que foi? Não consegue andar? Está sentindo mais alguma coisa?

— O que aconteceu? — desta vez não quis arriscar ser chamada de louca.

— Bom… Eu estava lendo… Lendo em cima da árvore. Vi você passando e… — o rosto vermelho fazia com que ela ficasse ainda mais linda. –… Me distraí e deixei o livro cair de minha mão… Ele acertou bem no meio de sua cabeça…

Falou me mostrando o volume pesado que eu reconheci imediatamente.

— “As muitas Vidas de Menina”… É a primeira edição? — ela não percebeu, mas segurava minha mão com carinho.

Meu olhar para nossas mãos juntas fez com que ela largasse imediatamente do contato.

— Sim… Na verdade eu o releio de vez em quando. Explica algumas coisas sobre mim… — disse a última frase como que para si mesma. — Por favor, me perdoe… Agora vamos pro hospital?

— Você me perguntou como é que sei o seu nome… — voltei a segurar sua mão. — Você não sabe como? Afinal você é uma fã…

Os olhos dela brilharam intensamente ao me encarar para responder. E desta vez, não retirou a mão branca e grande da minha.

— Sim, sou uma fã… Na verdade, antes de ler seu primeiro livro, eu tinha certa resistência à sua literatura. Fui obrigada por um professor na faculdade a assistir sua primeira palestra. Você falava com tanta tranquilidade e com tanta propriedade das características psicológicas de suas personagens que eu… Eu simplesmente não resisti e li um a um os seus livros. A sensação que eu tinha era que te conhecia de muito tempo. Cada página me emocionava ao ponto de eu pensar já ter vivido todos aqueles sentimentos. Desculpa, você aí sofrendo dor e eu te alugando com minhas divagações…

— Você era a mocinha que estava na primeira fila, terceira cadeira da esquerda para a direita e carregava um livro enorme sobre dissertação. Usava um agasalho da universidade na qual eu começaria a ministrar palestras a partir daquele dia. Você foi a todas… Não foi difícil saber seu nome, apesar de eu ter a certeza que já sabia… Há muito tempo… — senti as dores querendo me derrubar mais uma vez. — Não… — sussurrei de olhos fechados. –… De novo não… Não me deixa, Évora… — senti os braços fortes me ampararem e me lancei de volta ao nada.

 

Uma mão suave afagava meus cabelos e, tinha certeza, não era a mão de minha mãe, pois aquele perfume era inconfundível. Abri os olhos de repente, assustando a mulher dos meus sonhos. Vi o constrangimento pelo carinho anterior que ela me dedicava.

— Diga que você é a minha fã e que me atingiu com um livro na cabeça…

Ela sorriu tímida e me deu o maior alívio que já tive na vida.

— Sim… Peço mil desculpas… Foi um acidente… Horrível…

Ao tentar me erguer um pouco percebi que estava com minhas roupas, apesar de me encontrar num quarto de hospital.

— Não te aconteceu nada demais. Ficou aqui só por precaução e o médico disse que quando você acordasse já poderia ir para casa… — ela me falou com uma ternura enorme.

— Há quanto tempo estou aqui? — indaguei preocupada com minha mãe, pegando o celular de minha bolsa.

— Algumas horas… — uma tristeza repentina invadiu o olhar negro. — Acho que deve estar preocupada com alguém… Alguém especial…

— Sim… Alguém muito especial precisa ser avisado… — maldade ter que torturá-la, mas precisava saber até onde poderia ir com ela.

— Bom, então eu já vou. Seu “alguém” deve vir te buscar… — agora já sentia a ponta de irritação e… Ciúmes?

— Sim… Se ela soubesse dirigir e, mesmo que soubesse, não seria aconselhável que o fizesse com quase noventa anos… — abri um sorriso enorme quando ela parou bem perto da porta e se voltou com lágrimas nos olhos.

— Vem cá, meu amor…

Eu já estava de pé quando a recebi nos braços. Nossas bocas se encontraram saudosas. Essa era minha menina. Todas as mulheres em uma só. A moleca inconsequente… A mulher responsável… A amante carinhosa. Quando nossas bocas se separaram…

— Isso é inacreditável… — ela sussurrou bem pertinho de meus lábios. — Sonhei tanto com esse dia… Quis tanto estar em seus braços… No seu coração… Você me chamou de amor. Tenho uma curiosidade: aquela frase no começo do livro… Ela ficou sem resposta… Qual seria a sua?

Tomei-lhe os lábios em mais um beijo demorado. Fixei meus olhos nos seus e respondi sem titubear:

— A minha verdade está aqui, em meus braços… E ela se chama Évora… Minha verdade até o final de meus dias…

 

FIM

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



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