CAPÍTULO 2

“Vamos levantar, pentear os cabelos, escovar os dentes, tirar remela dos ‘zói’, vum’bora macho, deixa de ser preguiçoso rapaz, vamos, levantando com estilo… E vamos lá: é 5, 6, 7, 8, e vamos lá é 5, 6, 7, 8… braço para cima, braço para baixo, vai, vai, acorda, levantando e vai, vai, ai primo, acorda pelo amor de Deus!”

— Caralho, odeio esse despertador do meu celular – disse com a voz sonolenta.

Quando olhei o relógio, ainda era 7h de terça-feira, não tinha estágio. Virei para o outro lado da cama e capotei. Acordei as 8:30h porque o infeliz do meu relógio biológico está mais do que acostumado a acordar cedo.

–É bom que chego um pouco mais cedo na empresa e posso compensar o horário de ontem.

Minha maratona estava começando novamente: levantei, banho, café da manhã, sair, trabalho, faculdade… pelo menos hoje também só tenho os dois primeiros horários, posso voltar um pouco mais cedo, dar uma revisada no projeto e imprimir para o Carlos dar uma olhada. Claro que só levarei o esboço, afinal de contas ela pode gostar do meu projeto e roubá-lo de mim. Mesmo já estando patenteado, é sempre bom evitar certos transtornos, concordam? Tudo correu na mais perfeita ordem durante o dia e a noite.

O mesmo som irritante e o único que consegue me acordar pela manhã, levanto e minha rotina é a mesma. Quando chego ao instituto, mais uma vez sou chamada por Júlio em sua sala, mas dessa vez eu estava sozinha.

— O que será dessa vez? – penso enquanto em encaminho até a sala.

— Bom dia, chefe!

— Bom dia Eduarda, sente-se!

— Algo de errado com o meu trabalho? – perguntei desconfiada.

— Alguma vez já reclamei do seu trabalho? – disse zombando de minha cara.

— Não, mas, sei lá… nunca se sabe, não é? Para tudo existe uma primeira vez. – respondi.

— Isso é verdade, mas não é o seu caso, fique tranquila.

— Então, para que mandou me chamar?

— Por dois motivos.

— Sou toda ouvidos – disse rindo.

— É o seguinte: seu trabalho aqui no instituto chegou lá em cima, lá nos chefes engravatados e estão realmente dispostos a lhe contratar no fim do ano.

— Uau! – foi a única coisa que consegui exclamar.

— Sei do seu potencial, Duda, e tenho certeza de que você tem grandes chances de crescer aqui dentro, mas quero lhe alertar uma coisa – ele continuou devido ao meu silêncio – esse Instituto é muito pequeno para você e suas ideias. Conheço pelo menos uma delas e sei muito bem que em quase nenhuma empresa você conseguirá por totalmente em prática da forma que realmente quer. Aqui local é muito fechado para seu talento. Você age com a emoção e não se importa tanto com dinheiro. Quer mesmo é que as pessoas tenham acesso à cultura de boa qualidade com mais facilidade e esse não é o caso desta empresa. – Mais um breve silêncio. – Desculpe-me, mas tomei a liberdade de mostrar um de seus projetos para o Carlos do Vc3, ele simplesmente adorou e quer lhe conhecer a todo custo, quer conversar contigo e saber de todas as suas ideias. Ele também disse que é de pessoas como você que a equipe da empresa está precisando. E então, o que acha?

— Eu…é…não sei…quero dizer… – disse um pouco confusa com toda essa informação jogada em cima de mim de uma só vez.

— Hei, calma, respira fundo, relaxa e fala – disse Júlio que claramente estava divertindo-se as minhas custas.

Não aguentei e tive que rir também. Era tudo o que mais queria. Para falar a verdade nunca tive uma conversa desse tipo com o Júlio, ele me impressionou com essas palavras. Sempre mantive uma amizade gostosa com meu chefe do instituto, mas nada além de conversas sobre trabalho, história e o que vinha acontecendo no mundo. Sempre adorei conversar com ele sobre esses assuntos, temos ideais muito parecidas. E, além disso, ele é um cara muito divertido, é de uma ironia sem tamanho com relação à política e desigualdades e isso já o fez passar por um idiota por muitas pessoas não entenderem o que estava falando.

Mas, ele só teve acesso a um único esboço de projeto meu e justamente o que mais gosto, o que eu tinha mais carinho e dediquei boa parte do meu tempo para concluí-lo.

Então o Júlio pensa tudo isso de mim e nunca falou nada a respeito? Quando eu mostrei o projeto da ONG para ele, sabem o que fez? Aguardou em uma de suas gavetas e disse que quando tivesse um tempo leria. Vocês não imaginam a minha frustração ao escutar isso. Caralho, esse cara leu meu projeto e gostou? E mais, mostrou para uma pessoa que pode pôr em prática.

— Duda? Duda?

— An…

— Você está bem?

— Estou sim Chefinho, só estou tentando assimilar tudo isso que acabou de me dizer – disse sorrindo.

— Faz o seguinte então: pensa direitinho em tudo e antes de você ir embora hoje, passa aqui de novo e me fala alguma coisa a respeito, ok?

— Não, não precisa. O que tenho que fazer agora?

— Bom, o Carlos ficou de entrar em contato comigo ainda hoje, no mais tardar amanhã para marcar para conversar com você.

— Tudo bem, mas diz a ele que meus horários são corridos, ok? Só posso aqui no Instituto ou no fim de semana.

— Ok Duda, pode deixar que digo a ele.

— Estou dispensada?

— Está sim.

Saí da sala do Júlio ainda em estado de transe, não conseguia falar e nem ouvir mais nada além das fortes batidas do meu coração. Trabalhei no Instituto mais que mecanicamente, minha ficha demorou a cair. Só dei conta que meu expediente tinha acabado quando o Paulo falou comigo me cutucando, coisa que não suporto.

— Terra chamando Duda. Hei Duda, acordaaaaa! Olhei para ele ainda atônita.

— Ai Paulo, o que foi?

— Você não vai trabalhar hoje?

— Vou sim, por quê?

— Então você vai chegar atrasada, sabia? Já são 11:45h – disse zoando.

— Merda!!!

Saí correndo sem nem falar com ninguém, não tive tempo nem para um mísero lanchinho, mas em uma das minhas pausas fiz isso com gosto. No restante do meu dia consegui voltar ao normal, até esqueci um pouco da conversa que o Júlio teve comigo.

Mais uma vez cheguei em casa exausta, só tive tempo mesmo de tomar banho e me jogar na cama, nem ânimo para comer eu tinha.

Mais uma vez acordei cedo sem precisar já que não era dia de ir ao instituto, tentei dormir mais um pouco para descansar, mas sem sucesso. Muitas vezes depois que acordo a primeira vez, não consigo mais ter sono. Levantei e resolvi pôr algumas coisas em ordem como à finalização do meu TCC. Terminei rapidamente, pois só precisava da revisão para entregar ao orientador, tudo terminado, enviei para seu e-mail. Tomei meu banho, consegui almoçar e fui para o trabalho.

Como cheguei mais cedo do que o normal, deu tempo que conversar com meus amigos. Colocar o papo em dia, quando terminou meu expediente, fui para a faculdade só para a primeira aula, falei com alguns colegas e voltei para casa. Com a proximidade da minha formatura e como eu não era da comissão de formaturas, meus dias estavam começando a ficar menos agitados, nem sempre eu precisava ir à aula, já que sou uma aluna razoavelmente interessada e passava sem dificuldades.

No trabalho, eu seguia a linha do “eu quero mais é que o mar pegue fogo para poder comer peixe frito”, pois muitos estavam insatisfeitos com a empresa e acabavam descontando nos clientes, uma coisa que eu achava erradíssimo, pois eles não têm nada com isso, querem mesmo é ser bem atendidos e que seus problemas sejam solucionados o mais rápido possível. Então, era assim que eu trabalhava, enquanto a grande maioria reclamava, eu fazia a minha parte que tinha no meu contrato, como eu já havia dito anteriormente, dificilmente eu me esquento com alguma coisa.

Já no instituto, eu tinha praticamente duas oportunidades de emprego que com toda a certeza, ao final do meu contrato eu iria ganhar mais do que como teleoperadora e poderia sair de lá tranquilamente. Agora era só esperar para fazer a escolha certa.

Minha vida profissional estava indo de vento em polpa, a pessoal estava mais do que tranquila, pois não tinha ninguém nesse momento para dar atenção, o que com certeza poderia de alguma forma atrapalhar meus atuais objetivos. Nunca consegui me apegar a ninguém, tive somente um namoro que não durou mais do que sete meses porque detesto ser cobrada, pressionada a fazer qualquer coisa que seja, odeio que fiquem ligando para mim para perguntar onde é que estou, o que estou fazendo, com quem, o porquê disso, o porquê daquilo outro.

Tudo isso é muito irritante para uma pessoa que desde os dezesseis anos vive mais na rua resolvendo suas coisas, seus problemas sem poder contar com ninguém, eu tinha que me virar se quisesse qualquer coisa que seja. Minha mãe sempre trabalhou muito para poder me sustentar sem a ajuda de meu pai, quando eles se separaram, eu não tinha nem dois anos de idade, em uma sexta-feira qualquer, ele disse que ia passar o fim de semana com minha avó e até hoje não voltou. Quando minha mãe chegou do trabalho, a casa estava sem metade dos móveis que os dois tinham comprado com tanto sacrifício.

Sabem, às vezes acho que esses dois nunca se amaram realmente, nem sei ao certo se esse foi o motivo da separação, esse é um assunto que sempre quando tentava conversar com qualquer um dos dois, parecia que eles fizeram um pacto de silêncio e nunca nem descobri porque que se casaram também, até que minha curiosidade se esvaiu e deixei esse tema morrer.

Por tudo isso que tive que aprender a me virar sozinha mesmo, só em pensar em ficar falando para qualquer pessoa que seja o que faço ou deixo de fazer, aí sim fico com um péssimo humor. Aos dezenove anos eu decidi que estava mais do que na hora de sair de casa, minha mãe mora com um outro homem, eu e ele nos damos bem na medida do possível. Mas, eu precisava sair de lá porque minha relação com ela já estava bem complicada depois que ela descobriu sobre a minha sexualidade.

É verdade, ela descobriu, eu ainda não me sentia preparada para contar a ela, porque a gente não se dava muito bem, vivíamos uma relação de mãe e filha de fachada. Eu estava lendo o livro “Duas Iguais”, quando terminei fui tomar um banho para devolver para a minha namorada na época, vocês acreditam que acabei esquecendo o livro em cima do sofá? Pois é… Tentei ainda chegar antes dela, mas nesse dia ela resolveu chegar mais cedo do que o normal.

Foi uma briga feia e confirmei tudo, quando e como começou, com quem eu estava namorando, enfim, já que era para pôr as cartas na mesa, vamos jogar logo a merda no ventilador de vez, né? Foi um chororô enorme, tanto de minha parte, quanto da dela. Fui dormir já quase às 4h da manhã porque não conseguia conter meu pranto pela quantidade de coisas que escutei da minha própria mãe.

Imaginava e estava preparada para ouvir tudo aquilo de qualquer pessoa, qualquer amigo, qualquer estranho, menos de minha mãe. Até hoje, garanto para vocês, o maior preconceito que sofri foi dentro da “minha casa”.

No dia seguinte liguei para Pati – minha namorada na época – para contar o que aconteceu, mas não conseguia falar com ela. Só no final do dia que um amigo nosso em comum me ligou e disse que ela também tentava falar comigo desde cedo e não tinha sucesso, aí ele fez uma conferência entre a gente e acabei contando tudo para os dois, só que por incrível que possa parecer, esse foi o dia que acordei mais leve.

Depois de ter contado o meu maior segredo para minha mãe, pela manhã tinha a sensação que tinha tirado um boi das minhas costas. Se antes minha relação com ela já não era boa, imagina depois dessa revelação.

A cada dia que passava piorava, quase que nem falava comigo, assim que consegui meu emprego aluguei um quarto e fui embora de lá, ficamos uns sete meses sem nos falarmos nem por telefone, sei que isso pode soar desumano, mas tinha dias que nem lembrava dela. Essa foi uma fase tão tranquila da minha vida que vocês nem imaginam.

Trabalhava pela manhã e a noite ia para a faculdade, mesmo ganhando pouco, conseguia me manter sem muitas dificuldades, as coisas melhoraram e pude ir para a kit net que moro hoje depois do estágio que consegui no instituto.

Hoje não mudou muita coisa entre mim e minha mãe, mas ela aprendeu a me respeitar. Isso, respeitar porque tenho certeza que ela nunca vai aceitar o fato da única filha dela ser gay.

Nos dias atuais, vou frequentemente a sua casa, a ajudo muito nos trabalhos dela na faculdade, é isso gente, por causa do meu incentivo minha mãe voltou a estudar, estou tão orgulhosa.

Ah, quanto ao meu pai, tem uns três meses que a gente não se fala. Desde a “grande descoberta” que não nos falamos direito, aliás, nunca achei que ele tinha algum direito de me cobrar nada, sabem? Por tudo que eu passei por causa de sua ausência.

Depois da separação dos meus pais, ele só veio me procurar oito anos depois. Nunca se preocupou em saber se eu estava passando fome, se eu precisava de um remédio, se eu estava estudando, se eu estava viva. Hoje não me interessa o real motivo desse divórcio, ele tinha obrigações comigo. Quando meu pai reapareceu, chegou com par de patins – estava na moda na época -, me apaixonei.

Atualmente tenho consciência que ele nunca quis me dar carinho, ele queria mesmo era me “comprar” para entrar na minha vida novamente, mas na época eu só tinha dez anos de idade e achei aquilo o máximo, sempre quis apresentar para as minha amiguinhas quem era meu pai, que eu realmente tinha pai, que ele existia, que eu tinha o maior orgulho de ser sua filha.

Pois é, apesar de minha mãe ter se casado com meu padrasto quando eu tinha cinco anos de idade, nunca o chamei de pai, nunca tive vontade para tal. Ele sempre ia às festinhas da escola no dia dos pais, mas nunca fui feliz nessa situação, sei que era frustrante para ele quando eu o apresentava para as pessoas como meu padrasto ou o marido da minha mãe, mas o que eu ia fazer se era isso que ele era? Mesmo triste com a ausência de meu pai, não conseguia transferir o sentimento para meu aquele homem.

Quando meu pai reapareceu, eu não cabia em mim de tanta felicidade, parecia que desde o momento de sua partida eu estava esperando o seu retorno, mas como que “tudo o que é bom dura pouco”, dois anos depois ele sumiu novamente e só entrou em contato comigo no ano seguinte dizendo que estava a caminho do Paraná. Mais uma decepção que passo por culpa dele, quase dez meses depois chega uma caixa para mim com várias coisas, quando vi o remetente tinha o nome do meu genitor, mais uma vez meu pai estava querendo suprir a sua ausência com objetos, claro que fiquei feliz, né? Afinal, qual era a adolescente de treze anos que não queria uma TV e um som no próprio quarto?

Ficamos mantendo contato por telefone e carta durante seis anos, meu queridíssimo pai nunca teve “oportunidade” de deixar de mandar presentinhos para mim e comprar uma bendita passagem e vim me dar um simples abraço. Com quantos aniversários sonhei que ele aparecia sem nada em mãos e ficava ali comigo, conhecia meus amigos, me dava um singelo abraço? A única coisa que queria era a presença dele, mas perece que nunca se importou com isso, nunca se importou em querer saber o que eu sentia, o verdadeiro presente que eu necessitava.

Nada disso interessava àquele cara que se dizia meu pai. Um dia ele apareceu no meu trabalho, eu tinha dezoito anos. Caramba, isso eu já nem lembrava que um dia sonhei, ele apareceu de surpresa com minha irmã. No fim do meu expediente fomos a uma pizzaria e conversamos coisas banais, ele quis saber como eu estava no fim da preparação para o vestibular, quis ver as fotos da minha formatura – concluí o ensino médio no Colégio da Polícia Militar, é uma cerimônia muito linda por sinal -, ele quis saber como andava minha vida amorosa – na época eu namorava um homem, o único da minha vida.

Eu fiquei boquiaberta com o nosso diálogo, mas não disse muitas coisas, pois aquilo tudo para mim era uma grande novidade. Mais uma vez, como “tudo o que é bom dura pouco”, dois dias depois ele foi embora. Continuamos nossas conversas da mesma forma que antes, mas conseguimos nos aproximarmos um pouco, sabe? Foi bem interessante essa época. Mas, hoje realmente quase não nos falamos por um motivo que até hoje não gosto de comentar, digo que está superado, mas acho que não. Se realmente isso tivesse acontecido, eu ou ele já teríamos tentado uma reaproximação.

Acho que o grande problema é que o pivô de todo o nosso transtorno foi uma mulher que queria meu pai só para ela, na realidade o que acho que ela tinha muito ciúme de mim com ele e fez o que fez.

Como já havia dito antes, minha vida profissional só tende a melhorar gradativamente, o relacionamento com minha família está mais pra lá do que pra cá, minha vida amorosa está do jeito que eu realmente quis: sem compromisso com ninguém para não ficar dando nenhum tipo de satisfação, isso é o que menos quero no momento. Com essas reflexões da minha vida que acabo dormindo.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2017 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.