Capítulo 28

Ainda pela manhã, eu escutei um toque de telefone bem de longe e percebi que ele insistia, mas eu não conseguia abrir os olhos para ver o que era. Senti a Clara sair dos meus braços, provavelmente para atender, virei para o outro lado e voltei a dormir. Enfim consegui abrir os olhos, no meu relógio de pulso marcava 11:15h, vi a minha namorada ainda na cama, aproximei meu corpo ao dela a abraçando por trás encostando meu nariz em seu pescoço e fechei os olhos, senti e ouvi seu suspiro:

-Bom dia, meu amor! – disse ela manhosamente e apertando ainda mais o abraço.

-Bom dia, linda! Acordada há muito tempo?

-Acordei um pouco mais cedo, mas acabei dormindo de novo.

-Eu acordei mais cedo também, mas nem consegui abrir os olhos. Você tirou meu couro essa noite – sorri.

-Está reclamando?

-Claro que não, amor. Quero que você tire meu couro mais vezes.

Beijei seu pescoço e senti o arrepio que provoquei, mas eu não queria sexo naquele momento. Queria mesmo era aquele contato de peles, sentir a maciez, o carinho, o abraço, sentir seu cheiro, a penugem da sua nuca:

-Adoro ficar assim com você.

-Eu também. Adoro quando você me abraça assim, me sinto protegida. Vou sentir tanta falta   disso nas próximas duas semanas.

-Poxa, só porque você vai viajar na segunda-feira, a semana passou rapidinho. Agora só posso ficar contigo hoje e amanhã.

-Vamos tirar o dia hoje só para nós duas? Não quero sair com mais ninguém.

-Eu ia te propor justamente isso já que amanhã vamos almoçar na casa de minha mãe e à noite vamos ao Originally encontrar com as meninas.

-Então pronto, hoje somos só nós duas. O que você sugere para fazermos?

-Tem certeza que não sabe? – minha mão que estava em sua barriga, desceu até o meio de suas pernas.

-Duda! – sorriu – Isso você sabe que tem sempre. Quero saber para onde vamos.

-Estava brincando, linda. – sorri – Bom, a gente poderia assistir o por do sol no Solar e ficar por lá mesmo porque as 18h tem um Jazz muito bom. Depois a gente vai comer alguma coisa e podemos terminar a noite no Hotel da Bahia*, o que acha?

-Querendo mudar de lugar para passar a noite?

-Você me ensinou a nunca me acostumar com a rotina, amor.

-Proposta aceita – ficamos um tempo em silêncio trocando pequenos, mas significantes carinhos – está com fome, Du?

-Estou, mas estou com muita preguiça para preparar alguma coisa para nós duas.

-Não se preocupa, eu vou.

-Não amor. Fica aqui. Está tão bom. A gente pede uma pizza, uma lasanha, um sanduíche da “Mc”, uma comida chinesa para você porque eu detesto – sorri – qualquer coisa, mas hoje não vou para a  cozinha e nem vou deixar você ir.

Realmente não a deixei sair de perto de mim um instante sequer. Lembram do meu sexto sentido? Ele estava dando sinais que turbulências estavam por vir. Tentei não dar importância, queria dar atenção a minha namorada que viajaria em dois dias e que ficaríamos sem nos ver por duas semanas quase, exceto os finais de semana. Não sei se era esse o motivo, mas eu estava inquieta.

Depois de conseguirmos comer, ainda ataquei a Clara. Fizemos amor gostosa e calmamente por umas  duas horas quase e quando resolvemos tomar banho para sair, nos amamos mais uma vez no banheiro. A minha namorada estava cada dia mais entregue. Realmente foi muito bom eu parar de implicar com o que não me agradava, ela tinha noção do que era e evitava muitas coisas e, conseqüentemente, cessou nossas brigas. Eu estava muito bem como há tempos não me sentia.

Antes de conhecer a Clara, eu me achava uma pessoa feliz, mas logo depois eu percebi que eu vivia momentos felizes. A minha morena me mostrou um caminho que eu não conhecia e estava adorando desvendá-lo:

-Você passou sua paixão por esse lugar para mim, sabia?

Estávamos no Solar, vendo os últimos raios do sol que já tinha se posto. Sentamos num banco de cimento no meu lugar favorito – o parque das esculturas – e eu estava a abraçando por trás com o queixo apoiado em seu ombro:

-Quero dividir tudo o que gosto e todos os meus momentos com você – beijei seu ombro.

Voltamos ao silêncio que em nenhum momento era constrangedor.

-Meu pai me ligou hoje cedo – começou receosa, percebi que tinha algo estranho.

-Aconteceu alguma coisa?

-Minha mãe entrou em contato com ele, quer nos rever.

-Sério? E o que você vai fazer?

-Ainda não sei, quero muito ver a minha mãe, mas tenho medo.

-Medo de quê?

-Medo muito mais de mim do que qualquer outra coisa.

-Ela estipulou alguma data?

-Não. Meu pai disse que ela deixou um número de telefone e que ela está esperando a minha ligação e a dos meus irmãos. Ainda não me sinto preparada.

-Não se sinta pressionada, amor. Faça no seu tempo.

A Clara estreitou ainda mais nosso abraço. Cerca de trinta minutos depois fomos comprar nossas pulseiras para o Jazz. O tempo inteiro a Clara estava ali comigo, abraçada, de mãos dadas, me fazendo um carinho. Eu encontrei alguns conhecidos que reclamaram da minha ausência ali nos sábados a noite. Dei a desculpa que estava namorando e precisava dar atenção a ela, mas estava apresentando os lugares que gosto de freqüentar e que não ia sumir por tanto tempo.

Apresentei minha namorada e todos os meus conhecidos gostaram dela. Para variar disseram a ela que a mesma conseguiu um milagre que foi me “prender”, coisa que muita gente já tentou sem sucesso. Afastamo-nos um pouco e ficamos namorando, já que ali é para um público alternativo e ninguém estava preocupado com a vida de ninguém, queriam mesmo era curtir a música, os amigos e namorados.

-Vamos para onde agora?

-Eu que sempre dou a sugestão, é?

-Claro, afinal de contas é a minha “despedida” – fez o gesto das aspas.

-Então tá. – sorri – Que tal antes de irmos para o hotel passarmos no Beco da Rosália já que é aqui pertinho e o local que vamos dormir também? Lá tem umas comidas muito boas.

-Vamos para o Beco da Rosália então – me beijou.

O Lugar é também voltado para o público alternativo. Sedia apresentações teatrais, exposições de fotografias, grupos de chorinho e saraus de poesia A massa das pizzas segue a receita original da bisavó italiana dos irmãos Flávio e Fabrício Mariusso – donos do bar –, natural da região da Calábria, Itália.  Tudo é feito com muito capricho. A cozinha é artesanal e tudo é feito na hora.

Frequentado por todas as tribos, raças e classes sociais. Pequeno e aconchegante, todos os dias da semana têm novidades como, por exemplo, a quarta-feira é a “Quarta literária”. É um dos points alternativos mais concorridos da cidade.

Nosso dia estava sendo maravilhoso mesmo ficando boa parte dele em casa, mas eu estava com a Clara e isso me bastava. No Solar e ali no Beco a minha namorada estava radiante de felicidade, sorria o tempo inteiro, seus olhos brilhavam, era perceptível e contagiante o seu astral elevadíssimo.

Sábado era dia de teatro e assistimos uma apresentação de teatro de rua espetacular e fiquei indignada  com esses talentos desperdiçados. Realmente a Bahia é uma fábrica de talentos, mas os governantes e empresários têm a cabeça tão fechada, a visão tão voltada para o próprio umbigo que realmente as pessoas têm que se arriscar em ruas, praças e até em ônibus para conseguir dinheiro com alguma coisa que gosta e sabe fazer.

Bom, injustiças a parte, decidimos ir embora por volta das 0h. Depois de ingerir algumas bebidas alcoólicas, minha namorada estava lançando olhares para mim nada inocente. Pagamos a conta e seguimos em minha moto para o Hotel da Bahia.

Assim que descemos da moto, a Clara segurou em minha mão, sorrimos e nos encaminhamos para a recepção. Apesar dos olhares questionadores, fomos atendidas muito bem. Minha namorada fez menção em tomar a frente para acertar tudo:

-Deixa comigo – a impedi com um pequeno gesto para reter sua ação.

No elevador, a Clara ficou o tempo inteiro de frente para mim e abraçada com a cabeça apoiada em meu ombro:

-Chegamos – beijei levemente seu rosto.

Abri a porta e dei passagem e ela:

-Me acompanha no banho? – perguntou me abraçando.

-Nem precisa perguntar duas vezes – sorri.

-Vou preparar a banheira.

-Quer alguma coisa para beber?

-Eu queria Gin, mas sei que você não gosta, te acompanho no vinho.

Enquanto eu a esperava, fiquei admirando a vista. Dali tinha uma visão privilegiada do Campo Grande, mais precisamente a Praça do Campo Grande: o século XIX, onde está o monumento do caboclo – e outros feitos na França, deixando-a ricamente ornamentada, digna da importante cidade brasileira –, havia um declive, um desnível equivalente à atual altura do caboclo do Campo Grande. Esta área foi desmatada no século XVII e nivelada no século XVIII para treinamento militar dos soldados do Forte de São Pedro – Levantado no início do século XVII no lugar escolhido pelos holandeses para a implantação de uma fortificação. Tomado pelos brasileiros na Guerra da Independência, em 1822, o forte serviu como quartel general da Revolta da Sabinada, entre 1837 e 1838. Oficialmente chamada de Praça Dois de Julho, o Campo Grande transformou-se num jardim em 1851 e ganhou, no final do século XIX, um monumento central em homenagem à Guerra da Independência da Bahia, já em 1821 – o dia 2 de Julho, aliás, é a maior data cívica da Bahia, sendo comemorada com desfiles militares e de entidades educacionais.

Logo ali a minha esquerda, estava o Teatro Castro Alves – um dos mais modernos teatros do país foi construído em 1958 e sofreu um incêndio dias antes de sua inauguração. Sua recuperação foi concluída em 1967; vinte e nove anos depois, o teatro passou por uma reforma completa e ganhou os mais modernos equipamentos cênicos.

Esse tipo de reflexão é inevitável para uma historiadora, moradora da Cidade do São Salvador – nome oficial da cidade – e soteropolitana. Acho que não conseguiria seguir outra carreira senão essa. Qualquer lugar que eu olhe, que eu passe, lembro dos momentos históricos importante dali que eu já pesquisei e estudei.

-Preocupada com alguma coisa, amor?

A Clara me abraçou por trás beijando minha nuca. Suspirei, virei para ela e beijei-lhe a boca:

-Não linda, nada demais. Só coisas de historiadora tendo a sua frente uma paisagem como essa – sorri.

-Você não está muito feliz com seu trabalho, não é verdade? Lembro bem que uma vez você me disse que queria ser historiadora apesar do projeto da ONG.

-Não posso dizer que isso não me alegra, muito pelo contrário. Amo o que faço, esse projeto tenho em mente antes mesmo de ingressar na faculdade. Mas, é um campo limitado para uma historiadora, tenho que admitir.

-E o que você pretende fazer após a fundação da ONG?

-Ainda preciso trabalhar um pouco mais em cima da ONG por dois motivos: um deles é que tenho que deixá-la do jeito que sempre sonhei, preparar as pessoas para fazer as coisas do jeito que eu sempre quis. Preciso deixar essa mania de achar que ninguém vai fazer nada direito, confiar na minha equipe. Depois dessa parte, pretendo fazer minha especialização – fitei-a – em Portugal.

-Por que tão longe?

-Quero estudar as influências Ibéricas na nossa história. Sei que o que estudei até hoje é muito superficial. Tenho consciência que será muito difícil, mas quero chegar o mais próximo da verdade. O que sabemos hoje não temos certeza se é verídico e quero saber a versão deles para tudo o que aconteceu aqui desde a vinda de Pedro Álvares Cabral até a suposta independência. Aliás, sei também que acabarei indo mais longe do que 1822, quero dizer, mais perto dos nossos dias atuais e é essa minha verdadeira intenção. A ONG é meu sonho adolescente e os fatos históricos do Brasil é meu sonho adulto, amadurecido.

A Clara estava encantada me vendo relatar meu projeto e eu estava tão empolgada que só reparei nisso depois que terminei, sorri e continuei a falar:

-Não sei quando vou e muito menos quanto tempo vou ficar, só posso ter certeza quando eu começar a preparar tudo – fiz uma pequena pausa – você topa ir comigo? – coloquei uma mecha de seu cabelo atrás da sua orelha.

-Du, esse seria um passo muito importante para minha vida, você tem projetos para lá, eu não – fiz menção em falar, mas ela não deixou colocando o dedo indicador em meus lábios – apesar de que sou  uma produtora cultural e seria interessante, muito interessante, estudar e trazer essa cultura ibérica para ser apresentada para os brasileiros, mas de alguma outra forma, de alguma maneira inovadora.

-Isso quer dizer um sim?

-Isso quer dizer que se eu realmente for com você, nosso namoro ficará mais sério, vamos morar em outro país, na mesma casa. Dividir o mesmo quarto, a mesma cama, nossa angústias, nossas alegrias – ela estava com um ar pensativo.

-Casa comigo?

-Teríamos que passar mais tempo juntas do que já passamos, teríamos que aguentar nossas manias… – divagou sobre tudo o que teríamos que fazer e mudar – Peraê, o que foi que você disse?

*Como muitas de vocês já sabem, escrevi essa história há alguns anos, então algumas informações sobre a Cidade do São Salvador – nome original da cidade – estão desatualizadas. Tentei mudar, mas achei melhor manter o original. E somente a título de informação, a administração da Companhia Tropical de Hotéis – Hotel da Bahia – depois de 40 anos, encerrou a operação de seu estabelecimento desde 07 de março de 2010, em razão da entrega do imóvel a seu proprietário – o Instituto Aerus de Seguridade Social – AERUS.



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