Capítulo 42

O silêncio que se instalou ali estava me irritando, as duas estavam olhando para a rua através do vidro do veículo. Resolvi ligar o som numa rádio qualquer, só queria mesmo era um pouco de barulho ali dentro, tocava “É o que me interessa” do Lenine:

“Daqui desse momento/ Do meu olhar pra fora/ O mundo é só miragem/ A sombra do futuro/ A sobra do passado/ A sombra é uma paisagem/ Quem vai virar o jogo e transformar a perda/  Em  nossa  recompensa/ Quando eu olhar pro lado/ Eu quero estar cercado só de quem me interessa/ Às vezes é um instante/ A tarde faz silêncio/ O vento sopra a meu favor/ Às vezes eu pressinto e é como uma saudade/ De um tempo que ainda não passou/ Por trás do seu sossego, atraso o meu relógio/ Acalmo a minha pressa/ Me dá sua palavra/ Sussurre em meu ouvido/ Só o que me interessa/ A lógica do vento/ O caos do pensamento/ A paz na solidão/ A órbita do tempo/ A pausa do retrato/ A voz da intuição/ A curva do universo/ A fórmula do acaso/ O alcance da promessa/ O salto do desejo/ O agora e o infinito/ Só o que me interessa”

Incrivelmente eu sorri levemente ao escutar essa música, me soltei um pouco mais porque realmente estava tensa com medo de mais uma briga. Percebi que a Clara me olhava vez ou outra e minha amiga não podia ficar sem soltar uma piadinha:

-Essa história ainda não chegou ao fim – riu alto.

-Cala a boca, Dani.

Voltei minha atenção para o trânsito e pouco tempo depois chegamos ao apartamento do meu pai:

-Chegamos, pai – depositei um beijo em seu rosto.

-Que demora, meninas. A pizza já deve está gelada.

-Coloca no micro-ondas.

-Que mau humor é esse? Até que você estava bem antes de sair daqui.

-Oi, sr Moura!

-Oi Clarinha, estava com saudade de você – abraçou e beijou a minha ex namorada.

-Eu também.

-Então por que me abandonou?

-Deixa de drama, pai. Não foi só você que ela abandonou.

Nesse momento a Dani me puxou para a cozinha:

-Dá para você parar de ofender a Clara?

-Só estou falando a verdade.

-Por que você é tão cabeça dura?

-Você ta querendo o que de mim? Que aprove e apóie a reaproximação entre a Clara e a Regina?

-Não, sei que isso será impossível, mas você pode pelo menos não tratar a Clara dessa forma?

-Que forma?

-Você age como se nunca houve nada entre vocês, parece que são inimigas e qualquer coisa que a Clara fala você reage grosseiramente.

-Não consigo ser diferente. Só falo o que penso, tanto você quanto ela sabem que sou assim.

-Sabemos, mas tenta pelo menos maneirar.

-Não prometo nada, essa história ainda está presa em minha garganta.

-Tá, não precisa tratá-la bem, mas também não precisa tratá-la mal.

Não queria mais ouvir nenhum tipo de sermão, saí da cozinha:

-Já jantou, pai?

-Não, estava esperando por vocês. Por isso que pedi a pizza – virou-se para a Clara – já jantou, Clarinha?

-Não.

-Então janta conosco.

-Adoraria, mas deixa para a próxima.

-De maneira alguma. Você vai comer a pizza requentada com as meninas.

Não aguentava escutar mais aquilo, voltei para a cozinha para esquentar a pizza e o jantar do meu pai enquanto Dani arrumava a mesa. Arrumamos tudo, mas não sentei com os outros:

-Não vai comer, filha?

-Não, pai. Estou sem fome. Vou ficar só na Coca-Cola mesmo, talvez mais tarde eu faça algum lanche.

Fui para a pequena varanda que tinha na sala do apartamento, fiquei no escuro bebendo minha Coca-Cola pensando mais uma vez na Clara. Sei que ela estava ali comigo, aliás, com meu pai e a Dani porque eu fazia questão de ficar longe dela, pois sabia que a qualquer instante eu poderia ceder e isso não podia fazer, não nesse momento.

Eu precisava fazer a Clara entender a grande besteira que estava fazendo e voltar atrás nessa estúpida decisão. Tenho consciência também que isso era muito risco que eu estava correndo, mas não ia conseguir continuar com ela, casar com ela e tendo a Regina como meu calo. Não queria isso de volta a minha vida, sofri muito para querer isso novamente.

Não sei quanto tempo fiquei ali, só senti um suave e conhecido toque em minhas costas:

-Du…

Fechei os olhos, sentia muita falta desse toque, dessa suave voz em meu ouvido me chamando de uma forma que só ela fazia. Não saí do lugar e nem reprovei o toque:

-Oi.

-Você pode me levar de volta ao hotel?

Pensei por alguns instantes.

-Você vai agora?

-Sim.

-Tudo bem, eu te levo.

Não me movi. Esperava que ela saísse do lugar que estava porque eu podia sentir sua respiração, sinal que ela estava muito próxima e não queria correr o risco de dar-lhe esperanças de um retorno. Acho que ela percebeu e se afastou dando um sonoro suspiro.

Dani me deixou ir sozinha levar a Clara no hotel, olhei para ela e não disse nada. A volta foi igual a ida, silêncio mórbido e mais uma vez liguei o som do carro, dessa vez passava “Onde Deus possa me ouvir”, do Vander Lee:

“Sabe o que eu queria agora, meu bem…/ sair, chegar lá fora e encontrar alguém/ que não me dissesse nada/ não me perguntasse nada também/ que me oferecesse um colo, um ombro/ onde eu desaguasse todo o desengano/ mas, a vida anda louca/ as pessoas andam tristes/ meus amigos são amigos de ninguém/   sabe o que eu mais quero agora, meu amor?/ morar no interior do meu interior/ pra entender por que se agridem/ se empurram pro abismo,/ se debatem, se combatem sem saber/ meu amor…/ deixa eu chorar até cansar/ me leve pra qualquer lugar/ aonde Deus possa me ouvir/ minha dor…/ eu não consigo compreender/ eu quero algo pra beber/ me deixe aqui, pode sair/  adeus”

Durante a música, teve um momento que paramos para esperar um sinal abrir, a Clara tocou em minha mão que estava sobre minha própria perna, baixei meu olhar até aquele gesto e fiquei lembrando quantas vezes ela havia feito isso quando estávamos juntas. Soltei um saudoso suspiro alto o suficiente – mais alto do que eu imaginava – e não passou despercebido por ela:

-Du… A gente precisa conversar.

Balancei a cabeça negativa e melancolicamente:

-Não fala nada, Clara, por favor. Eu ainda não conseguir digerir essa situação e posso lhe machucar ainda mais pelo o que estou sentindo. Hoje não é um bom dia para conversarmos. Você sabe que quando estou irritada fico muito calada ou falo muita besteira e essas besteiras não quero falar para você, por mais que eu esteja magoada.

Olhei-a, seus olhos lacrimejavam igualmente aos meus, voltei a atenção para o trânsito e rapidamente chegamos ao nosso destino:

-Está entregue.

-Sobe um pouco.

Suspirei:

– Clara…

-Por favor… Por mais que fôssemos namoradas, éramos grandes amigas, conversávamos sobre tudo não havia segredos entre nós duas. Sinto falta da minha amiga até para conversar besteira – sorriu tristemente.

Olhei-a profundamente, ali sim encontrei um pouco da mulher que amo e que tanto sentia falta:

-Também sinto muito a sua falta, Clara. Mas, hoje não tenho condições de subir e ter qualquer tipo de conversa contigo. A gente nem conseguiu conversar nesse trajeto de quinze minutos do apartamento do meu pai até aqui.

-Eu não quero ficar longe de você, não quero terminar nosso namoro – continuava com os olhos lacrimejados.

-Eu também não queria, Clara, você sabe disso mais do que ninguém, mas não quero a Regina em minha vida novamente e você desconfiada de mim.

-Duda, tenta entender meu lado, por favor…

-Não Clara, tenta você entender o meu lado. Basta lembrar tudo o que eu e meu pai já lhe falamos sobre a Regina antes mesmo de sabermos que ela é sua mãe.

-Du…

-Não Clara, eu não ia suportar um dia chegar do trabalho e ver a Regina em minha casa, aliás, nossa casa, lhe visitando.

-Eu quero muito acreditar em você, mas as versões de vocês duas são tão diferentes.

-Já lhe disse que estou cansada dessa história, cansada de brigar por coisas que tenho razão, sempre correr atrás para provar que estou certa, cansei mesmo. Você sabe que detesto que ponham meu caráter em jogo, detesto que não acreditem em mim principalmente quando estou coberta de razão.

-Então não termina comigo, apenas me dá um tempo para eu mesma provar que você realmente está certa.

-Eu não acredito nessa história de tempo, mas se o que te preocupa é se eu vou ficar ou namorar outra pessoa – ri tristemente – eu não sei se isso é bom ou não, mas não quero ninguém nesse momento. Agora cuidado para você não demorar demais.

-Obrigada!

-Não me agradeça, só não vou ficar com ninguém agora porque não quero e também porque te amo. Não sei se ficaria com outra mulher ainda gostando de você. Não quero estar com uma mulher, fechar os meus olhos e te ver, ver seu sorriso.

As lágrimas caíam dos seus olhos agora sem que ela conseguisse controlar e isso estava me machucando muito, mas eu tinha que ser dura com ela, não podia abrir a guarda logo agora. Mas, carinho a ela não consegui negar; segurei seu rosto com as duas mãos e sequei suas lágrimas com os polegares:

-Olha pra mim – falei quase num sussurro, ela levantou o olhar – eu amo você, mas não vou provar mais uma vez que estou certa. Linda, olha ao seu redor e presta atenção. Você é uma pessoa superinteligente e não está conseguindo enxergar a verdade. Só você está achando que a Regina merece uma segunda chance como mãe. Você já percebeu que seus irmãos, que não são insensíveis, seu pai, a Dani, meu pai e eu, que nesse momento somos as pessoas mais próximas a você, não estamos a favor dessa reaproximação?

-Eu só queria uma mãe – as lágrimas não cessavam.

-Eu sei, eu que bem sei o quanto que você sente falta de uma mãe, mas tenha certeza que a Regina não nasceu para isso. Clara, ela ainda vai te fazer sofrer como faz com todas as pessoas próximas a ela e que acabam saindo deveras machucada. O maior exemplo que posso te dar é o meu pai que você viu o estado dele com seus próprios olhos. Ele sempre foi um homem muito ativo, sempre cuidou da própria alimentação apesar de morar sozinho por tantos anos, mas a Regina fez e disse coisas que o deixou tantos dias em uma cama de hospital.

-Por que você não acredita em seu arrependimento?

Respirei fundo, estava começando a ficar impaciente mais uma vez:

-Se eu for citar os motivos ficará repetitivo, como já disse: você não é burra.

Ela respirou fundo:

-Sobe comigo.

-Não! Eu me conheço o suficiente para saber que se eu subir pode e vão acontecer coisas que eu irei me arrepender logo em seguida.

-Você está mesmo disposta a terminar nosso namoro?

-Não, eu quero e muito voltar contigo, mas não nessas circunstâncias. Não quero fazer amor com você à noite inteira de uma forma perfeita como sempre foi e amanhã ser acordada com uma ligação da Regina ou qualquer coisa parecida vinda dela. Eu já disse, Clara: você não pode ficar com as duas, nós nos odiamos e queremos sua atenção exclusiva, não queremos te dividir com a outra. Você tem que escolher entre uma mãe que todos dizem que não presta ou uma mulher que te ama.

-Essa pode parecer uma decisão fácil, mas para mim não é.

-Eu não quero como nunca quis te forçar a nada. Decida isso da maneira que achar melhor, mas não demore muito, posso não estar mais a sua espera.

Beijei seu rosto carinhosamente e ela saiu do carro logo em seguida. Só fui embora quando ela passou pela portaria do hotel – meu lado protetor não me deixava ir embora.

Dei algumas voltas na cidade, não parei em lugar nenhum, só não queria chegar e encontrar meu pai e nem Dani acordados, sabia que viria algum questionamento sobre minha demora e iriam cogitar nosso retorno.

Quando entrei no apartamento, estavam todas as luzes apagadas. Ainda bem que todos já estavam dormindo, realmente demorei muito, até mais do que previa, cheguei 010minh da madrugada.

-Estava te esperando – Dani estava deitada em minha cama.

-Não deveria.

-Vocês voltaram?

-Não.

-Por quê?

-Você não quer que eu repita a mesma história, não é?

-Achei que voltaram por causa da sua demora.

-Não, só ficamos conversando dentro do carro na porta do hotel.

-E mesmo assim não se acertaram?

-Ela não consegue enxergar a verdade sobre a Regina e, consequentemente, não acredita em mim.

-Acho que você deveria dar uma chance a ela, a Clara está precisando do seu apoio.

-Eu também estou precisando dela, mas nessas circunstâncias não posso ajudá-la. Ela tem que escolher entre eu e a Regina.

-Por que você é tão cabeça dura?

-Porque eu odeio essa mulher, pela segunda vez ela está conseguindo interferir em minha vida.

Tomei meu banho e já estava deitando:

-Você vai dormir aqui?

-Contanto que você não me confunda com a Clara – sorriu.

-Não se preocupa, você é linda, mas não sinto tesão pela minha irmã – sorri também.



Notas:



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