Coragem

CORAGEM

Felipe era um sujeito decente. Aos 25 anos entrara na Policia Civil, por idealismo. Pais vivos, uma irmã mais velha e uma irmã mais nova. Não admitia corrupção, mas achara uma parceira ideal. Haviam se conhecido na Academia, deram-se muito bem. Sonhadores, idealistas, tornaram-se grandes amigos. Por coincidência, ao saírem da Academia, foram para o mesmo distrito e após o estágio de aprendizado prático, acabaram na mesma equipe, até que depois de dois anos, tornaram-se parceiros fixos. Ela lhe dera força quando conhecera Carla, aconselhou na aproximação, ajudara-o a portar-se com um pouco de “romantismo” no início do namoro, fora o ombro amigo nas brigas e madrinha de casamento. Atualmente, Felipe está com 38 anos, um casal de filhos e junto com sua parceira, já trabalhou em vários casos bem resolvidos, apoiaram vários departamentos, têm uma boa reputação e o respeito dos colegas e superiores.

 

Sua parceira Letícia, hoje com 35 anos, é solteira, corpo bem feito, rosto comum, o que lhe permite misturar-se na multidão, inteligente, órfã de mãe aos 13 e de pai aos 20 anos. Filha única, adora a profissão, mas para eventualidade, formou-se em Física. O pai lhe deixou o apartamento em que mora, mais duas casas, o que lhe permite um certo conforto, um bom carro, viagens de férias, curtir um pouco a vida. Está sempre interessada em aprender, seja através de leitura, seja através de cursos rápidos. Frequentava a casa dos pais de Felipe, desde a época da Academia. Era amiga de toda a família. Emília, 40 anos, a mais velha, casada, três filhos e Ana Luisa, 28 anos, Eng. em Informática (alguns dizem eng. cibernética). Fora a casamentos, formaturas, batizados, sabia tudo daquela família e era tratada como se dela fizesse parte. No entanto, tinha um problema.

 

Com 22 anos, conhecera Ana Luisa com 15 anos. Vira-a se desenvolver, amadurecer, lutar pelo que queria e chegar lá. Era uma pessoa muito bonita, mas também cínica acima do normal. Tinha opinião sobre tudo e inteligência para defende-la. Tudo isto a encantava, por isso, desde alguns anos, uns cinco pelo menos, evitava permanecer no mesmo local que Ana estivesse. Disfarçava e saia de fininho. Diminuiu a frequência de visitas aos Sampaio, porque Ana morava na casa dos pais, com toda independência e liberdade que a garra, profissão e idade lhe permitiam. Percebera uma vez o embaraço de Letícia, provocado com sua chegada inesperada e isso bastou para que prestasse atenção. Confirmado. Jogava indiretas sutis e charme “inocente”, quando surpreendia Letícia a sós, sem ninguém para ouvir. Letícia sentia-se magoada e fugia cada vez mais de contatos fortuitos.

 

Sabia que não tinha chance alguma. Felipe sabia que era homossexual, nunca escondera dele, mas a família era outra coisa. Dona Mª Antonia, até já tentara lhe “empurrar” namorado. Tentara mudar o sentimento em relação a Ana, exagerando seus defeitos. Não adiantara. Não escolhemos a quem amar. Ama-se e pronto. Sofria, mas ninguém saberia.

 

Um dia, estavam passando em frente a um banco, em uma movimentada avenida, Felipe dirigindo, quando ela notou algo estranho. Era 10:45 h.

 

– Pare!

 

– Que foi? (Já freando)

 

– O banco está sendo assaltado.

 

Enquanto ela passava os dados disponíveis pelo rádio, ele recuou a viatura. Desceram e observaram, armas em punho. Precisavam desviar veículos e pedestres, principalmente os curiosos do local. Pediram apoio urgente, já deixando claro, a necessidade de desvio naquela pista. Havia cinco homens, fortemente armados, com cerca de sessenta reféns. Letícia tomou uma decisão. Tentaria evitar tiroteio inútil e mortes estúpidas. Falou que iria entrar desarmada para conversar, pelo rádio externo da viatura.

 

– Não vai não!

 

– Vou sim. É muita gente lá dentro, se houver tiroteio, vai morrer gente lá e aqui fora. Vou fazer uma tentativa. Vamos ver.

 

– Pelo menos fique com o colete.

 

– Tá. Segure minhas coisas e deseje-me sorte.

 

Entregou armas e algemas para o parceiro e com os braços levantados, entrou no banco.

 

– Com qual dos senhores devo falar?

 

– Comigo.

 

Todos bem apessoados, bem trajados, ninguém desconfiaria de suas índoles.

 

– Devo apenas falar, ou devo chamá-lo por algum nome?

 

– Pode me chamar de John. Tem coragem!

 

– Não é questão de coragem senhor John. Dá uma olhada. O local é muito movimentado. Se não tivessem sido surpreendidos, seria fácil a fuga, no entanto, foram descobertos. Se houver tiroteio, muita gente pode morrer inutilmente. Deixá-los fugir com refém, ou dinheiro, está fora de cogitação. As ordens de cima, são bem claras, não vão deixar. Por enquanto é uma tentativa de roubo e o problema das armas. Não tem nenhum homicídio envolvido. Eu gostaria que continuasse assim.

 

– Posso fazer umas exigências.

 

– Estou ouvindo. Vou passá-las para chefia. Acho que ninguém quer mortes aqui.

 

– Saia agora, vou falar com os rapazes e em cinco minutos você volta. Só você. Ninguém mais entra, senão…

 

– Posso trazer um rádio?

 

– Pode, aí já passa tudo daqui, na nossa frente.

 

Saiu, pegou um rádio e ficou contando os minutos. Já estava tudo cercado por policiais. Havia delegados e oficiais da PM que queriam assumir o comando de tudo.

 

– Letícia, quais as novidades?

 

– São cinco, armas possantes, mais ou menos sessenta reféns. Vou voltar lá dentro em quatro minutos, pra saber se vai haver possibilidade de rendição, ou não.

 

– Tem especialista chegando. Da PM já tem um aqui.

 

– Doutor, ele disse que só falará comigo. Prefiro entrar, a ter algum refém morto. Ele deixou isto claro.

 

– Tá bom. Eu vou estar aqui fora no comando da coisa toda, mas se precisar, nós e os PM entramos.

 

– Sim senhor.

 

Terminados os cinco minutos, entrou novamente.

 

– Senhor John, alguma coisa pra nós?





– Vamos nos entregar pra você e seu parceiro. Vamos deixar as armas aqui, eu vou ficar por último e só entregarei todas as armas e deixarei de apontar para os reféns, depois que todos estiverem nas viaturas e filmados pela imprensa, passado ao vivo na TV, suas condições físicas e que estamos nos entregando numa boa. Vamos sair um por um, as armas vão ficar ali, próximo a porta e seu parceiro e só ele, poderá ir pegá-las. Certo?

 

– Certo.

 

– Você fica comigo e sairemos juntos, direto para a sua viatura.

 

Passou todos os detalhes para o delegado e ficou esperando a imprensa se posicionar. Felipe na porta. Assim que as câmaras de várias televisões estavam prontas, com os repórteres ávidos a postos, o primeiro assaltante foi até próximo a porta, colocou uma automática e uma submetralhadora no chão, as mãos entrelaçadas na nuca e esperou. Felipe entendeu. Entrou, pegou as armas no chão e postou-se atrás dele, levando-o para fora, onde outros policiais o conduziram até a viatura do delegado, começando a tentar saber as identidades dos envolvidos. Revistado e algemado, foi colocado na viatura. Tudo filmado e passado ao vivo em alguns canais. Um a um, procederam da mesma forma. Foram colocados dois a dois nas viaturas, só restando o senhor John que mantinha uma 7.65 mm, apontada para os reféns, enquanto  segurava uma mulher, funcionária do banco, como escudo.

 

– Tudo pronto. Só faltamos nós senhor John.

 

– Certo. Troque de lugar com ela.

 

Apontou para a mulher-escudo. Letícia se aproximou, virou-se de costas. Sabia que ele era frio, calculista, mas não burro, ou homicida. Não queria matar ninguém. Ele a segurou pelo pescoço e ao chegarem perto da porta, entregou-lhe a arma e soltou-a. Ela o conduziu até sua viatura para irem ao distrito, pedindo para os outros policiais levarem o gerente assim que possível. Foi constatado durante a elaboração da ocorrência, que eram de famílias de posse, já haviam feito outros assaltos bem sucedidos, tudo pela “adrenalina”. Era o primeiro banco. Nenhum tinha intenção de matar durante seus roubos, mas também fora a primeira vez que correram risco e acharam que não valia a pena morrer tentando fugir.

 

Por volta das 20:00 h., terminaram toda a papelada. Estava louca por um banho, para comer algo decente e cair na cama. Comprou comida “pra viagem” num restaurante e foi pra casa.

 

Terminou um prolongado banho, colocou o roupão, ligou a tv. Estava cansada demais até pra comer. Daria um tempo, antes de jantar. A campainha tocou. Olhou pelo olho mágico e assustou-se. Abriu a porta. 

 

– Ana! Aconteceu alguma coisa?

 

– Aconteceu! – Já estava no meio da sala, extremamente nervosa.

 

– Sente-se. Eu vou colocar uma roupa e já volto para conversarmos.

 

Entrou no quarto, colocou uma calcinha e abriu o guarda-roupa para apanhar uma roupa qualquer. Virou-se de repente.

 

– Que foi? É tão urgente assim?

 

– É.

 

Aproximou-se, segurou-a pela cintura, através do roupão aberto e começou a beijar-lhe o pescoço e ombros, deslizando os lábios, aprisionando Letícia num quase transe. Afastou-se o suficiente para movimentar-se e despiu-se totalmente.

 

– Não, Ana. É melhor você sair agora.

 

Ana colou-se em seu corpo, continuando a deslizar os lábios por seu pescoço, ombros, seios, empurrando o roupão, puxando-a devagar em direção à cama. Letícia sentiu a cama em suas pernas e um ligeiro empurrão a fez sentar-se nela. Queria falar, mandá-la embora, mas ela não parava de tocá-la, de acariciá-la. Sentiu as mãos sobre a calcinha e o calor daquelas mãos, queimavam-lhe a pele que de um modo irracional queria ser queimada, como uma mariposa diante da lâmpada. Seu corpo reagia em desacordo com o cérebro, que dizia pare e sua boca gemia, ele dizia afaste-se e o corpo procurava desesperadamente o contato. Sentiu sua calcinha sendo puxada e pensou, não. Mas ela só foi puxada um pouco, o suficiente para servir de apoio à mão que se interpôs entre a pele e o tecido. Vou parar agora. Ouviu seu grito, ao sentir parte daquela mão, dentro dela. Parou de vez de pensar, só agia e reagia instintiva e prazerosamente. Perdeu toda noção da realidade.

 

Estava sentindo-se molhada, achando que estivera, de novo, sonhando com Ana. Abriu os olhos e respirou fundo. Não, não dormira na sala e sonhara. Estava deitada na cama e Ana estava sentada, próxima a seus pés, vestida.

 

– Desculpe. Eu tinha vindo realmente conversar. Não foi planejado, mas outra vez que vocês dois fizerem uma besteira como a de hoje, colocando suas vidas em risco, eu mesmo os estrangularei.

 

Começou a chorar, levantou-se e foi embora. Letícia ainda estava tentando entender sua vinda e ela já se fora. Seu estômago doía de fome. Foi comer e ao terminar, ligou para dona Maria Antonia.

 

– Desculpe ligar a esta hora, mas Ana Luisa está?

 

– Está. Acabou de chegar, parecia nervosa, foi direto para o quarto, gritando que não estava para ninguém. Sabe o que aconteceu?

 

– Acho que ficou preocupada com Felipe, pela ocorrência de hoje.

 

– Ah! Deve ser isso.

 

– Obrigada e boa noite.

 

– Boa noite filha.

 

Dizem que o ser humano deu um nome ao divino, para poder explicá-lo, possuí-lo, entendê-lo. O mesmo se dá com este sentimento, denominado amor. Deu-se um nome, mas e daí? Continua fortuito, envolvente, incompreensível. Se antes era impossível esquecê-la, agora era inimaginável e inquestionável. Tinha sentido-a, tocado-a, fora condenada. Durante noites sem fim, sonhava de olhos abertos, com o que acontecera hoje, só não da forma que acontecera. Agora, dormir pra que se, acordada ou dormindo, o sonho era sempre o mesmo, apenas mudara a intensidade da presença física. Só podia perseguir o gosto do beijo ainda não dado.





– Bom dia, parceira.

 

– Bom dia, Felipe.

 

– Ana Luisa falou com você ontem? Ela me ligou “puta” da vida e pediu teu endereço. Disse que ia conversar com você, depois de me xingar um monte pela ocorrência.

 

– Ela esteve em casa, nos ameaçou de morte, se fizermos outra vez qualquer coisa arriscada.

 

– Carla também não ficou contente, família se preocupa e a gente não pensa, age. Estou começando a pensar em mudar de profissão, o problema é que não sei fazer outra coisa.

 

– É! É bom pensarmos nisso. Não está fácil.

 

Na sexta feira, Letícia resolveu sair com uns amigos. Foram a um bar noturno para conversar e dançar um pouco, distraírem-se. Começou a observar o pessoal paquerando, namorando, os “casos”. Começou  a achar que todo mundo tinha alguém, estava acompanhado, menos ela. Sentiu um frio vazio, uma dor imensa do amor ausente. Tentou voltar a atenção para a roda de amigos, mas foi embora cedo.

 

Cerca de dez dias depois do assalto, num tiroteio entre traficantes e dois policiais civis, na zona sul, um fora ferido e pediram apoio urgente. Letícia e Felipe foram o mais rápido possível e junto com outros policiais, após troca de tiros, conseguiram deter os traficantes, sendo que dois deles morreram e os outros quatro, entregaram-se. O policial ferido faleceu.

 

Às 22:00 h., Letícia resolveu tomar um banho e dormir, nada iria mudar aquele dia horrível. A campainha tocou. Abriu a porta após verificar quem era, mas deixou o pega-ladrão.

 

– Veio me estrangular?

 

– Vim conversar, pode abrir.

 

– Melhor não.

 

– Por favor. Não confia em você?

 

– Estava indo pro banho e estou cansada.

 

– Ótimo! Banho e cama. Desculpe, desculpe o cinismo. Eu vou me sentar na sala, fico quietinha, espero você pra conversar. Pode me algemar se quiser.

 

Letícia sentiu-se ridícula. Abriu de vez a porta. Ana entrou, deixando seu cheiro na passagem, sentou-se em frente a televisão, pegou o controle, olhou para Letícia e apontou para o banheiro. Letícia olhou-a um pouco e foi tomar banho. Ia trancar a porta do banheiro, mas novamente sentiu-se ridícula e não o fez. Estava terminando, pronta para fechar a torneira do chuveiro, quando o Box se abriu.

 

– Não. Vá pra sala e espere lá.

 

Ana não tirara a blusa, viera tirando a roupa pelo caminho. Fechou o Box e avançou para Letícia, tirando a blusa molhada pela água do chuveiro, enquanto Letícia recuava até a parede, encostando-se nos azulejos. Ela não queria, mas seus seios molhados do banho, apontavam rígidos para Ana. E foi ali que sua boca chegou, enquanto uma mão buscava o outro seio e a outra descia, acariciando o ventre e mais abaixo. As pernas de Letícia começaram a bambear, escorregou um pouco, as mãos grudadas nos azulejos. Ana veio descendo, acompanhando a água, até encontrar a mão, que retirou para apoiar-se na parede, ficando agachada, sorvendo o líquido do banho e o que vinha do interior de Letícia, que ficou naquela posição, até fraquejar de vez. Ana segurou-a, trouxe-a para baixo do chuveiro, ajudando-a a limpar-se e limpando-se também. Saíram do Box, Letícia enrolou-se na toalha e foi buscar outra para Ana. Esta se enxugou, enrolou-se na toalha e foi sentar-se no sofá. Letícia apanhou seu roupão e entregou a ela. “Pelo menos desta vez, não tenho que trocar toda roupa de cama, ou virar o colchão”, pensou  Letícia com raiva dela mesma.

 

– Você está definitivamente proibida de vir a esta casa.

 

– Olhe, eu te juro pelo que há de mais sagrado, que as duas vezes eu vim para conversar, daí começo a pensar que estamos sozinhas e que amanhã eu  poderei deixar de te ver para sempre, porque você pode estar morta e de repente, parece que é minha última chance. Eu tento nem chegar perto, mas não consigo e depois que toco em você, nada mais existe. Faz tempo que eu te amo. Fiz de tudo para você me notar como mulher, desde os meus 20 anos, você não liga. Quando descobri que você não dizia nada, mas sentia algo bom e forte por mim, agi com o meu famoso cinismo, tentando provocar uma reação. Só te magoei. Percebi e parei, mas você continuou fugindo de mim.

 

– Ana, eu sou como uma irmã mais velha pra você e acho que é assim que você gosta de mim. Jamais diria a seus pais, ou os magoaria, tendo algo com você.

 

– Tenho dois irmãos e não sinto isto por nenhum deles. Tenho 28 anos, acho que sei a diferença entre amor fraternal e qualquer outro. Por que não diria aos meus pais? Tem vergonha do que você é? Ou sou eu?

 

– Não!! Uma coisa é eu ser o que sou e viver tranquila com isso, outra é eu impor seja lá o que for a pessoas como seus pais. São como minha família há 13 anos. É como incesto.

 

– Sou uma mulher que a ama. Não sou tua irmã. Eles podem entender isso, ou se você quiser, não precisam saber, mas pare de me expulsar da tua casa, senão qualquer dia eu não volto.

 

– Vou te emprestar uma blusa e te levar pra casa.

 

Ana não disse mais nada. Vestiu-se, entrou no carro, desceu ao chegarem e entrou em casa, sem uma palavra, ou olhar.

 

Aniversário de casamento de Felipe. Resolveram fazer um almoço em sua casa e ele e Carla, faziam questão da presença da madrinha. Letícia preparou-se por vários dias para o encontro, como disfarçar. Todos já à mesa e Ana não aparecera.

 

– Oi gente! Tem mais um lugar por aí?

 

– Oi. A gente arruma. Cheguem mais.

 

– Espero que não se importem, mas trouxe alguém. Este é Marcio, talvez um dia a gente se case.

 

Risos. Apresentações. Buraco se abrindo. Letícia teve vontade de chorar, gritar, pular no pescoço do rapaz, mas comportou-se.

 

O rapaz era simpático ao extremo. Ao término do almoço, todos ajudaram a limpar a mesa, guardar tudo, só restando a louça para ser lavada, que dona Maria Antonia exigiu, fosse deixada para mais tarde, pois era sábado e tinham comido bem. Iriam jogar, conversar, menos trabalhar àquela hora. Letícia estava afastada quando Ana veio falar com ela.

 

– Então. A família leva em conta sua opinião. Aprovado?

 

– É simpático. Boa sorte. Tenho que ir.

 

– Não acredito! – Saiu sorrindo com tristeza e foi se juntar aos outros.

 

– Pessoal, tenho que ir. O almoço estava ótimo, mas tenho compromisso.

 

– Fugindo da louça Letícia?

 

– Lavo outro dia.

 

Na segunda-feira, assim que teve oportunidade, Felipe resolveu falar com ela.

 

– Letícia, o que está acontecendo? Ana já te provocou de todas as maneiras, pensei que tinha desistido e agora ataca de novo. Não tenho a inteligência de vocês duas, mas não sou burro. Ela fica furiosa quando nos metemos em situação de risco, mas parece que quer me matar por deixar você se colocar em perigo. Agora essa do tal Márcio, foi demais. Acho que queria outra reação tua. O boiola até que é legal, mas casar. Só se fosse comigo.

 

– O quê?

 

– O amigo dela, ou devo dizer amiguinha! Você não percebeu?

 

– Não.

 

– É, parece que quando se trata da Ana, você não percebe muito as coisas.

 

– Que você quer dizer?

 

– Vocês estão tendo um caso?

 

– Eu não faria isso com vocês!

 

– Não é conosco, é com a Ana.

 

– Não, não temos.

 

– Mas ela quer, não é? E você não gosta dela?

 

– Felipe, agora não é uma boa hora para conversarmos sobre isto.

 

– É hora da verdade. Faz tempo que você foge dela e ela antes te alfinetava, agora te paquera, te provoca e você corre. Por quê?

 

– Porque ela sabe que eu a amo, mas não farei nada a respeito por causa da família.

 

– Não me bota no rolo não. Se for a de vocês, felicidades.





Letícia saiu outra vez com os amigos. Mesmo bar, local que frequentava há anos.

 

– Ora, ora! Ana Luisa! Não é teu habitat menina.

 

– Oi povo! Meu habitat é onde eu estiver, mulher.

 

Apresentação geral. Letícia fora pega de surpresa. O pessoal foi dançar.

 

– Oi Letícia, finalmente te achei. Passei em vários bares já.

 

– Estava procurando por ela? Nós sempre que saímos à noite, é pra cá que viemos.

 

– De onde se conhecem?

 

– De outros botecos noturnos, desde a faculdade.

 

– Não sabia que frequentava esses locais.

 

– Não sabe, ou não acredita em muita coisa a meu respeito.

 

– Opa! Pintou um clima.

 

– Não se preocupe. Ela não permite o clima. Diga-se uma coisa Glória, se você encontrasse alguém que te dissesse que a ama, que te procurasse e que quando te tocasse, você perdesse a razão, o raciocínio e só sobrasse a tua sensibilidade aflorada ao extremo, que teu mundo se reduzisse ao momento, ao corpo, ao toque, você diria que é o quê?

 

– Um amor insano.

 

– E o que faria?

 

– Agarraria com unhas, dentes, pele, cabelo, alma, tudo!

 

– Por que você nunca a beijou? – Letícia perguntou.

 

– Tudo isso e eu nunca a beijei? – Perguntou Glória.

 

– Não Glória, porque alguma coisa tem que vir dela. Um beijo, eu acho, é que demonstra intimidade, é algo profundo e como eu queria saber o sabor que sua boca tem.

 

– Uau! Gente que curtição. Vocês são loucas uma pela outra.

 

– Acho que vou indo. Ciao Glória – Nova fuga de Letícia.

 

– Me dá uma carona? Vim de táxi. Preciso conversar mesmo com você.

 

– Vamos lá – Não ia conseguir fugir desta vez.

 

– Pode ir falando?

 

– Não. Em sua casa conversamos.

 

– Ah não!

 

– Não me encare como “uma estupradora”. Só aconteceu porque ambas queríamos. Hoje precisamos conversar.

 

– Se eu não quiser?

 

– Talvez eu peça transferência e nunca mais terá que se preocupar com minha presença.

 

– Promete que quer só conversar?

 

– Prometo que preciso conversar.

 

– Tá bom.





– Pronto. Entre. – Sentaram-se frente a frente.

 

– Estou ouvindo.

 

– Você sabe e eu sei que você me ama. Levei Marcio em casa, pra você perceber que eu não procurava um homem, mas tudo o que eu faço com uma intenção, sai sempre o contrário. Tudo que vem de mim, pra você é…

 

– Mal interpretado?

 

– Isso. Tua reação é sempre contrária ao que eu espero. Você, só você, até meu pai viu que ele é gay. Você sofreu, magoou-se, não entendeu que eu estava te mostrando meus amigos, o que eu sou, que eu não “virei lésbica” por tua causa. Você é consequência. Te amo porque nasci assim, sem influência  e a família vai entender. Não entende que é de você que eu preciso? Você nunca pensa em mim, no que eu acho, no que eu penso, no que eu sinto? Cansei de usar desculpas idiotas com Felipe, pra saber de você, ele não é burro. Deve ter desconfiado.

 

– Ele perguntou. Tem certeza agora.

 

– Você vai ter que me dizer se minha família importa mais do que eu. Só isso. – Levantou-se.

 

– Fique aí, não se aproxime. Preciso pensar.

 

– Só ia andar, não vou chegar mais perto.

 

– Tem que entender que é a única família que tenho, não é fácil pra mim.

 

– Aproveite que vai pensar e pense em mudar de emprego, porque mesmo que você me mande pro inferno, morro toda vez que se envolvem com marginais. Me empresta o carro? Como amanhã você não vai trabalhar, entre 10:00 e 11:00 h. eu o deixo no lugar.

 

– Não quer ficar? Tem outro quarto.

 

– Eu sei. Me empresta?

 

Deu-lhe as chaves e acompanhou-a até a porta. Antes de abri-la, virou-se e encarou Ana. Via seus olhos lindos olharem-na com verdadeira paixão, com verdadeira emoção. Seu coração se acelerou, as pernas ficaram moles, sentiu lágrimas nos olhos.

 

– Nem aqui, agora, no seu “covil”, você consegue fazer o que quer, o que sente. Não sei bem se é a família, ou falta de coragem em partilhar suas emoções, sua vida. Estarei por aí, por pelo menos um mês. Tchau. (Abriu a porta e se foi).

 

Letícia, pra variar, quase não dormiu. Ainda bem que não iria trabalhar aquele dia. Estava esgotada. Pensou como seria não vê-la mais, nem de perto, nem de longe, não ouvi-la. Tivera toda chance do mundo, no entanto, só uma vez tinha deixado fluir, tinha feito o que desejava. E Ana, ao contrário, chegava sem nenhuma limitação e tocava, usava mesmo, como se fosse uma coisa que lhe pertencesse sem restrição e era justamente isso que lhe causava um imenso prazer. Será que era falta de coragem e não medo da reação da família? Trabalhava em constante contato com a morte, perdera os pais. E se assumisse seu amor e Ana morresse? Lembrou-se da companhia dos pais, o quanto a amaram, o quanto a cuidaram, ensinaram. O melhor é ter amor enquanto possível, por isso tantos escrevem e cantam sobre ele. Ninguém o consegue definir, mas todos o procuram e ela tinha isso e estava deixando escapar entre seus dedos.

 

Por volta das 11:00 h., o porteiro veio lhe entregar as chaves do carro. Ana o trouxe, mas já tinha ido.





Na segunda-feira, o maior buxixo no DP. Alguns presos haviam fugido e parecia haver investigador envolvido. Em três dias já tinham os fatos. A corrupção foi comprovada, dinheiro do tráfico. O investigador continua no DP, até o término das investigações e depois provavelmente até o julgamento, depois… Foi a gota d`água.

 

– Letícia, Carla soube que o restaurantezinho perto de seu trabalho, que só serve almoço de segunda a sábado, lá é área estritamente comercial, está sendo vendido. O atual dono está se aposentando e quer curtir com a mulher. Os filhos estão todos formados e casados. Acha que eu consigo empréstimo rápido para comprá-lo? Estou precisando de mudança de ambiente, urgente.

 

– Podemos passar pelo banco e verificar. Tenho uma pequena aplicação, podemos ser sócios.

 

– Maravilha! Vamos ver já.

 

Verificaram. Teriam que trabalhar duro para pagar, por uns 18 meses e aí estariam livres de dívidas, pelas projeções de Carla, que era contadora, levando tudo em conta. 40% do dinheiro, Letícia tinha em aplicação.  Na casa de Felipe, à noite, só havia papéis com contas, projeções, impostos, compras, empregados, etc.

 

– Nossa! É muita coisa. Ainda bem que você é contadora Carla.

 

– Uma contadora preocupada com a vida e o stress do marido. Arranjo outro emprego, se preciso for boto as crianças em escola estadual, qualquer coisa para ele sair deste meio. E você, o que pretende fazer?

 

– Tenho diploma superior, mestrado, doutorado e atualização na minha área, que não segurança. Posso dar aula em qualquer lugar do país. Posso trabalhar em institutos científicos.

 

– Gosta disso? Dar aulas?

 

– Acho que sim. Antes de entrar na PC, pensava muito nisso. Só vou saber depois que tentar.

 

– Beleza. Os dois fora. Que alívio!

 

– Primeiro vamos ver se tudo dá certo.

 

Foram fundo na ideia. Acertaram prazo com o proprietário, já que o banco só liberaria o dinheiro em mais ou menos 15 dias, a burocracia continuava imperando. Como ele não estava com pressa, aceitou. Então foram fazer a documentação bancária. Enquanto isso, Letícia enviou currículos para diversas faculdades e alguns institutos de pesquisas.





O telefone tocou.

 

– Alô!

 

– Ana? Sou eu. Pode passar em casa hoje?

 

– Tem certeza?

 

– Quero falar uma coisa pra você.

 

– Posso.

 

Anoiteceu. Porta aberta.

 

– Posso entrar?

 

– Por favor.

 

– O que é?

 

– Bom… se não aceitar… sabe, eu vou entender. É que…

 

– Direto ao ponto, você é boa nisso, não se afobe.

 

– É que você tinha dito que ninguém precisava saber, daí eu pensei que …

 

– Pensou?

 

– Podíamos tentar. Isto é, a princípio e vamos aos poucos, fazendo-os entender. Acho que de certa forma você tinha razão. Eu andei pensando. Realmente fico preocupada com a família, mas talvez o meu maior medo, seja perdê-la e voltar a ser só. O que sinto por você, não senti antes, é muito grande. Eu não tenho parâmetro e sou física! Depois pensei no desperdício de momentos felizes que podemos ter, daí, se você resolvesse me deixar, eu teria o teu melhor pra lembrar. Não vou querer segredo, seria como mentir. Por isso contaríamos devagar. Pode ser?

 

– Com uma condição.

 

– Qual?

 

– Que você não se segure. Faça o que desejar, quando desejar, sem pedir licença, sem sentir vergonha, porque é exatamente assim que eu vou agir, mas eu gosto de retribuição, não quero ser só eu. Pode ser?

 

Riu e se aproximou, ajoelhou-se na frente dela, olhou-a um pouco, depois segurou seu rosto e beijou-a de leve a princípio, numa crescente exploração em seguida. Sentiu-se flutuar, como se estivesse no espaço, no éter. Só o descompasso da fluidez em suas veias lhe dava a certeza de ser real. Queria ir até o fundo daquele abismo, tirar o máximo de sabor, calor e prazer.

 

– Pode ser.

 

– Tem certeza?

 

– Há muito tempo queria fazer isto. Sonhava, imaginava, mas não sabia que seria assim. Fui uma tola até agora, não fui?

 

– Foi, mas pelo jeito acabou. Quer saber?

 

– O quê?

 

– Teu beijo. É maravilhoso! Passaria a noite toda te beijando.

 

– E por que não faz isso?

 

Alguém já disse que o beijo de uma mulher é como uma rosa. Naquele momento, do primeiro beijo de duas amantes, sentiam mais como o dom divino de compartilhar, de alcançar as estrelas, ver a beleza do Universo. Caminhar através deste Universo desvendado, aguardado e aguardando seus passos. Cada curva, nova constelação; cada protuberância, novos planetas exercendo uma enorme força de atração irrecusável, desejável; cada orifício, um novo buraco negro, infinitas possibilidades imaginativas, prometendo novas jornadas a cada outro encontro.





Dias depois, Ana, pais, irmã e cunhado, estavam jantando, quando sem saber bem por que, resolveu falar abertamente.

 

– Mãe. Acho que já está na hora de uma certa conversa em família.

 

– Todos olharam para ela.

 

– Vamos lá, manda.

 

– Não sei como vocês vão encarar, ou o que pensam a respeito, se têm seus preconceitos. Respeitarei isso. Não sei se notaram que eu nunca trouxe namorados em casa, que a maioria dos meus amigos são mulheres.

 

– Isso nós notamos. Até que o único amigo que você nos apresentou, muito simpático por sinal, é gay.

 

– É justamente sobre isso. Desde que atingi a idade de me interessar por sexo, da curiosidade, eu soube que sou homossexual.

 

– Já imaginávamos – Disse o pai.

 

– Sabíamos que quando fosse a hora, você nos diria filha, mas por que agora?

 

– Porque tem alguém que amo apaixonadamente, alguém com quem eu gostaria de estar para sempre. Há anos já, só que essa pessoa não aceitava o meu amor, agora finalmente aceitou. Criou coragem. Estou feliz e isso não é coisa que ninguém percebe e eu não tenho talento, nem paciência, pra ficar pensando em respostas que deverão ser mantidas para não cair em contradições e coisas assim. Só espero que respeitem isso e saibam que continuo sendo eu. Se não aceitarem, tudo bem, não vou impor nada. Virei visitá-los sempre, a menos que não queiram.

 

– Nós a respeitamos sempre, por que mudaríamos agora, só porque você foi honesta e confiou em nós? – A voz do pai saiu normal, franca.

 

– Filha, podemos conhecer essa … pessoa? (A mãe sorria).

 

– Mãe, ela ficaria completamente embaraçada se isto acontecesse agora. Pediu para que vocês soubessem aos poucos.

 

– Nós a conhecemos então?

 

– Oh mãe! É Letícia. (A irmã perdera a paciência).

 

– Letícia? (Os pais quase gritaram em uníssono).

 

– Não perceberam que sua filha, antes dava em cima dela com descaramento, depois passou a paquerá-la?

 

– Emília! Não ia dizer quem é, ela queria contar aos poucos. Eu já coloquei as cartas na mesa, mas você não podia ficar quieta e esperar? Eu não ia mentir, apenas iríamos contar com tato. Eu a amo tanto e há tanto tempo. Ela não entra mais aqui.

 

– Por quê?

 

– Ela ama e respeita esta família, pra ela é importante o que vocês pensam. Nunca quis magoá-los. Queria deixar claro nosso envolvimento e o quanto ele é verdadeiro. Nós não planejamos, aconteceu.

 

– Nós as conhecemos o suficiente para saber que não querem nos agredir filha. Não tem porque se afastarem, só não vou querer demonstrações afetuosas excessivas na frente das crianças ou na minha.

 

– Mãe, não faríamos isso!

 

– Venham almoçar no sábado.

 

– Se eu a convencer.

 

– Ela virá, não vai te deixar sozinha nessa, vai ver.

 

– Que confiança vocês têm nela hein?

 

– Você não Emília?

 

– Eu também.





– Lê! Mamãe nos convidou para almoçar no sábado. Quer falar com a nora.

 

– Você contou?

 

Explicou-lhe o ocorrido.

 

– Parece que todo mundo te viu dando em cima de mim, não vão poder me julgar culpada.

 

– Eu não deixaria isso acontecer, mas acho que agora vão “me” julgar culpada.

 

– Eu estou com medo. Não sei como agir na frente deles agora.

 

– Como sempre. Nada mudou. Todos são os mesmos, se já sabiam a meu respeito, sabiam que mais cedo ou mais tarde, eu iria ter alguém. O que mudou, é que é uma pessoa que eles conhecem e amam. E que sabem, me faz feliz. Depois, se houver alguma coisa que nos magoe, a gente vem embora.

 

O sábado chegou. Letícia acordou cedo.

 

– Volta pra cama, está muito cedo.

 

– Não consigo.

 

– Diga uma coisa. O risco é válido? Se tivesse que optar, ficaria comigo?

 

– É super válido. Não quero perdê-los, mas se tiver que escolher, não preciso. Eu não tenho mais escolha, supunha que tinha, antes de deixar você me tocar e mesmo aí, acho que a escolha era hipotética.

 

– Então não tem motivo nenhum para preocupar-se. Pare de andar, volte pra cama, vai buscar pão, ver tv, qualquer coisa, porque eu vou dormir mais um pouco.





– Pronto, chegamos. Tua mão está gelada! Eu estou aqui. Felipe também, olha o carro dele aí. Coragem.

 

Entraram no quintal, Ana beijou-lhe o rosto e apertou a campainha. Felipe, que via a classificação de F-1 na sala, abriu a porta. Abraçou-as.

 

– Vão fundo.

 

– Mãe chegamos. Cadê você?

 

Os pais estavam na cozinha. O resto da família, no quintal dos fundos da casa, terminando de arrumar as coisas perto da churrasqueira. Letícia não conseguia ultrapassar a porta. Ana entrou, beijou-os e saiu para falar com os outros. Os donos da casa a olharam.

 

– Vai ficar aí parada?

 

– Estão zangados comigo?

 

Dona Maria Antônia foi até ela, abraçou-a e começou a chorar. Seu Pedro ria.

 

– Melhor que seja você, não alguma desvairada por aí. Temíamos por ela, os outros estão bem casados, graças a Deus. Agora ela também está e  você é da família mais que nunca.

 

– Obrigada! Querem que eu faça alguma coisa para ajudar?

 

– Não, só estou temperando a salada. Pode ir cumprimentar os outros.

 

Ao término do almoço, Felipe e Letícia deram a notícia sobre o restaurante e a saída da polícia.

 

– Está mesmo tudo certo?

 

– Agora está. Assim que o banco nos entregar o dinheiro, Letícia pega sua aplicação, pagamos e pronto. Já avisamos o delegado que no máximo um mês, estaríamos fora. A gente só queria contar quando tudo estivesse certo. Ontem fizemos os últimos acertos. É só esperar. Não contamos nem para as crianças, que acham?

 

Todos riam, todos os abraçaram. De certa forma todos estavam aliviados.

 

– Se tivessem dito pra mim, eu teria vendido meu apê e vocês teriam menos dívida com o banco. Morava aqui mesmo.

 

– Não, esse é teu patrimônio. Dá pra gente pagar. Fizemos a projeção baseados na contabilidade deles e Carla conferiu tudo. Qualquer eventualidade, tenho as duas casas alugadas, que ajuda, mas sempre posso vende-las e eu não vou trabalhar no restaurante.

 

– Vai continuar na polícia?

 

– Não. Vou finalmente trabalhar na minha área.

 

– Ela enviou currículo para um monte de lugar. Seu sonho é pesquisa ou aulas, ou ambas. Eu a acho meio convencida, mas é competente. Vai conseguir.

 

Assim que possível, Letícia aproximou-se de Ana.

 

– Está brava?

 

– Orgulhosa.

 

– Era surpresa e ainda não consegui.

 

– Mas vai. Vamos embora?

 

– Por quê? Não acha que está cedo? Tua mãe não vai gostar.

 

– Vou ajudar com a louça e em meia hora vamos embora.

 

– Que foi?

 

– Quero comemorar com você, só com você

 

– Tá bom.





Tanto se falou, escreveu-se, cantou-se sobre o amor. Nada ainda lhe fez justiça, talvez a parte da dor, mas não a emoção outra. Naquela noite, Letícia acordou de madrugada. Olhou Ana dormindo ao seu lado e soube que acordaria por muitas outras noites, só para vê-la dormir, só para ter certeza que assumira seu amor e não precisaria sonhar. Depois de um tempo olhando seu rosto, puxou a coberta, descobrindo o corpo que agora sabia, era seu e soube que este seria seu pedido a Ana; dormir sempre nua, com nada sobre a pele adorada, pois não havia nenhum tecido que pudesse igualar a beleza e maciez dela, prejudicaria. Tocou-a de leve e da reação ela soube que outras muitas noites, agiria assim. Um corpo dormente em perfeita sintonia com o corpo desperto, fazendo do sonho e da realidade, uma coisa só, uma junção quase perfeita, esses corpos se usando como brinquedos inquebráveis. Brinquedos de adultos insaciáveis, dispostos a explorarem mutuamente todas as possibilidades daquela brincadeira a duas. Não cabia mais ninguém. Era uma brincadeira seríssima, a  mais importante para o prazer, o complemento do conviver que as fazia pulsar harmonicamente, que lhes daria forças para o dia a dia e para enfrentar qualquer dificuldade no relacionamento, porque ali, na intimidade, cumplicidade e liberdade maior, se conheciam completamente. O acordar do dia, não era fora daquelas paredes, era no sorriso do bom dia, que o sol nascia e aquecia as almas que ali habitavam.

 

Desistiram de entender ou explicar o amor, passaram a senti-lo e vivê-lo em sua plenitude. Podiam ficar em casa, ou sair com amigos, ou ir a teatros e cinemas, ir dançar, ir a praia, ou seja lá o que desse vontade. Só precisavam estar juntas e seu mundo estava centrado e seguro, complexo e fácil, real e sonhado, mas sobretudo com a capacidade de enfrentar seus medos, com a coragem dos heróis, dos loucos e/ou dos amantes.














                                                                            FIM.



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