Paixão Passageira

Paixão Passageira

Sempre que Antonieta entrava em um ônibus ela tinha a estranha sensação de que iria encontrar o amor da vida dela. Esse palpite é questionável e ela sempre tenta saber o porquê sente isso, mas nada lhe parece plausível para essa intuição.

Entrou no ônibus, cumprimentou o motorista e o cobrador, sentou no banco do fundo, fones de ouvidos trabalhando desde a hora que saiu de casa, mesma rotina cinco dias por semana. Ouvindo ”Sweet Dreams” da banda Eurythmics e olhando o ônibus se avolumar de gente percebeu uma leve irritação se aflorar. Estava no último ano da faculdade de medicina veterinária, aulas em período integral, desgaste diário. Afundou no banco, encostou a cabeça no vidro e prestou atenção na música “Sweet dreams are made of this. Who am I to disagree? I traveled the world and the seven seas. Everybody’s looking for something.” (Doces sonhos são feitos disso. Quem sou eu para discordar? Eu viajei pelo mundo e pelos sete mares Todo mundo está procurando alguma coisa.) Concordou com o vocalista, todo mundo está procurando alguma coisa. Antonieta procurava um amor para acalentar o coração. Reconfortá-la após um dia de aulas, após uma viagem de quase uma hora para chegar ao seu destino final. Seja este em casa ou na faculdade. Alguém para afagar os cabelos castanhos claros e amenizar a solidão que sentia naquela imensa cidade, naquela selva de pedras.

Olhava a cidade pelo vidro do transporte coletivo, cada parada enchia-se mais de seres esperançosos por um bom dia.

Voltou sua atenção para dentro do ônibus e de imediato viu uma mão segurando a barra perto da porta de saída, uma mão delicada, dedos longos, no pulso uma fita roxa do Senhor do Bonfim gasta pelo tempo, os dedos se moviam como no ritmo de uma música. No braço uma delicada tatuagem “Be yourself and be free”, Antonieta leu mentalmente em português: “Seja você mesmo e seja livre”. A manga da camisa denunciava um xadrez azul e um ombro franzino, pescoço delicado, três argolas na orelha e cabelos na altura dos ombros, pretos como carvão. Rosto arredondado, a boca vermelha movia-se cantando baixinho e os olhos azuis encontraram os olhos pretos e curiosos de Antonieta. Um leve sorriso brotou no rosto das duas e o olhar foi desviado com um certo embaraço pelas duas.

O rapaz ao seu lado levantou-se para descer na próxima parada, a garota aproveitou a deixa e sentou-se ao lado de Antonieta. Olhou-a sorrindo e tirou-lhe os fones de ouvido, tirou os seus próprios e trocou-os. Começou a ouvir as músicas de Antonieta e fez com que Antonieta ouvisse as suas. “É que a gente quer crescer. E quando cresce quer voltar do início. Porque um joelho ralado. Dói bem menos que um coração partido.”  foi o que Antonieta escutou primeiro. Reconheceu a voz de Kell Smith cantando “Era uma vez”. A garota de sorriso meigo e olhos azuis ouviu o começo da música “Love me like you do”, “You’re the light, you’re the night. You’re the color of my blood. You’re the cure, you’re the pain. You’re the only thing I wanna touch.

Never knew that it could mean so much, so much.”  sorriu reconhecendo a voz de Ellie Goulding e traduziu em pensamento o início Você é a luz, você é a noite. Você é a cor do meu sangue. Você é a cura, você é a dor. Você é a única coisa que quero tocar. Eu nunca soube que poderia significar tanto, tanto.

Antonieta arriscou um toque, um leve contato com o pulso da garota, percorreu a pulseira com a ponta do dedo e depois passeou pela pele do braço até a tatuagem. A garota lhe sorriu e puxou seu rosto para perto do dela, centímetros de distância separavam as duas, as bocas se encostaram devagar. A garota tinha gosto de bala de morango, um beijo suave e tímido.

O ônibus freiou bruscamente, separando-as do beijo. A garota destrocou os fones de ouvido, puxou-a para mais um beijo e levantou. Antonieta segurou-lhe a mão, a garota beijou-a, o ônibus parou e ela desceu sumindo no meio da multidão.

Passou o dia pensando na garota de olhos azuis e blusa xadrez.

Na volta para casa, o ônibus freiou bruscamente, acordando Antonieta do sonho que estava tendo, a garota com gosto de morango veio lhe visitar. Houve outra freada e ainda sonolenta Antonieta bateu a cabeça no vidro ao seu lado. Com a mão na cabeça, olhou para frente para tentar entender o que aconteceu e viu uma mão delicada segurando-se perto da saída. Meio atordoada fixou o olhar na mão delicada que mexia os dedos como no ritmo de uma música. Havia uma fita do Senhor do Bonfim amarrada no pulso, desgastada e na cor roxa. Olhou para a garota de cabelos pretos, blusa xadrez e tentou entender como ela havia saído do seu recente devaneio. Encararam-se e a garota sorriu-lhe. Antonieta franziu a testa e a garota riu. O mesmo riso daquela manhã. Se era uma alucinação Antonieta deixaria ser, não queria sair daquele sonho e daquele olhar. A garota sentou-se ao seu lado tirando o fone de ouvido, Antonieta também tirou o dela..

— Prazer, sou Emily. —  esticou a mão para Antonieta.

— Antonieta. — apertou-lhe a mão — Sempre beija todas as meninas que conhece no ônibus?

— Não. — riu — Apenas as que sei que vou reencontrar.

— Como saberia disso? — perguntou curiosa.

— Arrisquei. — riu.

Antonieta olhou-a surpresa e Emily apenas lhe puxou para outro beijo. Trocaram os fones de ouvidos, Emily deitou sua cabeça no ombro de Antonieta.

No outro dia, Antonieta entrou no ônibus e esperou pela entrada de Emily, esperou o percurso todo, porém nunca mais se viram.



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