(HELLENA)

Havia bastante tempo que não encontrava Henrique. Nunca fomos muito amigos na adolescência, mas nos aproximamos muito após o término da escola, solidificando uma amizade sincera.

Andava tão ocupada com o trabalho que não me restava muito tempo para os amigos e foi com muita alegria que, ao passar em frente à praça, percebi a presença dele sentado em um dos bancos acompanhado de uma moça, muito bonita por sinal.

Resolvi cumprimenta-lo e, à medida que me aproximava, comecei a observar melhor a mulher ao seu lado.

Não saberia descrever a mistura de sensações que experimentei ao reconhece-la. Estava muito diferente daquela adolescente gordinha que usava óculos de grau e escondia o sorriso tímido fingindo coçar o nariz e ajustar os óculos. As espinhas haviam sumido e dado lugar a uma pele clara e macia sem quaisquer resquícios delas. Os cabelos castanhos claros cortados à altura dos ombros, estavam encobertos por um boné. Estava magra, e pude observar curvas que dariam inveja a qualquer mulher, mesmo ela estando o tempo todo sentada. Vestia um shortinho preto, um tanto curto, exibindo pernas longas com coxas grossas e musculosas, e uma blusinha um pouco decotada na cor azul celeste. Nos pés uma havaiana com detalhes de sisal trançado, linda em sua simplicidade. Mas, não pude ver seus olhos, pois estavam escondidos atrás de óculos escuros.

Estava linda.

Tenho a plena certeza de que ninguém a reconheceria sem os óculos e o boné. Mas, comigo, as coisas eram diferentes. Ela marcou minha vida. Fez de mim uma mulher diferente, embora nunca mais tenhamos nos encontrado desde àquela festa.

Cris me fez enxergar o mundo por outro ângulo. Apesar de todas as mudanças, a reconheci, e se ela tivesse podido enganar meus olhos, não teria sucesso em enganar meu coração.

Aproximei-me devagar à espera de algum gesto qualquer seu, mas ela não se moveu, nem deu qualquer indício de que havia me reconhecido e Henrique veio me cumprimentar, desconcertado.

— Menina, por onde você andou? Está sumida.

— Ah, meu amigo, desculpe! Tenho trabalhado demais.

— Mas, será que terei que ficar doente para poder falar um pouco com você?

Ri da pergunta dele. Podia notar o seu nervosismo e sentia os olhos dela sobre mim, escondidos atrás das lentes escuras.

A observava com o canto do olho. Séria, pernas cruzadas, um braço apoiado na coxa e o queixo apoiado na mão. Aparentava concentração total em nossa conversa e me senti um pouco desconfortável, pois sabia que estava me avaliando, mas não era uma sensação ruim.

Me encontrava nervosa e, por trás do sorriso que exibia, tentava esconder a emoção de estar diante dela depois de tantos anos.

— Ora, não diga isso, vá até meu consultório quando desejar. Tenho sempre um tempinho para tomar um cafezinho com um amigo entre uma consulta e outra.

— E me arriscar a atrapalhar o trabalho da doutora? Jamais! Coitadinhos dos seus pacientes.

— Não seja exagerado. Apareça sempre por volta das nove horas da manhã ou três da tarde. Sempre uso esse horário para tomar uma água ou um café, para relaxar e descansar um pouco.

— Hum, fico feliz em saber. Pode ter certeza de que irei.

Já conversávamos havia alguns minutos e achei que estava na hora de perguntar:

— Não vai me apresentar sua amiga?

Parecia que havia atirado uma bomba sobre a cabeça dele. Ficou vermelho, baixou o olhar para os pés, depois sorriu amarelo e começou a apresenta-la.

— Esta é a minha amiga…

O desconforto dele era evidente, mas o encarei firmemente e, para minha surpresa, foi ela que completou:

— Jéssica, meu nome é Jéssica. — E estendeu a mão para mim, seus lábios grossos e vermelhos se curvando em sorriso estonteantemente simpático.

Mantive sua mão na minha pelo máximo de tempo possível, enquanto tentava compreender o porquê dela ter mentido sobre sua identidade. Um pouco abalada por aquele contato, me retirei com a desculpa de que tinha que trabalhar.

Mas, a verdade, era que aquele mero aperto de mãos mexeu comigo.

Sabia que um dia ela voltaria. Aguardei ansiosa este dia e, no entanto, perdi completamente o controle de minhas emoções ao tocá-la. Foram tantas as lágrimas derramadas, as palavras nunca pronunciadas, mas escritas. Ainda me lembrava do seu olhar e do calor de seu abraço naquela noite de adeus.

— Você está bem, Hellena?

Minha irmã, minha faz-tudo no consultório, que atendia pelo desígnio de secretária, perguntou assim que entrei. Estava tão distraída que nem havia me dado conta de onde estava. Levei um susto com a pergunta e demorei alguns segundos para formular uma resposta que, em nada, parecia confirmar o que eu dizia.

— Er… Sim, sim, Malu. Eu… Tô bem, sim.

Me apressei a entrar na sala sob o peso do seu olhar curioso, enquanto cumprimentava alguns pacientes que já estavam à minha espera.

Fiz um grande esforço para me manter concentrada no trabalho durante toda a tarde, mas meus pensamentos teimavam em vagar até a imagem de Cristiane sentada naquele banco da praça, tão séria, tão mudada, tão linda.

No fim da tarde, me despedi do último paciente do dia e comecei a arrumar as coisas para ir embora. Então, Malu entrou na sala como um pequeno furacão e sentou-se em uma cadeira com aquele olhar de ave de rapina que dizia “Você não me engana! ”

— Então?

Olhei para ela sem entender.

— Então, o quê?

— Então, você vai ou não me contar o que está acontecendo?

Tentei desconversar.

— Não está acontecendo nada.

— Lena, por favor, não tente me enganar. Está acontecendo algo, sim. E, como sua irmã, tenho o direito de saber o que te preocupa.

— Já disse que não está acontecendo nada. Por que não acredita em mim?

Ela sorriu debochado. Odiava quando fazia isso!

— Porque você receitou laxante para a dor nas costas do Sr. Zé Inácio e Atroveran para diminuir a inflamação do corte no pulso da Eloisa.

— O quê?! — Gritei, já procurando as cópias do meu receituário do dia. — Você está brincando, não é? Não podia estar tão distraída a este ponto!

Ela riu alto com um brilho malicioso no olhar.

— Mas, é claro que estou brincando. Contudo, você acabou de me confirmar que algo te preocupa, pois se encontrava distraída.

A fuzilei com o olhar.

— Me conta, vai. Que houve?

Suspirei forte e pesadamente.

— Nada de mais. Só encontrei com alguém que há muito tempo não via.

— E este alguém seria…

— Ninguém em especial, Malu. Agora me deixa ir, tá?

Ela não se moveu. Cruzou as pernas e me olhou com seriedade exagerada.

— Se não fosse especial você não estaria assim. Quem é?

Ela nunca desistia. Não iria parar até que falasse.

— Encontrei o Rick mais cedo.

— E…

— E ele estava acompanhado.

— Por…

— Por uma mulher.

— Que seria…

— Cruzes! Você não desiste nunca?

Ela riu gostosamente.

— Depois de vinte e nove anos convivendo comigo, esperava que você já estivesse acostumada. E aí, quem é ela?

— Cristiane — respondi, contrariada.

— E quem é essa?

— Não me lembro de conhecer muitas mulheres com este nome por aqui.

A encarei séria por alguns segundos. Quase podia ver seus neurônios trabalhando para recuperar a memória. Ela abriu a boca e arregalou um pouco os olhos cuja íris possuía um tom cinza esverdeado e que contrastavam com as minhas cinza azuladas, herança de nossos bisavós.

— Você não está se referindo… — a ficha caiu.

— Sim.

— A Cris? Àquela Cris?!

— Ela mesma.

Permaneceu um tempo em silêncio, enquanto me observava arrumar a mesa. Peguei a bolsa e comecei a me dirigir para a porta quando ela falou:

— Você não acha que ela voltou por sua causa, acha?

A olhei incrédula.

— Está doida?

— Ora, por quê? Ela escreveu naquele diário que você era o amor da vida dela, aliás, que você era a vida dela. Poderia, muito bem, ter voltado por tua causa.

A possibilidade disso ser verdade aqueceu meu coração, mas não deixei que Malu o notasse.

— Não seja ridícula! Provavelmente, voltou por causa daquela reunião idiota que o pessoal está organizando para nossa antiga turma se reencontrar, domingo à noite.

— Ela disse isso?

— Não. Mal nos falamos. Agora, deixa de interrogatório que tenho que ir embora, ainda tenho um monte de coisas para fazer hoje.

***

Não sou o tipo de pessoa que costuma mentir para se ver livre de uma determinada situação ou momento constrangedor, mas tive de fazê-lo. Na verdade, não tinha nada de importante para fazer à noite. Mas, Malu era o tipo de pessoa que não se satisfazia com detalhes superficiais. Ela queria sempre mais e mais, só parava quando tinha certeza de que já tinha arrancado todos os fatos da sua vítima.

Resumindo, era muito curiosa!

De fato, entendia a curiosidade dela em relação ao regresso de Cristiane. Além de minha irmã, ela sempre foi minha confidente. Quando voltei para casa àquele dia com as cópias das páginas do diário da Cris em mãos, foi a ela que as mostrei. Desde que as li na classe, não consegui pronunciar palavra alguma durante horas.

Foi surpreendente quando peguei a primeira folha de papel e comecei a ler. Não saberia explicar o que senti naquele momento, mas tudo me pareceu tão irreal.

A pessoa que havia posto aqueles papéis ali, fez questão de escrever, em letra de forma, no canto de cada página: “Cópia do diário de Cristiane Oliveira do 3º ano A”.

Não era necessário ter feito isso. Pelo menos, não para a turma, afinal, todos conheciam a letra dela. Uma letra miúda e redonda, inclinada para a direita, feita com capricho; com certeza, a mais bonita da sala.

Nunca me imaginei capaz de despertar aquele tipo de sentimento, ainda mais, em uma garota. Ainda mais, nela. A Cris sempre foi tão quietinha e solitária. Realmente, nunca nos esforçamos para sermos amigas. Algo sempre me impediu de me aproximar dela, nos relacionávamos dentro dos limites do coleguismo em sala de aula. Não conversávamos nada que não fosse a respeito de trabalhos escolares, não nos encontrávamos para sair ou manter uma amizade fora dos portões do colégio.

Por isso, no momento em que li:

“Hellena! Poderia passar horas admirando-a. Poderia encontrar mil formas de dizer o quanto ela é linda sem repetir uma única frase. No entanto, quando estamos frente a frente e olho em seus olhos, me perco, me torno prisioneira daquele olhar tão cinza e tão cheio de cor ao mesmo tempo, as palavras me abandonam e tudo que consigo pronunciar se limita a alguns grunhidos animalescos que podem ser interpretados como ‘Sim’ ou ‘Não’…”.

Estaria mentindo se dissesse que não pensei que aquilo fosse uma piada infeliz, mas não era, e meu coração começou a bater forte e descompassado ao descobrir que era amada daquela forma.

Olhava para Cris, muda. Meu cérebro tentava processar as informações, as frases se formavam desconexas em minha mente. E vi as lágrimas deslizarem em seu rosto uma após a outra em uma corrente ininterrupta, como se fossem as águas de um pequeno rio. Ouvia Diego ler em voz alta as palavras que descreviam seus sentimentos por mim e rir dela.

Ele ria, mas por dentro, meu coração batia freneticamente acelerado por ouvir coisas tão lindas.

Foi difícil manter a concentração durante a aula, só pensava nos olhos dela, na maneira que eles haviam se fixado em mim, tristes, magoados, solitários e cheios de lágrimas, profundamente intensos.

— Hellena?

Minha irmã me olhava sentada em sua cama.

— Hellena? — Ela chamou novamente.

Desviei o olhar dos papéis que tinha em mãos para ela.

— Oi.

— Que há com você?

— Nada.

— Nada, não é resposta. Você está sentada aí há vinte minutos e não tira os olhos desses papéis. Que há de tão interessante neles? — Ergueu–se e, com um movimento rápido, aproximou-se de mim e tomou-me os papéis.

“Por mais que tente, não posso e não consigo arrancar esse amor do meu peito. Sou prisioneira daquele olhar, daquele sorriso, daquela voz doce… Me pergunto todas as noites por que meu coração não consegue esquecê-la e por que ele tornou-se refém da presença dela, da presença de Hellena…”.

— O que é isso? Quem… Quem é Cristiane?

Ela me fez contar toda a história. Ao fim do meu relato, abriu um sorriso e disse:

— Mana, se essa garota fosse um cara, não pensaria duas vezes para te dizer: “Larga o idiota do Diego e fica com ele!”.

— Não fala besteira!

— Não estou falando besteira. É a verdade. Nunca li nada tão bonito.

Deitei na cama com minha cabeça em sua coxa e sussurrei:

— Eu também não.

Ela passou a mão em meus cabelos.

— Ninguém nunca me olhou daquele jeito — revelei.

— De que jeito?

— Não sei explicar. Você teria que ver para entender. Mas era tão profundo.

— É impressão minha ou você ficou balançada com essa história toda?

Me coloquei em pé de um pulo.

— Não fala mais besteiras desse tipo, Malu! Não tem nada a ver, só achei as palavras dela lindas, pois nunca imaginei que alguém pudesse sentir algo tão forte assim por mim!

— Hum, sei. Se você diz. — Deu de ombros.

Naquele momento, me recusava a admitir que as palavras de Cris mexeram comigo, que tocaram meu coração. Fui para os últimos dias de aula na esperança de vê-la e conversar com ela a respeito disso. Não sabia o que iria falar, mas queria conversar.

Como era de se esperar, toda a cidade ficou sabendo. Cansei de ouvir as pessoas fazendo piadinhas com o nome dela. Depois daquele dia, ela não voltou mais a escola, mas os comentários e piadas eram constantes e sempre acabava sobrando algo para mim também.

Os comentários deixavam Diego furioso e ele começou a ficar fora de si sempre que ouvia algo sobre o diário de Cris. Chegou a agredir dois amigos só por citarem o nome dela na sua frente.

Era só ouvir seu nome que ele se descontrolava. Depois de um tempo, começou a me culpar pelo amor que ela sentia por mim. Segundo ele, eu havia incentivado os sentimentos dela. Começou a me perseguir, tinha ciúmes das minhas amigas. Qualquer mulher que se aproximasse de mim era pretexto para uma nova discussão. Eram tantos absurdos que, certo dia, brigamos no meio da rua por causa disso.

— Já chega!

— Chega? Você fica aí se oferecendo para tudo que é mulher e vem me pedir pra parar?

— Você está doente! Não estou me oferecendo para ninguém, elas são minhas amigas!

Ele riu com escárnio.

— É mesmo? E a Cristiane é o quê sua?

— Diego, já pedi para você esquecer essa história! Você mesmo leu o que ela escreveu, nós mal nos falamos desde que nos conhecemos.

— Não acredito nisso! Você deve tê-la incentivado de alguma maneira. Admita que você deu bola para ela!

— Você está louco!

— É, estou louco, sim! Estou louco porque a minha namorada fica dando bola para outra mulher. Se fosse um cara, não estaria tudo bem, mas seria menos humilhante do que isso. Meus amigos vivem fazendo piadinhas. Você sabe o que eu tenho que aguentar por causa daquela infeliz? Você não está nem ligando, não é mesmo? Aposto que adora o que aquela idiota escreveu sobre você!

Tentava controlar a raiva e as lágrimas que me dominavam, mas era quase impossível. As pessoas que passavam na rua estavam começando a parar e formar um pequeno círculo a nossa volta.

— Pelo menos ela sabe o que é amor!

— Ah, e eu não te amo, não é mesmo? Ela sim! Admita, Hellena, que você prefere uma saia a um par de calças!

— Analisando bem este momento, as idiotices que você está falando e a maneira estúpida como está agindo, — queria magoá-lo e não pensei duas vezes para terminar a frase — sim!

Ele me olhou surpreso e boquiaberto.

— Eu tentei, juro que tentei, mas você insistiu e continua insistindo nessa história. Este namoro acaba aqui! E quando você se perguntar o motivo, pense bem em tudo que tem feito nos últimos dias, na maneira estupidamente desnecessária que vem agindo e lembre-se de que você é um idiota!

***

Duas semanas após essa discussão, encontrei, por acaso, com Cris. Ela estava sentada em uma calçada em baixo de uma árvore. Quando a vi, meu primeiro impulso foi o de dar meia volta e fingir que não a tinha visto, saindo dali o mais rápido possível. No entanto, continuei caminhando em sua direção e me perguntando o motivo de meu coração bater com tanta força só de vê-la.

— Oi. — Falei, tentando esconder o nervosismo em minha voz, mas acabei falando tão baixo que cheguei a duvidar de que ela o tivesse ouvido.

Sentia meu rosto arder por estar tão perto dela e a olhei com a certeza de que a coloração avermelhada em seu rosto se assemelhava a minha e era provocada pelos mesmos sentimentos que os meus.

Ela abriu a boca para me responder, no entanto, antes que pudesse emitir qualquer som, ouvimos uma de nossas ex-colegas de classe perguntar:

— Por que você não gosta da Cristiane? Que foi que ela te fez?

Cristiane e eu ficamos nos olhando, enquanto ouvíamos as barbaridades que saíam da boca de Vitória. Ela era louca, só podia ser ou andava assistindo muita novela mexicana. Como ela pôde ser capaz de fazer aquilo?

Lágrimas.

Ela estava chorando.

Bateu uma vontade de protege-la, não saberia dizer de onde surgiu. Simplesmente, a puxei para um abraço e deixei que suas lágrimas molhassem meu ombro.

Mentiria se dissesse que não senti nada naquele momento. Enquanto estávamos abraçadas, tantas coisas passaram por minha mente e dessas tantas coisas apenas uma permaneceu, a imagem de um par de olhos castanhos marejados de lágrimas.

Não suportava mais ouvir as baboseiras que saíam da boca de Vitória e saber que aquilo feria aquela menina meiga e encantadora que se encontrava em meus braços. A soltei e senti o vazio que esse gesto me causou, então saí de nosso esconderijo.

— Então, você acha divertido brincar com os sentimentos alheios, Vitória?

Senti a presença de Cris às minhas costas desaparecer, mas mantive meu olhar fixo em Vitória. Odiando-a por ser tão vil.

— Hellena, do que você está falando? — Ela tentou se fingir de desentendida.

— Por favor, me poupe de seu teatrinho. Que tipo de pessoa você é? Se acha melhor só porque fez alguém que nunca te fez mal sofrer?

— Peraí! Voc…

— Cala a boca! Ainda não acabei. O Rick fez a escolha certa ao te dar um chute, ele é um cara legal e não precisa de uma cretina como você como namorada.

— Você não tem o direito de falar assim comigo!

— Tenho, sim! Você não prejudicou só a vida da Cristiane, prejudicou a minha também!

— Não era para acontecer nada contigo…

— Agora não interessa. Você vai me dar aquele diário agora e nem vai se aproximar da festa hoje à noite.

— Que é isso? Está doida? Quem você pensa que é para me impedir de ir à festa? E por que pensa que te entregarei o diário?

— Dois motivos. Primeiro: Se você não o fizer, conto ao Rick quem aprontou tudo isso. Ele anda jurando em tudo que é lugar que a pessoa que fez isso vai se arrepender do que fez quando o pegar. E se você ainda gosta dele como aparenta, não vai querer que descubra que foi você. Segundo: Se não fizer, saio te arrastando pelos cabelos até sua casa e faço questão de dizer para o teu pai o que você anda aprontando. Pelo que sei o delegado, seu pai, foi um dos que ficaram muito indignados com o que houve, pois acredita que todo mundo tem direito a amar a quem quiser e, também, porque ele classificou a invasão da escola e distribuição daqueles papéis como um ato de vandalismo. Tenho certeza que ele vai ficar chocado e furioso ao descobrir que foi a filhinha querida dele a responsável por toda essa bagunça!

— Você não faria isso! — Olhou-me com descrença.

— Quer arriscar? Todo mundo sabe como o teu pai é bravo. Ainda lembro como ele te arrastou daquela festa ano passado, só porque você não tinha lhe pedido permissão para sair.

Ela não argumentou mais. Engoliu seu orgulho e caminhamos em silêncio, lado a lado, até sua casa. Ambas sem conseguir ocultar na face o sentimento de quase ódio que corroía nossos corações por aquela situação e por nossas atitudes.

Ela odiando-me por obriga-la a me dar o diário de Cris sob a ameaça de contar a seu pai suas armações, um homem que todos sabíamos que não tolerava mau-caratismo, artimanhas e jogo sujo, que impunha uma educação, um tanto quanto, rígida aos seus filhos. Eu, por outro lado, odiando-a por ter feito mal a uma criatura doce como Cris, alguém que apesar de se isolar do restante da turma, nunca havia feito mal a alguém e que era capaz de escrever palavras lindas e tão cheias de sentimentos.

— O que pretende fazer com ele? — Vitória perguntou de cara amarrada.

Estávamos no portão da sua casa, sendo vigiadas pelo olhar atento e curioso da sua mãe na janela. Sorri para ela e voltei a encarar Vitória que aguardava minha resposta com os braços cruzados.

— Irei devolver a verdadeira dona.

Já estava de saída quando a ouvi dizer:

— Não entendo a razão de todo mundo querer proteger aquele filhotinho de…

Girei sobre os calcanhares no mesmo instante, meu sangue fervia.

— Não conclua esta frase. — Alertei perigosamente.

— E vai fazer o quê? — Ela me desafiou.

— Posso muito bem esquecer o acordo que fizemos e ainda deixarei meus dedos impressos nessa tua cara sem vergonha — informei com um sorriso, que tenho certeza, era cruel.

Na verdade, estava torcendo para que ela fosse em frente e cumprisse o desafio. Nunca fui um poço de paciência, mas também não perdia a calma com tanta rapidez, no entanto, meus nervos estavam um pouco abalados desde que vi e senti as lágrimas de Cristiane.

Ela ergueu as mãos em sinal de paz e se dirigiu para o interior da residência. Ainda demorei um longo minuto a observar a porta que ela havia fechado atrás de si, então segui meu caminho. O diário de Cris ia colado ao meu peito, protegido como um tesouro. A sensação que senti ao pegá-lo era indescritível.

Era um livro grosso e de capa escura, algumas páginas já amareladas e gastas pelo tempo de uso. Quando o abri, me deparei com a linda letra dela, tão redondinha que parecia ter sido desenhada, então me dei conta de que carregava os sonhos e desejos de alguém.

Como disse a Vitória, pretendia devolvê-lo a Cris, mas, durante o caminho, não resisti. Parei, sentei em baixo da primeira árvore que encontrei e comecei a lê-lo. Sabia que era correto, mas algo dentro de mim queria ler tudo e saber tudo sobre o que ela sentia por mim. Suas palavras começavam a se tornar uma necessidade para mim.

Havia passado todos aqueles dias lendo aqueles fragmentos de seu diário avidamente. Agora, o tinha em mãos e não pensei duas vezes em matar minha sede das palavras dela.

“Não sei se posso descrever com palavras como foi que me senti na primeira vez em que vi Hellena. Os cabelos cheios de cachinhos tão negros quanto a noite, tive vontade de contar um por um deles. O sorriso um pouco acanhado, era uma menina tão linda. E, naquele momento, algo dentro de mim começou a existir somente por ela. Não entendia, não conseguia encontrar uma explicação para a atração que ela exercia sobre mim até hoje.

O que aconteceu hoje me fez entender.

Gosto de sentar embaixo da mangueira atrás do pátio do colégio na hora do intervalo, às vezes o Rick vem comigo quando não está a fim de jogar futebol com os outros meninos. Hoje ele não quis vir comigo, então fui sozinha e, para minha surpresa, havia mais alguém ali.

Encontrei Hellena beijando o Felipe do 1º Ano. Nunca pensei que meu coração pudesse bater tão forte e acelerado. Nunca senti uma dor tão profunda, uma dor que não era física, mas doía do mesmo jeito, ainda está doendo. Chorei ao vê-los juntinhos e não entendi o motivo do meu choro.

Saí de lá e fiquei um bom tempo chorando, me perguntando o porquê das lágrimas até que me dei conta de que eu queria estar no lugar do Felipe. Eu queria estar beijando ela. É duro admitir para mim mesma que amo uma garota e que não sou como minhas colegas, mas no fundo, sempre soube que o que sentia por ela era diferente, mas não imaginava isso.

Agora entendo tudo.

Entendo porque cada olhar, cada sorriso, cada palavra que ela me dirige são como um tesouro para mim. Sonho com ela todas as noites, bebo cada palavra que ela pronuncia, mesmo que não seja dirigida a mim, como se estivesse a beber o mais puro e saboroso mel.

Hoje descobri que amo Hellena.”

A noite se anunciava quando voltei para casa com o diário debaixo do braço. Embriagada pela leitura dos segredos de Cristiane e de seu amor. O guardei com cuidado entre meus pertences e fui me aprontar para a festa de aniversário do Rick.

Para meu total desprazer e desagrado, Diego veio falar comigo assim que entrei na festa, quebrando o momento mágico que se instalou quando meus olhos encontraram os dela no instante em que cheguei. Estava bêbado. Queria conversar comigo, pedia perdão, dizia que foi um idiota e que me amava.

Queria reatar comigo.

Me recusei a conversar. Estava farta de seus ciúmes, das besteiras que falava, de tudo. Então, ele agarrou meu braço com força.

— Por que está fazendo isso comigo, hein? — Perguntou, seu rosto tão próximo ao meu que pude sentir o cheiro da bebida em seu hálito me causando enjoo.

— Está me machucando. Me larga!

— Não vou te soltar até você dizer que me perdoa e que vai voltar pra mim!

— Você está louco, não vou fazer isso!

Apertou meu braço com mais força.

— Vamos! Sei que você me ama, volta pra mim! Sei que você está louca pra dizer sim.

— Não! — Gritei com um misto de dor e raiva. Não depois do que havia feito e dito.

Então, Rick surgiu e o afastou de mim.

— Que é isso, cara? Me larga!

— Não vou largar coisa nenhuma. Não esqueça que você está na minha casa e não quero confusão aqui.

— Porra, estou conversando com a minha namorada e você não tem o direito de se meter!

— Eu não sou mais sua namorada, Diego! Me deixa em paz! — Gritei.

— Ah, não! Não sou mais, só porque você quer! Que é? Prefere essa daí? — Olhou para Cris que acabara de se aproximar.

— Você é um idiota! Não sei como não percebi isso antes!

Saí da casa tentado conter as lágrimas que teimavam em me dominar e, assim que virei a esquina, deixei que elas corressem soltas por meu rosto. Me perguntava como pude ser tão cega a ponto de namorar aquele garoto por tanto tempo e em como as coisas chegaram àquele nível.

Então, senti a presença de alguém às minhas costas e ao voltar-me deparei-me com uma Cris de olhos fixos em mim e rosto afogueado. Algo dentro de mim fez com que procurasse abrigo em seus braços e nunca me senti tão protegida quanto naquele momento.

Meu coração começava a se perder de encantos por ela.

Ela me embalou, carinhosamente, por um longo tempo até que meu pranto secou e, finalmente, nos afastamos. Então, me ofereceu a mão e caminhamos em silêncio até minha casa. Ainda me encontrava perdida em pensamentos confusos e dolorosos, mas me sentia segura de todo e qualquer mal apenas pelo contato de sua mão na minha.

Procurei palavras para agradecer-lhe, mas meu vocabulário se reduziu a nada, então não contive o impulso de beijar-lhe a face. Ao me afastar, nossos lábios roçaram levemente e nunca senti meu coração tão agitado. A mistura de sentimentos foi tão intensa dentro de mim, que tudo que consegui fazer foi fugir daquele olhar castanho que me fitava surpreso e feliz ao mesmo tempo.

Desde aquela noite, nossos caminhos não voltaram a se cruzar e o diário dela passou a ser minha mais querida companhia. E, à medida que lia suas palavras, cada novo capítulo da vida dela, cada linha que descrevia o amor que sentia por mim, meu coração deu-se conta de que também estava apaixonado. 

Esperei seu regresso por muito tempo, mas ela não veio, então decidi dar continuidade a minha vida, mas com ela sempre em meu coração.



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