Procura-se

PARTE II

Sam já estava desperta quando Cléo entrou no celeiro. Em silêncio, sentou na “cama” e retirou a camisa para que a mulher pudesse examinar seu ferimento e refazer o curativo.

Quase uma semana tinha se passado desde que chegou ao rancho. A febre a dominou nos dois primeiros dias, obrigando Cléo e o tio a se revezarem em seus cuidados. Tinham optado por não chamarem o médico da cidade. Em parte, porque ele cobrava muito caro, mas também, porque não tinham ideia da encrenca em que a mulher havia se metido para ser alvejada e ter de se arrastar pelo deserto para sobreviver.

Dois dias antes, a febre passou e o ferimento no abdômen começou a cicatrizar como deveria, embora ainda sangrasse um pouco.

Com os olhos fechados, Sam sentiu as mãos de Cléo a examinando. Eram suaves, pequenas e delicadas. Apesar do começo complicado entre elas, gostava daquele contato, ainda que quase não houvesse conversa. Em parte, porque realmente ficou ofendida com o que a rancheira disse. Obviamente, não foi a primeira vez que ouviu algo do tipo, e a verdade era que não se importava com o que as pessoas pensavam. Entretanto, o jeito como Cléo pronunciou a frase, como se estivesse expulsando algo ruim do ambiente, mexeu com seus brios.

Zangava-se ao pensar nisso, mas a raiva logo dava lugar a admiração. Não podia negar que gostava de estar perto dela. Nunca vira olhos mais belos, nem sentiu uma presença tão forte e delicada ao mesmo tempo. E essa dualidade de sentimentos a confundia. Por isso, preferia o silêncio.

— Parece bom — Cléo finalizou o exame e o novo curativo. Fitou Sam com certa rigidez, enquanto ela se enfiava dentro da camisa amarrotada e fazia uma pequena careta ao passar o braço pela manga. E ainda que a moça fosse perfeitamente capaz de fazê-lo, abotoou a camisa dela, notando o tecido ainda úmido, visto que não tinha secado bem durante a noite.

Alguns minutos depois dela deixar o celeiro, Aran entrou com uma caneca de leite e um pedaço de pão, ainda quente. O pequeno Oliver o acompanhava com uma moringa de água.

— Bom dia! — disse o menino, depositando a água sobre um caixote. Sam sorriu em resposta.

Aran colocou a caneca e o pão sobre outro caixote, ao lado do amontoado de feno que era a cama dela, então retirou um potinho de unguento do bolso e lhe entregou para que passasse nos pés. Aquela pasta malcheirosa era quase milagrosa; a dor já não incomodava e a aparência das feridas tinha melhorado consideravelmente.

— Está certa disso? — Aran perguntou.

— Sim — respondeu ela, calçando as botas e guardando o unguento. Pela primeira vez em dias, sentia-se disposta e ávida por movimento.

— Isso aí foi um tiro, não se brinca com essas coisas — apontou o rancheiro, ouvindo um “tsc” por parte dela.

— A bala atravessou sem fazer estrago aqui dentro — deu um tapinha de leve na barriga —, e após os cuidados da sua sobrinha, está cicatrizando sem problemas. Ela costurou bem.

A última frase foi dita com um leve tom de ironia, que fazia referência a discussão que teve com Cléo.

— A dor é toda sua… — disse Aran, dando de ombros.

Satisfeita, Sam comeu devagar, observando-o colocar os itens necessários para arrumar a cerca na carroça estacionada diante do celeiro. Um pangaré irritadiço estava atrelado a ela e batia uma das patas dianteiras no chão, sempre que algo era jogado na carroça.

Alegre, Oliver assumiu a condução e logo desapareceu em uma das curvas da estrada, deixando para trás uma pequena nuvem de poeira. Sam e Aran seguiram a pé, visto que a cerca que iriam consertar ficava próxima e ela sentia a necessidade de esticar as pernas após tantos dias de cama. Aran andava devagar, para que ela pudesse acompanhá-lo sem dificuldades.

— É bem mais que um buraco na cerca… — comentou ela, olhando para o estrago no local. — Ladrões?

— Ah! — o velho fez uma careta, puxando o chapéu para a frente. Apesar de cedo, o sol estava forte. — Tem acontecido em todos os ranchos das redondezas. Moro aqui há 20 anos e esta é a primeira vez que me vejo às voltas com ladrões.

Apoiou-se no que restou da cerca naquele ponto.

— Quando o velho Don Ford era o xerife, essas coisas não aconteciam. Pelo menos, não dessa forma. Os culpados não ficavam impunes. Ah, não…

Ele fitou o pasto, entretido com seus próprios pensamentos. Sam fez o mesmo, mas logo perdeu o interesse na folhagem seca.

— Perdeu muitos animais? — Quis saber.

— Por sorte, não — pigarreou, levando a mão ao bolso onde guardava o cachimbo. Estava com vontade de fumar, mas esse era um prazer que reservava apenas para o fim do dia. — Na tarde anterior, vendi quase todos os que estavam neste pasto. Não roubaram mais que meia dúzia.

Sam passou a vista pela cerca, balançando a cabeça devagar. E disposta a iniciar o serviço, pegou um saco de ferramentas da carroça. A careta de dor foi inevitável.

— Não carregue peso ainda! —  O homem ordenou, pegando o saco de seus ombros.

Resignada, ela assentiu e se dedicou a carregar coisas mais leves. Logo estava com o alicate em mãos, cortando a parte do arame que ultrapassava o mourão e fixando a ponta na madeira com o auxílio de um martelo. Enquanto isso, Aran reposicionava a madeira tombada.

Oliver era um pequeno e ágil ajudante, levando ferramentas e água para ambos. Assim, a manhã se passou rapidamente e o trabalho foi concluído um pouco depois do meio-dia.

— Você não estava brincando sobre o trabalho — Aran constatou. — Na última vez em que precisei consertar a cerca, contratei um moleque da cidade. Levamos um dia e meio para terminar o serviço. Acredita?

— Precisa escolher melhor seus trabalhadores.

O homem concordou, enxugando o suor do rosto com o lenço que envolvia o pescoço.

— Onde aprendeu a trabalhar assim?

Ele realmente precisava de ajuda com a cerca, e desde que ela se mostrou disposta a fazer o serviço, estava mais que satisfeito em aproveitar as mãos extras. Contudo, tinha duvidado da história que ela contou e das suas habilidades.

— Com o meu pai — ela respondeu com cautela. — Ele era muito paciente e não se importava de ensinar o serviço de um homem para uma menina. Aprendi todo tipo de coisa com ele; sei arar a terra, plantar, colocar ferraduras em cavalos, caçar, atirar…

— Devia ser um bom homem.

— Ele era… — disse num fio de voz e começou a juntar as ferramentas com a ajuda de Oliver.

— Eu sinto muito.

— Está tudo bem — ela deu de ombros, jogando um martelo na carroça e ocultando uma careta de dor com uma falsa tosse. — Ele partiu há muito tempo. Além disso, a morte é a única coisa que temos como certo na vida.

— É verdade… — concordou Aran, admirado com a simplicidade dos seus pensamentos. A maioria das pessoas tendia a falar da morte com temor. — Mesmo assim, é sempre doloroso perder alguém. E o modo como falou, deixou claro que eram muito próximos.

A confirmação veio através de um balançar suave de cabeça. Para Sam, falar sobre o pai era sempre incômodo e doloroso. Ainda que tivesse se preparado para o momento, nunca superou a morte dele.

 — Você não tem outros familiares?

Ela inspecionou o rosto bronzeado e marcado pela idade, tentando descobrir se Aran estava mesmo curioso ou investigando a estranha a quem deu abrigo. Concluiu que era apenas curiosidade e negou com a cabeça.

— Há quanto tempo está sozinha?

— Minha mãe morreu quando eu era criança e o meu pai há 6 anos.

— Lamento — ele colocou o rolo de arame farpado na carroça, fazendo o cavalo atrelado a ela relinchar em protesto. — É um mundo cruel para uma mulher sozinha; deve estar sendo difícil.

Novamente, Sam balançou os ombros, como se não tivesse importância. Cansada do assunto e desejando se preservar, tratou de mudá-lo.

— Onde fica o outro buraco?

— Mais para lá — Aran gesticulou a direção. — Consertamos esse amanhã.

— Mas ainda é cedo.

— Verdade, mas eu não quero ser o culpado por você cair dura no chão, sem uma gota de sangue — apontou para a mancha que crescia na camisa dela.

— Estou bem — afirmou, mas a verdade era que começava a se sentir tonta. O sol forte e o esforço não eram boas companhias para quem tinha recebido um tiro.

— Tá dando para perceber — ironizou o velho. — Encerramos aqui. Está na hora de você descansar. De qualquer forma, não poderíamos finalizar o trabalho hoje mesmo. Preciso ir até a cidade resolver alguns negócios. — Cofiou o bigode. — Não tenho que me preocupar com você, tenho?

— Não, senhor.

— Bom! Porque as balas do meu rifle fazem um estrago maior do que essa que atravessou sua barriga. E assim como a minha sobrinha sabe costurar um buraco de bala, ela também sabe fazê-los com primor!

Ela sorriu largo, certa de que não havia exagero nas palavras dele.

— Vamos para casa — Aran concluiu.

A rigidez dele era facilmente superada pela gentileza disfarçada de ordens. Percebeu logo que Sam era uma pessoa orgulhosa e teimosa demais para aceitar a piedade alheia. Ela teria continuado a trabalhar na cerca até a noite ou a exaustão.

— Está bem — concordou a mulher, se encaminhando para a carroça e sentando ao fim dela com as pernas penduradas. Aran fez o mesmo, sem ânimo para caminhar debaixo do sol forte. Oliver, que já estava a postos para guiá-los de volta ao celeiro, fez um barulhinho estranho com a boca, sacudiu as rédeas e se colocaram em movimento.

Enquanto sacolejavam com o trote lento do cavalo, Sam mirou o rosto sisudo de Aran.

— Vocês estão sendo muito gentis comigo…

— Não se sinta importante, faria o mesmo por qualquer outro.

— Tenho certeza que sim — ela sorriu. — E é por isso que preciso partir o mais rápido possível.

O velho voltou o rosto para olhá-la.

— O que você andou aprontando por aí, menina?

Ela sorriu novamente. Seu pai costumava chamá-la de “menina”, como se tivesse esquecido o nome com o qual a batizou. Raramente usava o apelido “Sam” para se referir a filha, e ainda mais raros eram os momentos em que a chamava de “Samanta”.

— Apenas o meu trabalho, senhor.

Retirou o cinturão. Na parte interna do coldre, que ficava em contato com o corpo, existia um bolsinho costurado. Havia dois papéis cuidadosamente dobrados dentro dele. O primeiro era um cartaz de procurado. O segundo, um documento que identificava Samanta Bordoni como uma caçadora de recompensas à serviço da Agência Phoenix.

Aguardou o costumeiro comentário: “Uma mulher caçadora de recompensas?!”. Contudo, Aran se limitou a dizer:

— Isso é uma bela porcaria! — Ele devolveu os papéis e cuspiu no chão.

— Eu concordo — guardou os documentos e voltou a colocar o cinto.

— Essa é uma vida ainda mais dura do que nos fez pensar que tinha.

— Desculpe por ter mentido. Não sabia se podia confiar em vocês. E para ser sincera, ainda não confio. Só não quero que saiam machucados por minha causa.

Aran bufou algo como “é justo” e ensimesmou-se. Ela ainda formulou outro pedido de desculpas, mas acabou ficando em silêncio e deixou a vista se perder nos pastos além da cerca que consertaram.

A dor do ferimento a arrastou para as lembranças dos eventos que culminaram na sua chegada no rancho.

Procederam como Félix havia planejado. Ela, Dylan e Tommy chegaram à cidade de Vale Seco em uma diligência. Dylan assumiu a alcunha de seu marido, enquanto Tommy fazia o papel de cunhado. A história deles era simples e tão comum naquelas bandas que ninguém lhes prestou muita atenção.

Fingiam ser um trio com pequenas posses, que estava de passagem pela cidade em busca de novos investimentos. Seguiam para Valeriana, onde a ferrovia começava a ser construída, oferecendo boas oportunidades financeiras a quem estivesse disposto a se arriscar.

Tomaram o cuidado de chegar à cidade um dia após a partida da diligência para Valeriana. A próxima só sairia dali uma semana, dando tempo para fazerem a investigação. Hospedaram-se na única estalagem do local e assim que a noite chegou os homens foram para o bar com a desculpa de estarem à procura de bebidas e diversão.

O combinado era que eles tomariam as rédeas da investigação, visto que, por serem homens, teriam mais liberdade de entrarem em qualquer lugar e conversarem com qualquer pessoa. O bar era o ambiente ideal para iniciarem. A bebida deixava homens alegres e falantes, principalmente, se estivessem tentando blefar e desviar a atenção dos adversários nas cartas.

O trabalho de Sam era semelhante. Ela só precisava bancar a esposa delicada e curiosa, vagando pela cidade e gastando o suado dinheiro do marido nas poucas lojas. Com jeito meigo, às vezes frívolo, ela conseguia guiar os lojistas e seus clientes pelos mais diversos assuntos. Mas após dois dias seguindo os planos de Félix, Sam percebeu que não sabiam nada sobre Jonas Morgan e seu bando. E, se sabiam, eram muito bons em esconder informações.

Sendo assim, preferiu se preservar. Parou de contar uma lorota, uma história boba sobre como quase tinham sido assaltados no caminho até ali, que servia de isca e introdução para o assunto. Passou a se dedicar à observação, enquanto os homens permaneceram no plano inicial.

Seu falecido pai costumava dizer que só existia dois tipos de pessoas que sabiam o que realmente se passava em uma cidade: padres e prostitutas. Então, Sam aconselhou os parceiros a procurarem a companhia dessas mulheres.

Eu sou seu marido! — Dylan se queixou. — Vão me condenar por isso.

— Não se faça de recatado a essa altura. Você só estaria agindo como a maioria dos homens.

— Agora me sinto ofendido — ele riu com gosto, satisfeito com a tarefa que tinha recebido e que, de fato, rendeu frutos.

A informação não era sobre Jonas Morgan, como esperavam. Entretanto, era melhor que retornar para casa de mãos vazias e talvez pudesse levá-los ao bandido como, de fato, levou.

— Você fica até ser capaz de subir em um cavalo sem sangrar — decretou Aran, arrancando-a das lembranças. — E vamos manter essa história apenas entre nós. Cléo não precisa dessas preocupações.

Sam murmurou um agradecimento e o retorno para casa seguiu sem que voltassem a conversar. Enquanto sacolejava ao lado dele, pegou-se a pensar no pai e nas muitas vezes em que ele disse que, quando se aposentasse, iria comprar um pequeno rancho e criar cavalos. Ela tinha certeza de que seria um lugar bem parecido com aquele.

Ainda pensava no pai, quando entrou no celeiro e encontrou Cléo colocando roupas limpas e dobradas sobre seu local de repouso. Notou que eram masculinas.

— Pertenciam ao meu marido — explicou a mulher. — Sei que você pode lavar as suas todas as noites, mas será melhor assim.

A forasteira passou tanto tempo em silêncio, que um suave tom rosado começou a tomar a face morena e delicada. Isso quase arrancou um sorriso de Sam, que terminou por dizer um “obrigada” quase inaudível e lhe deu passagem para fora do lugar.

***

Cléo estava sentada na varanda da casa, entretida em bordar um pano de prato, quando a cabeça de Sam surgiu na borda do poço para desaparecer segundos depois, dando lugar a uma picareta. Quase duas semanas tinham se passado, desde a chegada dela ao rancho. Mesmo ferida, a forasteira se mostrava útil. Ajudou Aran com a cerca, em seguida iniciou reparos no velho celeiro; primeiro, as paredes, e depois o teto. Agora, se dedicava ao velho poço, cuja água tinha secado há dois verões.

Ela parecia incansável e ávida por demonstrar sua gratidão, ainda que não estivesse completamente recuperada.

A agulha penetrou o tecido algumas vezes, dando forma a uma folha, antes de Cléo tornar a procurar sua “hóspede” com o olhar. Era algo que se repetia com bastante frequência. Estava sempre seguindo-a com o olhar.

Como se soubesse que sua aparição era aguardada, a mulher projetou o corpo para fora do buraco, pedindo algo para Oliver. O menino acompanhava o trabalho de perto, tagarelando sobre o potro que acabara de nascer. Parecia enfeitiçado por Sam. Em parte, porque ela era novidade, mas também porque era atenciosa com ele.

— Você tem que se desculpar com ela.

A voz grave do tio atraiu sua atenção. Aran se balançava em uma cadeira velha, que fazia o piso de madeira ranger a cada vai e vem. Ele também observava Sam, como se estivesse tentando descobrir o que a moça escondia por trás das feições sérias e olhar penetrante.

— Eu tentei, o senhor viu —  fitou o bordado. De repente, perdeu o ânimo com ele e o deixou de lado.

— Desde quando uma muda de roupas é um pedido de desculpas?

— Assim o senhor me ofende, Tio.

— Palavras são o que realmente importa, Cléo. Você ofendeu com palavras, deve se desculpar da mesma forma — alisou a barba. Havia uma ruguinha soberba no canto da sua boca, quase ocultada pelos fios brancos e ralos. Pousou o olhar no rosto rubro da sobrinha. — Ah! Conheço essa cara.

Sorriu para ela, sabichão. Afirmou:

— Você se sente culpada e, principalmente, incomodada com o fato dela te evitar.

Ela inspirou fundo, voltando a mirar a figura esguia de Sam. Seus olhares se cruzaram rapidamente e sentiu um leve descompasso, que preferiu creditar ao incômodo citado pelo tio. Era a primeira vez que se sentia tão frustrada com um simples pedido de desculpas.

— Você não pensa daquela forma, nunca pensou… — continuou ele, tingindo o rosto dela com um violento rubor.

— Temos mesmo que enveredar nesse assunto?

Ele deu de ombros, gesticulando algo que poderia significar um “tanto faz” ou, simplesmente, estar afastando um mosquito. Cléo era tão transparente, quanto a água do riacho que cortava suas terras.

— Eu vou tentar falar com ela, está bem?

— Isso é bom. Que tal fazer isso esta noite?

Ela enrugou a testa e, prestes a tecer um comentário, ouviu os primeiros sons da carroça na estrada. O senhor Drake, vizinho e grande amigo de Aran, parou a carroça a poucos centímetros do alpendre que contornava a casa. Ele fez um pequeno gracejo sobre a hora, depois os cumprimentou. Por fim, esticou-se e alcançou a cesta no piso da carroça. Retirou dela uma garrafa de whisky, fazendo promessas sobre a noite que se aproximava. Aran já estava de chapéu na mão quando ele retornou a garrafa para o interior da cesta e o convidou para um jogo de cartas na residência de outro amigo.

Cléo fez uma pequena careta, mentalmente projetando a imagem do tio bêbado sobre o lombo do cavalo ou caído nos degraus da varanda. Antes de se juntar ao amigo, ele olhou para o celeiro e disse para a sobrinha:

— Ela cismou que vai achar água naquele poço velho. Quando isso acontecer, tomará seu rumo. Então, aproveite esta noite para resolver esse mal entendido e passarmos os próximos dias sem olhares atravessados e conversas monossilábicas. Mas antes, fale com aquele imbecil! — apontou para a estrada com o queixo. — Ah, ele não desiste!

Outra vez, Cléo direcionou o olhar para a estrada que levava até a porteira. Quatro cavaleiros se aproximavam devagar.

— Você podia dar um basta nisso de uma vez! — Reclamou Aran.

— Acha que não tentei? O prefeito Brown pensa que sempre que o rejeito, na verdade, estou flertando com ele.

— Engomadinho arrogante — o senhor Drake cuspiu no chão ao ouvir o nome do prefeito. — Faça um favor a si mesma, Cléo, fique bem longe desse sujeito.

— Homens como Brown estão acostumados a terem o que querem, Cléo. — Atalhou Aran. — Você ainda é jovem, bonita, viúva e herdeira de um bom lote de terras, no qual ele está de olho há anos. Dê logo um basta nisso, exceto, se quiser se enfiar em outro casamento fracassado por conveniência…

Ela se empertigou, deixando-se afundar no desgosto que o comentário lhe trouxe. Ficaram em silêncio, observando os homens se aproximando.

— Boa tarde! — O prefeito cumprimentou, erguendo o chapéu levemente. Foi imitado pelo seu leal guarda-costas e o xerife.

Ao contrário do que fazia normalmente, ele não fez menção de apear do cavalo.

— Como vai, Aran? Reparei que consertou a cerca — disse o xerife, fazendo um gesto com o polegar e indicando a direção de onde vieram.

O velho balançou a cabeça, ao passo que franzia o cenho.

— É só o que me resta, já que a “lei” não parece interessada ou apta a pegar esses bandidos.

— Tio, por favor!

Ele fez um gesto brusco e o xerife desprezou o comentário.

— É tarde para uma visita, Prefeito — continuou com uma carranca. — Sua insistência com a minha sobrinha está começando a se tornar inconveniente.

No lombo do seu cavalo castanho e inquieto, o prefeito se empertigou. Seu rosto ficou vermelho como um tomate, contrastando com o branco encardido da camisa. Tom Brown, como Aran tinha acabado de comentar, estava muito interessado nas terras deles, principalmente, após saber que havia a possibilidade da ferrovia vir para aquela região. Contudo, seu interesse em Cléo não era apenas financeiro. Ele realmente se sentia atraído por ela e estava determinado a ser seu esposo.

Ele pigarreou, ensaiando uma resposta mentalmente. Porém, foi o xerife a esclarecer:

— Nós estamos aqui à procura de uma fugitiva, Aran. O prefeito Brown estava no rancho Redington, quando passamos por lá, e decidiu nos acompanhar.

Assim que ele findou a frase, a cabeça de Sam surgiu na linha do solo. O xerife pousou o olhar afiado nela, que fingiu não perceber a presença deles e subiu mais um degrau da escada para depositar um saco de barro ao lado de Oliver. Ela voltou a desaparecer no interior do poço por alguns instantes, até ressurgir com outro saco de barro, que jogou ao lado do anterior.

— Um bando tentou roubar a fazenda de David Evans há alguns dias — continuou o xerife, ainda observando o trabalho de Sam. — Os homens dele deram conta da maioria, mas dois fugiram.

— Encontramos o corpo de um deles no deserto. O outro é uma mulher — disse o quarto homem que os acompanhava, o qual Cléo reconheceu como sendo um dos delegados do xerife de Vale Seco. — Morena, olhos castanhos, cabelos negros, atende pelo nome de Samanta Rios. As informações são de que está ferida; um tiro no abdômen. Aqui está um retrato.

Os olhos de Cléo se voltaram imediatamente para Sam que, finalmente, tinha saído do poço. A forasteira continuou a se fingir alheia à presença dos homens e começou a jogar os sacos em um carrinho de mão, dando o trabalho por encerrado naquele dia.

O delegado acompanhou o olhar de Cléo que, ao perceber seu interesse, fez questão de gritar com Oliver, ralhando com o menino por estar tão perto do poço. Poderia cair e se machucar. A criança ficou de pé, murmurou algo para Sam e correu para a mãe, que o mandou entrar em casa e se limpar.

Aran pegou o retrato que, na verdade, era um cartaz de “procurado”. A mulher desenhada nele tinha cabelos longos e cacheados que emolduravam um rosto delicado, apesar da simplicidade da imagem. Cléo fitou o cartaz por sobre o ombro dele e mal conseguiu evitar um suspiro de alívio ao perceber que não havia nenhuma semelhança entre a fugitiva e Sam, exceto, o primeiro nome.

— Quem é o rapaz? — Perguntou o prefeito Brown; o interesse atiçado após a gritaria de Cléo. Ela prendeu a respiração, fitando Sam jogar o último saco no carrinho e começar a recolher as ferramentas de trabalho.

Naquele momento, ela tinha tanto barro nas roupas e rosto, que seria impossível não acreditar que era, de fato, um homem. Sam era dessas pessoas magras e altas, com músculos definidos. Tinha os seios pequenos e ocultava a existência deles com uma faixa apertada por baixo da camisa. Além disso, os cabelos curtos, onde alguns fios prateados começavam a surgir nas têmporas, e o rosto de traços andrógenos podiam confundir as pessoas, assim como ocorrera a Cléo em seu primeiro encontro.

— Meu sobrinho, Samuel. — Aran apressou-se a responder.

Fitou a sobrinha de soslaio, cofiando o queixo quadrado e deixando claro, naquele olhar, que ela devia ficar em silêncio ou acompanhá-lo na mentira. Cléo sequer pensou em contrariá-lo. Abrigar um fugitivo inocentemente poderia acontecer a qualquer um, mas receber em sua casa alguém com um ferimento de bala e deixar de informar as autoridades sobre isso, não era algo que pudesse ser visto com bons olhos pela Lei.

— Não sabia que tinha outros sobrinhos além de Cléo — o xerife Johnes concentrou-se no velho. — O pai dela era seu único irmão, correto?

— Ah, e o que você sabe de mim, seu velhote?!

— Tio!

O xerife riu alto. Estava acostumado às grosserias de Aran, que se escorou na madeira que sustentava o alpendre. 

— O rapaz é filho da minha cunhada, que mora nos Montes Vermelhos. Ele veio nos visitar e calhou de ser uma grande ajuda. Consertou a cerca, deu um jeito no celeiro, e agora está tentando encontrar água naquele velho poço. O riacho já não parece tão próximo para essas pernas velhas aqui.

Deu uma batidinha na coxa.

— E será melhor para os afazeres domésticos de Cléo, também.

Depois disso, a conversa esfriou. O prefeito, barrado pela atitude hostil de Aran, optou pelo silêncio e pareceu aliviado quando o xerife decidiu partir. 

Depois daquela visita, Aran não queria mais sair para beber e jogar, mas o amigo tagarela denunciou seus planos para a noite e o rancheiro se viu obrigado a dizer que os acompanharia durante parte do caminho. Não queria chamar a atenção do quarteto, parecendo preocupado. Prometeu para a sobrinha que não iria demorar para regressar e, antes de ir, foi até o celeiro falar com Sam e deixá-la ciente do que estava se passando. 

***

Quase sem perceber, Sam esmerou-se para o jantar daquela noite. Banho tomado, roupa limpa e cheirando a sabão. A camisa por dentro da calça e os cabelos penteados. Até mesmo as botas receberam o cuidado de um pano velho para retirar a poeira.

Após a saída de Aran e companhia, Cléo a convidou para comer em sua casa pela primeira vez. Aran já tinha lhe proposto isso em outra ocasião, mas negou-se. Mais por orgulho, do que para evitar Cléo, embora tenha sido essa a impressão que a negativa deixou no velho.

Pouco ou quase nada foi conversado à mesa, excetuando os momentos de tagarelice infantil de Oliver. Mesmo assim, Sam apreciou o jantar e a companhia. E quando os olhos de Oliver começaram a dizer que queriam dormir, a mãe o acompanhou até o quarto para colocá-lo na cama. Quando voltou, Sam já havia tirado a mesa e arrumado a bagunça da cozinha.

Ela estava pronta para se despedir. Cléo, por outro lado, ainda não tinha dado voz ao seu pedido de desculpas, tampouco se encontrava disposta a ficar sozinha. A noite havia esfriado consideravelmente e pediu que Sam acendesse a lareira. Enquanto a mulher se dedicava à tarefa, Cléo abriu uma garrafa de licor e despejou o líquido em pequenas taças. Dizia, enquanto isso:

— Eu fui indelicada no dia em que chegou aqui…

Sam, que cutucava a lenha em chamas com um espeto, parou o que fazia para lhe prestar atenção.

— Você não precisa fazer isso — disse. — Não é a primeira pessoa a me dizer coisas do tipo. Com certeza, não será a última. Apenas, esqueçamos o que aconteceu. É passado e ele não cabe em uma noite que tem sido tão agradável.

Deixou o espeto de lado, ficou de pé, e aceitou a pequena taça que lhe foi oferecida. Já não se sentia tão confortável quanto antes, mas notou que Cléo ficou satisfeita com a proposta.

— Experimente o licor. Eu o fiz.

Desconfiada, porém tentada, Sam provou a bebida doce. Era perfumada, alcoólica e preencheu todo seu paladar de forma delicada. Fechou os olhos e apreciou-a. Perguntou-se quando foi a última vez em que se permitiu ter um momento de contemplação de algo simples como a bebida em sua boca ou o jantar tranquilo de minutos atrás.

Tomou outro gole e foi ainda mais fundo nos questionamentos internos. Indagou-se sobre a vida na estrada caçando recompensas. Era solitária antes e tornou-se muito mais depois que o pai morreu. Não ficava no mesmo lugar por muito tempo, não fincava raízes ou conquistava amizades. Não deixava, nem levava boas lembranças dos lugares por onde passava.

Aqueles poucos dias no rancho de Cléo e Aran, apesar das circunstâncias, estavam sendo um bálsamo para sua alma.

Uma melodia suave interrompeu seus devaneios. Não havia notado o gramofone, embora ele fosse o destaque solitário de uma mesinha no canto da sala. Cléo sorriu, afastando-se do aparelho e lhe perguntou sobre o licor.

— Delicioso — respondeu sem hesitar e, como resposta, a dona da casa a convidou para uma dança.

Era a primeira vez que uma mulher a convidava, e não o contrário. Adorava dançar, mas todas as vezes em que teve uma companhia feminina para dançar, estava em lugares onde o álcool e a luxúria imperavam. Lugares muito distintos daquela cabana pequena e aconchegante que cheirava a sálvia, onde a presença de Cléo estava impressa em cada pequeno detalhe.

Sentiu-se envergonhada, não soube como agir. E a sua hesitação fez o sorriso de Cléo aumentar. A dona da casa achou adorável as bochechas coradas pelo calor da lareira, álcool ou constrangimento — possivelmente todos — e a puxou para a dança.

Foi a primeira de muitas danças no decorrer da noite. Sam tentou se despedir algumas vezes, temendo ultrapassar a frágil linha de amizade que começavam a tecer. Cléo a impediu, colocando outra dose de licor ou escolhendo e trocando o disco da parca coleção. Então riram, conversaram e dançaram até que não havia mais licor na garrafa ou disco para tocar.

Quando a última nota soou pela sala, as duas mulheres se encararam longamente, o riso solto. Seus corpos estavam tão grudados, que as respirações se misturavam.

— Não era bem isso que tinha em mente, quando a convidei para jantar conosco. Mas você… É difícil não perder o rumo quando você está por perto. — Ela inclinou-se levemente, enquanto Sam recuou para evitar o contato dos seus lábios.

— Eu… Está ficando tarde… Eu já vou indo. Obrigada pela noite.

Ela afastou-se completamente, fez um gesto de desculpas, deu-lhe as costas e partiu. Percorreu a distância até o celeiro com um alvoroço no peito sem perceber que Cléo seguia em seu encalço.

— Minha companhia não te agrada? — Indagou a rancheira, fechando a porta às suas costas com certa violência. — Não sou atraente para você?

Surpresa, Sam levou alguns segundos para formular a resposta.

— Você sabe que é linda.

— Então, por que fugiu? — Escorou-se na madeira, abrandando as feições. 

— Porque eu queria te beijar e ainda quero — chegou mais perto.

— Por que não fez? 

— Seria um erro…

— É pelo o que eu disse? Me perdoou da boca para fora?

Sam suspirou, incomodada. Definitivamente, não esperava se encontrar em situação semelhante, principalmente, com ela.

— Eu não pude evitar dizer aquelas coisas, foi mais forte que eu — Cléo continuou a falar. — Não se tratava de nojo. Sei que foi isso que pensou, mas era inveja, pura e simples. Ciúmes do modo confortável com o qual se expressou, sem receios do que iríamos pensar.

Estava claramente envergonhada, os olhos buscaram o chão.

— O que eu disse a você, naquele dia, também me disseram uma vez. Me fizeram mais que isso… E eu temi ir contra o resto do mundo, me escondi de mim mesma, casei com um homem e tive um filho. E em todo esse tempo eu nunca quis tanto parar de fingir ser “normal” quanto agora. Desde o primeiro momento em que a vi, você me atraiu.

Tocou o rosto dela e Sam exalou forte.

— Então, temos um problema, pois me sinto da mesma forma. — colocou a mão sobre a dela em seu rosto e a trouxe até os lábios. — “Fugi” porque pensei que, se te beijasse, poderia me apaixonar.

— Acha que isso pode mesmo acontecer?

Sam encostou o corpo ao dela.

— Isso já aconteceu. Assim que te dei as costas, tive certeza de que era tarde demais. — Juntou o rosto dela entre as mãos, o coração descompassado de ansiedade, e a beijou.



Notas:

Oi, amores!

Este capítulo teve a maravilhosa colaboração da Naty Souza. Quando começamos a discutir sobre a história, as ideias fluindo, ela se animou a escrever. Juntei minhas ideias com as dela e aqui está a Parte II de Procura-se.

Naty, muito obrigada pela parceria.

Meninas, espero que estejam curtindo. Obrigada pela paciência e até a próxima e última parte.

Beijos e xêros!




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4 Respostas para PARTE II

  1. Hahahahah… Gente, nem tava lembrando desse texto! Fico feliz que tenha aproveitado umas ideias do que escrevi, Tattah.
    Tá ficando bacana. Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.
    Bjs

  2. Putz! Cada vez que leio algo seu, Maga, fico mais maravilhada! E o que dizer da Naty, então?… Amei a suavidade e o jeito da revelação sobre a Cléo. Muito Booommm!
    Um beijo meninas!

  3. Olá, tudo bem, autoras?
    Adorei essa capítulo, a fusão foi ótima!
    Vcs mandaram bem,foram generosas na quantidade de palavras e fiquei bastante curiosa a cada parágrafo que lia!!
    Bonito o final desse capítulo e delicado. Adorei a atitude de Cléo!!
    Até o próximo e último capítulo!!
    Beijos

  4. Tá certo q tive q reler a Parte I, mas te digo uma coisa mega valeu a pena, amei relembrar da história e amei mais ainda seguir com elas… mal posso esperar pelo próximo cap.
    Valeu Naty e Tattah, adorei, bom D+++

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