MARCELA

O relógio marcava quase meio-dia quando acordei. Joana não estava ao meu lado, mas pelo horário e pelo cheiro, imaginei que estivesse preparando o almoço. Tomei um banho rápido ainda sentindo o calor dos seus beijos, seus toques, o fogo que acendeu em meu corpo, em minha alma. O espelho me mostrou o tamanho do sorriso em meus lábios e tive certeza de que jamais havia sorrido daquele jeito. Joana me amava e pertencer a ela em todos os sentidos era único e indescritível.

A encontrei na cozinha, encostada na pia. Olhava distraidamente pela janela. Não pensei duas vezes para diminuir a distância que nos separava. A envolvi em um abraço apertado e a beijei, dizendo:

— Bom dia, amor!

Ela sorriu tímida e achei isso fofo, mas Joana não era tímida. Então, notei a presença de mais três pessoas a nos observar. Corei violentamente diante do olhar surpreso e curioso dos pais dela e do sorriso cínico que Edu exibia.

— Er… Bom… dia… — consegui pronunciar com muito custo, dando um passo para longe de Joana que, assim como eu, estava vermelha.

Percebendo meu desconforto, Joana enlaçou minha cintura e levou-me até a mesa onde os outros se encontravam. Ela puxou uma cadeira, na qual sentei engolindo a vergonha e permaneceu de pé ao meu lado.

— Mãe, pai, sei que o que acabaram de presenciar por si só já se explica, mas vou reafirmar com palavras o que viram. Marcela e eu, agora é de verdade, estamos namorando.

A mão dela pressionou meu ombro carinhosamente e senti um pouco da vergonha me abandonar. Dona Júlia me observou por um longo instante, a mão apoiando o queixo.

— Mas você disse que não era…

Ergui a mão interrompendo sua frase.

— Sei o que disse, senhora — sorri sem graça e Joana aumentou a pressão em meu ombro. — Mas tenho que dizer que a sua filha é muito convincente — tentei brincar para disfarçar o nervosismo.

Engoli em seco, a brincadeira não surtiu o efeito esperado e o máximo que consegui foi um risinho de Edu.

— Desculpe, realmente pensei que o que lhes falei àquela noite fosse a minha verdade. A sua filha é uma pessoa maravilhosa, já disse isso antes e… Não sei como explicar! O fato é que ela me conquistou — sorri pousando a mão sobre a de Joana em meu ombro.

— Estou bem confuso! — O Sr. Marcos informou coçando o queixo, como Edu costumava fazer. — Vocês jovens são tão…

— Volúveis — completou Edu com um risinho sarcástico e quase o chutei por baixo da mesa.

— Isso! Acho que é esta a palavra — concordou seu pai.

— É a idade, pai. Os jovens amam demais e com muita intensidade, se apaixonam e desapaixonam rápido demais e mudam de opinião com a mesma velocidade e intensidade.

— Isso vindo de um cara que parece um barril de pólvora ambulante e “super mais velho” — alfinetou Joana e ele deu de ombros.

— Só estava tentando ajudar.

— Ajuda mais ficando calado — ela pontuou.

Revirei os olhos.

— Vocês querem parar um minutinho? — perguntei com um princípio de irritação. — Estou tentando dizer para os seus pais que estou apaixonada pela Joana, mas fica complicado quando vocês começam com essas provocações sem noção.

Voltei a corar com violência quando Eduardo informou:

— Você acabou de dizer, cunhadinha.

Deixei um suspiro irritado escapar.

— É, acho que disse, mas não do jeito que estava querendo — me empertiguei na cadeira. — O fato é que estou apaixonada e ela me faz feliz de uma forma que nunca imaginei ser.

Passei a mão nos cabelos em um gesto nervoso.

— Sei que parece exagero adolescente, mas é assim que me sinto. Fui sincera ao dizer que me arrependi por ter feito aquela besteira na festa, mas hoje lhes digo que se fosse para encontrar o amor nos braços da sua filha outra vez, faria tudo de novo e quantas vezes fossem necessárias.

Obviamente, ninguém esperava que eu falasse daquela maneira tão firme e decidida. Mas não havia motivos para negar a verdade nem a ocultar. À medida que falava, o sorriso cínico de Edu deu lugar a uma expressão séria e um olhar cheio de cumplicidade. Olhei para Joana, havia surpresa em seus olhos e esta logo deu lugar a um brilho semelhante ou mais intenso que o da noite anterior quando ela, finalmente, me fez sua mulher.

Encontrei ternura nos olhos dos meus sogros e me permiti respirar um pouco mais aliviada.

— Filha, — Dona Júlia pegou minha mão que repousava sobre a mesa — você nos impressionou muito na outra noite quando nos chamou a atenção para o modo como estávamos tratando nossa filha. E foi por isso que viemos aqui hoje.

Joana puxou uma cadeira e sentou-se ao meu lado. Sua mão apertou a minha em baixo da mesa e vi como estava nervosa. Seus dedos que eram sempre quentes, estavam frios como um bloco de gelo. Os olhos de sua mãe pousaram nela, mas ainda falava para mim.

— Viemos para dizer a nossa Joana que a amamos, que não está sendo e não será fácil, mas a apoiaremos. Sempre! Não importa o que nossos outros filhos pensam ou façam, não ficaremos mais calados diante deles e a defenderemos a qualquer custo.

Querem saber? Aquela não era, de modo algum, a mesma mulher com quem havia conversado alguns dias antes. Estava séria e decidida exatamente como a Joana era.

— Estou sendo muito sincera ao dizer que estou feliz ao ser você a mulher que está ao lado da nossa filha neste momento. Sei que é uma moça decidida e que não irá rejeita-la diante dos outros ou aos seus sentimentos por ela.

Era óbvio que estava se referindo a Natália e um brilho triste e magoado passou em seus olhos rapidamente. Os olhos de Joana estavam marejados e ela se deixou envolver no abraço apertado da mãe, enquanto eu me controlava para não chorar também.

— Minha menina, nós te amamos do jeitinho que você é e nada poderá mudar isso — Dona Júlia falou com voz embargada e abafada pelos cabelos fartos da filha. Seu esposo se juntou ao abraço e observei maravilhada a felicidade iluminar o rosto da minha namorada.

Joana sempre tinha resposta para tudo, no entanto havia sido acometida por uma mudez repentina e apenas sorria. Dona Júlia a afastou carinhosamente, beijando-lhe a face molhada pelas lágrimas.

— Então, minha querida, seja muito bem-vinda à nossa família — Dona Júlia contornou a mesa e me puxou para um abraço mega apertado.

Depois desse momento de entendimento entre nós, Edu recomeçou a fazer suas brincadeiras e deixou Joana furiosa, como sempre, mas ela deixou passar por causa dos pais.

Estávamos todos almoçando quando ele, de repente, disse:

— Mammy, — depois desse “mammy” duvidei que ninguém tivesse suspeitado da sua homossexualidade — eu amo, idolatro, adoro demais essa minha cunhadinha linda e gost…

— Se terminar essa frase, quebro o cabo da vassoura na sua cabeça! — Joana o ameaçou muito séria.

— Ih, estressada — ele riu.

— Irmão assanhado é melhor cortar logo de cara!

— Falando em assanhamento… — ele contou a confusão com Natália na noite anterior.

Esperei pelas expressões horrorizadas ou algo assim, mas não as vi. Em vez disso, eles riram. Riram muito do episódio.

— Você fez mesmo isso? — meu “sogro” perguntou.

Vergonha naquele momento era pouco para o que sentia, mas respondi a pergunta tranquilamente.

— Fiz e faria de novo para aquela assanhada aprender a não sair por aí beijando a namorada alheia!

Eles riram mais e Joana me sapecou um beijo no rosto. Pensei que meu coração fosse explodir de alegria ao escuta-la dizer baixinho em meu ouvido:

— Te amo!

Poderia haver felicidade maior do que ouvir a mulher que ama dizer isso?! Acreditava que não.

— Também te amo! — respondi em seu ouvido e o olhar encantado em seu rosto foi a coisa mais bela que já vi e fez com que meu coração batesse descompassado de alegria.

JOANA

— E então? — Cris perguntou.

Sorri me fazendo de desentendida e dando de ombros.

— Vai fazer suspense? — Hellena questionou com um sorrisinho leve.

Elas não precisavam perguntar, pois haviam flagrado Marcela me roubando um beijo na cozinha da casa da Aninha. Era um dia especial para a nossa amiga, era seu aniversário de dezoito anos e claro que haveria uma festa para comemorar. Mas, em vez de uma festa de arromba e cheia de amigos, Aninha havia preferido algo mais íntimo e familiar.

Estávamos sentadas em uma das mesas dispostas no quintal. Passava um pouco do meio-dia e, embora fosse algo íntimo, havia muita gente por ali. Uma música alegre unia-se ao som de risadas e observei Aninha e Marcela dançando entre risos e brincadeiras.

— Como você disse, — olhei para Cris — ela veio para mim. Estamos juntas há pouco mais de um mês, nem consigo descrever a felicidade que sinto — tinha consciência de meu sorriso bobo, mas era exatamente assim que me sentia.

Cris se colocou de pé e me puxou para um abraço apertado no qual me deixei envolver encantada com seu carinho. Sempre que nos encontrávamos, sentia algo forte nos unindo. Ela me deixou para dar lugar a Hellena que me envolveu em um abraço mais folgado, mas nem por isso, menos carinhoso.

— Felicidade, Joana. Que sejam muito felizes juntas — Hellena sussurrou em meu ouvido.

— Só desejo que tenhamos um pouco do que vocês têm — respondi com sinceridade e vi um sorriso largo em seu rosto quando nos afastamos.

— Tenho a impressão de que será muito mais — falou com firmeza, retornando para o lado da esposa.

Recusei a cerveja que uma das tias de Aninha, a mãe de Hellena, me ofereceu. Embora gostasse da bebida, raramente bebia. Gostava de estar consciente de meus atos e palavras, então optei por um refrigerante e Cris seguiu meu exemplo, enquanto Hellena retirava-se para buscar um suco.

— E os pais dela?

— Sumiram e, sinceramente, espero que continuem assim. O prefeito não é nenhuma flor que se cheire e sempre que nos encontramos, coisas ruins acontecem.

Aninha havia deixado Marcela para dançar com um de seus primos e minha namorada sumiu no interior da casa segundos depois.

— Como ela se sente sobre isso? — insistiu Cris.

Respirei profundamente e fixei o olhar no meu refrigerante.

— Ela não fala nada, mas é claro que se sente mal. Bons ou não, são seus pais e, de certo modo, entendo o que sente. Afinal, até pouco tempo atrás, me encontrava em uma situação bem complicada com os meus.

Deslizei a mão por meus cabelos e a vi entornar metade do refrigerante.

— Família nunca é fácil — comentou.

Me recostei na cadeira.

— Teve problemas com a sua? — questionei.

Ela sorriu, os dentes perfeitos à mostra.

— Por um tempo tive sim. No início, para ser mais exata. Hoje, tudo não passa de lembranças ruins e sem importância.

Às vezes, me questionava se dali alguns anos enxergaria as coisas como Cris, se toda a dor e lembranças ruins não passariam de borrões sem importância. Acreditava que não.

Como se estivesse lendo meus pensamentos, ela comentou:

— Tudo de mal que nos acontece, pode se tornar um bem mais adiante.

— Gostaria de ser como você e extrair coisas boas do mal — confessei.

Ela sorriu com simpatia.

— Mas você já fez isso — afirmou.

A olhei confusa e ela completou:

— Você fez isso quando Marcela te insultou, usou e maltratou. Em vez de desprezá-la e se ressentir, você a ajudou, acolheu, protegeu e amou. E todo esse bem que fez, retornou na forma de amor, do amor dela por você.

Refleti um longo tempo sobre suas palavras, tentando enxergar tudo que aconteceu entre Marcela e eu sob a lógica do seu olhar e concluí que tinha razão.

Marcela vinha em nossa direção acompanhada por Hellena, no rosto um sorriso suave que fez meu coração sambar de alegria. Cris tinha razão, se tivesse permitido que a tristeza e ressentimento me dominassem, jamais teria a oportunidade de viver aquele momento, aquele amor.

— Fecha a boca, menina. Desse jeito vai acabar entrando mosca.

Cris me advertiu com um risinho divertido e obedeci com muito custo. Sempre que via Marcela, tinha uma reação abobalhada, principalmente, após termos começado a namorar.

— É difícil, não consigo evitar — confessei e ela riu gostosamente.

— Compreendo perfeitamente o que quer dizer.

Marcela brincava girando o anel em meu dedo, enquanto Cris e Hellena nos contavam seus planos de oficializarem seu casamento em uma cerimônia íntima dali um mês e Aninha juntou-se a nós com o rosto afogueado pela dança. Trazia consigo, um sorriso de orelha a orelha.

— Espero que não estejam organizando um clubinho lésbico e planejando deixar a amiga hétero aqui de fora — comentou expulsando Marcela da cadeira que ocupava e sentando-se na mesma.

Rindo, Marcela sentou em meu colo.

— Como foi que você descobriu nossos planos maquiavélicos? — Hellena brincou.

— Viva as lésbicas, abaixo as héteros, principalmente, as ruivas falsas — Marcela completou e ganhou um beliscão da Ana e todas caímos na gargalhada.

Cris estacionou o carro em frente à praça, queríamos caminhar um pouco, e nos despedimos dela e sua amada Hellena com a promessa de que compareceríamos a cerimônia de seu casamento.

— Elas são lindas.

Concordei com Marcela, apertando sua mão na minha. Caminhávamos lentamente, curtindo o vento frio do fim de tarde. Era um Domingo, o aniversário da Aninha havia sido na quinta-feira, mas por vários motivos, ela havia escolhido comemorar no fim de semana.

A missa da tarde estava chegando ao fim e algumas pessoas já saiam da igreja e caminhavam em nossa direção. Entre elas, Natália. Senti Marcela enrijecer sua postura.

— Está tudo bem — falei.

Ela dirigiu um olhar quase mortal para Natália que, ao perceber nossa presença, encaminhou-se para nós.

— Oi — Natália cumprimentou parando à nossa frente.

— Tchau! — Marcela respondeu me puxando na direção oposta.

Não era a primeira vez que isso acontecia e eu já havia desistido de tentar convence-la a deixar de agir daquela maneira, pois não havia a menor possibilidade de deixar Natália bagunçar minha vida outra vez. Dei de ombros e a segui silenciosamente, divertida com seus ciúmes.

Como se não bastasse, ao alcançarmos a esquina, demos de cara com o prefeito e sua esposa. Foi a minha vez de enrijecer a postura, cada músculo do meu corpo se tencionou com a visão deles. Havia semanas que não ouvíamos falar deles e já começava a acreditar que ele havia se conformado com a situação, principalmente, após a surra que levou do meu irmão.

— Olá! — Marcela cumprimentou com voz fraca.

O prefeito endureceu sua postura, os músculos do maxilar quadrado e perfeitamente barbeado tencionando-se. Ele pousou os olhos em mim e sua voz estava carregada de asco quando respondeu.

— Enquanto continuar com esse joguinho, Marcela, não somos seus pais. Até quando pretende nos envergonhar com sua rebeldia sem medidas?

Marcela deu um passo à frente e percebi a resposta malcriada se formando em seus lábios.

— Não — pedi e a puxei para perto de mim. — Deixa.

Ela assentiu silenciosamente e continuamos nosso caminho. O prefeito pegou em meu braço usando de força para impedir minha passagem.

— Você ainda irá se arrepender do que está fazendo e voltará para casa, para sua família.

Ele falava para Marcela que se limitou a desviar o olhar, então se voltou para mim e quando falou senti o cheiro de bebida em seu hálito.

— Quanto a você, ainda irá me pagar por tudo isso e muito mais. É uma promessa.

Sorri debochada para ele, mas estava abalada com suas palavras.

— Desculpe se não estou tremendo de medo, mas não dá para confiar em promessas feitas por políticos — me desvencilhei de sua mão e incentivei Marcela a caminhar.

Em casa, ela chorou em meu ombro por algum tempo. Ela havia trazido meus pais de volta para mim, mas eu sabia que jamais poderia lhe retribuir o gesto e chorei com ela.

***

Ouvi a voz preocupada de Marcela e senti suas mãos em meus ombros a me sacudirem com violência. Tentei abrir os olhos, minhas pálpebras estavam muito pesadas. Quando, finalmente, consegui me deparei com um pequeno rio lágrimas que brotava de seus lindos olhos castanhos. Lentamente, meu corpo começou a sair do torpor em que se encontrava e tomei consciência de minha nudez.

— Mas o que foi que aconteceu? — perguntei com voz arrastada.

Marcela me abraçou forte e chorou. Por cima de seu ombro, vi Natália sentada nua ao pé da cama. Tinha um corte no supercílio, muitos arranhões pelo corpo, um olho que estava muito vermelho e que já dava indícios de que ficaria roxo. Ela chorava.

Havia roupas espalhadas pelo chão do quarto e objetos quebrados. Não precisei pensar muito para imaginar a cena que Marcela havia presenciado ao entrar no quarto.

— Marcela…

Ela pôs um dedo sobre meus lábios e voltou a me abraçar com força.

Tentei recordar o que havia acontecido, mas havia uma nuvem negra em minha mente. No entanto, as lembranças foram chegando devagar e se colocando em uma sequência lógica.

Havia se passado um mês desde o aniversário de Aninha. Passamos por tantas coisas durante esse período. Acreditam que fizemos vestibular para o mesmo curso? Jamais imaginei que Marcela gostasse de cálculos, muito menos que tinha jeito para engenharia, mas como Ana afirmou, realmente éramos muito parecidas.

Depois daquela conversa com meus pais, minha vida mudou para a melhor, muito melhor. Meus pais adotaram Marcela como filha e ela os adotou como pais. Era “minha filha” para lá, “sogrinha e sogrinho” para cá. Mas era lindo de se vê o quanto eles se deram bem.

Tornou-se frequente jantarmos na casa dos meus pais e meus irmãos tiveram que “nos engolir”. Meus pais haviam deixado claro que me apoiavam e continuariam apoiando sob qualquer circunstância. Obviamente, apesar disso, sempre havia um ou outro momento de tensão. Nunca me iludi com a ideia de que tudo viraria um mar de rosas de uma hora para outra, mas estávamos caminhando rumo a “paz” familiar.

O clima ficou um pouco mais pesado quando Edu, aproveitando a aceitação deles em relação a mim, resolveu assumir sua homossexualidade. Depois de algumas lágrimas e muita conversa tudo ficou bem e ele encarou a rejeição dos nossos irmãos bem melhor que eu.

— Estou super nervosa! — Hellena confessou. — Não vejo Cris desde ontem. Não sei de onde a minha irmã tirou essa ideia idiota de que as noivas devem ficar afastadas por vinte e quatro horas até a cerimônia. Peste!

Ri gostosamente disso e entendia bem o que queria dizer. Não conseguia me imaginar longe de Marcela por mais que alguns minutos.

— Bem, tenho de ir. Malu pretende me fazer uma miss para o casamento — riu outra vez e ouvi a voz de Malu ao fundo gritando que pretendia fazer dela uma deusa. — Esperamos vocês.

— Não perderíamos por nada — afirmei e desliguei o celular com um sorriso de orelha a orelha.

Apesar de fazer pouco tempo que nos conhecíamos, amava a amizade e o carinho de Hellena e Cris e torcia pela felicidade delas com toda a minha alma.

Me encontrava sozinha em casa. Era um sábado à tarde e Marcela havia ido ao salão de beleza, queria estar “linda” para presenciar a união de nossas amigas, palavras dela. Quando a campainha tocou, pensei que fosse ela que havia retornado e, para variar, havia esquecido as chaves outra vez.

Meu sorriso morreu em meus lábios assim que me deparei com os olhos cor de amêndoa de Natália quando abri a porta. Ela tinha um tom de cinismo no olhar e sorriso, se aproveitou da minha surpresa e entrou sem cerimônia.

Fechei a porta com violência, enquanto ela se instalava confortavelmente no sofá.

— Finalmente te encontrei sozinha, amor — alargou o sorriso e deu uma cruzada de pernas estilo Sharon Stone em Instinto Selvagem, com a diferença de que ela estava com calcinha.

Em outra época, teria recebido o gesto como um convite descarado ao sexo e me atiraria faminta. As lembranças da nossa relação passearam em minha mente naquele instante e cheguei à conclusão de que o que vivemos teve amor, mas era muito mais carnal do que sentimental. De modo algum, poderia ser comparado ao que estava vivendo com Marcela.

— Aquela sua morena briguenta nunca sai do seu lado — observou com uma careta irritada. — Por isso, quando a vi no salão com a Ana não perdi tempo em vir te ver.

— O que você quer? — cruzei os braços e me recostei na porta às minhas costas.

Seus olhos brilharam cheios de malícia.

— Você!

Deixei que um sorriso debochado viesse aos meus lábios.

— Tarde demais.

— Jô…

Ergui a mão impedindo que continuasse, ela não tinha mais o direito de me chamar daquela forma com aquele tom de voz.

— Teve sua chance e não soube aproveitá-la. Você não soube cultivar o que havia de bom entre nós, agora acabou. A fila andou.

Seu rosto contorceu-se em uma careta rápida e ela se pôs de pé, diminuindo a distância entre nós e colando seu corpo ao meu. Tentou me beijar, virei o rosto. Se afastou; estava contrariada, mas tentava não demonstrar.

— Isso nunca mais vai acontecer — fui um pouco rude, mas ela tinha de entender que não havia mais volta.

Sua postura mudou radicalmente e até me pareceu um pouco fria quando se afastou, dizendo:

— Pelo que me lembro, você era mais educada com suas visitas. Está um calor horrível, ofereça-me um refresco ou qualquer coisa gelada.

Revirei os olhos, impaciente.

— Acho melhor não. Se isso era tudo que tinha para conversar comigo, já pode ir embora.

Ela sorriu debochada.

— Engano seu, amor. Ainda temos outra coisinha para tratar.

— Então, fale de uma vez e vá embora.

— Tisc, tisc, só depois do refresco — riu.

— Neste caso, pode ir andando. Nada de refresco para você — abri a porta.

Tonou-se séria e fechou a porta, me empurrando para o lado.

— Assunto é sério, amor. Sem truques. Prometo!

Por alguns instantes, ela voltou a ser a mulher que havia amado e algo antigo remexeu-se dentro de mim pedindo para lhe dar um pouco de atenção.

— Está bem, espere aqui que já volto.

Queria me livrar dela antes que Marcela voltasse. Se a minha “metidinha” visse Natália ali, não queria nem imaginar o que poderia acontecer. Depois daquela noite no quiosque, Natália havia me procurado por diversas vezes, mas sempre que se aproximava, Marcela surgia e acabava com a alegria dela.

Estava na cozinha enchendo dois copos com o tal refresco que ela pediu, quando senti seus braços me envolvendo. Livrei-me do seu abraço e me voltei para olhá-la. Ela comprimiu meu corpo com o seu encostando-me na pia, me encurralando.

— Você é tão linda! — seus lábios estavam tão próximos que quase senti o calor deles. — Te amo, Jô, e ainda terei você de volta.

Colou seus lábios nos meus, mas não tentou aprofundar o beijo como havia feito no quiosque. A empurrei fracamente e ela se afastou sem se opor.

— Está enganada, nosso tempo juntas acabou. Nunca irei voltar para você.

Vi mágoa em seu olhar, mas ela a afastou rindo cinicamente.

— Por favor, Jô, não vai me dizer que prefere aquela fedelha a mim!

Comparada a ela Marcela, tanto quanto eu, era mesmo uma fedelha. Natália tinha vinte cinco anos e estava no auge da sua beleza. Ainda não era capaz de entender como uma cidade inteira acreditou e comentou que eu desencaminhei uma mulher daquela idade e dona de si.

Bando de gente sem noção!

— Digo e repito. Eu prefiro a Marcela, aliás, eu amo ela!

Ela pegou um dos copos sobre a pia e sentou-se à mesa com um sorriso que, eu tinha certeza, apesar de cínico, tentava ocultar sua amargura pela rejeição. A imitei pegando o copo que havia ficado sobre a pia, minha garganta estava seca e sorvi todo o liquido de uma vez.

— Parece que você estava com mais sede do que eu.

Ignorei o comentário.

— Você tem cinco minutos, Natália. Depois disso te ponho para fora daqui como se escorraçasse um cachorro — informei.

Ela recostou-se na cadeira suspirando.

— Amor, relaxa um pouco!

— Por favor, pare de me chamar de amor. Há muito tempo você perdeu esse direito, aliás, você jogou esse direito fora. Fale logo de uma vez que outra coisa tem para conversar comigo. Anda!

Seu olhar brilhou chateado por um instante, então deixou que um suspiro lhe escapasse.

— Amor, — voltou a repetir ignorando meu pedido — por favor, me escute. Sei que errei e fui covarde, mas eu voltei. Voltei porque te amo! Estou aqui te pedindo perdão porque me dei conta de que não posso mais viver sem você. Eu tentei, juro que tentei de verdade ignorar o que sentia, mas foi impossível. Então, voltei disposta a assumir para você, esta droga de cidade e o mundo que eu te amo!

Olhei para o copo vazio em minhas mãos e afastei uma mecha de cabelo que insistia em cair sobre meus olhos.

— Natália, talvez nós pudéssemos ter sido felizes juntas, mas você não quis. Você teve medo e eu te entendo. Tive esse medo também, mas não conseguia mais sufocar quem eu era de verdade. Precisava contar, precisava ser eu mesma.

Recoloquei o copo na pia e sentei ao seu lado.

— Você me magoou demais.

— Eu não estava preparada para assumir…

— Eu jamais te obrigaria a isso. Por favor! O que me magoou foi a forma que me rejeitou por ter medo de se aceitar. Você partiu meu coração, mas agora estou com uma pessoa maravilhosa que me ama e não tem vergonha de me assumir na frente dos outros. O amor que sinto por ela, em nada se compara com o que pensei sentir por você, pois é de longe, muito maior!

— Mas…

— Mas nada. Entenda de uma vez por todas que amo Marcela e pretendo viver esse amor, enquanto for possível. Natália, não há mais um “nós”, chego a acreditar, depois de tudo que aconteceu, que nunca houve. Entenda que jamais deixarei Marcela para ficar contigo! Por favor, me esqueça. Encontre alguém que te ame e seja feliz, acima de tudo, seja sincera com essa pessoa e consigo mesma. Agora, se era só isso que você tinha para dizer, pode ir embora.

Levantei e comecei a caminhar em direção a porta, mas parei de repente. Me sentia tonta, meu corpo estava pesado. Natália me enlaçou a cintura.

— O que…

— Ah, Jô, você vai ser minha de novo — a ouvi dizer antes de perder meus sentidos completamente.

Nos braços de Marcela, sentindo as lágrimas dela molhando meu ombro, o ódio devolveu a sobriedade a minha mente e o domínio do meu corpo.

— Marcela, eu te amo! Nunca…

Sua voz saiu abafada por meus cabelos.

— Eu sei, também te amo!

— Nunca trairia você assim, em nossa cama! Nunca te trairia em lugar algum!

Ela se afastou para me olhar e suas lágrimas partiram meu coração.

— Sei que você não faria isso. É sincera demais para fazer qualquer coisa assim. Sei muito bem que se não me amasse mais, me diria antes de pensar em fazer qualquer coisa com essa daí. Por isso enchi a cara dessa safada de bolacha! — não pude deixar de rir da maneira como falou, ela estava convivendo muito com o Edu. — Só parei de bater quando ela me disse o que tinha feito com você. Fiquei desesperada! Achei que ela tinha te matado. Estava tentando te acordar havia mais de meia hora — recomeçou a chorar.

— Calma, amor. Já estou bem — a abracei forte.

Ficamos assim por um longo tempo, até que ela se acalmou. Evitei olhar para Natália, mas sentia seu olhar sobre nós. Não queria ter que soltar Marcela e encher aquela louca de mais porrada do que a minha linda morena já tinha feito.

Quando Marcela acalmou-se por completo a liberei de meu abraço e fui me vestir, sentindo o peso que a raiva havia colocado em meus ombros.



Notas:



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