JOANA

— Edu, por favor, esquece isso!

— Não vou esquecer coisa nenhuma. Quero saber a verdade.

Larguei a pilha de pastas que tinha nas mãos sobre uma das mesas do mostruário da loja. Um pequeno estrondo se fez ouvir na madeira sólida e envernizada e alguns clientes desviaram a atenção para nós.

— Mana, me fala o que aconteceu — pediu outra vez. — Desde a semana passada que você e Marcela estão com cara de enterro. Se divertiram no casamento das meninas, mas percebi que havia algo errado. Respeitei seu silêncio, mas agora, depois do que acabei de ouvir, quero saber o que está acontecendo.

Havia alguns minutos, tinha perguntado a ele se poderia assumir a gerência da loja que estava abrindo em uma cidade vizinha que, por coincidência, era a mesma onde ficava a universidade em que Marcela e eu iríamos estudar dali dois meses.

— Não tem nada acontecendo, foi apenas uma pergunta. Se você não quer me dar essa responsabilidade, está tudo bem. Esquece!

Sua mão escorregou pelos cabelos curtos e perfeitamente alinhados.

— Sabe muito bem que não se trata disso. Você riu quando te propus isso há um mês atrás, disse que não queria sair daqui, que estava feliz com Marcela. Agora, me vem com essa. O que está acontecendo?

Estávamos no fim da loja e percebi que a hora já ia avançada, o sol começava a se pôr lá fora. Deixei os braços caírem pesadamente na lateral de meu corpo, estava muito cansada de tudo aquilo.

— A história é longa e já está na hora de fecharmos — voltei a pegar as pastas. — Ainda tenho muito trabalho a fazer. Uma outra hora conversamos.

Encerrei o assunto e me dirigi para a porta do escritório.

— Joana, — ele me chamou — se você ainda quiser, o trabalho é seu.

Sorri, satisfeita.

— Mas, eu ainda quero saber o que está acontecendo — avisou.

***

— Sem vocês eu não vou a lugar algum!

— Edu, vá comemorar com o JP. Vá brindar ao seu amor! — ordenei.

João Paulo, incentivado pela aceitação dos meus pais em relação a Edu e a mim, também resolveu se assumir para a família. Foi complicado para ele e ainda estava sendo, mas o fato é que estava feliz por poder ser ele mesmo e demonstrar todo o seu amor por Edu na frente das pessoas sem fingimentos.

— Mas, sem vocês não tem graça — queixou-se JP.

— Ora, claro que tem! Você vai estar com o seu amor! Saiam e tenham uma noite maravilhosa que vamos ficar aqui nos curtindo.

— Vocês se curtem tanto que vão acabar virando couro curtido! — alfinetou meu irmão.

— Ai, Chatolino, não tinha uma piadinha melhorzinha, não?

Ele franziu o nariz, irritado.

— Vou pensar em algo melhor — garantiu, coçando o queixo.

Depois de muito protesto acabaram indo embora com a promessa de que se divertiriam muito por eles e por nós. No entanto, Edu me garantiu que no dia seguinte me faria abrir o jogo de vez sobre o que estava acontecendo com a gente.

— O que Edu quis dizer? — perguntou Marcela fechando a porta.

Me encontrava sentada no chão, as pernas estiradas sobre o tapete e as costas apoiadas no sofá. Nas mãos, um livro que havia deixado de lado com a chegada dos rapazes. Retirei os óculos de grau, os usava apenas para ler, e os joguei sobre o livro que havia depositado no chão.

— Ele anda cismado. Acha que estamos escondendo algo dele.

— E não estamos? — questionou com um sorriso singelo.

— Não. Não estamos escondendo nada, apenas ocultamos alguns fatos.

— Para mim, dá no mesmo.

Marcela sentou no sofá e apoiei minha cabeça em seu joelho. Imediatamente, suas mãos começaram a afagar meus cabelos.

— Que seja. Você o conhece, sabe como é esquentado…

— Exatamente, como você — observou.

— Não sou, não! — neguei.

— Se você diz.

A mirei por alguns instantes.

— Digo mesmo — sorri e ela deu de ombros. — O fato é que se ele soubesse o que aconteceu aqui teria ido tirar satisfações com Natália ou pior, com teu pai. Meu “sogrinho” deixou uma surra passar, será que deixaria outra no esquecimento também?

Ela parou de acariciar meus cabelos.

— Não o chame assim — repreendeu. — Sabe muito bem que para ele não somos nada.

Saí do chão e sentei ao seu lado no sofá. Lhe roubei um beijo rápido e singelo e prendi sua mão entre as minhas.

— Para ele, somos tudo — retruquei. — Somos tudo o que ele não quer em sua vida, que não deseja para a filha, para sua família. Por isso incomodamos, por isso se esforça tanto para nos separar. Você feriu o orgulho dele quando me beijou naquela festa e tudo só piorou quando fui te “resgatar”. E ficou mais complicado quando ele levou uma surra do pai da Ana e outra do Edu.

Apertei sua mão.

— Ele é vingativo, você já me disse uma vez. Às vezes, temo pelo que possa nos acontecer e me pego imaginando quando ele finalmente irá conseguir nos separar — confessei e me dei conta de que meus olhos estavam marejados, mas não permiti que as lágrimas caíssem.

Virei o rosto na esperança de que não tivesse notado minha tristeza e tratei de ficar de pé indo em direção a varanda. Ela seguiu meu exemplo algum tempo depois, mas quando chegou já me encontrava senhora de minhas emoções novamente.

— Já que não vamos a lugar algum, que tal assistirmos um filme?

— Tudo bem, mas nada de terror! Você sabe que eu não gosto — fez um bico.

— Ah, que pena!

— Por quê?

— Adoro quando você me agarra no meio do filme com medo! — ri e ela me deu um tapinha no braço.

Para falar a verdade, não estava nem um pouco a fim de assistir filme algum, mas queria distrair Marcela, pois sabia que estava preocupada apesar de tentar não demonstrar. Edu tinha razão, embora tentássemos aparentar tranquilidade e voltar à normalidade de nossas vidas, o que havia acontecido nos abalou bem mais do que éramos capazes de admitir. Ela fingia estar bem e eu fingia que acreditava nisso.

— Já que é assim não assisto mais filme algum contigo! Você fica colocando esse tipo de filme só para se aproveitar de mim né, danada?

— Eu? Imagina! É tudo na maior inocência, pois gosto muito de terror — respondi me fazendo de sonsa e tentando, ao máximo, impor um tom sério a voz. Ao fim da frase caí na risada e ela me acompanhou.

Bati na testa com um pouco de irritação.

— Droga! Esqueci o notebook na casa dos meus pais. Assim, não vai dar para assistir e já assistimos todos os DVD’s que estão aqui em casa.

— Então, vai logo buscar. Do jeito que você é enrolada para sair, vamos acabar não assistindo nada hoje. Aproveite e traga alguns daqueles seus DVD’s, aposto que sua mãe vai adorar o espaço extra na estante.

— Em compensação, vamos ter que arranjar mais algum na nossa — pontuei, observando que o nosso apartamento não era grande e a minha coleção de DVD’s era realmente grande e ouvi muitas reclamações da minha mãe por anos.

— Mero detalhe. Agora, vai logo!

— Olha só que gata mandona fui arranjar — pisquei manhosa e a puxei para um abraço.

Me deu um selinho e começou a me empurrar em direção a porta.

— Mandona não, meu amor! Realista! Do jeito que você é, vai ficar me enrolando a noite inteira e não sai do lugar.

— Ora, e tem coisa melhor na vida do que ficar nos teus braços a noite inteira? — sorri me voltando para ela que já me empurrava para fora do apartamento.

Seu rosto havia perdido o ar brincalhão, me olhava com intensidade. Cruzou os braços e recostou-se a porta.

— Jô, eu te amo! E não pretendo deixar nada nem ninguém tirar você de mim.  Vou brigar com unhas e dentes, socos e pontapés, jogar limpo e sujo se for preciso, mas não vou permitir que roubem você de mim, pois não consigo mais imaginar a minha vida sem você.

Ser intensa fazia parte da personalidade de Marcela, mas naquele momento, suas palavras tocaram minha alma com uma força alarmante. Ela não estava sendo uma moleca birrenta e ciumenta, estava sendo uma mulher que amava profundamente e, assim como eu, não pretendia deixar que lhe tirassem esse amor.

Muda e encantada, lhe dirigi um sorriso, enquanto a via sumir por trás da porta que se fechava.

— Onde está Marcela? — foi a primeira coisa que ouvi de minha mãe ao entrar em casa.

Dei-lhe um beijo na bochecha, enquanto roubava um pãozinho de queijo que acabara de retirar do forno.

— Hmm, delícia! — deixei escapar com a boca cheia. — Muito quente, mas delicioso!

Ela me deu um tapinha na mão quando ameacei pegar outro.

— Vai acabar tendo dor de barriga se comer tão quente — reclamou. — Onde está Marcela?

— Eita, parece até que não existo mais, é só Marcela, Marcela, Marcela! — reclamei fingindo zanga.

Apertou minhas bochechas com um sorrisinho brincalhão.

— Parece até que está mesmo ressentida com isso. Nunca soube fingir para sua mãe, moleca!

— Ai, doeu! — reclamei esfregando a face.

Roubei outro pãozinho, enquanto ela se distraía com a arrumação da mesa para o jantar.

— Que culpa tenho eu se você resolveu me dar uma nora tão fofa? — continuou.

— Ela tem seus momentos — respondi, me divertindo ao contrariá-la.

Ela parou um instante, analisando minhas palavras. Por fim, aquiesceu. Provavelmente, recordou-se do episódio do quiosque com Natália, pois nunca tocamos no assunto do que aconteceu em casa.

Peguei alguns talheres e organizei ao lado dos pratos que ela arrumava cuidadosamente. Era a primeira vez em meses que fazia aquilo e, por alguns instantes, senti saudades de fazê-lo todas as noites. Quando terminei, notei que me observava com atenção.

— Poderia voltar para cá — disse baixinho.

Sorri.

— Realmente, não me importaria se Marcela viesse junto.

Venci a distância que nos separava contornando a mesa e a envolvi em um abraço forte e apertado. Tinha os olhos marejados quando me afastei e tentei falar, mas ela me interrompeu com um gesto.

— Eu sei. Você está feliz lá, mas sou sua mãe e você ainda é o meu bebê.

Ri abraçando-a novamente.

— Seu bebê cresceu, Dona Júlia. Embora, possa parecer doloroso aos seus ouvidos, ele encontrou um pouco de paz longe desta casa.

Me dirigiu um sorriso vacilante e retornou à cozinha e a segui silenciosamente.

— Não custava tentar — disse, enquanto colocava alguns pãezinhos em um pote, o qual me entregou.

Sorrindo, contei-lhe que havia ido buscar meu notebook e que Marcela me aguardava em casa. Recusei o convite para ficar mais um pouco e jantar com o resto da família, não porque não tivesse fome, mas sim porque apesar de estar reatando os laços que se partiram após a revelação da minha orientação sexual, tentava evitar conflitos com meus irmãos. Apesar de acatarem e respeitarem a vontade de meus pais, ainda sobravam piadinhas e indiretas quando nos encontrávamos. Esse tipo de coisa me machucava, mas não tanto quanto machucava aos meus pais por terem sua família dividida pela intolerância.

Não era tarde. Na verdade, passava pouco das dezenove horas, mas não havia um pé de gente à vista na rua. Estava a duas quadras da casa dos meus pais e pensava no que minha mãe havia dito e na resposta que lhe dei. Sentia muita falta deles, da nossa convivência, porém sair de casa, apesar de todas as confusões com Marcela e sua família, me trouxe um pouco de paz. Eduardo estava certo, ali com ele podia ser eu mesma.

Um gato preto saltou de um muro alguns metros à minha frente e tomei um susto. Quase deixei a mochila com o notebook e os DVD’s caírem e, rindo do acontecido, cruzei a rua.

Não vi o carro com faróis apagados que se aproximou de repente. Senti o impacto e no instante seguinte rolava pelo capô. Caí no chão de paralelepípedos buscando um pouco do ar que me faltava, enquanto a dor me invadia. Ao longe, ouvi o cantar dos pneus em alta velocidade e, antes de desmaiar, o sorriso de Marcela veio me visitar em pensamento.

MARCELA

Estava na varanda, admirando a noite estrelada, sentindo o vento agradável acariciar minha pele trazendo os aromas da cidade, o cheiro das casas vizinhas, o ruído das vozes que transitavam pela rua mal iluminada.

Aguardava Joana apontar na esquina como uma criança aguarda seus presentes na manhã de natal. Sempre me sentia assim em sua ausência.

Era uma caminhada rápida até a casa de seus pais, cinco quarteirões adiante, porém estava demorando a retornar e imaginei que tinha filado o jantar de Dona Júlia, gulosa como era.

Com um princípio de irritação, torci para que não houvesse encontrado nenhuma de suas “admiradoras”. Sabia que me respeitava e não era capaz de me trair, mas isso não me impedia de sentir ciúmes e, às vezes, me questionava como era capaz de amá-la tanto em tão pouco tempo.

Bati o pé com impaciência e olhei, pela milionésima vez, para o relógio no celular, ela tinha saído duas horas antes. Liguei para o seu celular e descobri que ela o havia esquecido no quarto, então liguei para Dona Júlia que me atendeu rindo.

— Ela esteve aqui, sim, mas saiu há mais de uma hora. Talvez tenha passado na casa de alguma amiga — sugeriu.

— É, talvez tenha — concordei fracamente.

Dona Júlia riu.

— Menina, não pense besteiras. Ela deve ter se distraído com alguma bobagem, Joana sempre foi um pouco desligada com horários.

Ri para tranquiliza-la e me despedi sentindo o coração cada vez mais apertado. Ela iria ouvir um monte quando chegasse em casa. Imaginei que tivesse passado pela praça e encontrado com JP e Edu. Poderia ter sentado para beber alguma coisa e esquecido do tempo e de mim, o que era imperdoável! Então, cansei de esperar e fui à sua procura.

Os rapazes estavam em dos quiosques da praça. Ocupavam uma mesa rodeada de amigos, Aninha estava entre eles com dedicando um sorriso bobo e bem direto para o irmão caçula de JP, Fábio. Não era segredo para ninguém que, fazia um tempo, ela andava arrastando a asa e todo o corpo para o cara que havia deixado claro que também estava afim dela. Acenaram euforicamente para mim quando me aproximei. Joana não estava à vista.

— Onde ela se enfiou numa cidade desse tamanho? — me questionei, enquanto Edu vinha ao meu encontro.

Pela expressão em seu olhar, havia notado que algo não ia bem.

— Cunhadinha, linda! — disse, já um pouco embriagado. — Que bom que resolveram vir comemorar conosco, embora esteja surpreso já que me pareceram bem decididas quando as convidamos. Cadê a Joana?

— Eu não sei.

— Como assim? Vocês são como supercola, um grude só! — riu da própria piada e Aninha se juntou a nós com um sorrisinho alegre e cheio de charme para o Fábio que não tirava os olhos dela.

Contei a eles sobre o sumiço repentino de Joana.

— Já ligou para casa? Talvez ela tenha voltado, enquanto você vinha para cá.

— Sim. Ninguém atende.

— E para os meus pais?

— Ela saiu de lá tem mais de uma hora.

Ele enviou um olhar significativo para Aninha e capturei o sentido dele no ar.

— Nem pensem nessa besteira! Sua irmã não é disso — reclamei.

— Disso o quê? — ele se fez de desentendido.

Aninha sorriu e deu de ombros.

— Não, a Jô não é o tipo que pula a cerca — colocou em palavras o que pensava.

Ele cruzou os braços em um gesto defensivo e, apesar da pouca luz onde estávamos, vi seu rosto bonito corar.

— Desculpe. Ainda não me acostumei ao fato de que Joana agora é uma “moça séria”.

Ana deu uma cotovelada nele e eu teria achado a cena cômica se não estivesse tão preocupada. O celular de Aninha tocou e ela se afastou para atender.

— Se eu fosse você relaxava, Jô deve ter encontrado algum amigo e perdeu a hora conversando besteiras. Sabe como ela é distraída quanto ao tempo — praticamente repetiu o que a mãe dele havia me dito minutos antes no celular.

De fato, Joana era dada a esquecer um pouco do tempo quando se encontrava com algum amigo ou estava muito concentrada em alguma tarefa, porém não conseguia deixar de pensar que algo estava errado.

Ana regressou para junto de nós, os olhos baixos, jogava o celular de uma mão para outra em sinal de nervosismo.

— Sei onde a Joana está — informou, enquanto engolia o choro.

***

Cris me envolveu em um abraço apertado e despejei meu pranto em seu ombro, enquanto me falava palavras de conforto.

— O que aconteceu? — Edu perguntou tentando controlar o tom de sua voz, mas estava muito pálido e visivelmente emocionado. JP segurava firme as mãos dele, mas parecia tão abalado quanto.

— Vim trazer Hellena para iniciar o plantão, ela está substituindo um amigo que entrou de férias. Enfim, nos despedíamos quando a ambulância chegou e ela logo se prontificou a fazer o atendimento. Tivemos uma grande surpresa ao ver Joana naquela maca.

Cris me puxou para uma das cadeiras na sala de espera e me acomodou com cuidado.

— Liguei para a Ana, pois não tinha o número da Marcela ou o seu, Edu.

Aninha sentou ao meu lado e envolveu minhas mãos trêmulas entre as suas, enquanto fazia a pergunta que todos nós queríamos fazer:

— Como ela está?

Cris deixou os ombros caírem.

— Ela estava inconsciente quando chegou. Sinto não poder dizer mais nada a respeito. Hellena está com ela desde que chegamos e não sei mais do que o que lhes falei.

Hellena veio conversar conosco uma hora depois.

— Como ela está? — prendi a respiração com medo de ouvir o pior.

— Um pé e algumas costelas quebradas. Bateu a cabeça quando caiu, mas exames já foram feitos e aparentemente está tudo bem. Vai ficar em observação por um tempo, mas vai ficar bem — sorriu e me pendurei em seu pescoço agradecida.

Deixei o ar escapar com grande alívio. Ela estava bem e logo voltaria para casa. Era tudo o que importava naquele momento.

— Quero vê-la — pedi ao me afastar.

— Mais tarde, ainda estamos fazendo alguns exames.

João Paulo conversava com uma das atendentes. Edu havia saído para ligar para os pais, enquanto Aninha permanecia ao meu lado. Cris tinha ido embora havia algum tempo e Hellena se retirou para continuar o atendimento a Joana.

— Alguém tem ideia de quem fez isso? — perguntei quando vi João Paulo se aproximar.

— Não. Quem quer que tenha sido, fugiu sem prestar socorros. Joana estava numa rua escura e deserta. O hospital informou a polícia, mas há muito pouco o que se fazer. Você sabe bem disso. A cidade é pequena e as notícias se espalham muito rápido, se tivessem visto algo, já saberíamos.

 Engoli em seco ao imaginar Joana ser atingida por um carro. Meu coração ficou apertado dentro do peito.

— Você está bem? — Edu me perguntou, me entregando um copo com café que estava horrível, mas tomei assim mesmo.

— Sim, estou mais tranquila após falar com Hellena — tentei segurar as lágrimas que ameaçavam me dominar novamente.

— Ei, calma! — me puxou para um abraço apertado. —  Minha maminha vai precisar de uma gatinha marrenta e forte para cuidar dela quando voltar para casa. E todos nós estaremos lá para paparicá-la. Ela vai ficar se achando!

Dei um passo atrás me libertando de seu abraço.

— Já estou melhor, obriga. É que não consigo para de imaginar ela sozinha e machucada em uma rua escura…

Ele me calou com um gesto e me puxou para outro abraço apertado.

Não encontrei somente o amor ao lado de Joana, encontrei também uma família. Em tão pouco tempo, já os amava. E Edu era mais que especial, sempre nos apoiou em tudo e apesar das brincadeiras sem graça que deixavam a irmã zangada era um anjo em forma de homem e a amava acima de tudo.

Hellena teve um pouco de dificuldade me nos conter. Todos nós queríamos ver Joana, e o grupo ganhou um reforço de peso com a chegada dos pais dela. Fomos tão insistentes que ela acabou por permitir nossa entrada, mas dois de cada vez. Queria vê-la desesperadamente, mas me contentei em ser a última junto com Aninha.

Tive um susto ao ver a minha linda cheia de arranhões e hematomas, o pé direito engessado. Ela ainda estava inconsciente, mas parecia estar em um sono sereno.

Depois de muita insistência, consegui que me permitissem passar a noite com ela, nem mesmo Dona Júlia protestou. O lugar era dela por direito, mas me sorriu satisfeita antes de se despedir pedindo que avisasse assim que ela acordasse e todos partiram aliviados em saber que, diante do acontecido, ela se encontrava bem e a caminho da recuperação.

Sentei numa cadeira ao lado da cama com sua mão entre as minhas e chorei o que não havia me permitido chorar horas antes.

— Ela vai ficar bem — ouvi Hellena dizer e tomei um pequeno susto com sua presença.

Ela estava recostada na porta, as mãos nos bolsos do jaleco e um sorriso cansado nos lábios. Era madrugada e parecia um pouco abatida.

— Vai sim — concordei tentando retribuir o sorriso.

— Sabe, quando as conheci e Joana contou o que estava se passando entre vocês, tive pena dela.

— Por quê?

— Ela me lembrou Cris quando a nossa história começou — fez uma pausa para afastar uma mecha de cabelos que lhe caía sobre os olhos. — Não me entenda mal, ela apenas me lembrou a menina-mulher que encontrei no diário de Cris, amando alguém que julgava inalcançável, disposta a se manter em silêncio para se preservar. Ao mesmo tempo percebi, quando vi seu olhar preocupado, que você gostava dela. Podia não se dar conta ainda, mas o sentimento estava lá. E torci para que você não lutasse contra ele.

Olhei para Joana por alguns segundos, recordando a nossa estrada até ali, evocando a mulher que era antes de conhecê-la, as palavras que ousei dizer sem compreender seu real poder, e sorri com a certeza de que ela jamais voltaria a existir.

— Nunca fugi dos meus sentimentos. Por mais conflituosos que sejam, os vivo intensamente.

Ela se aproximou e beijou minha cabeça carinhosamente.

— E isso a faz uma mulher incrível!

Ainda sorria quando fechou a porta atrás de si e eu apoiei a cabeça na cama, apertando carinhosamente a mão de Joana na minha, deixando que o sono e o cansaço me dominassem.

A luz do dia invadia o quarto através da janela quando acordei sentindo alguém afagando meus cabelos.

— Ei — Joana disse baixinho. — Bom dia, bela adormecida!

Que alegria senti ao erguer o olhar para me deparar com o mar negro dos olhos dela, cheio de luz, vida e carinho.

Deixei que algumas lágrimas de alegria me escapassem e ela as secou com as costas da mão, brincando:

— Um pouco de lágrimas para lavar a baba que você deixou na minha mão.

— Eca!

— Eu que deveria dizer isso!

— Não babei na sua mão — afirmei.

Ela riu.

— Não, não babou. Mas foi divertido ver esse rostinho surpreso.

— Cretina!

— Sempre!

A abracei com cuidado e me permiti chorar um pouco mais.

— Tive tanto medo — confessei.

Ela afagou meus cabelos outra vez.

— Estou bem, meu anjo. Foi só um arranhãozinho de nada — riu e parou quase imediatamente com um gemido de dor. — Bem, um arranhãozinho incômodo — piscou marota.



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