MARCELA

Nunca me imaginei numa situação dessas, sair de casa fugida! Não que eu nunca tenha fugido de casa. Fugi, sim, um monte de vezes para ir a festas e encontros, mas brigar com o meu pai daquele jeito e sair correndo pelas ruas com a mochila nas costas acompanhada de duas malucas, nunca imaginei fazer igual!

Só quando paramos em uma esquina para descansar e recuperar o fôlego me dei conta de tudo que havia acontecido.

A Joana sentou-se na calçada e começou a gargalhar. Ana e eu a observávamos confusas. O que era tão engraçado? Afinal, ela estava com um hematoma no olho direito que começava a inchar, tinha um corte feio no supercílio esquerdo, um pouco de sangue no nariz e um corte no lábio inferior. Não me passou despercebido que, apesar do riso, ela fazia careta quando respirava. Da mochila, retirei uma camiseta e lhe entreguei para que estancasse o sangue.

— Do que você está rindo? — Ana perguntou.

Entre gargalhadas, ela respondeu:

— Ai, é a primeira vez que dou uma de príncipe/princesa encantada para resgatar uma linda donzela em perigo — tentou fazer uma mesura, mas uma careta indicou que sentia dor e voltou a sentar.

— Não vejo onde está a graça — Ana se queixou, fazendo bico.

— A graça está em onde você foi arranjar uma jarra cheia de álcool e aquela vassoura.

Comecei a rir também. Realmente, foi uma cena engraçada a da Aninha com uma jarra cheia de água “que não era água e sim álcool” numa mão e na outra uma vassoura. Ana, ainda assim, não via a graça da situação, mas Joana e eu continuamos partilhando as gargalhadas por algum tempo e me juntei a ela na calçada.

— Então, Ana, onde você conseguiu aquela jarra de álcool? — questionei enxugando uma lágrima que o riso me trouxe.

Ela bateu o pé com uma das sobrancelhas erguidas.

— Vocês não vão me deixar em paz até descobrirem, não é mesmo?

— É! — Respondemos em uníssono.

Ela pôs as mãos na cintura em um gesto característico seu.

— Ai, tudo bem! — olhou para mim. — Você lembra quando roubamos o carro do seu pai?

Balancei a cabeça confirmando.

— Espera aí! Vocês roubaram o carro do prefeito? — Joana questionou com um sorriso e me senti estranha ao ver o estado lastimável em que se encontrava graças ao meu pai.

— Ah, isso foi quando éramos crianças — expliquei. — E não foi um roubo, foi só um empréstimo!

— Bem, o que aconteceu foi que ele esqueceu a chave no contato e… — Aninha tentava se explicar também.

— Mentira! Nós pegamos as chaves do bolso do paletó dele! — admiti.

Aninha me dirigiu um olhar atravessado. Dei de ombros, não iria mentir para ela posar de santinha, não! Ela sempre foi tão pestinha quanto eu.

— Sei. Mas o que isso tem a ver com a jarra de álcool? — Joana insistiu.

Comecei a rir, já sabia ao que Ana estava se referindo.

— Ah, você não estava pensando em fazer a mesma coisa, não é? — perguntei, mal contendo o riso.

— Pior que estava. Foi a única coisa que me veio a cabeça. Uma distração.

Novamente caí na gargalhada e, dessa vez, a Ana me acompanhou. Joana nos olhava confusa. Pela cara que fazia não estava gostando de estar fora da conversa.

— Sua doida, o que te fez pensar que ia dar certo como da última vez? — perguntei entre gargalhadas.

— Ah, sei lá! Apenas achei que ia.

Joana se estressou.

— Vocês duas querem fazer o favor de me explicar do que estão rindo?

— Eita, nervosinha! Está bom, vou te explicar. Quando éramos crianças Ana e eu pegamos “emprestado”…

— Roubamos — Corrigiu-me Aninha.

— Que seja! Roubamos o carro de papai. Queríamos aprender a dirigir, então ligamos a chave e partimos com o veículo. Mas, como era de se esperar, duas crianças dirigindo não podia dar em coisa boa, né? Perdi o controle do carro e, como na época morávamos em outro bairro, a minha casa ficava no alto de uma ladeira. O carro desceu rua abaixo, desgovernado. Atropelamos o gatinho da vizinha, invadimos o jardim dela arrebentando o muro da casa, sem falar que o carro ficou todo amassado.

— Ficou um lixo, só! — Ana completou.

— Papai ficou furioso. Quis me bater de cinto! Saí correndo pela casa com ele em meu encalço, então a Ana correu até a dispensa onde a empregada guardava os produtos de limpeza, pegou uma garrafa de álcool e tocou fogo na cozinha!

— Ela o quê? — Joana deixou o queixo cair.

— Pôs fogo na cozinha — repeti. — E depois saiu pela casa correndo e gritando: “Fogo, Fogo!”. Foi uma loucura, uma correria geral. Um susto daqueles. Felizmente, papai esqueceu da surra que ia me dar, mas eu não escapei do castigo — sorri.

Joana nos observava, séria. Um sorrisinho sarcástico começou a aflorar em seus lábios. Esse era um gesto seu que eu estava começando a gostar e a achar atraente.

Esqueçam que eu disse isso, certo?

— Não acredito que estou andando em companhia de uma ladra assassina de gatinhos indefesos e de uma piromaníaca! — deixou uma gargalhada sonora e gostosa escapar. — Não conhecia esse seu lado “bandido”, Ana! Sempre te achei tão certinha.

— Joana, se eu te contar as coisas que já fiz nessa curta vida, você iria ver rapidinho que em vez de “certinha” sou bem “tortinha” — deixou à mostra seu lindo sorriso.

— Está certo! — Disse Joana sorrindo. — Mas por que não tacou fogo na cozinha de novo?

— Ah, quando ia fazer isso, ouvi os gritos da Marcela e fui até lá. No meio do caminho me armei com uma vassoura. Quando cheguei e vi aquela confusão toda, olhei para as minhas mãos e tudo que tinha era aquilo. Jogar o álcool foi mais um reflexo do que um objetivo real, tudo que eu queria era impedir que ele te chutasse — olhou para mim. — Muito bem, agora que vocês pararam de rir de mim, vamos embora.

Que podíamos fazer? Ela era uma comédia.

— E agora, para onde vamos, minhas princesas encantadas? — perguntei ainda em tom de brincadeira.

— Para minha casa — Ana respondeu.

— Acho melhor, não — discordei.

— Por que?

— Será o primeiro lugar onde meu pai irá me procurar. É melhor ficar fora das vistas dele por uns dias.

— E para onde pretende ir?

Olhei para Joana.

Ela me observava de um jeito diferente. Havia um brilho distinto em seu olhar, algo profundo e misterioso que me atraía. Ficamos neste silêncio contemplativo por um tempo. Sentia vergonha, mas depois de alguns minutos tomei coragem e perguntei a ela:

— Posso ficar contigo?

Ela piscou algumas vezes, obviamente confusa.

— O quê? — Ana perguntou, sua voz subindo alguns tons.

O olhar de Joana brilhou novamente com uma intensidade diferente da anterior.

— Será apenas por uns dias — expliquei sem desviar o olhar do dela. — Só até meu pai se acalmar um pouco, depois encontro um lugar para morar. Vou em busca de um emprego…

— Não pode estar falando sério! — Ana continuou ficando de pé à minha frente e Joana fez o mesmo.

— Você é bem-vinda em minha casa para ficar o tempo que quiser — informou. — Não tenha pressa de partir — completou.

— O quê? — Ana gritou, a boca aberta de pura surpresa.

Juro que pensei que ela iria dizer não. Mais uma vez, Joana me surpreendeu, mas a atitude da Aninha me surpreendeu muito mais.

— Você não pode ficar lá! — afirmou minha amiga.

— Por que não? Ela acabou de dizer que sim.

— Não pode e pronto!

— Isso não é motivo, Ana!

— Ora, Marcela! Tenho minhas razões. Não acho certo você ficar lá, não. Você já complicou demais a vida da Joana com a sua falta de controle, primeiro foi aquele beijo que resultou em ela sair de casa brigada com a família, situação na qual, você também se encontra neste momento. E, agora, olha só o estado dela! Seu pai a teria matado se pudesse e…

— Ana, — Joana a interrompeu — está tudo bem, não se preocupe.

— Mas, Joana! Você não pode aceita-la lá!

— Por que?

— Marcela não vai ser das melhores companhias para você.

— Por que pensa isso? — perguntei.

— Marcela, corrija-me se estiver errada, mas não foi você que na semana passada me falou um monte de coisas preconceituosas sobre a Joana?

Deixei um suspiro longo escapar e olhei para o chão.

— É, fui eu — admiti.

— E, também, não foi você que a xingou um monte de vezes quando a viu com a Priscila?

— Sim, fui eu.

— Também, não foi você que me disse que jamais seria amiga de uma, usando suas próprias palavras, “sapatão”?

— Ana…

— Marcela, já faz um tempo te notei mudada. Você diz algo e faz outra coisa muito diferente do que disse. Não suportava estar perto da Joana, mas a beijou. Não suportava ficar sob o mesmo teto que ela e agora pede abrigo em sua casa. Marcela, onde foi parar todo aquele seu preconceito? Não acredito que você vá encarar numa boa quando as pessoas da cidade começarem a comentar que vocês estão morando juntas, aliás, uma prova disso foi a sua briguinha hoje cedo no colégio.

Nossa, a Ana sabia pegar pesado, né? Mas, ela tinha razão de se preocupar com isso. Achava que não iria aguentar muito bem os comentários e provocações, mas não tinha nenhuma outra opção, afinal, não tinha nenhum centavo furado no bolso e a casa dela seria o primeiro lugar onde meu pai iria me procurar e, com certeza, se me encontrasse, me levaria arrastada de lá.

Joana se adiantou.

— Aninha, sei o que está pensando, mas está tudo bem. Ela pode ficar lá em casa sem problemas se, ainda quiser, é claro. Mas vou te avisar, Marcela, a Ana está com toda a razão. Acredito, que as pessoas possam mudar suas opiniões. Se na semana passada você me tratava de uma maneira, digamos, um pouco agressiva, e nesta semana me trata melhor é porque, em algum momento, você percebeu que não há razão para ter preconceitos antes de realmente conhecer algo ou alguém. Mas, não vai ser fácil para você. Eu não ligo para o que falam sobre mim, afinal, todo mundo sabe que sou lésbica, mas você não é. E, depois daquele seu beijinho, nosso “romance” é o assunto de todas as boas e más línguas da cidade.

— Eu entendo, Joana. Desculpe, mas eu não tenho nenhuma outra opção. Se você me aceitar lá, por enquanto, bem, o resto a gente vê depois, certo? Pode ser?

— Sim, claro.

— Ana? — olhei para ela esperando sua opinião.

Ela limitou-se a cruzar os braços e dizer:

— Joana já está bem grandinha para saber o que faz, mas depois não me venha reclamar, porque eu avisei.

Caminhamos em silêncio até o apartamento de Joana. Ana havia voltado ao seu normal depois daquela conversa. Podíamos perceber que estava chateada, mas ela procurava não demonstrar. Já a Joana, estava muito calada, caminhava com os olhos baixos, fitos no chão e as mãos nos bolsos traseiros da calça. Havia algo em sua fisionomia e olhar que me perturbava.

Notei que respirava com dificuldade e, por várias vezes, diminuiu suas passadas e comentei isso com Aninha.

— Também notei. Vou ligar para a minha prima quando chegarmos — informou.

Assim que entramos no apartamento, Ana se afastou para ligar para os pais e a prima, sob o protesto de Joana que alegava estar bem. Atirei minha mochila sobre o sofá e fui atrás dela que havia ido para o quarto com algumas pedras de gelo enroladas em uma toalha pressionando contra o olho.

A exemplo do que ela havia feito por mim durante a manhã, umedeci uma toalha e sentando-me ao seu lado na cama limpei o corte em seus lábios.

Ela me observava, mais uma vez, com aquele olhar indecifrável. Eu tentava parecer natural, mas a verdade era que não conseguia desviar os olhos daquela boca. Sentia, naquele momento, o desejo de provar o beijo dela novamente.

O que essa garota havia feito comigo?

Nunca quis tanto beijar alguém como queria beijá-la naquele instante. Involuntariamente aproximei meu rosto do seu, meus olhos estavam fitos em seus lábios. Podia sentir sua respiração acariciando minha face.

Que loucura!

A teria beijado se a Ana não tivesse surgido à porta com cara de poucos amigos. Santa Ana, salvadora das amigas que não sabem o que fazem, ou melhor, estão prestes a cometer, mais uma vez, o pior erro de suas vidas.

JOANA

Podia jurar que a metidinha ia me beijar mais uma vez. Não tirava os olhos da minha boca e foi se aproximando lentamente de mim, mas a Ana apareceu e ela pareceu cair em si.

E, falando na Ana, ela nos olhava de um jeito nada amigável. Desde que se opôs a Marcela ficar comigo no apartamento, vinha agindo estranho. Anunciou que iria dormir ali àquela noite e que seus pais haviam concordado com a Marcela quando ela explicou a situação. O melhor mesmo, segundo eles, seria Marcela ficar alguns dias comigo ali, para dar um tempo de seus pais se acalmarem.

— Falei com a minha prima, também. Ela está vindo para cá.

— A Dra. Hellena? — Marcela perguntou.

— Sim — confirmou.

— Ela mora na cidade vizinha, Aninha — Marcela observou.

— Não exatamente, ela mora em uma chácara no meio do caminho entre aqui e lá. Joana não está bem.

— Estou perfeitamente bem — reagi me colocando de pé e sentando em seguida, pois o movimento me fez perder o ar.

— Não, não está — Ana afirmou.

Não conhecia a prima da Ana, mas lembrava dela já ter comentado que tinha uma prima médica. Quando ela entrou em meu quarto, meia hora depois, fiquei encantada por sua beleza. Tinha um sorriso largo e olhos azuis cinzentos e simpáticos. Os cabelos eram longos, muito negros e cacheados, presos em um rabo de cavalo que deixava alguns fios rebeldes escaparem.

Por trás dela surgiu uma moça de beleza equivalente, os cabelos castanhos e claros com olhos grandes e expressivos da mesma cor. Vinha de mãos dadas com ela e não precisei me dedicar a uma observação mais profunda para perceber que ali havia muito amor.

— Olá! — disseram juntas e Ana se adiantou a explicar parte do que havia acontecido.

A Dra. Hellena ria do jeito estabanado da prima e sentou ao meu lado na cama se apresentando e a moça que a acompanhava. Cris era seu nome.

— Tudo bem, Aninha. Já entendi — a Dra. Hellena informou e pediu que as outras saíssem do quarto para me examinar, pois Aninha e Marcela mais pareciam duas matracas de tanto que tentavam explicar o que havia acontecido, mas a moça que a acompanhava permaneceu nos observando em silêncio do canto do quarto.

— Por que não foram ao hospital ou chamaram a polícia? — Cris perguntou baixinho. Tinha uma voz séria, harmoniosa.

Baixei o olhar para observar a Hellena colocando as luvas e preparando algodão, gaze e esparadrapos.

— É uma história longa e complicada — respondi no mesmo tom que ela havia usado e senti um arrepio percorrer meu corpo ao ver a agulha e a linha que Hellena manejava em direção ao meu rosto. — Para que é isso?

Hellena riu.

— Este corte em seu supercílio precisa de pontos — informou.

— Tem certeza? Um curativozinho não resolve, não? — perguntei. Sempre tive medo de agulhas.

Ela voltou a rir gostosamente.

— Não, não resolve. Agora, deixa de ser medrosa e fique quieta. Nem parece a garota que a Aninha descreveu como forte e decidida.

— A Ana falou de mim para você? — questionei, enquanto a obedecia com o coração aos pulos.

— Sim. Nos encontramos há algumas semanas em um almoço de família. Ela me contou o que vem te acontecendo desde que se assumiu para sua família.

Deixei um suspiro escapar.

— A Aninha está me saindo uma bela fofoqueira — me queixei ao sentir uma pontada mais forte no ferimento que costurava.

— Não fale assim. Ela só comentou, pois nesse almoço em especial, revelei a minha família minha relação com a Cris — afastou as mãos do meu rosto por um instante.

 Havia um sorriso largo e apaixonado em seus lábios que era correspondido na mesma intensidade por Cris que havia ido se colocar ao lado da porta que dava para a sacada.

— Imaginei que eram um casal quando as vi entrar — comentei e ela sorriu, enquanto dedicava atenção ao corte em meu lábio. — Como foi para você? Quero dizer, como foi com a sua família?

— Estava tão nervosa quando falei para eles sobre os meus sentimentos, tinha tanto medo da rejeição, mas eles foram perfeitos. Me aceitaram, nos aceitaram sem questionamentos, sem oposição.

Baixei o olhar com tristeza e vi o sorriso dela sumir.

— Eu sinto muito pelo que vem te acontecendo — falou e Cris caminhou até a cama e sentou-se do lado oposto ao que estávamos.

— Tudo bem, — falei tentando sorrir, mas o corte no lábio que ela havia acabado de limpar me fez parar o gesto — eu aguento. Afinal, coisas ruins mesmo machucando, vêm para nos fortalecer.

Surpresa, senti Cris envolver minha mão na sua.

— Sabe, passei por algo parecido na sua idade, — ela tinha um sorriso sereno nos lábios — amava Hellena e segredei este amor a um diário que foi roubado. Toda a cidade soube das minhas preferências e dos meus sentimentos. Se hoje algumas pessoas te tratam assim apesar dos novos tempos em que vivemos, imagine como foi para mim há doze anos atrás.

A mão dela apertou a minha mais forte.

— O fato, Joana, é que tudo isso, apesar de muito doloroso, serviu para me fazer uma pessoa melhor, mais forte, mais decidida. Parei de me esconder por trás de palavras e fui à luta. Saiba que você ainda irá sofrer muito, mas toda essa dor só te fará crescer e, um dia, as palavras de nojo e ódio, não irão mais te afetar. Em vez disso, elas encontrarão um sorriso em seus lábios, um sorriso blindado pelo amor que você sente por si mesma e pelo amor de quem te ama.

Deixei que algumas lágrimas me escapassem e Hellena me envolveu em um abraço carinhoso, enquanto Cris mantinha sua mão na minha. Conversamos por um longo tempo, enquanto Hellena me examinava e senti a leveza e amor que envolvia aquele lindo casal.

— Você levou uma pancada forte, mas não chegou a quebrar nada. Se a falta de ar persistir, recomendo que faça alguns exames — Hellena informou.

Estávamos na sala e ela já havia examinado Marcela que ganhou uma bolsa de gelo como prescrição.

— Vocês deveriam ir à polícia — recomendou Cris.

Olhei para Marcela e vi a tristeza em seu olhar.

— Obrigada pela preocupação, meninas. Se houver a possibilidade disso acontecer outra vez, iremos procurar as autoridades.

Recebi o olhar agradecido de Marcela. Apesar de tudo, ele ainda era pai dela.

— Joana, torço para que tudo dê certo para você — Cris falou e me puxou para um abraço. — Se precisar conversar, nos procure. Aliás, venha nos visitar precisando conversar ou não.

Quando elas partiram, passei um longo tempo embaixo do chuveiro refletindo sobre a história incrível de amor que me contaram e os conselhos de Cris. Com certeza, iria voltar a procura-las, pois sentia que uma amizade sincera havia surgido entre nós naquela noite.

Fazia muito calor àquela noite e, como só havia um quarto no apartamento, deixei que Marcela e Ana dormissem nele. A cama era de casal e não haveria desconforto para elas.

Armei uma rede na varanda de frente a porta que a ligava ao quarto, por causa do calor elas a haviam deixado aberta. Ali, deitada na rede, observava as estrelas, enquanto o silêncio e a escuridão tomavam conta da noite. Não conseguia dormir apesar de estar muito cansada. Desviava, a todo instante, meu olhar das estrelas no céu para aquela estrela que estava deitada em minha cama e, infelizmente, aquela que estava deitada ao seu lado não era eu.

No meio da madrugada adormeci desejando ter Marcela em meus braços.

O cheiro de café recém preparado me despertou. Olhei para o relógio em meu pulso que marcava da 8h da manhã. Sem chance de ir ao colégio; àquela hora os portões já estavam fechados.

Levantei-me e segui para o interior do quarto. Na cama, Marcela e Aninha ainda se encontravam dormindo e fiquei admirando aquela menina irritante que roubou meu coração quando ainda éramos crianças e nunca me devolveu. Suspirei. Pelo menos teria uma recordação dela para levar para o resto de minha vida. Um beijo.

Peguei algumas roupas na mochila que ainda não havia desfeito e fui tomar um banho.

É maravilhoso o poder que a água tem de tirar os pensamentos de nossa mente. Deixei-me ficar em baixo do chuveiro por um longo tempo, enquanto não pensava em nada, apenas sentia o bem que a água fazia ao percorrer meu corpo.

Ouvi um barulho e voltei-me em direção ao som. Não havia fechado a porta do box e, para minha surpresa, Marcela estava ali parada a me observar descaradamente. Insistia em percorrer meu corpo com o olhar, nem pareceu se dar conta de que havia me virado em sua direção e apesar de me sentir muito envergonhada a encarava. Depois de alguns segundos, ela pareceu sair de seu transe e seu rosto adquiriu uma cor avermelhada. Gaguejou ao falar:

— Desc… Desculpe. Eu… Não sabia que você estava aqui.

Estaria mentindo se dissesse que não achei muito divertido vê-la envergonhada daquele jeito. Eu também estava com vergonha, mas não ia perder a chance de lhe lançar um sorriso cínico, não é mesmo?

Desliguei o chuveiro e caminhei em sua direção, seus olhos teimavam em fugir, mas sempre acabavam retornando para mim. Parei a alguns centímetros dela e me inclinei em sua direção esticando o braço por sobre seu ombro. Ela ficou paralisada quando meu corpo molhado encostou no seu.

Meus olhos estavam fixos nos dela.

Ela pareceu avançar em direção a minha boca, pelo menos, tive essa impressão. Mas, antes que nossos lábios se tocassem afastei-me com a toalha que tinha ido pegar e estava pendurada às suas costas me envolvendo com ela em seguida.

— Não tem problema, por favor, fique à vontade. Há toalhas limpas no guarda-roupas se quiser tomar um banho.

Ela limitou-se a balançar a cabeça em assentimento. Peguei as roupas e saí jurando que ela não era tão indiferente a mim. Edu teria razão?

Nossa que vontade deu de beijá-la!

— Hum, a bela adormecida acordou! — Edu falou ao me ver entrar na cozinha, minutos depois. — Você andou dando uma festinha aqui ontem a noite? Reparei que a sua princesa encantada estava dormindo na sua cama, mas não era você ao lado dela — riu irônico. — Então, o que houve?

— É uma longa história.

Ele pôs o café em duas xícaras, me entregou uma e sentou-se à mesa com a outra nas mãos.

— Sou todo ouvidos. Ah, por falar nisso, comece explicando o porquê desse olho roxo.

Entre um gole e outro de café, contei tudo que aconteceu e ele se manteve calado e, aparentemente, calmo. Mas, sabia que não estava. Edu sempre foi assim, por fora a calma em pessoa, mas por dentro era uma tempestade prestes a se tornar um furacão. Qualquer pessoa que não o conhecesse pensaria que, para ele, aquilo que lhe contava não era nada de mais, mas podia ver em seus olhos a ira se formando.

Quando terminei, ele se ergueu da cadeira atirando a xícara por sobre a pia, quase a quebrando.

— Não acredito que aquele cretino teve a coragem de te bater! Eu vou acabar com a raça dele. Vou…

— Você não vai fazer nada, Edu! Já me meti em confusão demais nos últimos dias e não vou permitir que você faça o mesmo. Além disso, a Ana se encarregou de dar uma lição nele. Aposto que os olhos dele ainda estão ardendo — sorri ao lembrar da cena da noite passada. — Esqueça isso, tá?

— Mas…

— Edu, você vai me prometer que não fará nada com ele.

— Eu não vou prometer nada, Joana!

— Sim, você vai! Ele é o prefeito da cidade e pode complicar muito a tua vida.

— Não tenho medo.

— Eu sei que não tem, mas não quero te ver envolvido nessa confusão mais que o necessário.

A tempestade em seus olhos começou a diminuir.

— Está bem, prometo que não farei nada com ele se, e somente se, ele ficar longe das minhas vistas. Mas, se isso voltar a acontecer, vou quebrar as fuças dele!

Sorri e ele me envolveu em um abraço apertado no qual rilhei os dentes para que não percebesse o quanto estava doendo.

— Não vou permitir que aquele cretino volte a pôr as mãos imundas na minha irmãzinha.

— Eita, eita! Tá bom, eu sei que você me ama. Não precisa ficar aí se derretendo como manteiga por isso — ri da cara magoada que ele fez. — Também te amo, seu bobo.

Me deu outro abraço forte e demorado. De todos os membros da minha família, somente o Edu era capaz de me fazer sentir protegida com um abraço. Nos separamos e voltamos a sentar à mesa.

— Agora, quero saber se você concorda que a Marcela fique aqui por alguns dias até as coisas se acalmarem um pouco.

— Maninha, este apartamento é seu. Você pode hospedar quem quiser aqui. Além disso, a menina não pode dormir na rua quando tem uma cama quentinha e macia com uma gatinha linda e apaixonada à sua espera.

Atirei uma migalha de pão nele que a pegou com a boca no ar e ficou imitando um cachorro com a língua de fora.

— Palhaço! Para com isso. Aquela menina só vai dormir na minha cama quando eu não estiver nela. Já disse, Edu, ela não curte e nunca vai curtir, quanto mais, ficar comigo.

Ele gargalhou sonoramente.

— Jô, deixa de ser inocente! Você tem mesmo muito que aprender sobre a vida e as pessoas. Tudo bem, tentarei não fazer esses comentários.

Tomávamos nosso café em silêncio quando Ana e Marcela entraram na cozinha. Marcela evitava, ao máximo, me olhar nos olhos e a Ana parecia ter sido tomada pelo mau humor, limitava-se a responder qualquer pergunta monossilabicamente. Edu me questionava com os olhos sobre o que estava acontecendo com ela, mas como poderia responder se nem eu sabia o que estava acontecendo?

— Então, se me dão licença, lindas moças, vou indo trabalhar — Edu começou a dizer levantando-se da cadeira em que estivera sentado.

Fiz o mesmo.

— Espera, vou contigo. Como não fui à aula hoje, vou trabalhar mais cedo e poderei sair mais cedo também.

— Boa ideia. A Paula está sobrecarregada de serviço hoje.

— Paula, é? — um sorrisinho safado surgiu em meus lábios.

Edu fez cara feia.

— Nem pense nisso, Joana. Já conversamos a respeito. Não quero você dando em cima da Paula.

— E eu já te disse que vou ficar quieta, mas se ela me der a menor bola eu caio matando.

Ele riu e o acompanhei no riso, mas quando olhei para a mesa recebi um olhar atravessado de Marcela e outro divertido da Aninha. O que é que estava havendo com aquelas meninas?

— Edu, voltando ao assunto da escola. Não irei mais a aula.

— Por quê?

— Bem, esta é a última semana de aulas e já passei em todas as matérias. Não há necessidade de assistir as aulas desta semana. Afinal, a maioria vai ser apenas de despedida dos professores e tal.

— Nesse caso, está tudo bem. Então, quer dizer que você poderá trabalhar em tempo integral agora?

— Opa, já vai começar a exploração! — sorri. — Sim, poderei trabalhar o período inteiro.

 — Ótimo, porque estou mesmo precisando da sua ajuda. Mas, acho que ainda não vai ser o suficiente, preciso contratar mais pessoas para dar conta dos pedidos tanto na fábrica quanto na loja. Bem, vamos indo.

— Ah, sim. Espera um minuto que vou vestir algo mais adequado.

Ele me olhou concordando com a cabeça. Não podia ir trabalhar de shortinho e chinelo, não é mesmo? Embora, isso não fosse uma má ideia, afinal, seria bem confortável.

— Está certo. Te espero na sala.

Quando entrei na sala, vinte minutos depois, Edu conversava animadamente com Marcela e Aninha. Fui em direção a porta e escancarei.

— Vamos? — perguntei.

Observei, curiosa, Marcela encaminhar-se para a porta seguida por Edu e Ana. Ela sorriu um pouco encabulada e meu coração saltitou encantado, ficava ainda mais linda quando isso acontecia.

— Acabei de contratar a Marcela — Edu informou alegremente.

— Hein?!

— Conversamos, enquanto você se trocava. Falei que precisava de trabalho já que saí de casa e não pretendo ficar aqui vivendo de graça, então ele foi muito legal em me dar o emprego. Se tudo correr bem, logo poderei alugar uma casa ou um quarto, sei lá, e te de deixar em paz — Marcela explicou.

Estava decidido! Eu iria matar o Edu.

Nem bem Marcela havia chegado àquela casa e ele já estava dando jeito dela ir embora. Safado! Cretino! Irmão da onça! Se bem que, não seria tão ruim assim, afinal, ela estaria perto de mim todos os dias. Mordisquei o lábio irritada comigo mesma por estar sentindo aquele misto de raiva e alegria, afinal, a mulher não me dava a menor bola.



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