CAPÍTULO 9

MARCELA

Aquele filme mexeu comigo.

Joana tinha razão, se eu soubesse do que se tratava, provavelmente, nunca teria assistido. No entanto, ao longo da história que ali se passava, fui me perguntando:

“O amor realmente pode acontecer assim? ”.

Qualquer que fosse a resposta, tentei me convencer de que não interessava e desatei a chorar, pois sou manteiga derretida com finais felizes, mesmo com comédias.

Lentamente, enxuguei as lágrimas, pois estava me sentindo um pouco ridícula diante do olhar confuso que Joana me lançou um minuto antes. Estávamos sentadas lado a lado e, mesmo não a tocando, sentia o calor que emanava do seu corpo e recordei, pela milésima vez, o beijo que trocamos dias antes.

Fechei os olhos tentando afastar a lembrança daquele beijo, mas ela se repetia na minha mente loucamente até que, não aguentei mais fingir que não queria revivê-la.

Pousei meu olhar em Joana. Ela mantinha os olhos fixos na TV. Senti, novamente, o desejo de provar o beijo dela.

Tinha que saber. Precisava descobrir se o que temia realmente estava acontecendo. Delicadamente puxei seu queixo forçando-a a me olhar. Aproximei—me lentamente e deixei que ela se apossasse de meus lábios.

Assim que a sua boca pousou sobre a minha, percebi que estava perdida.

Eu me apaixonei.

Estava completamente apaixonada por ela. E o pior, é que nem sabia como isso tinha acontecido. Justo eu que tanto odiava a ideia de ver duas mulheres ou dois homens juntos, que havia dito para ela no dia anterior que jamais entenderia uma relação homoafetiva, havia me apaixonado por uma garota, havia me apaixonado por ela.

Deixei que me envolvesse em seus braços e me apertei mais a elas desejosa de poder me fundir nela. Nossas bocas estavam unidas em um beijo terno e delicioso.

Eu me repetia mentalmente “Estou perdida, estou perdida!”.

Então, o som insistente da campainha arrancou-me do paraíso ao qual aquele beijo havia me levado. Nossos lábios se separaram. Apenas nossos olhos mantinham contato e ficamos assim por alguns segundos. Sentia como se aquele olhar negro e indecifrável pudesse ver através de minha alma, então nossos corpos se afastaram e, em silêncio, ela foi abrir a porta.

JOANA

Fui em direção a porta disposta a matar o safado que atrapalhou o melhor momento da minha vida.

Mas seria possível?

A garota havia me beijado por livre e espontânea vontade, não estava bêbada, drogada ou algo equivalente e, também, não estava se vingando de ninguém. Mas, como sou super sortuda, tinha que aparecer um idiota para atrapalhar meu sonho!

Escancarei a porta e quase caí para trás ao ver meus pais e os da Marcela ali parados.

— Vixe! Danou-se! — falei baixinho.

O prefeito me empurrou para o lado e todos adentraram no apartamento.

— Educação passou longe, hein? — comentei me recuperando do susto.

Fechei a porta e pude ver, quando me voltei para eles, o olhar de susto que Marcela tinha estampado no rosto. Sentei-me ao seu lado e ela envolveu minha mão entre as suas. Nos rostos de nossos pais podíamos ver que aquela conversa não seria nada agradável.

O cinismo surgiu em meu sorriso e na pergunta que fiz a seguir.

— Então a que se deve essa tão ilustre visita ao nosso humilde lar?

Com o canto do olho vi Marcela esboçar um sorrisinho. Ela era tão fera quanto eu e aquele olhar assustado foi apenas pela surpresa de vê-los ali, já havia dado lugar a um olhar de desafio.

Seria possível que me apaixonasse mais ainda por ela? Achava que sim.

Sabia que, quando aquela confusão toda passasse, ela talvez se arrependesse daquele beijo recém trocado entre nós ou, talvez não. Meu coração torcia pelo “talvez não”.

O prefeito abriu a boca para falar, mas meu pai adiantou-se.

— Filha, quando o Sr. Felipe foi a nossa casa agora a pouco e disse que você havia invadido sua residência e sequestrado a filha dele ontem à noite. Sua mãe e eu não acreditamos na hora, mas, agora que vemos essa moça do seu lado, não há mais como negar que você fez isso.

— Não invadi lugar algum — informei com voz fria e cortante.

— Como não? — rugiu o prefeito.

— Não invadindo, oras. Entrei com as chaves!

— Com as chaves?! — meu pai questionou e percebi a curiosidade que a informação lhe causou.

— Sim. E daí?

— Como as conseguiu?

Marcela se empertigou ao meu lado, a mão que segurava a minha aumentando a pressão em nosso contato.

Encarei o prefeito, ele estava terrivelmente ameaçador. Seus olhos estavam muito irritados e vermelhos, uma óbvia consequência do banho de álcool que Aninha lhe proporcionou. Mas, havia vários hematomas em seu rosto também. Havia reparado, quando se encaminhou para o sofá, que mancava um pouco e deixava leves caretas escaparem quando se movimentava mais bruscamente. Julguei, pela informação que Cris havia me dado horas antes, que o pai da Aninha havia feito dele um bom saco de pancadas.

Notei que estava tentando se conter, principalmente, pela presença dos meus pais ali. Fosse o contrário, com certeza, já teria pulado no meu pescoço como havia feito na noite anterior.

Não me contive diante daquele olhar vidrado e me voltei para Marcela cochichando em seu ouvido:

— Marcela, seu pai tem raiva? Olha só, ele está até espumando pela boca.

Ela gargalhou gostosamente. Foi o som mais bonito que já ouvi em toda minha vida. Nossos pais nos fitavam sem entender o que se passava.

O pai dela insistiu:

— Se você entrou com as chaves, então deve tê-las roubado!

Meu pai virou-se para ele.

— Minha filha não é ladra!

Sr. Felipe, o prefeito, abriu a boca em protesto, mas Marcela e eu nos adiantamos.

— Nunca roubei nada em minha vida — pontuei. — E não sequestrei ninguém. Marcela veio comigo por…

— Vontade própria! — completou.

Ela empinou o nariz, no seu melhor jeito metido de ser.

— Eu dei as chaves para Joana — mentiu, um sorriso malicioso se formando nos lábios ao encontrar o olhar horrorizado de sua mãe.

— Por quê? — sua mãe perguntou em um sussurro.

Marcela exibiu um sorriso debochado e aumentou a pressão na minha mão.

— E para que mais seria, mamãe? Para que Joana pudesse entrar durante a noite e dormir comigo.

Certo! Ela pegou pesado com isso, mas até que estava sendo divertido chocar aquela gente. Sua mãe ofegou fortemente e pensei que teria um troço, mas não passou disso. Mas, Marcela ainda não havia acabado.

— Sinceramente, papai, achou mesmo que eu iria continuar a morar naquela casa depois do que você me fez? Caia na real! Tenho dezoito anos, sou dona do meu nariz e você nunca vai me obrigar a casar com aquele mauricinho idiota. E, como eu já te disse, você nunca mais vai me bater de novo! — gritou se colocando de pé. — Agora, se não tem nada melhor para fazer, vá embora daqui e nos deixe em paz!

— Marcela! — ele gritou, sua voz perigosamente ameaçadora, e avançou em nossa direção.

Me coloquei de pé em um pulo e parei à frente dele. Pus a mão em seu peito para pará-lo, com um movimento violento ele a afastou.

— Tire suas mãos de mim sua… — engoliu as palavras diante do olhar ameaçador de meu pai que havia ido se colocar do meu lado.

Respirei fundo, a tenção dominando meu corpo. Mas, não me deixaria intimidar por ele.

— Ouça bem! Marcela só irá embora daqui quando quiser. Nem você, nem ninguém, irá força-la a sair desta casa se ela não quiser.

Dei um passo atrás colocando um pouco mais de distância entre nós.

— Agora, espero que saia daqui por vontade própria e sem fazer confusão, do contrário, chamarei a polícia. E não me importa que você seja o prefeito, que tenha influência ou sei lá mais o quê! Trago em meu rosto a prova de que você me agrediu e tenho duas testemunhas disso, uma das quais, é a sua própria filha.

Notei a expressão de surpresa no olhar dos meus pais. Era compreensível. Uma semana antes, jamais teria imaginado que um homem que aparentava ser tão gentil e honrado como o Sr. Felipe Farias, o prefeito daquela cidadezinha, pudesse ser capaz de agredir alguém.

Estendi o braço e apontei para a porta sorrindo com ironia.

— Acredito que o prefeito, este homem “respeitável”, “honrado” e de “família” não irá apreciar esse pequeno escândalo, não é? Mesmo pequeno, talvez, sua carreira política nunca se recupere. Sabe como sãos os eleitores hoje em dia, não esquecem mais desses “pequenos detalhes” que surgem sobre a vida dos políticos.

Ele, simplesmente, bufava de puro ódio. Ainda tentou avançar em minha direção, mas meu pai se interpôs entre nós. Agarrou-o pelo braço e o levou até a porta empurrando-o para fora. Imaginei que ele se deixou levar por não querer se meter em uma segunda briga àquele dia. Uma briga da qual sairia perdendo, pois meu pais tinha um metro e noventa de altura e músculos tão maciços quanto bigornas.

O prefeito gritava os piores insultos que já ouvi, enquanto sua esposa ainda olhou-nos com tristeza antes de fechar a porta atrás de si e acompanha-lo.

Voltei a me sentar ao lado de Marcela. Um silêncio incômodo reinava no ambiente. Meus pais nos olhavam fixamente.

— Vocês… — Marcela começou a dizer para eles — Não vão falar nada?

Deixei um sorriso de escárnio escapar.

— Não se preocupe, Marcela, o silêncio é o máximo que irá conseguir deles. — ironizei. Estava ferida por sempre receber o silêncio deles e nada mais. Sabia que me amavam, mas também sabia que não me aceitavam e o fato de nunca colocarem isso em palavras me magoava muito mais.

Que falassem! Seria doloroso, mas seria sonoro e eu perderia de vez a esperança que habitava meu coração de que um dia me aceitassem.

Meu pai baixou os olhos e, como sempre, minha mãe começou a chorar. Não tinha quem aguentasse. Pior que receber os insultos e ouvir o lamento, era o silêncio deles.

Com um nó na garganta, fui para o quarto e deitei na cama. Não chorava, nem tinha vontade de fazê-lo. Nem neles pensava. Olhava para o teto e tudo que via era o vazio. Matutava como seria minha vida a partir dali.

Sabia que Edu estaria sempre comigo e me ajudaria nessa caminhada, mas aonde eu queria chegar era o ponto. Um lugar já tinha definido como objetivo, queria chegar ao coração de Marcela.

Depois daquele beijo, tinha certeza que ela me queria pelo menos um pouco e, mesmo que fosse pouco, faria com que isso se tornasse muito.

Somente muito tempo depois que estava ali perdida em meus pensamentos, é que Marcela surgiu à porta do quarto. Me observou em silêncio por um longo tempo, os braços cruzados, a testa enrugada como se estivesse tomando uma decisão.

Caminhou até a cama e sentou-se ao meu lado. Passou a mão em meu rosto e curvou-se em minha direção dizendo:

— Acho que fomos interromp…

Eu só podia estar no paraíso, ela ia me beijar de novo, pelo menos, deu a entender isso, pois nossas bocas ficaram a alguns centímetros e…

— Opa, desculpe! Acho que cheguei em má hora! Digo, boa! — Eduardo riu, dando de ombros e enfiando as mãos nos bolsos da calsa.

Marcela se afastou e caminhou até a porta dizendo:

— Que nada, Edu. Você chegou em ótima hora, sua irmã precisa de você — e saiu.

Novamente, o desejo assassino surgiu em mim. Queria matar, trucidar, esganar e sei lá mais o que queria fazer com ele.

— Eduardo, seu chato! Que hora você tinha para aparecer!

— Poxa, Joana! Como que eu ia saber que ia encontrar vocês duas aos beijos aqui?!

Sentei na cama.

— Nós não estávamos aos beijos porque você atrapalhou, sua mala!

— Ihhh… Está estressadinha, é? Está naqueles dias?

Bufei, lhe enviando um olhar assassino.

— E como é que você queria que eu estivesse?

— Tá, tá! Desculpa! — sentou ao meu lado na cama. — Agora, me conta o que os nossos pais e o ilustríssimo casal municipal estavam fazendo aqui.

Suspirei. Já tinha até esquecido disso.

— E você ainda pergunta? Eles vieram me acusar de invasão e sequestro.

— Como assim?

Contei tudo que tinha acontecido para ele que, mais uma vez, quis ir tirar satisfações com o prefeito e, claro, não deixei. Ficou andando de um lado para o outro do quarto com os punhos fechados e resmungando meio mundo de insultos contra o pai de Marcela. Isso já estava me dando agonia.

— Dá para parar? Já estou ficando tonta, senta aqui.

Ele obedeceu e ficamos nos encarando por um longo tempo. Então, me abraçou forte, saiu desejando boa noite e dizendo que daríamos um jeito em toda aquela confusão. Antes de fechar a porta completamente, voltou a enfiar a cabeça para dentro do quarto.

— Eu não te disse que ela curtia?!

— Palhaço! — atirei o travesseiro nele que fechou a porta antes que este o atingisse. Ouvi suas gargalhadas se distanciando no corredor, enquanto relembrava o sabor dos lábios de Marcela com um sorriso bobo.



Notas:



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