MARCELA

Estava cansada, muito cansada mesmo.

Não aguentava mais os meus pais tentando controlar a minha vida. Tinha dezoito anos, sabia muito bem o que fazia e o que queria fazer. Mas, desde que me entendia por gente, eles tentaram controlar as roupas que vestia, as escolas que frequentava, os amigos.

Até os meus amigos!

Vê se pode!

Sempre foi “Marcela, não faça isso!”, “Marcela, não faça aquilo!”, “Você é a filha do prefeito, dê-se o respeito!”.

E daí, que era a filha do prefeito? E daí, que tínhamos certo status pelo cargo do meu pai? Tudo que queria era poder me divertir um pouco de vez em quando, sem ter nenhum empregadinho idiota no meu pé, vindo me buscar para ir para casa a mando de meus pais às dez horas da noite, como se tivesse dez anos de idade.

— Está na hora de você se comportar, Marcela! — minha mãe gritou.

Engoli em seco. Meu orgulho estava ferido, não por ser repreendida por ter, mais uma vez, escapado para ir a uma festa. Festa que havia sido no fim de semana anterior e só haviam descoberto naquele instante pela indiscrição daquele imbecil que estava na minha frente.

Aldo, era seu nome.

Me lembrava vagamente de já tê-lo visto com seu pai em um ou dois jantares organizados pelos meus pais. Costumava não prestar muita atenção nesses eventos que sempre considerei entediantes. Geralmente, colocava os fones de ouvido e dava um jeito de me trancar no quarto pelo resto da noite. Entretanto, sua presença estava se tornando constante em minha casa nas últimas semanas e fingi não notar os olhares compridos que me dava, assim como o olhar de satisfação de meu pai.

Não era idiota, sabia muito bem que estavam tentando me empurrar aquele babaca que havia se queixado de meu comportamento na festa que havia ido no fim de semana anterior. Não o tinha visto por lá, mas suspeitava que andava me espionando, já que não me dava ao trabalho de lhe dar qualquer atenção quando tentava puxar assunto comigo.

— Só fui a uma festa — informei. — Não há razão para fazerem todo esse escarcéu.

Meu pai fincou as unhas na calça que usava, seu rosto estava vermelho devido a raiva e havia uma veia saltitante em sua testa. Tínhamos o mesmo gênio difícil e nossas conversas, na maioria das vezes, acabavam se tornando discussões. Geralmente, eu saia perdedora delas com algum castigo ou mesada cortada.

— Você não foi só a uma festa, você nos desobedeceu. Estou tentando me reeleger, mas fica difícil conquistar os eleitores quando a minha filha se embebeda e arranja confusão em festas cheias de adolescentes bêbados!

O mirei com um nó crescente em minha garganta.

— Em primeiro lugar, — engoli o choro que ameaçava me dominar —, não fiquei bêbada, pois mal tomei um refrigerante. Em segundo lugar, é você que está se candidatando, não eu. Em terceiro e último lugar, esta conversa já deu o que tinha que dar. Fui!

Saí batendo a porta sem lhes dar chance de retrucar. Ainda visualizei sua boca aberta e o dedo em riste que me apontava, junto com o olhar vazio do almofadinha que estavam tentando me empurrar. Nos últimos tempos, as coisas naquela casa estavam bem complicadas para o meu lado. Tudo bem, admito que sempre fui um pouco rebelde, mas eles não ajudavam muito também.

Meu pai era completamente obcecado pela carreira política, tinha planos de chegar ao senado e minha mãe vivia para ele e amava o status que a profissão dele lhe proporcionava. Ele andava procurando investidores e aliados por todos os lados e chegou ao cúmulo de me enviar para uma viagem de um mês aos Estados Unidos como acompanhante da filha de um colaborador, justo durante as semanas de provas finais.

Claro que me diverti, adoro viajar, ainda mais sem minha família, mas o resultado disso, foi que reprovei todas as disciplinas. Super responsável como gestor e muito irresponsável como pai.

O sol forte tocou minha pele com impetuosidade quando alcancei a rua. Respirei fundo algumas vezes, recostada ao portão de casa e engoli o choro. De modo algum, iria me deixar abater por aquela conversa estupida. Precisava conversar com alguém e não existia pessoa melhor no mundo para me ouvir do que a Aninha, minha melhor amiga.

Olhei para o relógio em meu pulso. Passava um pouco das três da tarde, conhecendo ela só podia estar na praça àquela hora. Era ponto de encontro de toda a galera jovem da cidade, pois, além de ser no centro, ficava próxima a três grandes colégios, o que fazia com que estivesse sempre cheia de gente.

A avistei de longe, baixinha e magra com os cabelos, agora ruivos, presos num rabo de cavalo, do jeito que sempre usava, assim como eu. Enquanto me encaminhava para lá, recordei que havia cerca de três anos que não via a cor natural de seus cabelos, nem me lembrava mais qual era. Ela estava conversando com aquela garota esquisita, a Joana, pelo menos achava que era assim que se chamava, pois sempre tive péssima memória para nomes.

A garota tinha péssima fama e sempre me perguntei o motivo de Aninha sair com ela. Éramos amigas de infância e Ana sempre foi o tipo que tem um milhão de amigos. Nunca me importei com suas outras amizades, mas não gostava especificamente daquela amizade com Joana. Algo nela me desagradava terrivelmente.

Fiz um gesto com a mão, a chamando, enquanto cruzava a rua. Ela olhou em minha direção e devolveu o gesto quando me aproximei, me convidando para me juntar a elas. Balancei a cabeça, olhando de esguelha para a sua companheira, não tinha a menor intenção de ficar perto dela. Ana logo percebeu isso e veio ao meu encontro. Sentamos em um dos muitos bancos da praça, à sombra de uma árvore.

— O que aconteceu? Por que está com essa cara?

— Adivinha — deixei uma careta triste escapar.

— Brigou com seus pais de novo? — questionou, franzindo a testa.

Suspirei entre cansada e irritada. Ultimamente, nas conversas que vinha tendo com Aninha, o assunto se limitava as discussões que tinha com meus pais.

— Para variar, sim.

— Que foi dessa vez? — quis saber, enquanto arqueava uma sobrancelha ruiva.

— Te pago um sorvete se adivinhar — tentei sorrir.

Ela fez cara de pensativa, pôs a mão no queixo, olhou para um lado, depois para o outro, para baixo e para cima. No fim, fez uma careta e pôs as mãos na cintura. Eu ria às gargalhadas dessas caras e bocas que ela costumava fazer, mas naquela hora tudo que consegui esboçar foi um sorriso singelo.

— Não faço a mínima ideia — riu, um pouco sem graça ao perceber que a palhaçada não havia surtido efeito.

— Falaram o de sempre e depois tentaram me empurrar aquele imbecil riquinho que anda frequentando nossa casa. É filho de um colaborador político do meu pai. Percebi a intenção deles, questionei, e isso deu margem para outros assuntos. O carinha me viu na festa do Carlos, semana passada. Não me pergunte como, pois não o vi por lá. O fato é que comentou com eles, deixando claro que havia me metido em confusão por estar bêbada! Mal toquei em um copo! — deixei um suspiro indignado escapar. — Saí de lá batendo a porta e dizendo que nem morta iria namorar aquele bocó.

Aninha deixou uma risada leve escapar.

— Amiga, a coisa está tão feia assim para você? Até teus pais estão te arranjando homem! — caiu na gargalhada.

— Deixa de ser palhaça! — reclamei, tentando segurar o riso, começava a voltar ao meu normal apenas por estar ao seu lado.

— Ah, me diz, ele é gatinho? — provocou.

— Palhaçada! Meus pais querendo me empurrar um mané e você aí rindo e perguntando se ele é gatinho.

— Ah, para de fazer suspense, Celinha! É bonito ou, não é?

Deixei um suspiro resignado escapar e revirei os olhos para ela. Sabia que repetiria a pergunta sempre que tivesse oportunidade até que eu respondesse com sinceridade.

— Ai, está bom, é sim! Muito gato, mas não me interessa.

— Se é gatinho, você bem que podia tirar uma casquinha — observou com um sorriso malicioso.

— Já disse que não. Não vou namorar o cara só porque meus pais decidiram que ele seria bom para mim.

— Ai, está bem! — deu de ombros.

Ela brincava, mas também tinha a mesma opinião que a minha, jamais se envolveria com alguém por imposição da família. Levantou-se e pegou em minhas mãos, me puxando com um pouco de força.

— Vem, como não adivinhei, te pago o sorvete — piscou marota.

Deixei-me conduzir por ela até a sorveteria. Quando passamos pela grama onde a tal de Joana estava sentada com alguns meninos, Aninha me deixou por alguns instantes e foi até lá convidar a garota para ir conosco. Felizmente, ela não aceitou.

Aquela menina não me agradava em nada, principalmente, depois dos comentários que ouvi. Lembro de já termos estudado juntas no sexto ano, mas nunca nos falamos, algo sempre me impediu.

— Não entendo por que você é amiga daquela garota, Aninha — comentei entre uma colherada e outra no meu sorvete.

Estávamos sentadas em uma das mesas da calçada, o que nos permitia uma visão clara de Joana que havia se deitado na grama com a cabeça apoiada nos braços. Recebi um olhar inquiridor da minha amiga e, com um gesto de cabeça, indiquei a direção de onde viemos minutos antes. Os olhos dela brilharam em compreensão.

— Ela é legal. Você deveria conhece-la. Acho que iriam se dar bem.

Fiz uma cara horrorizada.

— Eu e ela? Amigas? Jamais!

— Ué, por que não? — parou a colher a meio caminho de sua boca.

— Ah, Aninha, você sabe muito bem o que falam dela.

Ela se fez de desentendida.

— Não, não sei. Me conte.

Sabia o que ela estava fazendo. E sabia, também, pelo modo que me olhou, que iria fazer com que me arrependesse das minhas palavras, mas continuei.

— Ora, todo mundo sabe que ela é sapatão! Não chego perto dela de jeito nenhum — respondi.

Aninha parou de tomar o sorvete no mesmo instante e lançou a colher sobre a mesa com um estrondo. Ficou me olhando durante um longo tempo, em que cogitei a possibilidade de lhe dar um beliscão para que acordasse. Sem mais, nem menos, levantou da mesa e disse com voz carregada de raiva:

— Embora muitas pessoas não se importem, a palavra “sapatão” é bastante agressiva, Marcela. Principalmente, se for pronunciada da maneira que você falou. Lésbica, a Joana é lésbica. E isso não reduz o fato de que ela é uma pessoa maravilhosa, que de modo algum, merece ser tratada como está sendo pelas pessoas dessa cidade só porque resolveu assumir sua condição sexual. Estou decepcionada com você por falar assim e por se entregar a esse preconceito bobo — e me deu as costas, indo embora com passos largos e ligeiros.

Nunca me senti tão envergonhada em toda minha vida. Aninha era o tipo de pessoa que levava tudo na brincadeira, mas quando ficava séria, sabia perfeitamente como me deixar envergonhada de meus atos. Ela tinha razão, não podia julgar a menina apenas pelos comentários que ouvi, mas isso não significava que tinha que entender e aceitar.

De cara feia para mim mesma, resolvi ir atrás dela e pedir desculpas. Já havia tido brigas demais por um dia e tudo que menos precisava naquele momento era perder o apoio da minha melhor amiga.

JOANA

Quinta-feira à tarde, aquele calor de rachar até asfalto, estava um pouco triste por tudo que andava me acontecendo desde que me assumi lésbica para minha família um ano antes.

Nunca me importei com o que as pessoas falavam, a vida era minha e não dizia respeito a ninguém. Mas, com a minha família era diferente, eles me importavam e o seu apoio também. No entanto, as coisas dentro de casa eram bem mais complicadas.

Felizmente, tinha a Aninha do meu lado, uma amiga que surgiu no momento mais difícil de minha vida, assim como, a calmaria após a tempestade. Depois que me assumi, muitas pessoas se afastaram de mim, pessoas que tinha como grandes amigas e no fim, deu nisso. A Aninha era uma das pessoas, as quais, menos esperava apoio. Ao contrário dos que já eram amigos e se afastaram como se tivesse uma doença contagiosa, ela se aproximou e tornou-se amiga.

Enfim, naquela tarde, ela me convidou para dar uma volta e, como sempre fazíamos, paramos na praça e ficamos conversando sentadas na grama em baixo de uma árvore, observando o tempo passar, vendo a grama crescer como ela gostava de dizer.

— Gosto muito de você, sabia? — falei, deixando o desejo de expressar meus sentimentos me tomar. Me sentia especialmente solitária àquele dia e queria que soubesse o quanto era importante para mim.

Ela sorriu um pouco encabulada.

— Também gosto muito de você, Jô!

— Mas você tem um terrível defeito — pontuei.

Ela fez uma carinha curiosa.

— E qual seria?

— Ser hétero! — respondi com um sorriso safado e lhe dei uma piscadela.

 Ela caiu na gargalhada. Sempre adorei seu bom humor, estava sempre sorrindo e brincando. Para ela, nunca havia tempo ruim. Maravilhoso!

— Poxa, Jô, se você fosse homem até que eu te daria uma chance — deixou um sorrisinho maroto escapar.

— Fazer o quê? Ninguém é perfeito! — fiz cara de desconsolada e arranquei mais risos dela.

Deitamos na grama olhando para o céu que estava excepcionalmente límpido naquele dia. Ela parou de rir e senti seu tom de voz mudar tornando-se sério.

— Então, como vão as coisas na sua casa?

— Ah, estão indo. Devagar, mas indo. Meus pais já estão se habituando ao fato de que a filha caçula deles é lésbica. Meu pai até faz comentários, às vezes, e pergunta a minha opinião quando vê uma mulher bonita na TV.

Ela riu outra vez e a acompanhei, curtindo a leveza que era estar em sua presença.

— Mas, a minha mãe ainda reluta um pouco em aceitar, afinal, sempre quis me ver casada e tal. Um dia, comentei com ela que me casaria, sim, mas com uma mulher que me amasse. Ela quase desmaiou. Você precisava ter visto, ficou branca como cera.

Ela sorriu mais uma vez, tornando um pouco mais evidentes as poucas sardas que tinha no rosto. Os olhos verdes espelhando simpatia.

— Relaxa, Jô, ela só precisa de mais um tempo para se acostumar.

— É… Só me pergunto quanto tempo mais.

Sentei na grama e fiquei olhando as pessoas passarem na rua. Estava muito quente, mas um vento suave corria onde estávamos. Olhei para o lado e vi a garota dos meus sonhos vindo em nossa direção.

Linda, como sempre.

Os cabelos negros e lisos presos num rabo de cavalo caindo até o meio das costas, os olhos castanhos escondidos por óculos escuros, usando uma camiseta branca e uma saia curtíssima que me deixaram babando.

Era apaixonada por ela desde que estudamos juntas na sexta série. Mas, ela nunca me notou e, com certeza, nem devia se lembrar da minha existência. Além disso, apesar de linda sempre foi super metida, se achava só porque era a filha do prefeito. Certo que ele não era apenas isso, era dono de metade da cidade e muitas outras propriedades na região também.

Como sempre fazia quando estava com a Aninha, me ignorou e a chamou dizendo que precisava muito falar com ela. A Ana, como era de se esperar, ficou um pouco sem graça de sair e me deixar só, mas lhe disse que podia ir e que ficaria mais um tempinho por ali curtindo a sombra e a grama.

Elas foram para um dos bancos mais afastados da praça e eu lá, olhando de longe e babando por aquela metida. Não demorou muito, dois dos poucos amigos que me restaram, apareceram e se juntaram a mim.

— Jô, tudo bem? — Alvinho me questionou sentando-se ao meu lado. Em outra época, havíamos tentado namorar, mas nunca daria certo. Ele não podia ver um rabo de saia e eu também não. Claro que naquela época, ainda fingia ser uma garota normal.

Sapequei um beijo em sua bochecha, enquanto respondia um sim.

Davi, seu irmão caçula, sentou ao seu lado e piscou para mim dando um sorriso largo. Era mudo, mas isso nunca foi empecilho para nossa amizade, nem para que fosse um grande conquistador. As garotas viviam à volta dele como formigas em volta do açúcar.

— E aí como anda a faculdade? — perguntei.

Alvinho se jogou na grama apoiando a cabeça nos braços.

— Ah, o de sempre. Muito trabalho para fazer, muito o que estudar. Às vezes, minha mente dá um nó, mas gosto bastante. Sinto sua falta por lá, devíamos estar estudando juntos.

Lhe dirigi um sorriso carinhoso. Era bem verdade o que dizia, mas havia reprovado o último ano do Ensino Médio graças a toda a confusão que a minha vida se tornou. Tive tantos problemas com meus irmãos e pais que muitas foram as vezes em que me recusei a sair do quarto para encarar o mundo. Acabei reprovando por número excessivo de faltas. Então, estava repetindo o último ano, desejosa de que acabasse logo. O que, para minha alegria, seria na semana seguinte.

Estar na praça no meio da tarde em dia de semana era raro para mim, pois dedicava todo meu tempo livre aos estudos para o vestibular. No entanto, Aninha sabia ser convincente e eu precisava mesmo de um tempo dos livros.

— Estaremos juntos no ano que vem — afirmei e ele me dirigiu um sorriso sincero.

Conversamos muitas besteiras e rimos muito depois disso. Ele me falava sobre as paqueras na faculdade e eu de algumas ficantes. Davi, claro, nos superava e muito os números de ficantes.

— Não sei como ele consegue — Alvinho falou. — As meninas se jogam em cima dele como loucas.

Davi, através de gestos, nos informou com olhar sapeca, que a razão para tal era o seu poderoso charme. Ri com gosto da cara que Alvinho fez, então notei que Aninha e Marcela vinham em nossa direção. Aninha a deixou por um instante e veio me convidar para tomar um sorvete com elas. Até que eu queria, mas sei ficar no meu lugar. Sabia, pelo modo como Marcela me olhou, que ela não queria a minha presença, então recusei educadamente o convite.

Me distraí outra vez com os rapazes até que vi Aninha sair da sorveteria que ficava em frente à praça. Estava com cara de poucos amigos, havia deixado Marcela sozinha na mesa. Atravessou a rua como um pequeno furacão, os cabelos vermelhos parecendo chamas ao refletir o sol forte da tarde, e nem olhou para onde estávamos.

Não perdi tempo, despedi-me dos garotos e fui correndo atrás dela. A encontrei sentada na calçada da sua casa, emburrada. Sentei-me ao seu lado.

— Oi — falei.

— Oi.

— Por que essa cara, Ana?

Ela fez uma careta olhando para mim.

— Não é nada de mais. É que a Marcela, às vezes, me deixa nervosa com suas atitudes.

Fiquei calada. Não sabia o que dizer, afinal, ela não havia me contado o que realmente tinha acontecido. Ficamos sentadas em silêncio por um tempo até que a metida da Marcela apareceu e me olhou como se eu fosse transparente. Aninha estava visivelmente incomodada e ficou alternando o olhar entre nós duas por alguns segundos.

Marcela pareceu se tocar que o jeito que estava me encarando era estranho e incômodo, desviou o olhar e disse, me ignorando mais uma vez:

— Aninha, podemos conversar por um instante?

Pela expressão sombria no rosto da Ana, vi que o assunto parecia sério e, como não me dizia respeito, fiz questão de ir levantando e me despedindo dela, mas a ruiva impediu meu afastamento. Segurou minha mão e, dando um leve puxão, me fez sentar na calçada novamente.

— Fica — pediu. — Se for o que estou pensando, o que Marcela tem para falar diz respeito a você também. Certo, Marcela?

Nunca vi a metidinha ficar tão sem graça como naquele momento. Ela ficou branca como cera, até pensei que estava passando mal. Mas, o pior, era que não estava entendendo nada. O que eu tinha a ver com a briga delas?

Obedeci minha amiga e esperei para ver. Marcela passou um bom tempo nos olhando, como se estivesse decidindo algo.

— Eu… eu… ar… eu…

Todos aqueles “eu” já estavam me tirando do sério, pois nunca pensei que aquela menina pudesse ser tão insegura. Ana tentou ajudar:

— Você…

Marcela revirou os olhos e bateu as mãos na lateral do corpo, impaciente.

— Ai, Aninha, quero te pedir desculpas por tudo que disse na sorveteria. Pronto, é isso!

Ana deu um meio sorriso satisfeito.

— Por mim, você está perdoada — Marcela esboçou um sorriso que se desfez quase que imediatamente. — Mas, ainda existe outra pessoa a quem você deve desculpas.

— Aninha… — falou entredentes.

— Estamos esperando — disse uma Ana irredutível.

Marcela olhou para os lados, como se buscasse uma saída, mas, por fim, virou-se para mim.

— Joana, certo?

Inclinei a cabeça em assentimento, completamente confusa.

— Quero te pedir desculpa por ter chamado você… Ai, não acredito que estou fazendo isso! — revirou os olhos.

Fiquei sem entender. Ela queria me pedir desculpas por ter me chamado?

— Sim? — tentei incentivá-la a continuar.

O olhar da Ana era severo e ao mesmo tempo encorajador.

— Há alguns minutos, na sorveteria, te insultei.

Me coloquei de pé no mesmo instante, ela recuou um passo, mas continuou.

— Chamei você de sapatão. Por isso, quero que, por favor, aceite minhas desculpas.

A simples palavra “sapatão” fez meu sangue ferver.

O que ela pensava que estava dizendo?

Não que me incomodasse com essa palavra, afinal, era mesmo sapata. Mas, há pessoas que sabem faze-la se tornar o pior dos insultos e foi assim que pareceu aos meus ouvidos quando ela falou. Olhei para a Aninha, ela retribuiu o olhar e compreendi a razão de estar tão emburrada.

Fiquei comovida.

Ela era uma amiga de verdade. Somente uma amiga verdadeira se incomodaria ao ver sua amiga ser insultada e a defenderia. Sim, era óbvio que ela havia me defendido, caso contrário, aquela metida não teria vindo com o rabinho entre as pernas pedir desculpas.

Senti raiva de mim mesma naquele momento, pois sempre gostei daquela menina linda e metida. Sempre soube que ela sequer sabia meu nome. Sempre trancafiei no fundo de meu coração a paixão que sentia, pois sabia que, para ela, eu era invisível. Mas, não posso negar que me senti terrivelmente decepcionada e triste por saber que ela, que nunca sequer me falou um “oi”, falava assim de mim pelas costas.

Era bem menos do que os meus irmãos falavam na minha cara, mas, ainda assim, magoou. Ana se colocou em pé também e passei o braço envolta da sua cintura e a envolvi com o outro em um abraço um pouco esquisito, dei-lhe um beijo no rosto e saí sem, ao menos, olhar para Marcela.

Em casa, chorei abraçada ao meu travesseiro o resto da tarde. Também, o que podia esperar de alguém como ela? Caí em mim. Por que estava derramando as poucas lágrimas que me restaram por alguém que nunca nem me olhou?

— Ela que se dane! — gritei para o travesseiro e o atirei no chão.

Enxuguei as lágrimas, tomei um banho longo, coloquei um vestidinho azul curto, uma maquiagem leve e saí.

— Onde vai? — meu pai questionou.

— Até a casa da Ana.

— Está arrumada demais para uma visita à sua amiga, não acha?

Deixei um suspiro irritado escapar. Sabia muito bem no que ele estava pensando. Com certeza, julgava que tinha algum encontro. Podia ver em seu olhar que torcia para que eu não causasse outro escanda-lo naquela família.

Havia me arrumando apenas para me sentir bem, sem segundas intensões.

— Não se preocupe, vamos apenas comer uma pizza — menti, mas depois concluí que seria uma boa ideia ir à pizzaria.

A noite estava muito agradável, mas um pouco quente, assim como o dia. Quando me dirigia para a casa da Ana, meu celular tocou.

Sorri para foto da bela loira que surgiu no visor.

— Oi, Pri!

— Oi, meu bem! A fim de ir a uma festa?

Priscila era uma de minhas ficantes. Morava na cidade vizinha e era três anos mais velha que eu. Sempre que nos víamos faíscas surgiam e pensei que não haveria nada melhor para animar minha noite do que mergulhar nos lábios e corpo daquela loira de parar o trânsito.

Aceitei, claro!

Desisti de ir à casa da Ana e me dirigi para a praça onde Priscila ficou de me pegar.



Notas:



O que achou deste história?

6 Respostas para 1.

  1. Ameiiiiii!!! Gente to ate emocionada, incrivel e envolvente do começo ao fim, obg tattah novamente

  2. Eita nós! Marcela escrota, Ana maravilhosa, Joana guerreira! Esta história vai dar o que falar!

  3. Amei!
    Vi minha história de vida em muitas passagens da vida das duas personagens principais.
    Parabéns, Tattah! Vc é muito incrível! Abç carinhoso!
    LüSoares

    • Eita, Luciene!

      Olha eu aqui te pedindo perdão de novo, por não ter te respondido o comentário na época em que foi postado. Peço mil desculpas por isso. Estou certa de que não recebi as notificações sobre os seus comentários e assim eles passaram batidos.

      Perdão mesmo.

      Fico muito feliz em saber que gostou da história e que se identificou com as personagens e algumas passagens da vida delas. Acho que isso quer dizer que escrevi direitinho, né?

      Te agradeço o carinho, de coração. Incrível é você e todas as moças que me dão a honra de acompanhar minhas histórias. Espero te encontrar nas próximas e que eu não cometa esse erro cruel de te deixar sem resposta por mais de um ano. 🙁

      Sinta-se abraçada!

      Um grande beijo!

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